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Revista Crítica de Ciências Sociais

69 | 2004
Número não temático

Pais, Ana, O discurso da cumplicidade: dramaturgias


contemporâneas
André Brito Correia

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/rccs/1358
ISSN: 2182-7435

Editora
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Edição impressa
Data de publição: 1 Outubro 2004
Paginação: 164-168
ISSN: 0254-1106

Refêrencia eletrónica
André Brito Correia, « Pais, Ana, O discurso da cumplicidade: dramaturgias contemporâneas », Revista
Crítica de Ciências Sociais [Online], 69 | 2004, colocado online no dia 01 outubro 2012, criado a 19 abril
2019. URL : http://journals.openedition.org/rccs/1358
Revista Crítica de Ciências Sociais, 69, Outubro 2004: 159-170

Recensões

Carmo, Isabel do; Lígia Amâncio, Desamaldiçoar o feminismo. A propósito


de Vozes Insubmissas. A história das mulheres e dos homens que lutaram
pela igualdade dos sexos quando era crime fazê-lo. Lisboa: D. Quixote,
2004, 234 pp.
Em Vozes Insubmissas, Isabel do Carmo e europeus e nos Estados Unidos da América,
Lígia Amâncio atrevem-se a usar os termos tendo chegado cedo a Portugal, como de-
feminismo e feminista destemidamente, sem monstram as palavras de Ana de Castro Osó-
apologias e sem adversativas. É muito co- rio, que a invoca como se fosse já amplamen-
mum (se calhar cada vez mais) ouvir-se frases te usada – e também contestada – em 1905.
como “Eu sou a favor dos direitos das mu- Passado um século, as reacções ao termo
lheres ou da igualdade, mas… não sou femi- parecem não ter mudado muito, sendo de
nista”. Não resisto a citar aqui as palavras louvar uma iniciativa como esta que se
de Ana de Castro Osório, escritas em 1905, propõe contribuir para alterar este estado
chamando a atenção para todo o optimis- de coisas. Confrontando, surpresas, como
mo contido na pequena palavra “ainda”, dizem na apresentação da obra, a “insis-
que augura uma época em que a situação tente censura sobre o termo e a obstinada
que esta autora denuncia deixará de fazer ignorância sobre o movimento”, Isabel do
sentido: “Feminismo: é ainda em Portugal Carmo e Lígia Amâncio decidiram arrega-
uma palavra de que os homens se riem ou çar as mangas e atravessar o rio do esqueci-
se indignam […] e de que a maioria das mento para “trazer ao público, em geral, a
mulheres coram, coitadas, como de falta origem do feminismo no pensamento mo-
grave cometida por algumas colegas, mas derno, através da vida de alguns dos seus
de que elas não são responsáveis, louvado fundadores e fundadoras, procurando evi-
Deus!” (Osório, 1905: 11). Razão têm as denciar o contexto de emergência das suas
autoras de Vozes Insubmissas ao dizerem, ideias e as ligações entre elas e outras ideias
logo na apresentação da obra, que feminis- fundadoras da modernidade” (11). Para
mo é “uma palavra maldita. Um termo que além dos textos introdutórios em que traçam
suscita reacções indignadas, risos, ou o pre- o quadro histórico e ideológico em que se
sunçoso comentário de que ‘isso já passou insere o feminismo como pensamento crítico
de moda’” (11). Era bom que assim fosse. e como movimento social e político, as au-
Mas porque não é, este livro propõe-se toras oferecem-nos também uma breve
“desamaldiçoar” o feminismo, trazendo à cronologia da luta pela igualdade de direi-
memória tão apagada de hoje as origens tos das mulheres, excertos de variados textos
setecentistas e oitocentistas das ideias e dos de feministas e anti-feministas, biografias
movimentos pelos direitos das mulheres a de figuras da primeira vaga do feminismo
que, só nos finais do século XIX, seria dado na Europa, como Condorcet, Olympe de
o nome de feminismo (pela francesa Hu- Gouges, Mary Wollstonecraft, Flora Tris-
bertine Auclert, que é aqui objecto de uma tan, John Stuart Mill, Clara Zetkin e Rosa
breve nota biográfica [70-71]) (Cott, 1987: Luxemburg, entre outras, terminando com
14). Aliás, é interessante notar como a pa- uma pequena antologia de textos “notáveis”,
lavra rapidamente se propagou nos países pouco acessíveis fora de restritos círculos
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académicos em Portugal (como, por exem- dição que se lhes atribui, pudessem enten-
plo, os de Flora Tristan). der e defender, falar em nome do seu pró-
As autoras estão conscientes da dificuldade prio sexo ou condição – como se cada um
das escolhas que fizeram e que encerram, estivesse inexoravelmente “fechado, arru-
até certo ponto, um grau de arbitrariedade mado no seu sexo”, para usar as palavras
e subjectividade (75), para além dos pró- aqui citadas do fundador do partido ope-
prios limites impostos pela inacessibilidade rário socialista francês, Jules Guesde (61).
de certos textos. Porque não escolher as Como a história prova, e as autoras de-
inglesas Harriet Martineau ou Harriet monstram, as vozes insubmissas que se le-
Taylor, por exemplo, cuja colaboração com vantaram nos séculos XVIII e XIX contra
o marido, John Stuart Mill, tem sido de- a sujeição das mulheres foram vozes que
fendida e simultaneamente contestada, aliaram a sua causa à das classes trabalha-
como aliás as autoras reconhecem (136-7)? doras, que se insurgiram contra a escrava-
Será certamente fácil encontrar outras tura e contra tantas outras formas de injus-
“vozes insubmissas” que aqui não estão tiça, discriminação e exploração humana.
representadas, mas isto só nos deve incitar Foram, portanto, vozes que se “desnativi-
a continuar este tipo de trabalho, trazendo zaram”, se me é permitido cunhar o ter-
a lume outros textos, também de outras mo, ou seja, que foram capazes de sair para
partes do mundo, que certamente eviden- fora das prisões naturalizadas do sistema
ciarão o que aqui já se vê tão claramente, patriarcal, racista e classista do seu tempo,
que o movimento feminista é, desde as suas que romperam com os limites da sua
origens, um movimento de vocação inter- própria condição e situação individual e
nacional. Também seria importante re- particularista e que estabeleceram solida-
cuperar do passado as vozes das feministas riedades mais latas, lutando por concreti-
portuguesas do início do século XX, figu- zar os ideais da era das revoluções, de liber-
ras como a já citada Ana de Castro Osório, dade e igualdade para todos.
Caiel e Maria Veleda, entre outras. Torna-se aqui também claro que as reivin-
Não é possível numa breve recensão fazer dicações e protestos feministas se manifes-
justiça à diversidade de questões que este tam desde a sua origem como uma pedra
livro aborda. Limito-me, portanto, a salien- no sapato da democracia, um pontapé nas
tar mais alguns aspectos que me parecem canelas da modernidade, um incómodo
relevantes e que poderão ser entendidos constante, que força a teoria da emanci-
como controversos por quem não conheça pação humana dita universal a enfrentar
a história que é aqui recuperada. Um deles as contradições das práticas de exclusão e
é o facto de se deixar bem claro que tanto opressão. A pergunta da inglesa Mary
mulheres como homens se encontram na Wollstonecraft, repetida de diferentes ma-
origem das ideias e dos movimentos pelos neiras em muitos outros textos, sobre a le-
direitos das mulheres e pelo seu acesso às gitimidade da tirania exercida sobre as
esferas do trabalho, do poder e do saber, mulheres por homens que se diziam defen-
contrariando a ideia, que me parece gene- sores da liberdade, era sem dúvida desas-
ralizada, pelo menos em Portugal, de que sossegante no final do século XVIII e de-
o feminismo é “coisa de mulheres” (e lá veria ser desassossegante agora. Cito da
vem a tal expressão de escárnio). É como página 103: “Não acha – e dirijo-me a si
se se tivesse instalado uma espécie de “na- como legislador [Talleyrand] – que, num
tivismo”, isto é, a ideia de que só os “nati- momento em que os homens lutam pela
vos” do sexo em que nasceram, ou da con- liberdade e para poderem decidir por si
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próprios da sua felicidade, subjugar as 173). Para Hubertine Auclert, negar esses
mulheres é uma contradição e uma injus- direitos às mulheres é uma ameaça à exis-
tiça […]? Quem concedeu ao homem a tência da igualdade entre os próprios ho-
exclusiva capacidade de julgar, se a mulher mens: “Uma República que mantenha as
partilha com ele o dom da razão?” Tam- mulheres numa condição de inferioridade
bém desassossegantes são os insistentes não poderá fazer homens iguais” (61).
ataques às concepções dominantes da “na- Mas se estes argumentos em registo “sério”
tureza” das mulheres e das diferenças con- não são suficientemente convincentes,
sideradas naturais entre os sexos, que talvez a pergunta jocosa e contundente do
determinavam – e em muitas partes do Marquês de Condorcet, no texto “Sur
mundo, hoje em dia, continuam a deter- l’admission des femmes au droit de cité”,
minar – o seu lugar na sociedade. As pala- publicado em 1790, seja capaz de desas-
vras de John Stuart Mill deveriam ter defi- sossegar as mentes mais acomodadas, de
nitivamente arrumado o assunto, se as suscitar o riso e a indignação, mas desta
memórias fossem longas e não fosse preci- vez dirigidos a quem persiste em manter a
so continuamente inventar a roda. Diz Mill quietude “natural” (ou naturalizada) das
em The Subjection of Women (publicado contradições da democracia moderna:
em 1869): “Partindo da base do senso co- “Por que razão seres expostos às gravidezes
mum e do desenvolvimento da mente hu- e às indisposições passageiras não podem
mana, recuso-me a aceitar que alguém co- exercer direitos que nunca ninguém pen-
nheça, ou possa conhecer, a natureza dos sou retirar às pessoas que sofrem de gota
dois sexos, na medida em que têm sido todos os invernos e que são atreitas a cons-
sempre vistos no quadro da actual relação tipações?” (86).
entre eles [...]. Aquilo que hoje se chama a
natureza das mulheres é algo de inteira- Teresa Tavares
mente artificial – resultado da repressão
forçada em certas direcções ou da estimu-
lação anormal noutras” (134). No presente Referências Bibliográficas
estado da sociedade, é portanto impossí- Cott, Nancy (1987), The Grounding of Mo-
vel determinar as diferenças “naturais” en- dern Feminism. New Haven: Yale UP.
tre os dois sexos e, de qualquer das for- Mill, John Stuart (1869), The Subjection of
mas, continua ele, essa questão nem sequer Women, in Miriam Schneir (org.) (1972),
é relevante, pois de acordo com os princí- Feminism: The Essential Historical Writings.
pios das sociedades democráticas, todos os New York: Vintage Books, 162-78.
indivíduos têm direito à autodeterminação Osório, Ana de Castro (1905), Às mulheres
e a iguais oportunidades para o desenvolvi- portuguesas. Lisboa: Livraria Editora Viú-
mento das suas capacidades (Mill, 1869: va Tavares Cardoso.

Torres, Anália Cardoso (org.), Francisco Vieira da Silva, Teresa Líbano


Monteiro, Miguel Cabrita, Homens e mulheres entre família e trabalho.
Lisboa: DEEP, 2004, 257 pp.
Homens e mulheres entre família e trabalho tante referência no âmbito dos estudos so-
é um trabalho coordenado por Anália Car- bre a família, e em particular sobre a con-
doso Torres, uma autora que é uma impor- jugalidade. Esta obra, cuja base empírica
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mais importante é um inquérito por ques- do trabalho pago e não pago. Ainda que
tionário aplicado em 1999, procura anali- a análise em torno das configurações de
sar as diferentes dimensões da divisão se- Estado-Providência proposta neste texto
xual e familiar do trabalho pago e não tenha um âmbito mais específico, ela vem
pago, abrindo caminho à melhor com- corroborar ideias já avançadas na década
preensão das práticas que neste plano têm de 90 por autores/as como Virgínia Fer-
lugar no território nacional. reira, Boaventura de Sousa Santos, Sílvia
O estudo desdobra-se em seis capítulos. Portugal e Pedro Hespanha, nomeada-
Algumas questões teóricas, nomeadamente mente no que respeita ao défice de actua-
as alusivas à problemática dos efeitos das ção do Estado português enquanto Estado-
orientações gerais do Estado e das políti- -Providência. Maurizio Ferrera viria a
cas sociais na divisão do trabalho entre chamar a este tipo de Estado-Providência
mulheres e homens, são exploradas ao lon- o modelo meridional ou mediterrânico,
go do primeiro capítulo. O/a leitor/a é no qual inclui Portugal, Espanha, Itália e
convidado/a a reflectir sobre os diferentes Grécia.
regimes de Estados-Providência e a forma No segundo e terceiro capítulos, analisa-
como eles se posicionam perante as ques- -se, a partir dos resultados do inquérito, uma
tões da diferença sexual e a articulação série de dados globais que permitem avaliar
entre o trabalho pago e não pago. Reto- os recursos e as condições de vida da po-
mando uma tipologia de Estados-Provi- pulação estudada e são exploradas infor-
dência fundamentada na caracterização das mações relativas à condição perante o tra-
soluções socioeducativas e do tipo de equi- balho e inserção profissional de mulheres
pamentos de apoio à primeira e segunda e homens inquiridas/os. Muitos dos resulta-
infância existentes nos diferentes países e dos expostos ao longo destes capítulos vêm
na identificação das posições de homens e reforçar ideias que estudos anteriores têm
mulheres perante o trabalho profissional, evidenciado, pondo a claro as diferenças
o Estado-Providência português é enqua- entre mulheres e homens, nomeadamente
drado no modelo deficitário, correspon- no respeitante aos rendimentos pessoais
dente ao grupo dos países da Europa do (ficando as primeiras em enorme desvan-
Sul, que se caracteriza por ser “deficitário tagem) e à estrutura do emprego.
e desigual quanto ao nível de investimen- No quarto capítulo, a atenção dos/as au-
tos públicos e ao grau de cobertura que o tores/as centra-se nas soluções relativas aos
estado oferece” (p. 21). A especificidade equipamentos socioeducativos e à guarda
do quadro português, marcado pela ele- das crianças encontradas pelas/os inquiri-
vada taxa de actividade feminina, em com- das/os, nas suas redes familiares e interge-
binação com o carácter incompleto do Es- racionais, assim como no apoio aos idosos.
tado-Providência, reflecte-se na escassez Desde logo, alerta-se para a situação preo-
dos instrumentos de política social no que cupante das crianças, dadas as insuficientes
toca às questões da igualdade sexual e de taxas de cobertura de equipamentos de
apoio à conciliação das esferas familiar e apoio à infância que se conjugam com al-
profissional. Os/as autores/as defendem tas percentagens de actividade feminina a
que só uma orientação para um modelo de tempo inteiro. Em relação às redes de
Estado-Providência alargado – caracterís- inter-ajuda, verifica-se, por um lado, que
tico dos países nórdicos, Bélgica e França – são as mulheres quem mais protagoniza
pode criar condições para a igualdade en- ajudas e apoios aos familiares e, por outro
tre mulheres e homens e para a conciliação lado, que são as pessoas com mais baixos
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rendimentos, que em princípio mais neces- lho das mulheres. Por outro lado, e ao con-
sitariam destes apoios, as que a eles menos trário do que seria de esperar, constata-se
recorrem ou podem recorrer. Finalmente, que a excessiva sobrecarga de trabalho das
no que se refere aos cuidados com idosos mulheres não encontra expressão nem na
dependentes, as/os autoras/es contrariam declaração de injustiça nem na declaração
claramente as ideias que tendem a apontar de conflitos.
a família como omissa neste domínio, já que Depois de uma análise das práticas no to-
constatam que é fundamentalmente com cante à divisão do trabalho pago e não pago
os apoios da família que estes idosos podem entre mulheres e homens, no sexto e últi-
contar, sendo poucos aqueles que estão em mo capítulo a análise centra-se nos valores,
lares. De resto, estes resultados vêm reforçar representações e atitudes dos/as inquiri-
os já obtidos em pesquisas anteriores. Por dos/as em torno destas questões. Percebe-
exemplo, Pedro Hespanha e Sílvia Portu- -se, desde logo, a existência de uma des-
gal, num estudo realizado sobre as trans- continuidade entre as práticas efectivas
formações e a regressão da família-providên- de divisão do trabalho e as representações
cia, mostraram claramente que, para ser que sobre elas são transmitidas, dada a
membro de uma rede de inter-ajuda, é significativa adesão a “valores modernos”
necessário possuir os meios necessários de aceitação das ideias de paridade, igual-
– isto é, ter alguma coisa para trocar. dade e simetria entre homens e mulheres
A articulação do trabalho pago e não pago (p. 172). No entanto, a adesão à partici-
é tratada no quinto capítulo. A análise pação e à simetria esbarra numa visão
desenvolvida dá conta da inequívoca assi- “tradicionalista” da relação dos homens
metria de posições de mulheres e de ho- entre trabalho e vida familiar: os homens
mens na divisão do trabalho pago e não devem participar no mundo doméstico,
pago. Mesmo trabalhando no exterior mas devem privilegiar o trabalho. De acor-
aproximadamente o mesmo número de do com os/as autores/as, é precisamente
horas do que os homens, as mulheres rea- aqui que o plano dos valores se ancora nas
lizam a quase totalidade do trabalho não práticas observadas, uma vez que as reser-
remunerado. As/os autoras/es procuram vas colocadas nestas questões se concre-
explicar esta assimetria em desfavor das tizam nas assimetrias observáveis nos pa-
mulheres, reportando-se não só a algumas drões de divisão do trabalho.
especificidades da sociedade portuguesa, O livro termina com uma síntese dos as-
mas também a mecanismos globais que pectos mais marcantes sobre a situação
condicionam a divisão do trabalho entre portuguesa no que respeita à divisão se-
homens e mulheres, especificamente a xual e familiar do trabalho pago e não pago
grande concentração de mulheres em sec- suscitados ao longo da pesquisa. Os/as
tores profissionais mal pagos e pouco qua- autores/as rematam advogando a possibi-
lificados. É que estes constrangimentos de lidade de as políticas de igualdade entre
ordem externa acabam por se constituir mulheres e homens permitirem uma repar-
numa fonte de legitimação da divisão assi- tição mais equilibrada entre trabalho e
métrica do trabalho não pago no seio da família pela articulação de três tipos de
relação conjugal, na medida em que resul- direitos: “os direitos das mulheres ao tra-
tam na sobrevalorização do vencimento do balho e à família, os direitos dos homens
cônjuge masculino enquanto principal fon- ao trabalho e à família e os direitos das crian-
te de subsistência do agregado familiar e ças como responsabilidade que deve im-
na consequente desvalorização do traba- plicar os pais e toda a sociedade” (p. 185).
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Escrita de uma forma clara e de leitura sentações relativas à divisão do traba-


acessível, esta obra constitui-se, pelo seu lho pago e não pago entre mulheres e ho-
carácter abrangente e sistemático, numa mens.
base relevante para o conhecimento e
debate em torno das práticas e das repre- Mónica Lopes

Pais, Ana, O discurso da cumplicidade: dramaturgias contemporâneas.


Lisboa: Edições Colibri, 2004, 122 pp. (com prefácio de André Lepecki)
O discurso da cumplicidade: dramaturgias dade teatral têm privilegiado tradicional-
contemporâneas, de autoria de Ana Pais, é mente as questões do ofício do actor e do
um texto sobre a natureza e configurações encenador ou do papel do texto, por exem-
(históricas e actuais) da dramaturgia e da plo, ficando as práticas do dramaturgista
figura do dramaturgista. Surge com base numa região de subentendidos, de menor
na tese apresentada pela autora no âmbito saliência, ou de dependência. Ana Pais diz-
do Mestrado em Estudos de Teatro da -nos mesmo que “[a] dramaturgia é uma
Universidade de Lisboa, em 2002, tendo espécie de enclave ambíguo entre a encena-
sido objecto de diversas alterações, sobre- ção e o texto” (p. 15) e que “[r]aras vezes
tudo na sua segunda parte. A razão de ser é alvo de um estudo autónomo” (p. 15);
do título da obra aqui recenseada torna-se b) uma cartografia historicamente infor-
bem evidente. É que, para a autora, a dra- mada e atenta às práticas concretas dos
maturgia pode ser entendida como discur- dramaturgistas – a noção de dramaturgia
so da cumplicidade, ou seja, “relações de tem-se prestado, ao longo dos tempos, a
sentido que se estabelecem no tempo dan- diversos significados e interpretações, o
do a ver o espectáculo no espaço” (p. 87). que provoca por vezes dificuldade na sua
Ana Pais nasceu em 1974 e é licenciada em utilização. Trata-se daquilo a que a autora
Línguas e Literaturas Modernas pela Uni- chama “conceito-hidra” (p. 21 ss.), apro-
versidade de Lisboa. Exerceu funções de priado de formas distintas e suscitando
crítica de teatro nos jornais Público e Ex- equívocos e ambiguidades. Num esforço
presso, sendo igualmente oradora em di- de clarificação, precisão e avanço analítico,
versos encontros sobre artes performativas. a autora propõe ao leitor, na primeira parte
O discurso da cumplicidade: dramaturgias da obra, um passo inicial para sair deste
contemporâneas é um ensaio de cariz teó- conjunto polissémico rico mas ao mesmo
rico onde se cruzam referências e ideias tempo emaranhado. É um passo que pode
oriundas não só do campo dos estudos de ser definido como histórico-pragmático,
teatro, mas também de outras áreas, como ou seja, traça-se um percurso onde se vê
sejam, os estudos culturais, a estética e as aquilo que, em diferentes épocas históri-
ciências sociais. Para além disso, são apre- cas, se fazia quando se fazia trabalho dra-
sentadas e analisadas diversas afirmações matúrgico;
resultantes de entrevistas a dramaturgistas c) um entendimento amplo e actualizado
realizadas em 2000. – Ana Pais dá um segundo passo reflexivo
Este livro consegue de forma notável con- indo directamente à dimensão ontológica
ferir à noção de dramaturgia: da dramaturgia, o que lhe permite assumir
a) visibilidade e autonomia própria – com esta última como “modo de estruturar os
efeito, as reflexões e estudos sobre a reali- sentidos do espectáculo” (p. 74). Não que-
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rendo com isto esgotar as possibilidades gia” encontra-se na p. 66). Parte-se de


de entendimento do universo dramatúr- Aristóteles para referir a dramaturgia como
gico, a autora abre o caminho para uma composição dramática e a importância do
abordagem que não reduz a dramaturgia dramaturgo como criador de textos de ca-
nem ao trabalho de passar o texto para a riz dramático. Outro dos momentos mar-
cena nem ao trabalho de interpretação ou cantes situa-se no século XVIII, através de
encenação (coreografia) do espectáculo. Lessing (“a tradição alemã”), passando a
Com efeito, luz, som, movimento, cor são tornar-se saliente uma dramaturgia institu-
também portadores de significado e o en- cional implicada numa função didáctica e
tretecer das relações entre si e com outros na selecção de textos dramáticos capa-
intervenientes cénicos é igualmente objec- zes de constituir um reportório. Já no sé-
to de atenção dramatúrgica. Deste modo, culo XX, nos anos 30-50, e tendo em con-
torna-se lógico que o livro em causa, cen- ta mais especificamente o trabalho de Ber-
trado especialmente na actividade teatral, tolt Brecht, assistimos à manifestação de
se prolongue em considerações que tocam uma dramaturgia do espectáculo – ou seja,
a performance em geral ou a dança em par- “aquela que, determinada pelas contingên-
ticular; cias de cada produção e pelas funções esta-
d) um enquadramento teórico coerente e belecidas no seu interior, está relacionada
sedutor enraizado na ideia de cumplicidade com a figura do dramaturgista” (p. 26) –,
– Ana Pais avança ainda mais no seu estu- de autor e da leitura – ou seja, “modo de
do, dando um terceiro passo, o mais ino- estruturar o espectáculo a partir de um ele-
vador e ambicioso na tarefa de abordar o mento apriorístico” (p. 66). Desde os anos
universo dramatúrgico. Apresenta uma 60-70 do século passado e pensando na
conceptualização muito própria, entenden- performance nos EUA e na Europa, a
do que a dramaturgia se enraíza em três dramaturgia evidencia-se como prática que
eixos estruturadores da cumplicidade. cria e estabelece de forma estruturada os
Deste modo, a autora prossegue o seu tra- sentidos das criações artísticas. Mais recen-
balho de reflexão sobre uma prática que temente, anos 80-90, no contexto de diver-
é invisível mas indissociável do espectá- sos tipos de performance (nomeadamente
culo. É, no fundo, então, “o outro lado do em países, a este título, paradigmáticos,
espectáculo” (p. 71 ss.); se este último é, como sejam a Holanda e a Bélgica), ganhou
por natureza, visível, a dramaturgia é-lhe todo o sentido falar-se igualmente de dra-
co-substancial, tal como acontece entre o maturgia do olhar, isto é, uma noção “útil
côncavo e o convexo (por exemplo, p. 74). para compreender um modo de construção
Chegados aqui, convém referir com mais do espectáculo pós-moderno, que privile-
detalhe o que se pode encontrar nas duas gia uma estruturação de materiais, adqui-
partes centrais que constituem O discurso rindo forma e sentido durante o processo,
da cumplicidade: dramaturgias contem- através das transformações às quais esse
porâneas. Referi já que, na primeira parte, processo de criação se abre, sendo cons-
a autora procede a um mapeamento de titutivamente uma asserção temporária”
natureza histórica do conceito de drama- (p. 49). Este conceito abriga outros dois:
turgia. Para isso, detém-se em diversos a dramaturgia do espaço e a dramaturgia
momentos que se assumiram como tem- do espectador, ou seja, modos de entretecer
pos de mudança e reconfiguração no uni- os sentidos do espectáculo sendo o espaço
verso dramatúrgico (um quadro sinóptico e a maneira como o espectador desfruta
das “acepções do conceito de dramatur- da performance peças-chave neste proces-
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so. A acompanhar este mapeamento do são seleccionados e relacionados entre si e


território constituído pela dramaturgia, a outros em que tal não acontece. “Destas
autora revela uma preocupação, já ante- escolhas advém a cumplicidade que a
riormente aqui mencionada, em nos for- dramaturgia estabelece no seu discurso, ou
necer indicações muito concretas daquilo seja, de forma implícita os materiais rela-
que se faz quando se faz um trabalho dra- cionam-se, pregueiam implicações que
matúrgico. Tal pode ver-se pela descrição cabe ao espectador desvelar e à dramatur-
das actividades dos dramaturgistas no gia fundamentar.” (p. 78 e 79).
quadro sinóptico atrás referido, mas com b) pacto criminoso (p. 82-90) – esta quali-
maior detalhe, obviamente, nas considera- dade das relações cúmplices revela-se na
ções que o antecedem – por exemplo, veja- medida em que a dramaturgia transgride
-se a enumeração das funções actuais de o regime da visibilidade com o seu entrete-
quem se encarrega do trabalho de uma cer, mais periférico, de relações de sentido.
dramaturgia institucional (p. 25 e 26) bem “O visível é a lei cuja ordem definidora e
como a explicitação das práticas concre- legitimadora do espectáculo como aquilo
tas do dramaturgista na contemporanei- que se vê a dramaturgia desafia. No tea-
dade (p. 27 e 28). tro, a reescrita dos clássicos – encenações
Na segunda parte do livro, Ana Pais pro- que revêem o texto, evidenciando nele uma
põe-nos uma abordagem da dramaturgia perspectiva diferente – é talvez o exemplo
centrada especificamente na ideia de que mais declarado de acções criminosas, pois
esta última se constitui como discurso da reflectem leituras feitas a partir da perife-
cumplicidade. “Articulando materiais e es- ria do texto canónico.” (p. 83). A drama-
truturando o sentido do espectáculo, a turgia aparece como um território frontei-
dramaturgia estabelece cumplicidades en- riço onde surgem o inconformismo, a
tre o visível e o invisível, entre a concepção mudança, a contestação e a resistência;
e a concretização do espectáculo, fazendo além disso, este seu estatuto revela-se igual-
do público seu cúmplice no discurso.” mente na sua qualidade de zona de contac-
(p. 75 e 76). Inspirando-se numa análise tos e trocas, de cruzamentos e passagens.
etimológica da palavra cumplicidade, a Na construção dos objectos artísticos, o
autora vai definir e explicar as três di- dramaturgista “actua como um agente se-
mensões em que a dramaturgia pode ser creto, minando o processo (com interro-
teorizada: gações, textos, imagens, filmes, etc.) e aju-
a) implícito (p. 77-82) – esta qualidade das dando à transformação dos materiais do
relações cúmplices manifesta-se dada a espectáculo através da promoção de rela-
invisibilidade da dramaturgia; esta última, ções de cumplicidade possíveis.” (p. 90);
como se viu atrás, estrutura sentidos (ele- c) acção comum (p. 90-94) – esta qualidade
mentos invisíveis) que tornam possível a das relações cúmplices traduz-se no facto
presença visível do espectáculo e que par- de a dramaturgia se inserir como parte in-
ticipam assim neste último. “As opções que dissociável do espectáculo, este último
materializam o espectáculo no plano do entendido enquanto manifestação de uma
visível são dobradas por relações invisíveis arte colectiva e enquanto objecto que re-
que as integram.” (p. 78). Este facto não sulta da cooperação e ajuste de diferentes
anula a autonomia da dramaturgia nem a agentes dotados de saberes e fazeres espe-
sua condição ontológica específica. A es- cíficos. A dramaturgia, como estruturação
truturação dramatúrgica implica escolhas; de sentidos, regula e promove, à sua manei-
há sentidos e materiais com significado que ra, uma lógica de participação, portanto
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(relativamente quer à construção, quer à ideias. Falo, sim, de exemplos que prolon-
apresentação desse mesmo espectáculo). gassem a reflexão e que servissem como
Nesta acção comum, o público tem um pequenos “ensaios” de aplicação das suas
papel significativo. “[O] espectador par- pistas teóricas, pois, dada a riqueza e
ticipa das condições ontológicas necessá- carácter sedutor destas últimas, estabele-
rias para a realização do acto performativo, cer-se-ia talvez uma relação ainda mais
modificando-o pela leitura individual que cúmplice com o leitor e reforçar-se-ia a vali-
dele constrói, permanecendo em si através dade do livro como instrumento de traba-
da memória. Também ao nível da recepção, lho para pesquisas com carácter empírico.
a cumplicidade, na acepção de acção co- Por outro lado, dada a sustentabilidade e
mum, é um factor central.” (p. 93). inovação das hipóteses e contributos apre-
No último ponto da segunda parte do livro sentados, o leitor, espicaçado na sua re-
aqui em análise, e aproveitando os elemen- flexão, não deixa de se interrogar sobre o
tos teóricos propostos, Ana Pais discute de outro lado da cumplicidade. Se a drama-
que forma o teatro e a dramaturgia apare- turgia é um discurso cuja lógica é a de es-
cem e podem aparecer como metáforas e truturar sentidos construindo relações de
como invasões terminológicas em territó- cumplicidade entre artistas, público e ma-
rios não artísticos, metáforas e invasões à teriais cénicos, o que é que neste jogo fica
luz das quais o mundo se abre à nossa inte- de fora? O que é que é excluído e fica no
ligibilidade e se constitui. exterior do pacto constituído pela cons-
Fazendo, agora, uma análise mais geral, trução e representação teatrais? Que im-
considero que o livro de Ana Pais é sólido plicações políticas têm essas não-escolhas
e denso do ponto de vista teórico. Grande poéticas? Dou um exemplo breve. Várias
parte dos seus méritos foram já referidos das performances contemporâneas tradu-
anteriormente, quando discuti a maneira zem-se em criações artísticas que se apre-
como a autora nos oferece quer uma análise sentam em lugares não convencionais da
histórica quer uma proposta teórica da cidade e promovem um diálogo com esse
dramaturgia capazes de esbater o nevoeiro meio urbano, suas histórias, espaços e cida-
de ambiguidades e confusões que essa dãos. Quando se escolhem determinados
prática e discurso artísticos muitas vezes elementos para estas criações (e podem ser
suscitam quando os tentamos definir. materiais tão diversos como testemunhos
Gostaria, no entanto, de deixar também e histórias de habitantes como sons e ima-
dois pontos referentes a um potencial de gens dessas mesmas áreas), qual o signifi-
reflexão que o livro, em meu entender, cado em termos políticos, ou seja, de rela-
talvez pudesse ter explorado de forma mais ção com a cidadania e com a comunidade,
aprofundada. que se está a promover? Que públicos se
Em primeiro lugar, penso que a obra em acaba por atrair e que públicos se acaba
análise teria a ganhar se fosse mais repleta por afastar? Que estatuto, dignidade e
de exemplos concretos – referentes a es- significado adquirem as memórias, sons,
pectáculos de teatro ou dança – que acom- imagens e os habitantes da cidade quando
panhassem os elementos teóricos propos- deles se fala ou quando deles não se fala?
tos aquando da apresentação da teoria da Penso que estas interrogações têm também
cumplicidade. Não falo de exemplos “ilus- uma relação muito directa com o trabalho
trativos” que servissem para facilitar a lei- de dramaturgista e, incentivados pela lei-
tura, pois a autora é muito clara, coerente tura de O discurso da cumplicidade, somos
e estruturada na apresentação das suas tentados a querer ver respostas para elas à
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luz das qualidades dramatúrgicas enuncia- consideração de que estamos na presença


das por Ana Pais. De qualquer modo, tais de um livro muito estimulante e que abre
qualidades são também um ponto de par- pistas de grande valor heurístico para a
tida muito válido para se desenvolver o tra- abordagem das práticas dramatúrgicas na
balho de reflexão e análise da dramaturgia actualidade, quer no âmbito dos estudos
encarada na sua dimensão mais sócio- de teatro quer noutros domínios como a
-política. sociologia e a antropologia da arte.
Estes dois comentários anteriores não in-
validam, no entanto, de qualquer forma, a André de Brito Correia

Rodrigues, Donizete (org.), Em nome de Deus: a religião na sociedade


contemporânea. Porto: Edições Afrontamento, 2004.

Foi recentemente apresentado, no V Con- uma progressiva desconfessionalização e


gresso Português de Sociologia, o livro sob enquadramento institucional nas instâncias
a organização de Donizete Rodrigues, Em internacionais –, pelo menos, desde mea-
nome de Deus: a religião na sociedade con- dos dos anos setenta.
temporânea, editado pela Afrontamento. Em nome de Deus representa, assim, uma
Esta obra constitui, pela qualidade dos tex- nova aposta das ciências sociais, em Por-
tos e dos seus autores, um importante con- tugal, no campo religioso e o seu organi-
tributo para o estudo da religião, aspecto zador e autor, Donizete Rodrigues, dá pro-
que é reforçado se tivermos em linha de va de mais um investimento nesta área de
conta que o fenómeno religioso não tem investigação, após outros trabalhos publi-
sido objecto de uma reflexão sociológica cados, nomeadamente acerca de fenó-
aprofundada na sociedade portuguesa. menos e grupos religiosos relativamente
A ausência de estudos teórico-empíricos recentes ou pouco estudados no país, como
sobre a religião enquanto fenómeno ma- são os casos da IURD e da Igreja Evangé-
cro-societal, a ausência de referência às lica Cigana.
principais temáticas e problematizações da A obra em causa tem o mérito de reunir
sociologia da religião mais recente e a ine- contributos de especialistas em religião,
xistência de traduções de manuais impres- portugueses e estrangeiros, numa perspec-
cindíveis põem a nu o desfasamento da tiva de interdisciplinaridade, não se confi-
sociologia da religião que se faz em Por- nando, nessa medida, a autores com for-
tugal em relação à vasta produção que se mação em sociologia, mas também em
encontra quer noutros lugares da Europa, antropologia, em comunicação social e em
quer na América do Norte (EUA e Canadá) teologia.
e na América Latina, em especial no Brasil. No texto “A religião é a lógica da cultura”,
O facto de a sociologia da religião gozar, do antropólogo Raúl Iturra, a religião é
no quadro da produção científica portu- apresentada como matriz cultural da vida
guesa, de menor visibilidade no conjunto social. O autor ilustra o facto fazendo um
da disciplina assemelha-se à situação vivida percurso pelos clássicos, como Weber,
ao longo de várias décadas do século XX Marx, Durkheim e Mauss, relembrando
nos círculos sociológicos europeus. Sim- assim que a religião foi um tema fundamen-
plesmente, no exterior, a sociologia da reli- tal dos primeiros sociólogos. Efectiva-
gião adquiriu estatuto próprio – por via de mente, as primeiras discussões acerca do
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lugar da religião na sociedade moderna neste texto a pertinência das perspectivas


questionaram o papel que esse domí- substantiva e funcionalista no estudo da
nio passaria a ocupar socialmente no religião.
devir. Não muito distante desta problemática,
Começando por abordar a questão webe- Steve Fenton, sociólogo da Universidade
riana do desencantamento do mundo e a de Bristol, em “Modernidade, etnicidade
problemática da secularização, dominante e religião”, procura articular duas questões:
na sociologia da religião, Donizete Rodri- a crise da modernidade capitalista tardia
gues, em “O reencantamento do mundo: com a problemática das identidades reli-
modernidade, secularização e novos movi- giosas e étnicas. Concretamente, este autor
mentos religiosos”, procura traçar os con- identifica três crises na modernidade tar-
tornos da reconfiguração do universo reli- dia: a questão das igualdades/desigual-
gioso, reflectindo, por um lado, sobre as dades; o problema da comunidade e da
manifestações do sagrado e, por outro, so- coesão social; e a perda de referências mo-
bre a proliferação dos novos movimentos rais. As consequências destas crises no
religiosos. Ambos os aspectos deverão ser plano da religião e da etnicidade estão asso-
entendidos como elementos fundamentais ciadas aos fundamentalismos contemporâ-
da religiosidade contemporânea e como neos. Este tema e a reflexão que o mesmo
fenómenos que contrariam as concepções suscita revela-se de extrema pertinência
lineares da secularização. A questão da num momento em que a Europa e todo o
dessacralização é, aliás, também abordada Ocidente se sentem ameaçados pela
por Manuel da Silva e Costa (“Religião e emergência de novos grupos religiosos, al-
sociedade: a eficácia da religião e a religião guns dos quais envolvendo componentes
da eficácia”), que aponta a importância étnicas e políticas. Nas representações de
atribuída à eficácia e à competitividade muitos europeus, o fenómeno do islamis-
pela sociedade capitalista contemporânea mo, por exemplo, adquire a configuração
como factor de desumanização. de um fantasma de um passado remoto
O tema da globalização e da modernidade que, no presente, sofre conotação imediata
avançada é também objecto de reflexão de fundamentalismo religioso, de violência
nesta obra. Peter Beyer e Victor Pereira da ou, de forma mais radical, de terrorismo.
Rosa – respectivamente, sociólogo e antro- Os integrismos e fundamentalismos são
pólogo da Universidade de Ottawa – evi- temas igualmente abordados de forma par-
denciam, em “Globalização e religiosidade: ticularizada em dois textos: “Fundamen-
leituras e conjunturas”, os principais parâ- talismo religioso e violência”, do teólogo
metros da discussão acerca das dicotomias Joaquim Carreira das Neves, e “Deus no
local/global e particular/universal, no meio da guerra: as religiões na encruzilhada
quadro da religião, sublinhando que subja- dos conflitos contemporâneos”, do jor-
cente ao debate está o vasto tema do plu- nalista António Marujo. Carreira das Neves
ralismo. Para estes autores, a modernidade, escreve sobre o fundamentalismo religio-
cada vez mais globalizada, tende a conce- so que sustenta o conflito israelo-pales-
ber a religião como um sistema diferencia- tiano, tendo por base uma reflexão sobre
do de comunicação – tema recorrente em as apropriações da Bíblia e do Corão, en-
Beyer, sob inspiração de Luhmann. Isso quanto António Marujo apresenta diver-
está patente nas diversidades religiosas sas ilustrações no sentido de evidenciar o
contemporâneas, que coexistem ao nível paradoxo de a religião ser simultaneamente
da sociedade global. É ainda equacionada um fundamento de guerra e de paz. O au-
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tor enfatiza a necessidade de se trabalhar meno simultaneamente preconizador de


no sentido de inverter a lógica segregacio- novas escatologias. Estamos perante mais
nista dominante no discurso religioso e de um exemplo que corrobora a tese de que
se promover uma educação para a paz. o incremento da mobilidade social e espa-
Num registo mais confessional, Mário Ro- cial tem produzido uma significativa mis-
balo, com o texto “Da utopia de um Cris- tura de crenças e de práticas e modalidades
tianismo sem religião”, transporta-nos para religiosas diluídas na vida social que vêm
as vivências da Igreja primitiva, bem como questionar as cartografias religiosas tradi-
das suas características e dinâmicas, num cionais.
exercício apologético de um cristianismo Finalmente, “A renovação carismática
enquanto movimento religioso por contra- católica no Brasil: uma revisão da bibliogra-
ponto ao seu desenvolvimento histórico fia”, de Cecília Loreto Mariz, da Universi-
como religião instituída. dade do Estado do Rio de Janeiro, ao de-
Donizete Rodrigues e Ana Paula Santos, bruçar-se sobre o movimento carismático
ao apresentarem os resultados do seu es- católico, dá conta da reacção de certos sec-
tudo sobre “O movimento pentecostal tores da Igreja Católica ao expansionismo
cigano: o caso da Igreja Evangélica de Fi- do protestantismo neo-pentecostal na
ladélfia de Portugal”, centrando-se, deste América Latina e, concretamente, no Bra-
modo, num grupo religioso minoritário, sil. Cecília Mariz reflecte, em particular,
ilustram como etnicidade e religião se en- sobre a literatura produzida a propósito
trecruzam e como o fenómeno global do deste fenómeno, evidenciando diferentes
neo-pentecostalismo se adequa a contex- tipos de abordagens. Enquanto alguns es-
tos sociais locais e concretos, como é o caso tudos colocam a tónica na “estratégia de
da Igreja Evangélica Filadélfia na socie- marketing” da Igreja Católica para enfren-
dade portuguesa. Esta Igreja tem a singula- tar a concorrência de novos grupos e re-
ridade de combinar elementos da cultura forçar a instituição, outros enfatizam as
cigana com o culto religioso, facto que se relações e clivagens dentro da hierarquia
manifesta através do tipo de música pre- do movimento católico carismático bra-
sente nas formas de expressão ritual e que sileiro.
acaba por reforçar a identidade e a coesão Num mundo progressivamente mais glo-
social do grupo. bal, a diversidade religiosa tem vindo a
“Um movimento milenarista japonês e a anular as tradicionais correspondências
construção do paraíso na terra: o caso da entre Estado-Nação e cultura religiosa, e
Igreja Messiânica Mundial do Brasil” é o as novas manifestações de religiosidade, os
título do artigo de Peter Clarke (sociólogo novos grupos que se constroem e recon-
do King’s College, Universidade de vertem, sejam eles de natureza neoconser-
Londres). Aqui, é possível tomarmos con- vadora ou emancipatória, não deixam de
tacto com outro fenómeno de profunda constituir, como bem evidenciam os vários
actualidade e disseminação que é o do New textos presentes neste livro, estratégias de
Age. O estudo de caso, acerca da Igreja afirmação da subjectividade frente àquilo
Messiânica Mundial do Brasil, é significa- que Habermas designa por “colonização
tivo do sincretismo religioso, alimentado do mundo da vida”.
por filosofias de raiz orientalista e associa-
do a novos estilos de vida ecológicos, fenó- Helena Vilaça

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