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de Freitas, Ricardo Kanayama, Ricardo Máximo Gomes
M345p Ferraz, Ricardo Timm de Sousa, Rodrigo Ferreira Alves,
2.ed. Rodrigo Ghiringheli de Azevedo, Rodrigo Kanayama,
Rodrigo Machado Gonçalves, Rogério Garcia, Rubens
Martins, Rui Cunha Casara, Rufino Rodrigues de Sousa, Ruth Maria Chittó
O ponto cego do direito: the brazilian lessons / Rui Cunha Martins. - 2.ed. -
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
Gauer, SaIo de Carvalho, Sandro Trotta, Sylvio Ricart,
248p.: 21 cm Teodomiro Cardoso e Vanessa Spinosa.

Inclui bibliografia e indice Estou-lhes profundamente agradecido. Devolvo-lhes,


ISBN 978-85-375-1106-0 em forma de livro, o muito que com eles aprendi nestes
1. Prova (Direito). 2. Direito - Filosofia. 3. Processo penal. I. Título.
últimos anos.

CDU: 343.1
11-5110.
10.08.11 18.08.11 028843
rem a "turbulência dos centros de determinação constitucional". Rui
Cunha Martins coloca o dedo na ferida relativamente ao dirigismo pe-
Ponto Cego
riférico: o direito na "desordem global" só pode compreender-se como
um quadro hierárquico no qual o próprio "constitucionalismo periféri-
co" terá de inserir-se num esquema de coexistência e cooperação.
Em síntese: se tivéssemos de fornecer ao leitor uma palavra de
descodificação do itinerário de Rui Cunha Martins essa encontrá-
A Medicina, a História, o Direito e a Comunicação Social,
-la-íamos na metáfora do dique: "a metáfora do dique é, em rigor,
todas estas áreas são galáxias da percepção e da luz. Não é
a metáfora do homem por trás do dique, que o pode mover e que o
circunstancial que todas elas lidem, de urna forma ou de ou-
pode fazer num sentido ou noutro, manifestando, nessa decisão, o
tra, com o problema da prova. Na medida em que produzem
lugar autoral que é o seu". Sempre o "limite", sempre a "fronteira",
diagnósticos, interessam-se pelas condições do que pode di-
sempre o "ponto", sempre o ''jogo no limite". Sempre o fulgor da
zer-se ter ocorrido; cuidam do testemunho e das condições
demarcação libertadora!
que rodeiam a sua recolha; importam-se com o relato; insta-
lam-se nos cruzamentos entre a fonte, a percepção e a decisão;
J J Gomes Canotilho
especializam-se no visível; acreditam numa devolução de vi-
Julho de 2011
sibilidade ao que a não tem; aceitam responder a expectativas
de trazer à luz aquilo que se acredita ter-lhe sido roubado. É
por isso que têm sempre, por definição, pontos cegos. Todo o
campo de visão os tem. Eles são consubstanciais ao exercício
do olhar. O ponto cego é privilégio de quem vê.
Dito isto, ele traduz um preço a pagar. O ponto cego é
também a expressão de um excesso de confiança naquele pri-
vilégio e nas capacidades conjugadas dos sentidos e da razão
para ver e para decidir. No caso do sistema jurídico, e, sobre-
tudo, do sistema jurídico em rota de navegação pelas galáxias
políticas e sociais, esse excesso pode dar-se de duas maneiras.
Ou enquanto alucinação dos materiais, isto é, enquanto pressão
exacerbada sobre as propriedades e funções do próprio direi-
to (daí resultando, por exemplo, fenómenos como tolerância
zero, redução de garantias, pressão punitiva, obsessão secu-
ritária, crispação probatória), e, neste caso, o critério estético
desse excesso é a ostensão; ou enquanto turbulência de escalas,
isto é, enquanto deslocamento multidireccional dos sujeitos
e dos referentes da ordem jurídica (daí resultando um tipo
de fenómenos que a sobreposição de escalas constitucionais
ilustra perfeitamente), e, neste caso, o critério estético desse

xii 1
Rui Cunha Martins

excesso é a dispersão. Num caso como noutro, a intensifica- Capítulo 1


ção do exi~tente imprime um excesso de visibilidade, uma so-
bre-focagem num objecto considerado em fuga e que importa A Prova Alucinada
captar sob qualquer condição. Um objecto que desaparecerá,
fatalmente, do horizonte do olhar, no momento exacto em
que parece iminente a sua captura. Escondendo-se, doravan-
te, no!onto cego.
E desta impossibilidade de captura que me ocupo. Diz-se evidente o que dispensa a prova. Simulacro de
auto-referencialidade, pretensão de uma justificação centrada
em si mesmo, a evidência corresponde a uma satisfação de-
masiado rápida perante indicadores de mera plausibilidade.
De alguma maneira, a evidência instaura um desamor do con-
traditório. Dotada de semelhante quadro de valências, suposto
seria que ela visse blindada a sua participação em qualquer
dispositivo crítico ou processual destinado a instituir-se em
limite contra a arbitrariedade. Mas as coisas não se passam
desse modo linear. Desde logo, por via dos elevados índices
de porosidade característicos das modalidades de constran-
gimento à evidência que encontramos no âmbito dos regimes
da prova e da verdade. E, depois, por via da própria capaci-
dade da evidência para se instalar no que seriam, à partida, os
seus pólos opostos - é, designadamente, o caso da convicção,
nunca suficientemente resguardada da crença que nela está
subsumida e que nela é expressão da evidência, e é o caso da
prova, cujos momentos de desregulação e cujas expressões de
excesso ou ostensividade a inclinam, sem retomo, para o lado
da evidência.
Assim posta a questão, há um aspecto fundamental
a reter. A premonição contra as insinuações processuais da
evidência não se alcança mediante uma mera acentuação do
carácter corrector da prova - porque a prova é sequestrável
- mas sim através de uma permanente atenção aos modos
da prova, ou, dito de outra forma, ao ambiente de captação
e instalação da prova, que é onde verdadeiramente se joga a
sua maior ou menor capacidade de filtragem. A prova, por si
só, como bandeira de legalidade ou de legitimação de juízo,

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Rui Cunha Martins o Ponto Cego do Direito
The Brazilian Lessons

de pouco serve. Processualmente falando, a prova tem que para este assunto.! Tratou-se de um exercício a todos os títulos
provar. Outro tanto se poderá dizer em sede de convicção, estimulante: a Gil se devem obras de referência sobre prova,
mecanismo cuja vertente de "zona de contágio" não pode ser evidência, convicção, ou crença;2 e se é verdade que algumas
subestimada. O pressuposto em que se fundam estas chama- das plataformas críticas atingidas no nosso referido trabalho
das de atenção é o de que, transportando a evidência o que não me satisfazem hoje inteiramente, o certo é que a sua re-
poderemos designar por vertigem anti-crítica e anti-democrá- cuperação permite fixar determinados pontos insubstituíveis
tica - isto é, para todos os efeitos, anti-mediadora -, parece de para o debate. Vejamos quais.
todo justificável uma reflexão sobre o lugar explícito ou implí-
cito por ela ocupado no âmbito de palcos políticos, jurídicos a. Admitindo-se (conforme autorizam estudos pré-
e críticos precisamente erigidos sobre fundamentos em tudo vios em torno da noção de verdade) a existência si-
contrastantes com aquela vertigem. Palcos que, por vocação, a multânea de uma verdade da evidência e de uma
deveriam descartar sem mácula, mas que ao exibirem, afinal, verdade da prova, admissível se torna que a verda-
níveis razoáveis de admissão mais ou menos consentida, obri- de da evidência seja alheia à ideia de processo, en-
gam a questionar, em cada momento, o seu efectivo empenho quanto que a verdade da prova não o deverá ser. Eis
nas operações de constrangimento à evidência. Neste sentido o motivo: diferentemente da prova, a evidência não
se dirá, por exemplo, que o "Estado Democrático de Direito" remete para dispositivos exteriores de avaliação,
será, de facto, tanto mais democrático e de direito, consoante porque ela constitui um desdobramento do sentido
os mecanismos destinados a assegurar os seus princípios ba- na indicação da sua própria verdade, pondo-se por
silares apresentem, pela sua parte, um grau tão mínimo quan- si, quer dizer, alucinando. Significa isto o seguinte:
to possível de contaminação pelas expressões da evidência. que será, desejavelmente, à prova que vai caber tra-
balhar a verdade de modo não alucinatório; que, as-
1.1. Evidência sim sendo, a prova deverá desempenhar, de alguma
maneira, um efeito de correcção sobre esse carácter
Mas é possível constranger a evidência? Idealmente, alucinatório; e que, sempre em termos ideais, será
sim. Existem, pelo menos, mecanismos expressamente des- ainda a prova a retirar a verdade do albergue da
tinados a essa função. Cada um à sua maneira, a prova, a evidência, sujeitando-a ao exame do processo.
convicção, ou o próprio processo destinam-se a assegurar o b. Transpondo para a prova os critérios (de verdade,
estabelecimento de limites frente à pulsão devoradora da evi- de justificação e de aceitação) classicamente esti-
dência. O problema que se coloca é, porém, o da efectividade mados como condições do saber, dir-se-á que uma
do respectivo desempenho. Ora, trata-se de uma missão de proposição P está provada se: (i) P tem um objec-
algum modo condenada ao fracasso - não apenas nenhum to existente (condição de objectividade); (ii) P é
daqueles operadores alcança níveis de total satisfação regula-
tória, como se verifica a sua tendencial "contaminação" pelo 1 Refiro-me ao diálogo publicado em Gil 2005 [agora inserido nos Apêndices
registo da evidência. que acompanham o presente livro]
2 Ao longo deste trabalho, as obras de Fernando Gil designar-se-ão pelas res-
Em trabalho relativamente recente, tive oportunidade de pectivas siglas [A = Acentos; C = La Conviction; M = Mediações; ME = Modos da
ensaiar, em conjunto com Fernando Gil, uma problemática Evidência; P = Provas; PC = Processo da Crença; TE = Tratado da Evidência].

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Rui Cunha Martins o Ponto Cego do Direito
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esteada por operadores de prova (a demonstração, liberdade, os modos de esteio e de objectividade


a~experimentação e os outros meios de prova), e (iii) que lhe são propostos).3
eu assentir a P. Ou seja: uma condição de objectivi-
dade, uma condição de esteio, e uma condição de Eis, em suma, um cânone epistémico pejado de "buracos
assentimento. Ora, pelo menos esta última condi- negros". Estes acontecem quando a evidência-que-não-era-
ção inscreve-se ainda no registo da evidência, ela é suposto-comparecer, afinal, sempre comparece. E sempre
o que na prova resta da evidência e da crença: o as- funciona. Ela não é simples insinuação, mas agencia concre-
tizações e desempenhos, fazendo-o, para mais, em relação de
sentimento é da ordem da adesão, aqui adesão à pro-
co-pertença com os próprios agentes destinados ao seu cons-
va tal como ela se apresenta (na realidade, crença e trangimento. Estranho? Nem por isso. Bem vistas as coisas,
evidência intervêm também nas outras condições). ela integra o painel de valências de qualquer mecanismo de
c. Supostamente, a condição de assentimento acha-se aferição do verdadeiro. Em bom rigor, não é pois de compa- U

limitada pelas outras - nas quais, pelo menos em recer" que se trata; ela reside ali. Isso explica, de resto, por que
princípio, não há lugar para a evidência nem para a motivo a expressão maior dessa sua presença se dá nos ter-
crença. Tanto assim é que, se os procedimentos da mos de uma intensificação dos materiais já residentes, acelera-
prova que asseguram i e íí não são respeitados, dos, mais do que adulterados ou substituídos, numa vertigem
está-se perante uma Upatologia da prova", cuja fi- originada no existente e que arranca de dentro dele, contami-
nando mais por via de uma performance de excesso do que
gura mais geral é precisamente a instalação directa
por uma estratégia de inversão.
do sujeito no assentimento, sem obedecer às condi- É este aspecto que nos permite entender melhor os ter-
ções de objectividade e de esteio. Contudo, mesmo mos em que se formula o paradoxo da prova. UA prova não deve
admitindo que boa parte do trajecto histórico do di- ser fraca: prova fraca é aquela que se satisfaz com a verosimi-
reito dá conta de preocupações destinadas a garan- lhança, com o que se diz ser uma crença racional. Mas a ve-
tir o esteio e a justificação, o certo é que a evidência rosimilhança que, fora da lógica e da matemática, é o regime
nunca desapareceu completamente do campo do normal da prova, não é em si um critério satisfatório, por mais
direito, como ressalta, por exemplo, da importân- convincente que seja. A verosimilhança não remove a eventu-
alidade de excepções e de contra-exemplos - e as crenças ra-
cia que o testemunho conserva enquanto elemento
cionais podem revelar-se erróneas: os erros judiciários assen-
de prova (norteia o testemunho a ideia de que ele
tam sempre em verosimilhanças e crenças racionais. Portanto,
substitui, ou dá a conhecer, sem a adulterar, a ex- a prova tem de ser forte. Mas a prova forte revela-se de ime-
periência directa dos factos, como se fossem estes a diato demasiado forte"4 - e, nesse momento, se essa demasia
relatar-se a si mesmos, prescindindo de esforços ex- se dá nos termos de uma ostensão de feição alucinatória, ela
teriores de mediação), ou do papel da convicção do
juiz, directamente relacionada com o assentimento 3 Estas três alíneas recolhem, com alterações, excertos do diálogo publicado
em Gil 2005, em especial nas páginas 21-27.
(afinal, é o juiz que aceita ou não, com significativa 4 ME,91.

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The Brazilian Lessons

resvala sem escape para o terreno da evidência, a qual, veja-se Não será despiciendo lembrar que a convicção, generi-
a ironia, tende a dispensar a prova. Paradoxo inescapável, ain- camente considerada, e, por maioria de razão, esta convicção
da assim. É que a vertigem alucinatória da prova não decorre que assim se vê colocada na posição de receptora do investi-
de uma momentânea apetência desviante, prendendo-se antes mento probatório, corresponde, por definição, a uma crença
com uma das suas vertentes constitutivas mais nucleares, ain- corrigida. Na crença, justamente, a marca da evidência impor-se-ia
da que das menos ditas. Chamar-lhe-ei a percepção do destinatá- de um modo que não ocorreria já na convicção. Mas isso pode
rio. Porque provar é em boa medida convencer. não significar mais do que uma diferença de grau, a persistên-
cia da marca da evidência no campo da convicção é frequen-
1.2. Prova e Destinatário te. Sucede, com efeito, que a contaminação da convicção pela
crença é um dado tão constitutivo da primeira como da se-
"Não há saber nem prova sem destinatário". Aqui, gunda. "A convicção é da ordem da verdade. A crença é a sede
Fernando Gil decalca de modo propositado Wittgenstein, da ideologia. Mas interpenetram-se".7 E, ao que tudo indica,
para quem o essencial da prova é engendrar a "convicção". o mecanismo epistémico que assegura essa interpenetração,
De notar que, nesta perspectiva, essa convicção não é supos- mediando o jogo de sobreposições, é, fundamentalmente, a
to constituir uma simples resposta, quase reflexa e de uma adesão. É através dela que o assentimento, condição da convic-
ção, se constitui em expressão máxima do contágio da con-
anuência burocrática, à demonstração que a engendra. A de-
vicção pela crença e, nesse sentido, em expressão de uma
monstração que serve de suporte e que constrói a prova visa
brecha mais nos modelos de constrangimento à evidência.
obter algo mais do que uma aceitação relativa aos procedi-
"A adesão é o sinete e o conteúdo afectivo da crença: não há
mentos formais, ela visa, precisamente, suscitar uma anuên-
crença sem adesão - tal como se adere apenas àquilo em que
cia em termos de convicção. Daí a ideia com que se fica de
se crê: não há adesão sem crença".8
que, nesta linha de raciocínio, uma prova que não provocasse
Por outro lado, é de novo a leitura de Wittgenstein a per-
uma convicção não seria uma prova. 5
mitir notar que "não há convicção definitivamente premuni-
Igualmente instrutiva se revela a convocatória de Leibniz
da contra o excesso de certeza". Naturalmente: "no que tem
para o debate. Gil não deixa de assinalar a fecundidade da re-
de mais próprio, a convicção é uma forma particular de cer-
flexão leibniziana sobre o cruzamento entre epistemologia e
teza emergente da actividade cognitiva, à qual retoma. Ela
direito (uma reflexão estribada, no essencial, sobre o processo funciona, então, como um princípio que não requer já ser ve-
judicial), investimento analítico que lhe permite equacionar rificado em cada utilização". Assim se explica que "se a prova
o problema nuclear do destinatário: "a prova é indissociável se desdobra em certeza, em contrapartida, a convicção nem
de um assentimento que apresenta graus e o problema que sempre requer prova" e, mais ainda, que" as convicções mais
coloca é, pois, o seguinte: em que condições e segundo que certas não são susceptíveis de demonstração".9 Bem se com-
critérios um juízo ou uma teoria devem ser declarados sufi- preende pelo exposto que, como assinala Gil, a convicção wit-
cientemente justificados, de modo a suscitarem convicção?".6
7 C, 95.
5 A,27-28. 8 C, 91.
6 P,24. 9 C, 95,191-192.

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Rui Cunha Martins o Ponto Cego do Direito
The Brazilian Lessons

tgensteiniana não é uma certeza de segunda ordem mas age das consequências jurídicas que podem advir da positivação
como uma üisposição radicada no espírito. lO Haverá, nesta da questão fáctica" .13 Eis por que razão "a ordem das coisas
óptica, como que uma disposição impensada para o exercício colocadas no processo permite, pragmaticamente, constatar-
da convicção. A mesma disposição, aliás, que permite esta- mos que a acção voltada à introdução do material probatório
belecer um nexo forte entre convicção e confiança, visto que, é precedida da consideração psicológica pertinente aos rumos
naquela mesma ordem de ideias, também confiar "é muito que o citado material, se efectivamente incorporado ao feito,
simplesmente a condição nativa do espírito".11 Trata-se de um possa determinar" .14 Em suma, "quem procura sabe ao certo
nexo importante. Tenha-se em conta que a noção de confian- o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal
ça é inextricáve1 da noção de adesão. O círculo da evidência condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigo-
aperta-se. samente comprometedora da imparcialidade do julgador."15
E, de facto, veja-se o nó epistemológico que neste exacto Até porque, nesta perspectiva, a presunção mobiliza, sem o
ponto se instala. Se parece aceitável a ideia de que "há graus assumir, um ponto de vista e uma carga ideológica que são
de adesão [incluindo] os casos em que ela é máxima", forçoso precisamente o que ela tem por adquirido não dever desvelar
será recordar que, neste último caso, o do grau máximo de ou sequer admitir a respectiva presença. 16
adesão, "a crença chamar-se-á então confiança". Ora, a con- Reparar-se-á que se joga aqui um problema fulcral de
fiança, "que é talvez a matriz da crença em geral" ("a mente é
qualquer tipo de regime processual: a gestão das expectati-
naturalmente confiante"), "repousa sobre um pressuposto de
vas. A expectativa funde presunção e normalidade.
identidade e estabilidade" P O que nos leva, sem alternativa,
à ideia de "normalidade", base epistémica da presunção. De
modo suave, mas irreversível, afastamo-nos do constrangi- 1.3. Presunção e Expectativa
mento e da prova. A presunção é apanágio da evidência.
Presume-se em função de referentes de normalidade Se a presunção "faz-se acompanhar de uma pré-ocu-
e de estabilidade. Presumir é proceder, quase inconsciente- pação do terreno" (podendo, por isso mesmo, "introduzir
mente, a uma mobilização, entretanto naturalizada, de uma entorses no regime da prova"),17 a expectativa antecipa um
lógica estatística, no âmbito da qual os elementos de repeti- preenchimento (toda a expectatjva visa ser preenchida), que,
ção e os valores de homogeneidade e coerência a eles asso- até indicação em contrário, será sempre o preenchimento pro-
ciados configuram uma estética do preferível, esse corres- jectado a partir do que se presume expectável, quer dizer, a
pondente moral do plausíveL A verdadeira dimensão deste partir do que convém à noção de normalidade. Uma vez mais,
ponto percebe-se melhor quando colocada no contexto con- e cada vez mais, eis-nos confrontados com o vicioso eterno
creto do mundo jurídico: "Ao tipo de prova que se pesqui- retomo ao reino da evidência.
sa corresponde um prognóstico, mais ou menos seguro, da
real existência do thema probandum e, sem dúvida, também 13 Prado 2001, 158.
14 Idem.
10 C,192. 15 Idem.
11 C,191. 16 Coutinho 2001, 47-48.
12 PC,434. 17 M,78.

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Rui Cunha Martins o Ponto Cego do Direito
The Brazilian Lessons

Assinala Gil o modo nítido como o pensamento distância, a obscuridade, o silêncio, O arbitrário individual".22
wittgensteiniano associa regularidades e expectativas: Anotação abonatória de que" o par expectativa/preenchimen-
"A nossa expectativa antecipa o acontecimento. Neste senti- to pertence à arqueologia da evidência, [correspondendo a]
do, ela faz um modelo do acontecimento" .18 São assinaláveis, uma estrutura "arcaica" da compreensão".23 De resto, "dese-
de resto, os sucessivos desdobramentos desta ideia que se jar, esperar, ter intenção de, crer, querer, poder alguma coisa,
recolhem da obra wittgensteiniana, a exemplo daquele que mandar - de certa forma todos estes verbos intencionais se
sustenta que "uma expectativa está encastoada (eingebettet) na acompanham por expectativas. Elas não são da mesma nature-
situação de que brota (entspringt) [e que] o mesmo se pode za em todos os casos, podem situar-se mais perto do possível
dizer da intenção (Absicht), [a qual também] está encastoada ou da efectividade, a exigência do preenchimento será mais
na situação, nos costumes e nas instituições humanas".19 ou menos imediata: mas uma ordem espera a sua execução,
Gil retira desta leitura as devidas consequências: "faz como um voto ou uma esperança esperam a sua satisfação,
parte das condições do exercício da linguagem, da sua gra- uma decisão ou um plano a sua realização, uma intenção a
mática, uma crença fundada na estabilidade de um grande sua efectivação, uma conjectura a sua confirmação".24
número de fenómenos e de comportamentos, ou, por outras Bem se pode dizer, nesta linha, que, sempre que o acon-
palavras, uma presunção de uniformidade; toda a expectativa tecimento previsto é constatado, estávamos de alguma forma
assenta nesta hipótese de constância".20 Não admira, pois, a "preparados" para a constatação. 25 É isto, verdadeiramente,
relação de proximidade entre o estado de expectativa e o es- o sentimento de preenchimento. Ele corresponde à satisfação de
tado de ajustamento ou conveniência. A complementaridade algo que começa por se apresentar como um desejo e que, de
entre ambos é patente. Quer isto dizer, para os propósitos da uma maneira ou de outra, deve ser cumprido. Aflora, neste
nossa reflexão, que é o ajustamento à normalidade que, em ponto, uma interrogação inquietante: qual a disponibilidade
rigor, solicita o preenchimento. A projecção de um conheci- da expectativa para ver frustrado esse sentimento e para ser
invadida pelo sentimento de insatisfação? Pouca, ao que pa-
mento prévio naquilo que há-de vir, modelo por excelência da
rece. Deve, inclusive, supor-se que o horror da expectativa ao
parelha expectativa/preenchimento, embraia na experiência.
vazio, ao silêncio e à demora traduz essa menor disponibilida-
Por isso se toma possível afirmar, no seguimento da passa-
de. A conivência da expectativa com a evidência radica aqui,
gem atrás citada, que "a expectativa reporta-se sem intermedi-
nesta preferência pelo imediato. Um imediato que tem no ar-
ário à realidade".21
gumento da "celeridade" (tome-se por exemplar o uso que é
"Sem intermediário", note-se. De forma directa, por con-
feito desta noção no campo jurídico, mormente em ordem à
seguinte, alheia a avaliações extrínsecas ou a mediações. Não
justificação de restrições em matéria de garantia processual)
merece, pois, reserva de monta, a constatação de que a expec- uma expressão tópica. 26 Trata-se, nestes casos, de comprimir
tativa funciona no registo da evidência. Tenha-se em atenção a distância entre o expectável e o realizável, deslocando, se
que" a linguagem da evidência procura anular as mediações, a
22 TE,72
18 ME,67. 23 ME, 65.
19 Idem. 24 ME, 73.
20 ME, 67. 25 ME, 74.
21 ME, 70. 26 Veja-se, adiante, o capo 3.

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necessário for, o campo da experiência e a regularidade do tório tem por consequência a eliminação imediata do proces-
que se repete - feitas normalidade - para o lugar do preenchi- so, podendo o juiz abster-se de citar o réu e decidir sem o
mento, e prescindindo, nesse movimento de fusão entre o que ouvir; como sempre, a evidência dispensa os mecanismos da
se sabe e o que se espera, de mecanismos de despistagem ou prova. A confissão era assimilada ao facto notório, com o mes-
de operadores de constrangimento sobre a "irrecusável" evi- mo efeito suspensivo".29
dência daquilo que, porque é repetidamente sabido, se supõe De resto, este vínculo do processo à ideia de uma prova
ser aceite, sem mais, como previsível. O circuito vertiginoso "mais clara do que a luz" e genericamente acordada com os
dos meios de comunicação é de igual modo um bom exemplo materiais fornecidos pelos sentidos, foi-se mantendo, acom-
destes processos. Não deixa de ser curioso notar que, muito panhando, de uma forma ou de outra, a evolução histórica
antes deles, o "direito arcaico" também o era. e permanecendo guardada no seio dos dispositivos proces-
Com efeito, no âmbito desse direito colado ao ritual que suais; como a própria evidência, aliás. Não é por acaso que
é o "direito arcaico" e em que "a administração da prova se o Código de Processo Penal Brasileiro de 1941, cuja marca
dirige, não a um juiz que deve apreciar, mas a um adversá- ideológica é conhecida, menciona, logo de início, em sede de
rio que é preciso "vencer", convencendo-o, [... ] as fórmulas exposição de motivos, a preocupação com as dificuldades do
dizem-se, as suas contrapartidas materiais e as vindictas im- regime processual então vigente em condenar réus, mesmo
põem-se, o direito exerce-se imediatamente. O processo cria quando "colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência
o direito no acto do seu próprio presente [e] a verdade [neste das provas" ,30 redundância terminológica com que se asso-
direito arcaico] é nele a irradiação de uma evidência; um acto cia flagrância e evidência e que mostra bem até que ponto a
ritualizado prova ipso facto o direito que ao mesmo tempo ideia subliminar do processo como excrescência daquilo que
prod uz."27 AI' em d'ISSO, e porque o modelo primordial deste se tem por óbvio e, por conseguinte, parcialmente dispensá-
direito, a flagrância, suscita uma execução imediata, transpa- vel, permaneceu como constante histórica do processo penal.
rece deste procedimento "um certo ideal do direito criminal: Permito-me sugerir que, olhada desde uma perspectiva pura-
que a sanção forme um só corpo, sem interstício, com o facto mente genealógica e alheia aos contextos específicos da sua
delituoso, [num quadro sancionatório] que exclui a adminis- actual requisição, a introdução de mecanismos como a nego-
tração da prova".28 Aliás, será também em pressupostos idên- ciação ou a transacção penais não pode deixar de remeter, obri-
ticos que se funda a instituição do notorium ou notum per se, gatoriamente, para a mesma matriz
conceito que em tempos tardo-medievais alberga a noção de Já o havíamos realçado: a linguagem da evidência encur-
flagrância e que atesta uma evidência interna que tem como ta distâncias; quando radicalizada, prescinde mesmo da me-
efeito automático a dispensa de citação do acusado. Baldo de- diação. A vontade de preenchimento é nela mais forte do que
finiu o notorium como "um facto colocado diante dos olhos qualquer tipo de predisposição auto-regulatória. Por isso, ca-
(ante oculos situm), ou como uma verdade radicada (radicata) rente de filtragem crítica ou da hipótese de contradição, tende
no espírito dos homens, de um modo tal que não poderia ser a exprimir-se no modo alucinatório. Que quer isto dizer?
arrancada ou ocultada". O processo parava aí mesmo: "o no-

27 TE,36. 29 TE,4l.
28 TE,40. 30 Decreto-Lei nº 3689, de 3 de Outubro de 1941.

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1.4. Osten,são coisas, fenómenos, processos entre os quais se devem contar


as acções" .33
Quer dizer, à vista desarmada, que a evidência se carac- Este é um aspecto da máxima importância. E também
teriza pelo seu excesso. Mas, dito isto, importa esclarecer que da máxima incomodidade. Basta pensar que o reconhecimen-
este mesmo excesso decorre, fundamentalmente, de uma in- to desta proximidade entre evidência e mundo dos sentidos
tensificação, ou de um transporte, e não tanto de uma pura e compromete, enquanto manifestações da evidência, todos
directa remcação alternativa do significado. Até porque, bem aquelas estratégias processuais erigidas sobre uma lógica de
vistas as coisas, o que está em causa no funcionamento da valorização do elemento sensitivo, ainda quando, a exemplo
evidência é mesmo a possibilidade de o signo participar da da imediação, essas mesmas estratégias se podem historica-
natureza do significado, do mesmo modo que o ícone par- mente ligar à tentativa de ultrapassar um modelo de processo
tilha aí as propriedades do representado. Correcto será, en- criminal assente na trilogia inquisitivo/escrito/secreto e à sua
tão, referir que "a evidência representa uma alucinação, mas substituição pela parelha oralidade/imediação, objecto da rei-
não no sentido de um percepto do irreal em vez da percepção vindicação iluminista. É que, se pensarmos nesta conquista e,
do existente: antes significa a transposição da percepção para em particular, na noção de imediação, enquanto expressão,
outra coisa que não ela mesma. É uma operação alucinatória que ela inevitavelmente é, da noção de interactividade (assim
que, com a força irrecusável do real, converte em verdade a o aponta Calamandrei: "imediação significa presença simul-
percepção e a significação".31 Trata-se, muito precisamente, tânea dos vários sujeitos do processo no mesmo lugar, e, por
de um exercício de ostensão. conseguinte, possibilidade entre eles de trocarem oralmente
A evidência é geneticamente ostensiva. suas comunicações"),34 não é difícil surpreender nela a irra-
É-o, em grande parte, por força da sua vocação perfor- diação do sensível como modo de ser processual: "Frente ao
mativa. Uma vocação que decorre de o discurso da evidên- processo penal do antigo regime, no qual o processo se efec-
cia buscar" a reconstituição da inteligibilidade espontânea da tuava sobre um material que o tribunal recebia por escrito
linguagem e dos sentidos"32 e de a maioria dos operadores da e, portanto, já elaborado em outra sede (morto, no dizer de
evidência, seja a intuição, a atenção, a aceleração ou a imedia- Pagano), se afirma agora a superioridade do juízo presencial,
ticidade, todos se reportarem ao mundo dos sentidos, um uni- em tempo real, que, em expressivos termos do mesmo autor,
verso de inteligibilidade caracterizado por uma disposição oferece a vantagem de que "na viva voz falam também o ros-
inaugural, talvez espontânea, para uma passagem ao acto, to, os olhos, a cor, o movimento, o tom de voz, o modo de
para um desdobramento realizante, produtor. É pois certo dizer, e tantas outras pequenas circunstâncias, que modificam
que "a evidência reporta-se originariamente à orientação, ao e desenvolvem o sentido das palavras e fornecem tantos in-
tacto, à vista, ao ouvido, que embraiam directamente com dícios a favor ou contra do firmado com elas". Portanto, ime-
o que aparece como sendo o material do mundo: direcções, diação como "observação imediata" (Florian); como forma de

31 TE,217. 33 TE,7l.
32 TE,69. 34 Citado por Andrés Ibafíez 2006, 3.

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encurtar as distâncias (Carnelutti); ou de "integral e direta per- corno indutores de certeza. 37 Mas, para já, o que importa mes-
cepção, por parte do juiz, da prova" (Silva Melero)" .35 mo é registar que a presença do elemento alucinatório no cer-
Daqui se infere, tem mesmo que se inferir, que inclusive ne da evidência está longe de acantonar esta última a qua-
a região processual do contraditório não é imune ao deslize su- dros clínicos de disfuncionalidade, fosse por inconsequência
ave da evidência. Inferência estranha, esta - pois não implica ou por improdutividade. Nada de mais errado. A evidência
a evidência, justamente, um "desamor do contraditório", para produz, sendo essa, de resto, a mola que a impulsiona - ou
fazer uso da expressão que atrás utilizei? Sim, mas isso não a que impulsiona o desejo que há nela, que a move e se move
impede de o frequentar. É mesmo por isso que ela se impõe com ela - a apresentar-se em termos de ostensividade. Tal
frequentá-lo, com o que se limita a atestar a sua propensão corno, desde Freud, a alucinação pertence por direito próprio
para marcar presença, também, nas potenciais áreas de actu- à estrutura da consciência e não se deixa apreender apenas a
ação dos próprios operadores encarregues de a vigiar. Urna partir da patologia, também a evidência, placa giratória de
constatação que não menoriza a funcionalidade estatutária do operadores alucinatórios de toda a ordem, pertence, ainda as-
sim, aos regimes epistémicos de decisão e de prova, pelo que
contraditório, apenas adverte que não há terreno processual
só no reconhecimento dessa condição de irredutível presença,
virgem quando a questão é colocada nestes termos.
longe do horizonte da clínica, ela pode ser reconhecida no seu
É possível afirmar que, enquanto manifestação de os-
ambiente de actuação, única maneira de a captar com o perfil
tensividade, a alucinação impõe, basicamente, um processo de do problema que ela de facto é.
intensificação da matéria sensível: o sensível converte-se em con- Sugiro, pois, que busquemos surpreendê-la em acto,
ceito e, urna vez feito conceito, converte-se, por seu turno, em descortinar os seus territórios de acção, identificar os seus
realidade. Não se trata, contudo, de urna intensidade despro- agentes, medir-lhe o desempenho. Não porque esteja certo de
vida de critério, a energia libertada pelo movimento osten- que essa tarefa nos aproxime mais de algo corno urna reso-
sivo em direcção ao acto orienta-se por impulsos selectivos. lução cabal do problema - não estou certo de que isso exista
Eis por que motivo a evidência pode "ir beber a toda a parte, enquanto tal- mas simplesmente porque me parece que este
retornando por sua conta o que parece incontestável em cada é, hoje, o investimento necessário e aquilo que está por fazer.
domínio, [fazendo, porém,] escolhas no interior das catego- Deste ponto de vista, as considerações produzidas ao longo
rias que descrevem o dado, retendo de cada vez [, preferen- deste primeiro capítulo indicaram dois campos de inquéri-
cialmente,] a versão que exprime o máximo de certeza".36 Um to possíveis, cujos nós críticos já aqui foram esboçados e que
índice de performatividade notável. E temível, claro. Adiante agora irei sujeitar a urna nova grelha de despistagem: os me-
importará demonstrar que esta obsessão pelo máximo de cer- canismos de convicção e os regimes de expectativa. Ocuparão
os próximos dois capítulos. Urna vez realizadas as operações
teza corresponde de facto a urna opção pelo mínimo de com-
de desbaste tidas por convenientes no âmbito de cada um de-
plexidade e, portanto, a urna operação de redução, base, aliás,
les, estaremos com certeza melhor colocados para encarar um
do estabelecimento feroz de princípios de mera normalidade terceiro nível da questão, para o qual aqueles remetem, o da
35 Andrés Ibafiez 2006, 4.
36 TE,73. 37 Veja-se, mais à frente, no capítulo 3, o ponto intitulado "Redutores de com-
plexidade" .

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verdade e seu lugar em sede de problemática da prova. Uma Capítulo 2


matéria que me parece carecer sobretudo de um deslocamen-
to de perspectiva. Dedicar-lhe-ei igualmente um capítulo. Convicção e Circuitos Crentes

Estar convicto não é a etapa final de um trajecto epistémi-


co sem mácula. Aliás, permito-me sugerir que nem sequer é,
em bom rigor, uma etapa. É este o argumento de que parto.
Parece-me, com efeito, que, em sede de teoria da convicção,
não está ainda suficientemente dita a dimensão de circularida-
de que estrutura todo o mecanismo e que obriga a considerar
níveis de sobreposição e de complementaridade entre os vá-
rios elementos participantes do dispositivo decisório
É assim meu entendimento que, ao invés de um proces-
so linear estendendo-se ao longo de dois pólos, a convicção
corresponde a um processo de sucessivas tangências e sobre-
posições, complexo e denso, no âmbito do qual os diferentes
componentes do percurso se inter-relacionam e se convocam
mutuamente, contaminando a respectiva posição, o respecti-
vo sentido e os respectivos efeitos. À imagem de um trajecto
operando em sucessivas etapas, cada uma delas correspon-
dendo a um estádio epistémico que, partindo da crença e pas-
sando pela dúvida, alcançaria sucessivamente o assentimento, a
confiança, a aceitação e a própria convicção, para depois se pro-
longar na decisão e, por fim, na justificação, ambas situadas,
nesta perspectiva, nos antípodas da crença originária, convirá
contrapor a imagem de um circuito em que cada um destes
estádios se disponibiliza a interagir e a contaminar os restan-
tes - curto-circuitando, justamente, a demarcação ideal entre
eles. Um mecanismo em que, significativamente, se torna pos-
sível, por exemplo, encontrar lado a lado, e não já no pólo
oposto, aquelas que são classicamente tidas como a primeira
e a última etapas, crença e justificação, as quais podem apre-
sentar vizinhanças inesperadas e com fortíssimo potencial de

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