Resenha de “A carreira moral do doente mental” in GOFFMAN, E. Asilos,
prisões e manicômios. São Paulo: Perspectiva, 1978.
Para compreender o texto de Goffman, é preciso recuperar o conceito de
“carreira” dado por ele, que significa qualquer trajetória percorrida por uma pessoa durante sua vida. Nesse sentido, trabalhar a dimensão de recuperar a história de vida dessas pessoas passa por uma série de questões que valorem, reconheçam e cinscuncreva qual tempo ou momento dessa trajetória pessoal deseja-se pesquisar. No trabalho promovido por Goffman, interessa aqui como o self em uma instituição tal como é constituído. Aqui vale lembrar que não interessa ao autor tanto a dimensão patologizada do paciente que sofre de doença mental, mas como ao longo do tempo, a instituição total impõe um determinado self onde o paciente cada dia mais perde se despersonaliza e se torna um número e um dado. Isso se reflete na padronização em torno de seu tratamento comum a todos, os trajes e a forma como as relações com o corpo de funcionários é conduzido. Iniciada a partir de uma denúncia de uma transgressão, a carreira moral do doente mental o leva a ser hospitalizado. Na fase de pré-paciente, o individuo ingressa na instituição, voluntariamente ou involuntariamente, e a partir disso, ele é expropriado de suas relações e direitos com o mundo externo, tornando-se um paciente, não mais um civil. Em suma, perde sua singularidade enquanto um cidadão comum e diferente dos outros e começa aqui ser forjada uma nova identidade que nos primeiros momentos gera nesse paciente sentimentos de abandono, falsidade e desgosto. Todo o estigma que se há sobre a figura de ser um internado em hospital psiquiátrico é aqui causador de vergonha. Esse primeiro momento os agentes que estão naquele lugar principiam a participar desse novo momento instando sobre sua condição e das razões para a internação. Esse então parece se sentir desintegrado em sua autoimagem “estar perdendo a cabeça”, ainda que essa autoimagem se baseie em estereótipos culturais e sociais mais amplos. Ante a esses sentimentos, os agentes da instituição total começam a tratar das razões de sua internação. Como a transgressão se tornou um fato social público, o que em si é um peso considerável de coerção social, o paciente é submetido há uma espécie de “cerimônia de degradação”, uma vasta ação reparadora diante da testemunha, a fim de que possa restaurar sua honra e seu valor social. Também, antes da hospitalização, os médicos da equipe dirigente constroem a “história de caso” que é atribuída ao passado do paciente. É nesse momento que vemos o quando a delimitação da vida do sujeito é feita a partir do evento de transgressor. Sua vida se resume a esse dossiê médico e ao evento vexatório de transtorno mental. Todo o resto de sua identidade no passado parece não mais importar e agora ele é inserido numa nova sociedade fechada, a da instituição total. E absolutamente nada pode fazer senão aceitar as regras impostas a ele nesse novo lugar. Assim sendo, ele passa por um processo de mortificação do seu eu de outrora. Inicialmente sentimento de que foi largado pela sociedade e arruinou-se as relações sociais com o mundo externo. Primeiramente, na fase de internado, o paciente adota a tática do silêncio, ausência e anonimato, o que alude certo apego ao resto do seu passado. O novo internado entende que está desprovido de suas defesas e satisfações usais, e está sujeito a um conjunto de experiências de mortificação, como restrição da vida comunitária e ao mundo exterior, por exemplo. Somente após aceitar sua condição de lhe é apresentado o lugar de interação social comum entre o paciente e a equipe que trabalha no manicômio, o sistema de enfermarias. Esse sistema funciona como um sistema de socialização da instituição onde quando as normas são obedecidas o interno é compensado com pequenas satisfações secundárias, contudo, se ele tende a não obedecer com prontidão, perde a ascensão a esses privilégios. Ao longo de sua internação, paciente desenvolve um esquema de reorganização da autoimagem do self partir de “histórias tristes”, com o apoio em alguns casos de criar uma história fictícia sobre seu passado e como esse o levou ao seu atual estado de doença mental. Em resumo, tal histórias tenderiam a mostrar como que o paciente tenta modelar sua história de vida de modo de em mostrar uma sua condição tem uma explicação plausível baseada em algum evento que não teve domínio e que causou o dano que o levou a sua presente condição. Porém, o uso do dossiê e dos relatos dos agentes da instituição é uma ferramenta para negar da racionalidade do paciente, que acontece quando a equipe dirigente contradiz as histórias tristes dos pacientes com as informações contidas no seu dossiê, onde relatos constrangedores da sua vida pessoal são utilizados para questionar a validade de seus argumentos de que está melhor ou que a sua situação desabonadora foi causada por algum elemento que de sua história de vida que não tinha controle. Na instituição total, caso do manicômio, o sujeito perde a sua autonomia inclusive de esculpir sua imagem. Goffman chega a dizer que se todos tivessem dados escabrosos de nossa vida que ocorrem no cotidiano, ninguém seria considerado sã. E como a equipe dirigente tem os relatos desses dados desabonadores, ele tem o mandato burocrático oficial para modelar a concepção que o indivíduo tem de si mesmo. Logo, o internado acolhe ou finge que aceita a interpretação do hospital sobre ele. Goffman nos revela como o grupo dos internados se defende dos esforços modeladores através de diversas táticas adaptativas e utilizando-se dos próprios recursos institucionais para construir um mundo pessoal contrário aos objetivos oficiais do estabelecimento. Há um clima de guerra permanente entre ambos os grupos antagônicos e, mesmo em cada grupo, há facções e disputas, relações de poder, forças em luta que compõem o cenário institucional. Quando o paciente aprende a conviver com essa exposição de si, ele gera fadiga moral se resolve confrontar tal controle social da instituição total e de seus agentes. Para ele, seu atual processo de socialização se dá essencialmente pela alienação e mortificação de si próprio. Assim, o sistema de enfermarias é uma nova forma de sociabilidade marcada pelo rígido controle institucional e de reorganização mínima da autoimagem. A carreira moral nesses lugares é um encadeamento padronizado de mudanças no self, que se desdobra dentro dos limites de controle rígido um sistema institucional. Assim, o self não é um domínio da pessoa a que é atribuído, mas jaz no padrão de controle social que é exercido sobre o indivíduo e por aqueles que a cercam.