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69 | 2004
Número não temático
Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/rccs/1358
ISSN: 2182-7435
Editora
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Edição impressa
Data de publição: 1 Outubro 2004
Paginação: 164-168
ISSN: 0254-1106
Refêrencia eletrónica
André Brito Correia, « Pais, Ana, O discurso da cumplicidade: dramaturgias contemporâneas », Revista
Crítica de Ciências Sociais [Online], 69 | 2004, colocado online no dia 01 outubro 2012, criado a 19 abril
2019. URL : http://journals.openedition.org/rccs/1358
Revista Crítica de Ciências Sociais, 69, Outubro 2004: 159-170
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académicos em Portugal (como, por exem- dição que se lhes atribui, pudessem enten-
plo, os de Flora Tristan). der e defender, falar em nome do seu pró-
As autoras estão conscientes da dificuldade prio sexo ou condição – como se cada um
das escolhas que fizeram e que encerram, estivesse inexoravelmente “fechado, arru-
até certo ponto, um grau de arbitrariedade mado no seu sexo”, para usar as palavras
e subjectividade (75), para além dos pró- aqui citadas do fundador do partido ope-
prios limites impostos pela inacessibilidade rário socialista francês, Jules Guesde (61).
de certos textos. Porque não escolher as Como a história prova, e as autoras de-
inglesas Harriet Martineau ou Harriet monstram, as vozes insubmissas que se le-
Taylor, por exemplo, cuja colaboração com vantaram nos séculos XVIII e XIX contra
o marido, John Stuart Mill, tem sido de- a sujeição das mulheres foram vozes que
fendida e simultaneamente contestada, aliaram a sua causa à das classes trabalha-
como aliás as autoras reconhecem (136-7)? doras, que se insurgiram contra a escrava-
Será certamente fácil encontrar outras tura e contra tantas outras formas de injus-
“vozes insubmissas” que aqui não estão tiça, discriminação e exploração humana.
representadas, mas isto só nos deve incitar Foram, portanto, vozes que se “desnativi-
a continuar este tipo de trabalho, trazendo zaram”, se me é permitido cunhar o ter-
a lume outros textos, também de outras mo, ou seja, que foram capazes de sair para
partes do mundo, que certamente eviden- fora das prisões naturalizadas do sistema
ciarão o que aqui já se vê tão claramente, patriarcal, racista e classista do seu tempo,
que o movimento feminista é, desde as suas que romperam com os limites da sua
origens, um movimento de vocação inter- própria condição e situação individual e
nacional. Também seria importante re- particularista e que estabeleceram solida-
cuperar do passado as vozes das feministas riedades mais latas, lutando por concreti-
portuguesas do início do século XX, figu- zar os ideais da era das revoluções, de liber-
ras como a já citada Ana de Castro Osório, dade e igualdade para todos.
Caiel e Maria Veleda, entre outras. Torna-se aqui também claro que as reivin-
Não é possível numa breve recensão fazer dicações e protestos feministas se manifes-
justiça à diversidade de questões que este tam desde a sua origem como uma pedra
livro aborda. Limito-me, portanto, a salien- no sapato da democracia, um pontapé nas
tar mais alguns aspectos que me parecem canelas da modernidade, um incómodo
relevantes e que poderão ser entendidos constante, que força a teoria da emanci-
como controversos por quem não conheça pação humana dita universal a enfrentar
a história que é aqui recuperada. Um deles as contradições das práticas de exclusão e
é o facto de se deixar bem claro que tanto opressão. A pergunta da inglesa Mary
mulheres como homens se encontram na Wollstonecraft, repetida de diferentes ma-
origem das ideias e dos movimentos pelos neiras em muitos outros textos, sobre a le-
direitos das mulheres e pelo seu acesso às gitimidade da tirania exercida sobre as
esferas do trabalho, do poder e do saber, mulheres por homens que se diziam defen-
contrariando a ideia, que me parece gene- sores da liberdade, era sem dúvida desas-
ralizada, pelo menos em Portugal, de que sossegante no final do século XVIII e de-
o feminismo é “coisa de mulheres” (e lá veria ser desassossegante agora. Cito da
vem a tal expressão de escárnio). É como página 103: “Não acha – e dirijo-me a si
se se tivesse instalado uma espécie de “na- como legislador [Talleyrand] – que, num
tivismo”, isto é, a ideia de que só os “nati- momento em que os homens lutam pela
vos” do sexo em que nasceram, ou da con- liberdade e para poderem decidir por si
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próprios da sua felicidade, subjugar as 173). Para Hubertine Auclert, negar esses
mulheres é uma contradição e uma injus- direitos às mulheres é uma ameaça à exis-
tiça […]? Quem concedeu ao homem a tência da igualdade entre os próprios ho-
exclusiva capacidade de julgar, se a mulher mens: “Uma República que mantenha as
partilha com ele o dom da razão?” Tam- mulheres numa condição de inferioridade
bém desassossegantes são os insistentes não poderá fazer homens iguais” (61).
ataques às concepções dominantes da “na- Mas se estes argumentos em registo “sério”
tureza” das mulheres e das diferenças con- não são suficientemente convincentes,
sideradas naturais entre os sexos, que talvez a pergunta jocosa e contundente do
determinavam – e em muitas partes do Marquês de Condorcet, no texto “Sur
mundo, hoje em dia, continuam a deter- l’admission des femmes au droit de cité”,
minar – o seu lugar na sociedade. As pala- publicado em 1790, seja capaz de desas-
vras de John Stuart Mill deveriam ter defi- sossegar as mentes mais acomodadas, de
nitivamente arrumado o assunto, se as suscitar o riso e a indignação, mas desta
memórias fossem longas e não fosse preci- vez dirigidos a quem persiste em manter a
so continuamente inventar a roda. Diz Mill quietude “natural” (ou naturalizada) das
em The Subjection of Women (publicado contradições da democracia moderna:
em 1869): “Partindo da base do senso co- “Por que razão seres expostos às gravidezes
mum e do desenvolvimento da mente hu- e às indisposições passageiras não podem
mana, recuso-me a aceitar que alguém co- exercer direitos que nunca ninguém pen-
nheça, ou possa conhecer, a natureza dos sou retirar às pessoas que sofrem de gota
dois sexos, na medida em que têm sido todos os invernos e que são atreitas a cons-
sempre vistos no quadro da actual relação tipações?” (86).
entre eles [...]. Aquilo que hoje se chama a
natureza das mulheres é algo de inteira- Teresa Tavares
mente artificial – resultado da repressão
forçada em certas direcções ou da estimu-
lação anormal noutras” (134). No presente Referências Bibliográficas
estado da sociedade, é portanto impossí- Cott, Nancy (1987), The Grounding of Mo-
vel determinar as diferenças “naturais” en- dern Feminism. New Haven: Yale UP.
tre os dois sexos e, de qualquer das for- Mill, John Stuart (1869), The Subjection of
mas, continua ele, essa questão nem sequer Women, in Miriam Schneir (org.) (1972),
é relevante, pois de acordo com os princí- Feminism: The Essential Historical Writings.
pios das sociedades democráticas, todos os New York: Vintage Books, 162-78.
indivíduos têm direito à autodeterminação Osório, Ana de Castro (1905), Às mulheres
e a iguais oportunidades para o desenvolvi- portuguesas. Lisboa: Livraria Editora Viú-
mento das suas capacidades (Mill, 1869: va Tavares Cardoso.
mais importante é um inquérito por ques- do trabalho pago e não pago. Ainda que
tionário aplicado em 1999, procura anali- a análise em torno das configurações de
sar as diferentes dimensões da divisão se- Estado-Providência proposta neste texto
xual e familiar do trabalho pago e não tenha um âmbito mais específico, ela vem
pago, abrindo caminho à melhor com- corroborar ideias já avançadas na década
preensão das práticas que neste plano têm de 90 por autores/as como Virgínia Fer-
lugar no território nacional. reira, Boaventura de Sousa Santos, Sílvia
O estudo desdobra-se em seis capítulos. Portugal e Pedro Hespanha, nomeada-
Algumas questões teóricas, nomeadamente mente no que respeita ao défice de actua-
as alusivas à problemática dos efeitos das ção do Estado português enquanto Estado-
orientações gerais do Estado e das políti- -Providência. Maurizio Ferrera viria a
cas sociais na divisão do trabalho entre chamar a este tipo de Estado-Providência
mulheres e homens, são exploradas ao lon- o modelo meridional ou mediterrânico,
go do primeiro capítulo. O/a leitor/a é no qual inclui Portugal, Espanha, Itália e
convidado/a a reflectir sobre os diferentes Grécia.
regimes de Estados-Providência e a forma No segundo e terceiro capítulos, analisa-
como eles se posicionam perante as ques- -se, a partir dos resultados do inquérito, uma
tões da diferença sexual e a articulação série de dados globais que permitem avaliar
entre o trabalho pago e não pago. Reto- os recursos e as condições de vida da po-
mando uma tipologia de Estados-Provi- pulação estudada e são exploradas infor-
dência fundamentada na caracterização das mações relativas à condição perante o tra-
soluções socioeducativas e do tipo de equi- balho e inserção profissional de mulheres
pamentos de apoio à primeira e segunda e homens inquiridas/os. Muitos dos resulta-
infância existentes nos diferentes países e dos expostos ao longo destes capítulos vêm
na identificação das posições de homens e reforçar ideias que estudos anteriores têm
mulheres perante o trabalho profissional, evidenciado, pondo a claro as diferenças
o Estado-Providência português é enqua- entre mulheres e homens, nomeadamente
drado no modelo deficitário, correspon- no respeitante aos rendimentos pessoais
dente ao grupo dos países da Europa do (ficando as primeiras em enorme desvan-
Sul, que se caracteriza por ser “deficitário tagem) e à estrutura do emprego.
e desigual quanto ao nível de investimen- No quarto capítulo, a atenção dos/as au-
tos públicos e ao grau de cobertura que o tores/as centra-se nas soluções relativas aos
estado oferece” (p. 21). A especificidade equipamentos socioeducativos e à guarda
do quadro português, marcado pela ele- das crianças encontradas pelas/os inquiri-
vada taxa de actividade feminina, em com- das/os, nas suas redes familiares e interge-
binação com o carácter incompleto do Es- racionais, assim como no apoio aos idosos.
tado-Providência, reflecte-se na escassez Desde logo, alerta-se para a situação preo-
dos instrumentos de política social no que cupante das crianças, dadas as insuficientes
toca às questões da igualdade sexual e de taxas de cobertura de equipamentos de
apoio à conciliação das esferas familiar e apoio à infância que se conjugam com al-
profissional. Os/as autores/as defendem tas percentagens de actividade feminina a
que só uma orientação para um modelo de tempo inteiro. Em relação às redes de
Estado-Providência alargado – caracterís- inter-ajuda, verifica-se, por um lado, que
tico dos países nórdicos, Bélgica e França – são as mulheres quem mais protagoniza
pode criar condições para a igualdade en- ajudas e apoios aos familiares e, por outro
tre mulheres e homens e para a conciliação lado, que são as pessoas com mais baixos
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rendimentos, que em princípio mais neces- lho das mulheres. Por outro lado, e ao con-
sitariam destes apoios, as que a eles menos trário do que seria de esperar, constata-se
recorrem ou podem recorrer. Finalmente, que a excessiva sobrecarga de trabalho das
no que se refere aos cuidados com idosos mulheres não encontra expressão nem na
dependentes, as/os autoras/es contrariam declaração de injustiça nem na declaração
claramente as ideias que tendem a apontar de conflitos.
a família como omissa neste domínio, já que Depois de uma análise das práticas no to-
constatam que é fundamentalmente com cante à divisão do trabalho pago e não pago
os apoios da família que estes idosos podem entre mulheres e homens, no sexto e últi-
contar, sendo poucos aqueles que estão em mo capítulo a análise centra-se nos valores,
lares. De resto, estes resultados vêm reforçar representações e atitudes dos/as inquiri-
os já obtidos em pesquisas anteriores. Por dos/as em torno destas questões. Percebe-
exemplo, Pedro Hespanha e Sílvia Portu- -se, desde logo, a existência de uma des-
gal, num estudo realizado sobre as trans- continuidade entre as práticas efectivas
formações e a regressão da família-providên- de divisão do trabalho e as representações
cia, mostraram claramente que, para ser que sobre elas são transmitidas, dada a
membro de uma rede de inter-ajuda, é significativa adesão a “valores modernos”
necessário possuir os meios necessários de aceitação das ideias de paridade, igual-
– isto é, ter alguma coisa para trocar. dade e simetria entre homens e mulheres
A articulação do trabalho pago e não pago (p. 172). No entanto, a adesão à partici-
é tratada no quinto capítulo. A análise pação e à simetria esbarra numa visão
desenvolvida dá conta da inequívoca assi- “tradicionalista” da relação dos homens
metria de posições de mulheres e de ho- entre trabalho e vida familiar: os homens
mens na divisão do trabalho pago e não devem participar no mundo doméstico,
pago. Mesmo trabalhando no exterior mas devem privilegiar o trabalho. De acor-
aproximadamente o mesmo número de do com os/as autores/as, é precisamente
horas do que os homens, as mulheres rea- aqui que o plano dos valores se ancora nas
lizam a quase totalidade do trabalho não práticas observadas, uma vez que as reser-
remunerado. As/os autoras/es procuram vas colocadas nestas questões se concre-
explicar esta assimetria em desfavor das tizam nas assimetrias observáveis nos pa-
mulheres, reportando-se não só a algumas drões de divisão do trabalho.
especificidades da sociedade portuguesa, O livro termina com uma síntese dos as-
mas também a mecanismos globais que pectos mais marcantes sobre a situação
condicionam a divisão do trabalho entre portuguesa no que respeita à divisão se-
homens e mulheres, especificamente a xual e familiar do trabalho pago e não pago
grande concentração de mulheres em sec- suscitados ao longo da pesquisa. Os/as
tores profissionais mal pagos e pouco qua- autores/as rematam advogando a possibi-
lificados. É que estes constrangimentos de lidade de as políticas de igualdade entre
ordem externa acabam por se constituir mulheres e homens permitirem uma repar-
numa fonte de legitimação da divisão assi- tição mais equilibrada entre trabalho e
métrica do trabalho não pago no seio da família pela articulação de três tipos de
relação conjugal, na medida em que resul- direitos: “os direitos das mulheres ao tra-
tam na sobrevalorização do vencimento do balho e à família, os direitos dos homens
cônjuge masculino enquanto principal fon- ao trabalho e à família e os direitos das crian-
te de subsistência do agregado familiar e ças como responsabilidade que deve im-
na consequente desvalorização do traba- plicar os pais e toda a sociedade” (p. 185).
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(relativamente quer à construção, quer à ideias. Falo, sim, de exemplos que prolon-
apresentação desse mesmo espectáculo). gassem a reflexão e que servissem como
Nesta acção comum, o público tem um pequenos “ensaios” de aplicação das suas
papel significativo. “[O] espectador par- pistas teóricas, pois, dada a riqueza e
ticipa das condições ontológicas necessá- carácter sedutor destas últimas, estabele-
rias para a realização do acto performativo, cer-se-ia talvez uma relação ainda mais
modificando-o pela leitura individual que cúmplice com o leitor e reforçar-se-ia a vali-
dele constrói, permanecendo em si através dade do livro como instrumento de traba-
da memória. Também ao nível da recepção, lho para pesquisas com carácter empírico.
a cumplicidade, na acepção de acção co- Por outro lado, dada a sustentabilidade e
mum, é um factor central.” (p. 93). inovação das hipóteses e contributos apre-
No último ponto da segunda parte do livro sentados, o leitor, espicaçado na sua re-
aqui em análise, e aproveitando os elemen- flexão, não deixa de se interrogar sobre o
tos teóricos propostos, Ana Pais discute de outro lado da cumplicidade. Se a drama-
que forma o teatro e a dramaturgia apare- turgia é um discurso cuja lógica é a de es-
cem e podem aparecer como metáforas e truturar sentidos construindo relações de
como invasões terminológicas em territó- cumplicidade entre artistas, público e ma-
rios não artísticos, metáforas e invasões à teriais cénicos, o que é que neste jogo fica
luz das quais o mundo se abre à nossa inte- de fora? O que é que é excluído e fica no
ligibilidade e se constitui. exterior do pacto constituído pela cons-
Fazendo, agora, uma análise mais geral, trução e representação teatrais? Que im-
considero que o livro de Ana Pais é sólido plicações políticas têm essas não-escolhas
e denso do ponto de vista teórico. Grande poéticas? Dou um exemplo breve. Várias
parte dos seus méritos foram já referidos das performances contemporâneas tradu-
anteriormente, quando discuti a maneira zem-se em criações artísticas que se apre-
como a autora nos oferece quer uma análise sentam em lugares não convencionais da
histórica quer uma proposta teórica da cidade e promovem um diálogo com esse
dramaturgia capazes de esbater o nevoeiro meio urbano, suas histórias, espaços e cida-
de ambiguidades e confusões que essa dãos. Quando se escolhem determinados
prática e discurso artísticos muitas vezes elementos para estas criações (e podem ser
suscitam quando os tentamos definir. materiais tão diversos como testemunhos
Gostaria, no entanto, de deixar também e histórias de habitantes como sons e ima-
dois pontos referentes a um potencial de gens dessas mesmas áreas), qual o signifi-
reflexão que o livro, em meu entender, cado em termos políticos, ou seja, de rela-
talvez pudesse ter explorado de forma mais ção com a cidadania e com a comunidade,
aprofundada. que se está a promover? Que públicos se
Em primeiro lugar, penso que a obra em acaba por atrair e que públicos se acaba
análise teria a ganhar se fosse mais repleta por afastar? Que estatuto, dignidade e
de exemplos concretos – referentes a es- significado adquirem as memórias, sons,
pectáculos de teatro ou dança – que acom- imagens e os habitantes da cidade quando
panhassem os elementos teóricos propos- deles se fala ou quando deles não se fala?
tos aquando da apresentação da teoria da Penso que estas interrogações têm também
cumplicidade. Não falo de exemplos “ilus- uma relação muito directa com o trabalho
trativos” que servissem para facilitar a lei- de dramaturgista e, incentivados pela lei-
tura, pois a autora é muito clara, coerente tura de O discurso da cumplicidade, somos
e estruturada na apresentação das suas tentados a querer ver respostas para elas à
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