Da “sociedade da informação”
à “sociedade 2.0”:
o retorno dos discursos “míticos” sobre o papel
das TICs nas sociedades
Éric George
Doutor em Comunicação
(Université du Quebec à Montréal)
Professor da Faculté de Communication (UQAM)
E-mail: george.eric@uqam.ca
Um terceiro autor, Daniel Bell, teve tam- anos 1950. Mas a “sociedade da informação”
bém um papel notável no desenvolvimento possui também uma dimensão econômica
dessa reflexão. Autor do livro The coming of forte e, além disso, uma conotação neoliberal.
the post-industrial society, ele formulou a hi- Desde os anos 1970, quando entrávamos em
pótese da emergência de uma classe social de contato com o fim de um período de cresci-
trabalhadores do saber – sobretudo engenhei- mento extensivo nos países mais ricos, o setor
ros, cientistas e pesquisadores – e do recrudes- das tecnologias da informação e da comuni-
cimento do setor financeiro (1973). Dito de cação, principalmente as telecomunicações,
outro modo, seriam as profissões do saber que foi visto como uma fonte de enorme potencial
tomariam o poder em detrimento do mundo de crescimento. Até então, a regra geral era, no
dos negócios. Em seguida, essa análise foi in- mundo inteiro, a manutenção de monopólios
validada com o desenvolvimento de um capi- públicos ou privados, estes últimos devendo
talismo que, contrariamente, é marcado pelo respeitar certo número de regras ditadas pelos
peso das finanças em relação à economia real. organismos de regulamentação, como a Fe-
Mas se essa análise foi acolhida favoravelmen- deral Communications Commission (FCC),
te na época, foi principalmente porque ela fez nos Estados Unidos. O desmantelamento, em
parte de um conjunto de discursos que foram 1984, da gigante estadunidense American Te-
tornados públicos no exato momento em que lephone and Telegraph Corporation (ATT),
a informática e a micro-eletrônica progrediam foi o estopim para a liberalização do setor das
tanto, que as tecnologias, começando pelo telecomunicações em escala mundial, sobre-
computador, puderam ser vastamente desen- tudo após a queda do muro de Berlim, em
volvidas tanto nos locais de trabalho quanto 1989. No ano seguinte, o presidente George
nas residências. A partir desse momento, é o Bush falou ao Congresso, em Washington, a
conjunto das TICs que será considerado como respeito de uma “nova ordem mundial”, uma
sendo, ao mesmo tempo, a causa e o efeito da fórmula que remetia à idéia de um mundo
emergência da chamada “sociedade da infor- unipolar que se posicionaria atrás da primeira
mação”. Manuel Castells, autor de uma trilogia potência mundial.
publicada no final dos anos 1990, situa a as- Os anos 1990 serão marcados pelas “au-
censão da “sociedade informacional” no Vale tovias da informação”. O objetivo consistia,
do Silício, onde foram feitos notáveis progres- claramente, em elaborar uma infra-estrutura
sos tecnológicos sob a influência de diversos que permitisse interligar todos os aparelhos
fatores institucionais, econômicos e culturais eletrônicos e informáticos. Vários progra-
(1998). O lugar real e crescente dessas tecno- mas foram desenvolvidos nos países mais ri-
logias em nossas vidas, ao menos nos países cos, sendo que os Estados Unidos foram se-
mais ricos do planeta, favoreceu enormemente guidos pela União Européia (no seio da qual
o emprego da expressão “sociedade da infor- certos países como a França desenvolviam
mação”, que esconde, na verdade, outro termo: seu próprio programa), pelo Canadá e pelo
aquele da sociedade das tecnologias da infor- Japão. Há um ponto comum no conjunto
mação e da comunicação. de relatórios associados a esses programas:
a iniciativa principal deveria retornar para
Uma conotação econômica igualmente as empresas privadas, e os Estados deveriam
forte se contentar em desempenhar, sobretudo,
um papel de observadores (Tremblay e Ge-
A “sociedade da informação” possui uma orge, 1996). O Estado deveria, por exemplo,
conotação técnica, e mesmo informática, favorecer o desenvolvimento da demanda,
considerável. Tanto é assim que ela pode, em visando responder ao surgimento de uma
parte, ser considerada como “filha” da ciber- oferta industrial. Ele seria convidado a fazer
nética, que teve seus momentos de glória nos isso por meio de um intermediário de sua
para compreender o mito como discurso ção foi retomada, até que, nesse início de sé-
despolitizado, pois negar a história significa culo XXI, começássemos a falar de “web 2.0”,
retirar-se da discussão ativa do agenciamen- ou justamente de “web participativa”. Iremos
to da humanidade, dos constrangimentos ver, em um segundo momento, que há uma
das estruturas sociais e da política do mun- filiação entre as expressões de “sociedade da
do real. Segundo o mito, a era da informação informação” e de “sociedade 2.0”.
transcende a política, pois ela distribui o po-
der a cada um e em grande abundância”4. No Da “sociedade da informação” à “web
caso que nos interessa, o discurso mítico que 2.0”, ou à “sociedade 2.0”
minação capitalista, então o ciberespaço reali- poderiam agora, enfim, ter voz e colocar em
za uma verdadeira revolução, uma vez que ele xeque as concepções extremamente hierárqui-
permite – ou permitirá em breve – que todos cas da produção de sentido, a fim de transfor-
se transformem em editores, produtores, di- mar nossas sociedades. Henry Jenkins, diretor
fusores ou em intermediários em geral para do programa Comparative Media Studies, no
divulgar seus textos, sua música, seu mundo MIT, havia anunciado, desde 2001, que “a
virtual, ou qualquer outro produto pesso- convergência mediática [geraria] uma nova
al” (1997:122). No ano seguinte, Jean-Louis cultura popular participativa, ao oferecer às
Weissberg mencionava que a Internet foi o pessoas comuns as ferramentas para arquivar,
primeiro sistema de comunicação suscetível anotar, apropriar-se e retransmitir os conteú-
de se desenvolver amplamente e que não dis- dos” (Jenkins, 2001:93). Em seu livro, Conver-
tinguia “em seu princípio (e somente em seu gence culture: where old and new media collide
princípio), o emissor do receptor” (1998:239). (2001), ele defendeu a tese segundo a qual
Será que deveríamos concluir, seguindo Weis- os fãs e suas atividades teriam, de agora em
sberg, que assistimos à emergência de novas diante, um papel central no desenvolvimento
formas autorais sob o pretexto de que essa das indústrias da cultura. Assim, ele anuncia
tendência estaria ligada ao desejo que os seres a possibilidade de os fãs se tornarem verda-
humanos teriam há séculos de se expressar? deiros parceiros ativos no entrecruzamento
De maneira mais global, seria a Internet um entre cultura popular e cultura comercial em
lugar menos hierarquizado que o conjunto uma sociedade em rede. E, da mesma forma
da sociedade, um pouco como o modelo de que outros “gurus”, seu posicionamento pare-
cooperação que permitiu construir a rede ao ce mais do que nunca ambíguo entre pesquisa
longo das décadas precedentes? e militantismo. Assim, ele apresenta essa obra
Várias pesquisas, atribuindo uma impor- em seu site como “uma intervenção pública
tância notável às observações empíricas, fize- que tenta ajudar, ao mesmo tempo, consu-
ram com que fosse colocada em questão essa midores e produtores a entender as mudan-
visão idealista do desenvolvimento da rede ças em curso naquilo que diz respeito às suas
informática por diversos motivos: os níveis relações”5. Onde podemos encontrar a idéia
de acesso dos usuários aos dispositivos téc- central de que seria suficiente agora seguir a
nicos e de apropriação muito diferentes uns via traçada pela tecnologia?
dos outros; as propensões bastante variadas Essa mistura de gêneros repousa sobre uma
à “tomada da palavra” pública, apontando aposta: o fato de que a profecia auto-realizado-
para um capital cultural desigualmente parti- ra ganha corpo ao ser anunciada incessante-
lhado; as características do modo de vida ca- mente. O especialista da cultura centrada nos
pitalista, começando pela falta de tempo dis- fãs anuncia que estes terão seu lugar transfor-
ponível e o tempo passado diante dos meios mado em algo crucial na própria produção de
de comunicação de massa, etc. Eu mesmo bens e serviços culturais. O problema é que
trabalhei sob essa perspectiva durante vários essa atitude tende a minar totalmente qual-
anos, sobretudo em torno de minha tese de quer perspectiva crítica – o que pode parecer
doutorado (2001). Continuo agora essa ope- perturbador, pois certos “adeptos” das TICs
ração de desmistificação ao estudar o lugar podem igualmente ser críticos virulentos dos
ocupado pelas TICs na mobilização de com- chamados meios de comunicação de massa, e
ponentes da “sociedade civil” no Quebec. isso como se houvesse forçosamente uma dife-
Contudo, os discursos sobre a pretensa rença considerável, até mesmo uma forte opo-
emergência da “web 2.0” deram rapidamente
lugar a uma nova onda de afirmações entu- 5
Do original: “…a public intervention into this situation,
siásticas. Encontramos neles, por exemplo, a trying to help both consumers and producers understand the
idéia segundo a qual os “internautas comuns” changes which are occurring in their relationship”.
sição sistemática, entre os meios tradicionais rede. Ele defendia o ponto de vista segundo
qualificados como “de massa”, que seriam alie- o qual a “saúde” da rede informática repou-
nantes, e as “novas” tecnologias, consideradas saria sobre o modelo “participativo”, no qual
como fontes de emancipação. Ora, essa ausên- o internauta/usuário deveria deixar o sim-
cia de distância crítica contribui amplamente ples estatuto de consumidor para se tornar
para esquecer, ou para ocultar o fato de que um “produtor de conteúdos”. Esse discurso,
por trás dos numerosos e variados usos que amplamente conhecido, havia sido refutado
se desenvolvem para a rede, certas empresas antes, como mencionamos anteriormente,
desempenham um papel central, tanto no que mas, mesmo assim, ele consegue se impor
concerne à produção, quanto no que se refere novamente, inclusive no seio da comunidade
à distribuição de conteúdos informacionais e acadêmica, onde certos membros não hesi-
culturais. Falamos até de “sociedade 2.0” para taram a retormar, por sua conta, a expressão
mostrar que a democracia inerente, intrínseca “web 2.0” sem perceber que esse uso estava
ao desenvolvimento dos serviços mais recen- londe de ser neutro. Contudo, como de-
tes das tecnologias numéricas e organizadas monstraram Bouquillion e Matthews, a te-
em rede, se expandiu no conjunto dos setores mática da “web 2.0” contribui para legitimar
de atividade, favorecendo, por “contamina- as formas assumidas pelo capitalismo desde
ção”, novas organizações menos hierárquicas, o fim do período fordista dos anos 1970. Eles
mais participativas. A saúde, a educação, o afirmam que “os discursos relativos à web 2.0
transporte, a cultura, as instituições, tudo co- retomam, prolongam e renovam importan-
meça a ser rotulado como “2.0”. David Fayon, tes discursos sobre as indústrias da cultura e
autor de um livro de título revelador, Web 2.0 da comunicação, assim como sobre as TICs e
et au-delà. Nouveaux internautes: du surfeur à sua inserção econômica e social” (2010:10).
l’acteur (2010), retoma, por sua conta, a idéia A web 2.0 aparece, desde então, como a ver-
de uma terceira revolução, ocorrida após são mais atual da “sociedade da informação”.
aquela da agricultura e da indústria: a “revo- Passamos a falar de técnica com interfaces –
lução imaterial”, “ainda mais acelerada com o enfim conviviais! – que poderão descentrali-
fenômeno das redes sociais no seio da Web 2.0 zar melhor os discursos e falas, o que não era
e da sociedade 2.0” (Fayon, 2010). A expressão feito pela “web 1.0” (que nem era etiquetada
“sociedade 2.0” começa mesmo a ser retoma- como tal). Mas falamos desde já da “web 3.0”,
da em certas instituições universitárias. Tal é o e mesmo da “web 4.0”, no caso de a “web 2.0”
caso, por exemplo, do importante grupo pluri- não cumprir todas as suas promessas. Mas fa-
disciplinar francês, Marsouin, que desenvolve lamos muito pouco de economia, ainda que
um projeto de pesquisa que tem como título ela seja onipresente, como mostra um bom
“sociedade 2.0”, e ainda outro que tem como número de aspectos da figura emblemática
principal tema a “empresa 2.0”. dessa “rede colaborativa”, como o Facebook.
Felizmente, Philippe Bouquillon e Jacob E atribuímos todos esses tipos de influências
Matthews nos lembram, em uma obra inti- positivas às redes sociais numéricas.
tulada Le Web collaboratif. Mutations des in-
dustries de la culture et de la communication A urgência da crítica
(2010), que a expressão “web 2.0” apareceu
em 2003, sendo que a paternidade do termo Em uma obra que organizei com Fa-
é geralmente atribuída a Tim O’Reilly, es- bien Granjon, Critique de la société de
pecialista em informática e empreendedor. l’information (2008), afirmávamos que não
Ele buscava relançar a Internet como setor se trata de contestar o lugar, cada vez maior,
de atividades econômicas, enquando a vira- das TICs nas diversas esferas de atividades
da do milênio vinha marcada pelo estouro no centro das quais os atores sociais se inse-
da bolha criada anteriormente em torno da rem. Trata-se, sobretudo, de refletir sobre as
desigualdades, das relações de poder, todas as partir dos anos 1970, as TICs não foram pri-
formas de exploração e de dominação, signi- meiramente apresentadas como uma fonte
fica, na verdade, contribuir para reforçá-las. de empoderamento que permite aos indiví-
Mas é igualmente importante, como aponta duos aumentar seu capital comunicacional?
Erik Neveu, não nos inclinarmos “em dire- Enquanto empreendedor de si, em todas
ção da produção de contra-mitologias, uma as atividades que desempenha no cotidiano,
vez que elas também são redutoras”, partin- o sujeito faz sua auto-promoção e utiliza as
do à caça aos mitos (1994:72). TICs para a realização de seus próprios fins,
Essa caça aos mitos nos parece mais im- para valorizar-se, ao mesmo tempo, por fins
portante do que as diferentes razões que ex- monetários e simbólicos. Em conseqüência,
plicam como as expressões “sociedade da in- será que o sujeito-cidadão, o sujeito reflexivo
formação” e “web 2.0”, e mesmo “sociedade característico da modernidade, não possui a
2.0” são amplamente mobilizadas pelos di- tendência a abandonar o debate sobre as gran-
rigentes de empresas, responsáveis políticos des orientações normativas da sociedade para
e membros da “sociedade civil”. É possível se transformar em um investidor que tem
indagar a respeito de uma eventual “conver- como principal função gerar capitais (econô-
gência” no uso dessas expressões. Enquanto micos, culturais, intelectuais, reputacionais e
trabalhador, cidadão, militante e até mesmo humanos) (Ouellet, 2009:146)? E a sociedade
como ser humano, o usuário das TICs não que se esconde por trás de expressões como
deve ser cada vez mais performático, criativo “sociedade da informação” e “sociedade 2.0”,
e “empreendedor de si mesmo?” Seguindo o será ela uma sociedade na qual as tecnologias,
ponto de vista de Maxime Ouellet (2009), é principalmente da informação e da comuni-
possível nos perguntarmos a respeito da arti- cação, tornadas onipresentes, não seriam mais
culação entre regimes de poder e tipos espe- interpeladas sob o registro do “Por que”, mas
cíficos de subjetividade em uma perspectiva somente sob o registro do “Como” – o que
foucaultiana. Dentro do quadro da passagem tornaria particularmente difícil todo desen-
do capitalismo fordista nacional ao capitalis- volvimento em termos de abordagem crítica?
mo financeiro globalizado, que se firmou a (artigo recebido mar.2011/aprovado abr.2011)
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