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A Questão Fundamental

Kónilos Elaía

5 Tudo começou quando o homem se apercebeu no mundo e se


admirou de tanta diversidade. Perplexo com a imensidão e a
complexidade, certamente a partir dos problemas que lhe afligiam a
existência: as condições de sobrevivência, a morte como perda
irreparável de um ente querido, assim como a perda de uma condição
10 de prazer, então ele percebeu a necessidade de explicar os
acontecimentos em torno de si.
O que o homem poderia pensar se não sentisse o prazer de
saciar suas necessidades nem sofresse a dor pela perda dessa condição,
ou seja, pela impossibilidade de saciá-las? Então, do seu contato com
15 o que lhe é exterior ele cria o seu mundo interior; as sensações dão
lugar às ideias. A necessidade da convivência em sociedade torna
essencial a comunicação. Por isso as suas impressões precisam
retornar ao mundo, carecem de expressão. Daí ele fala, cria a
linguagem. Assim, o tangível e o visível, gerando-lhe o invisível,
20 transformaram-se no dizível: as coisas são nominadas, o mundo é
expresso em palavras. A palavra o coloca em contato com o invisível.
E eis que surge a dúvida: a capacidade de perguntar – o que é isto? E
ele pensa.


Texto adaptado para uma introdução à Filosofia (inconcluso).

Mestre em Filosofia/UFPB
A Questão Fundamental

1. A Construção do Ser

O medo da dor, do mal, da morte, assim como o prazer das


satisfações, tudo isso gera o desejo de conhecer, de explicar o que lhe
5 causa tais sensações. O homem então começa a explicar o mundo: o
visível pelo invisível. Servindo-se dos elementos concretos ao seu
redor, ele os transpõe para fora do mundo, extrapolando o observável,
o vivido, para assim o explicar. O humano conta histórias, cria os
mitos, gera um saber, cultua a vida, a existência, faz cultura, constrói
10 o ser.
Os mitos apontam para o desconhecido como se o
conhecessem. Mas isto bastava para resolver os problemas da vida em
comunhão. A necessidade de resolver problemas comuns é satisfeita
com explicações baseadas na autoridade do temor pelo invisível. Pois
15 este se manifesta na natureza: no Sol que ilumina e se esconde, no raio
veloz que incendeia, na chuva que inunda mas fertiliza a terra, e nesta
que consome, devora, mas que também prover o alimento, a
subsistência. Tais fenômenos são, pois, explicados conforme a
dependência que cada povo tem deles e a partir dos elementos
20 concretos lhes relacionados.
Assim, o mal se esconde na caixa de Pandora ou num animal
como uma serpente, um gato etc., ou num fruto da região, o qual
também pode representar o prazer, o desejo proibido, conforme cada
povo. O Sol não seria mais que uma bola de fogo rodeada de penas de
25 arara. O fogo mesmo teria origem divina, assim como o ar vital
(: pneuma), o sopro que anima o homem (ânima: alma). A
Terra seria mera criação dos deuses, os quais habitavam seus montes.
A divindade, portanto, encontrava-se em todas as coisas, segundo

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alguns povos. Para outros, contudo, existia somente um deus em


conflito com outros seres invisíveis que se manifestavam nas coisas.
Entre os gregos, porém, explicava-se tanto a origem do mundo
material como a origem dos deuses, buscando-se a unidade do diverso.
5 Hesíodo (séc. VIII a.C.), poeta camponês da Boécia, organizando as
histórias que eram contadas oralmente em todos os cantos da Antiga
Grécia, escreve em sua Teogonia: “primeiro que tudo houve o Caos, e
depois a Terra de peito ingente, suporte inabalável de tudo quanto
existe”1. Para Demócrito (460-370 a.C.) também: “quando da
10 formação inicial do universo, o Céu e a Terra tinham uma forma
única, porque a sua natureza era mista”2. Quanto aos deuses, eram
todos descendentes de Cronos (o Tempo) que devorava seus próprios
filhos, até que Zeus tramou contra aquele pai terrível e assumiu o
trono supremo, tornando-se eterno, superior ao tempo.
15 Daí, dentre tantas explicações geradas sob crenças particulares
entre os tantos povos, há um em especial que, devido ao seu solo
infértil, aventura-se ao mar em busca das condições de sobrevivência
em outras terras e assim conhecendo a diversidade: outras crenças,
outras explicações para os mesmos fenômenos. Os invisíveis, então, se
20 entrechocam, uma vez que o visível permanece o mesmo. As
explicações são diferentes para os mesmos fenômenos, segundo a
percepção distinta dos povos. Em qual acreditar? Qual seria a
verdadeira? Como saber qual é a certa? Não seria possível pensar
outro modo de explicar unitariamente o mundo tão diverso? Como?

1
Apud Tiago Adão Lara. A Filosofia nas suas origens gregas; p. 44, extraído por
sua vez de Cornford. Principium Sapientiae; 1981; p.315. Hesíodo (2001107) Canto
I, 44.
2
Ibidem; p. 45.

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Primeiro seria necessário abrir mão das crenças que, embora já


tão arraigadas, se chocavam com aquelas de outros povos. Pois algo
dizia que apesar de toda a diversidade de coisas, o semelhante
provinha do semelhante em qualquer tempo ou qualquer lugar. E em
5 sendo assim, dever-se-ia supor que os semelhantes originários,
diferentes entre si, também deveriam ter uma causa comum, única.
Mas como justificar isto?
Eis que os gregos fundam a razão (logos), uma disposição
comum a todo ser humano, que lhe possibilita pensar e compreender o
10 mundo e que, aliás, permitira-lhe criar a linguagem (logos), pela qual
ela expressa o que consegue abstrair das percepções que os sentidos
tem das coisas à sua volta. E com a razão, surge também a Filosofia
como um novo saber que, baseado naquela, problematiza todo
discurso explicativo vigente.
15

2. Discursos Explicativos da Realidade

Como, desde o seu surgimento no século VI a.C., a Filosofia


(filosofia) tem se distinguido dos mitos (miqoj), que é um saber
20 fantástico, imagético, estruturado em elementos concretos da realidade
vivida e fundador de crenças religiosas com base no temor pelo
invisível, esse saber foi substituído por aquele abstrato porquanto
racional e totalizante; e considerando que nos séculos XVI e XVII
d.C. ela também sofreu do mesmo mal, destronada pela emergente
25 ciência moderna, também racional, porém não mais totalizante, mas
matematizada e experimental; pode-se depreender daí que ela, assim
como a Mitologia, a Teologia e a Ciência, não é mais que um saber
sobre o mundo, isto é, mais um discurso explicativo da realidade, um

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tipo de conhecimento, uma disciplina, uma atividade com funções


características e um modo peculiar de abordagem daquilo que
constitui a sua matéria-prima de trabalho. Faz-se mister, portanto,
caracterizar melhor esse modo próprio de produzir conhecimento e a
5 função lhe inerente.
Primeiramente, contrapondo-a aos mitos, pensemos que a
Filosofia se distingue pela sua universalidade. Enquanto a Mitologia
tentava explicar a realidade de modo um tanto pitoresco, particular,
haja vista estruturar tal pensamento sobre coisas concretas da sua
10 realidade local, comum a um povo, a Filosofia, até por diagnosticar
díspares explicações míticas para um mesmo fenômeno, busca então
explicar a realidade de modo universal, vendo-a como um todo,
apreensível conceitualmente, numa mesma forma, válida em qualquer
tempo ou lugar.
15 Considerando o testemunho dos primeiros filósofos, desde
Tales de Mileto (séc. VI a.C.) até Anaxágoras (séc. V a.C.), o qual
leva a Filosofia, dos arredores da Magna Grécia, para Atenas, talvez
possamos afirmar que Mito e Filosofia andaram juntos por muito
tempo, tendo um como função educar seu povo, e a outra, explicar a
20 realidade. Basta lembrar que todos aqueles filósofos continuaram
servindo-se dos mitos, inclusive Platão, para quem o mito pode ser
uma bela e útil mentira.
Entretanto, como os mitos explicavam diversos fenômenos da
realidade natural e humana, a Filosofia questiona tais explicações e
25 retoma a realidade como sua matéria-prima, repensa-a, empreendendo
uma verdadeira investigação em busca dos fundamentos racionais da
realidade material, constituindo-se assim num saber dos primeiros
princípios ou das últimas causas. Eis que nesses termos ela se firma
em Platão e Aristóteles (séc. IV a.C.). E assim ela encerra a Idade

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Antiga e atravessa toda a época Medieval da História da Razão no


Ocidente.
Na Idade Média, porém, a Filosofia contrapõe-se à Teologia,
cuja matéria-prima é o divino como fonte única e inquestionável de
5 toda a realidade. Observe-se que este saber, nada novo, pois
aperfeiçoado dos mitos, haja vista funda mentar-se naquelas antigas
crenças oriundas do temor pelo invisível, estrutura-se não mais em
elementos concretos particulares, mas em experiências singulares com
pretensões universais. Contudo, a Filosofia também não dispensa tal
10 objeto, arriscando-se a questionar o inquestionável, a fundamentar o
que seria o fundamento, constituindo-se, pois, num saber cuja função
já não é educativa, tampouco de explicação da realidade, mas de
justificação do transcendental no humano. A Filosofia jaz
enclausurada pela Igreja Católica, detentora do poder e do saber.
15 Nos séculos XVI e XVII, entretanto, surge um novo tipo de
conhecimento que reclama para si a verdadeira e última explicação da
realidade, uma vez que, embora derivada da Filosofia, a Ciência
restringe-se ao estudo de uma realidade particular, ou seja, de uma
parte da realidade sobre a qual pode aprofundar-se, e de um modo
20 também específico sob a exigência de um método, às vezes
experimental, às vezes matemático ou ambos.
Destronada, então, a Filosofia assume como matéria-prima não
mais a realidade, haja vista desta se encarregar a Ciência; mas sim o
discurso científico sobre o real. Sua função, portanto, é questionar tal
25 conhecimento, de modo a fundamentá-lo como seu mais novo
produto, ou mesmo legitimá-lo como sua mais nova cria.
Com o surgimento de novos problemas, derivados das
mudanças sociais, o século XIX é marcado pela fundação das
chamadas Ciências Humanas, sob a pretensão de explicar os

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fenômenos do mundo propriamente humano, cultural, valorativo.


Aguça-se, então, o debate sobre a questão do método como critério de
legitimação do conhecimento científico. Entretanto, a proliferação
desse saber baseado na racionalidade moderna visando ao progresso
5 social, colocou à Filosofia algumas novas questões no âmbito do
valor. Se à Ciência cabe a descrição da realidade, o diagnóstico e a
explicação dos fenômenos naturais e humanos, isto é, a investigação
sobre os seres em particular, sobre partes da realidade, à Filosofia
resta questionar – se não sobre o ser, então – sobre o dever-ser, sobre a
10 possibilidade de mudança, o devir, o fundamento do poder ser
diferente. Nesses termos, parece plausível inferir que a Filosofia
tornou-se tão plural quanto a realidade desmembrada em seus
problemas. Sua tarefa, portanto, parece ora assumir a análise do
discurso científico, ora investigar a fundamentação dos valores, como
15 seu novo objeto de trabalho. Para os defensores do papel analítico da
Filosofia sobre o discurso científico, os valores só consistem em
objeto de investigação filosófica enquanto pronunciados numa
linguagem. Para os outros, contudo, a sociedade humana criou tantos
valores que até interferem na produção do conhecimento científico, o
20 que impede que este os tome como objeto, recaindo, portanto, sobre a
Filosofia a problematização da racionalidade moderna como mais um
valor criado. Eis, a meu ver, a função da Filosofia hoje.
Então, o que é filosofia, afinal? Ora, uma vez que a sua função
variou com o seu objeto em cada época, talvez ainda não esteja tão
25 claro o que ela realmente é. Contudo, considerando essa
caracterização do discurso filosófico no que diz respeito à sua
abordagem sobre o objeto dos outros discursos e em relação ao modo
como eles o abordam, observa-se preservada sempre a exigência do
problematizar em busca de fundamento; do que se vislumbram três

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problemáticas fundamentais, lógica e historicamente determinadas,


como sendo o objeto de estudo propriamente da Filosofia: o problema
do ser, o problema do conhecimento e o problema do dever-ser, ou
dos valores que fundamentam a prática humana.
5

3. As Problemáticas da Filosofia

Desde o seu surgimento a Filosofia tem se caracterizado por


três problemáticas que constituem a tematização de três grandes
10 problemas propriamente filosóficos, visto não se darem em outro
âmbito senão no deste conhecimento. Tais problemas caracterizam-se,
a meu ver, por guardarem certa correspondência lógica e cronológica
enquanto objeto do pensamento, isto é, enquanto pensados.
É possível observar que o exercício sistemático do filosofar
15 tem, lógica e historicamente, a necessidade da investigação sobre o
ser, seguida da problematização do conhecimento e perseguida pelo
questionamento do dever-ser. Isto nos permite uma esquematização da
História da Filosofia identificando suas épocas Antiga e Medieval
com a problemática do ser; a Moderna, a partir de Francis Bacon e
20 Descartes, é identificada com a problemática do conhecimento; e a
nossa época identifica-se com a problemática do dever-ser, do
questionamento dos valores, a partir da crítica radical empreendida
por Nietzsche, no século XIX, à propalada modernidade.
Claro que, sendo isto uma esquematização histórico-filosófica
25 baseada em três problemáticas fundamentais, alguns filósofos lhe
escapam ou se misturam. Certamente tal imprecisão deve-se ao fato de
que a produção objetiva do pensamento filosófico se deu

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dialeticamente a partir dos problemas postos pela realidade sócio-


histórica, mas sobre o modo como outros filósofos os abordaram.
Filosoficamente, tudo começou com Parmênides e Heráclito,
sobre a questão do Ser e do Devir, a partir de cujos pensamentos
5 Platão e Aristóteles retomaram, respondendo-lhe cada um a seu modo
e o legando aos nossos dias, passando quase incólume pela Idade
Média, dada a necessidade de razão e fé se reconciliarem sob a égide
do poder religioso. Na Idade Moderna, contudo, o contexto social
impõe a busca de fundamentos do conhecimento científico, pelo qual
10 se justificaria a ascensão da então nova classe social – a burguesia –
contra o clero medieval. Daí, dentre tantos, despontam Francis Bacon,
René Descartes, David Hume e posteriormente Immanuel Kant e
Georg Hegel. Estes assumem como problema fundamental a
possibilidade do conhecimento do Ser. No seio da modernidade,
15 porém, aflorados os problemas humanos – sociais, políticos, éticos,
religiosos e estéticos –, para os quais as ciências modernas não tinham
resposta, a Filosofia, então, revê a problemática do conhecimento
visando à dos valores, através de pensadores como Karl Marx com a
exigência do agir humano na transformação do ser social, Edmund
20 Husserl resgatando a subjetividade pela categoria da intuição eidética
e Friedrich Nietzsche com a transvaloração dos valores da
modernidade, cujo contexto sócio-histórico pulveriza tal problemática
em múltiplas abordagens entre tantos filósofos quanto são os
problemas vivenciados.
25 Essa identificação histórica das problemáticas, no entanto, não
significa que os problemas da época anterior tenham sido superados,
tampouco que os problemas da época seguinte não tenham sido
cogitados. Porquanto basta lembrar Martin Heidegger, que já no
século XX, retoma o ser como problema mal resolvido, assim como

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Platão e Aristóteles já cogitavam tanto sobre o conhecimento como


sobre os valores da práxis humana. Todavia, parece-nos razoável que
determinada problemática apenas se sobrepõe às demais em certas
épocas, dadas as suas condições de existência.
5 No tocante à correspondência lógica entre esses problemas,
podemos compreender como fundamentalmente necessário primeiro
pensar-se sobre os entes, buscar o ser das coisas: questionar sobre o
que elas são, o por quê da sua existência. Este tipo de reflexão é o que
expressa a problemática do Ser, chamada filosoficamente de
10 Ontologia ( = ontos: ente, ser;  = logos: discurso racional,
estudo, tratado), Teoria do Ser, ou também Metafísica, ( = meta:
além,  = physis: natureza) estudo sobre o que está além da
natureza física.
Num primeiro momento, é preciso explicar as coisas que
15 constituem a realidade, dizer o que elas são, apreender o seu ser,
buscar sentido para a sua existência... qual a sua causa, qual o seu fim.
Isto se estende filosoficamente ao Ser, ao real, ao princípio de tudo, do
mundo, do universo, da realidade como um todo. Somente após se
pensar sobre o Ser, enquanto o real como um todo, a realidade total,
20 isto é, uma vez concebido um princípio primeiro, um arqué ()
uma explicação do que as coisas são, então se pode passar à
problemática seguinte. Ou seja, uma vez definido o ser das coisas é
que se pode questionar como é possível conhecê-las, como alcançar o
seu ser, como se pode dizer o que ele é realmente, o que ele é de
25 verdade; qual a validade de uma afirmação de algo sobre alguma
coisa? Este tipo de reflexão expressa, pois, a problemática do
conhecimento.
No entanto, tomando-o como problema, isto é, como objeto
filosófico, problematizando-o, novamente recai-se no problema do ser,

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haja vista a pergunta pelo seu ser: o que é isto – o conhecimento?


Como ele acontece? Qual a sua origem? Qual o seu fundamento? É
possível, realmente, conhecer? Esse é o campo de estudos da Teoria
do Conhecimento ou Gnosiologia ( = gnosis: conhecimento) ou
5 Epistemologia ( = episteme: conhecimento rigoroso,
ciência), quando se reporta ao conhecimento científico, que toma
geralmente a Lógica como instrumento.
Do mesmo modo, antes de se entender como respondidas tais
questões não se pode adentrar a problemática do dever-ser, pois esta
10 supõe já conhecido o ser das coisas, das quais perguntamos, então,
sobre o que elas devem ser, uma vez consideradas imperfeitas no seu
modo atual de ser, de manifestar-se, isto é, inválidas na forma como
estão sendo, uma vez que nada garante haver qualquer necessidade
natural para que assim sejam. Para validá-las, para atribuir-lhes valor
15 positivamente, é preciso, então, modificá-las, realizá-las, atualizar a
sua potência de transformação, de vir-a-ser, de devir; dar-lhes uma
forma real, efetivar o seu ser. Claro que isto pressupõe já uma
concepção ontológica: que o ser dessas coisas não é imóvel, imutável,
que elas não são tais por natureza, por uma necessidade própria do seu
20 ser, que não estão prontas e acabadas, mas que estão sendo, em
movimento, por alguma necessidade externa a elas, podendo ser
transformadas conforme determinada concepção e o valor que lhes é
atribuído. Essa problemática caracteriza o campo de estudo dos
valores, Axiologia ( = axios: valer). E se refere propriamente ao
25 âmbito da chamada realidade humana, isto é, não natural; aquela que
faz valer, pois cria valor, ou seja, o campo da ação (: práxis)
resultante de deliberação, que pressupõe liberdade, escolha, interesse,
valoração. No entanto, a problematização do valor também recai no

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problema do ser: o que é isto – o valor? Como e por que o valor vale?
Qual a origem dos valores? Qual o seu fundamento?
A rigor, o problema do ser é a base de todos os outros, pois é a
questão mesma do fundamento, sendo primordial em relação aos
5 demais; por isso pressuposto por eles, se tomados separadamente, nem
que seja como supostamente resolvido, como questão respondida, não
problemática. Contudo, esse status também é estendido ao problema
do conhecimento em relação ao problema do dever-ser. O inverso,
porém, não ocorre.
10

4. O Problema do Ser

Segundo Aristóteles, o primeiro a fundar objetivamente a


racionalidade filosófica para explicar o mundo foi Tales de Mileto
15 (624-546 a.C.). Foi ele quem primeiramente respondeu à questão do
ser, unificando o todo em um único elemento: a Água. Para Tales, a
água era o princípio primordial, o arqué; dela teriam surgido todos os
outros seres. Esse nosso “pai da Filosofia” teria se valido da
necessidade daquele elemento para o desenvolvimento da Natureza.
20 Daí ser ele essencial: pois, sem a água, por exemplo, inexiste a vida.
...Além do que, sobre ela pairava o espírito divino. Tales, portanto, já
se contrapunha ao mito segundo o qual a deusa Terra fora o primeiro
elemento. E fazia isto não apenas substituindo uma crença por outra,
embora ainda se servisse de um elemento material, concreto, porém já
25 desdivinizado, tentando fundamentar racionalmente a sua crença numa
explicação da Natureza por ela mesma.
Há um outro filósofo seu contemporâneo, que discorda do
fundador da Filosofia. Segundo Anaxímenes (585-528 a.C.), há um

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outro elemento anterior à água: o Ar. Este sim seria primordial: mais
leve e menos concreto, invisível. A partir dele, então, é que a água
teria se formado, assim como os demais elementos. Observa-se que tal
pensamento também ainda utiliza um elemento concreto, todavia,
5 justificado como essencial pela sua necessidade e pela sua presença,
cuja negação é, paradoxalmente, sua marca: isto é, só na falta do ar é
que se percebe o quanto sua presença é necessária. E, embora o ar
participe da ideia do sopro divino (: pneuma: alma, sopro
vital), nesse discurso tal elemento encontra-se também já
10 desdivinizado.
O discípulo de Tales e mestre de Anaxímenes, porém, discorda
de ambos. Anaximandro (610-545 a.C.); para quem o princípio
primeiro não pode ser determinado, isto é, não pode ser definido,
apreendido por um nome a não ser o de apeiron3: indeterminado,
15 indefinido; haja vista não haver qualquer coisa na realidade, no
mundo, que pudesse lhe emprestar seu nome. A meu ver, isto faz de
Anaximandro um dos pensadores originários, cujo pensamento
inaugura de fato o discurso filosófico, dada a originalidade da sua
abstração, escapando não só à divinização mas também à
20 concreticidade imagética da narrativa mítica. A rigor, sua resposta nos
obriga a um novo modo de pensar: abstraindo e conceituando.
Além destes, outros também apresentaram suas respostas à
questão do ser. Pitágoras (580-497 a.C.), com a ideia de número,
segundo a qual tudo deriva do Um, da unidade. Demócrito, para que m

3
Apeiron () parece ser um termo composto do prefixo a [] – que em grego
expressa uma negação – e a raiz peira (), – que significa prova –, da qual
deriva empeiria () – experiência –, resultando em não-experimentado. Ou
seja, desprovido de uso da linguagem falada, isto é, de acesso ao logos (), fora
do plano do discurso, logo, indizível; portanto, indefinido, indeterminado. Conf.
Dicionário grego-português e português-grego (Pereira 1990).

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o princípio de tudo era o átomo (: não divisível) como partícula


última de todo ser, regida pelo cheio e pelo vazio onde ela transita.
Anaxágoras (500-428 a.C.), com as homeomerias, partículas que se
unem e se separam para formar os seres, regidas pelo Nous ():
5 Inteligência suprema. Heráclito (540-470 a.C.), pensador do
movimento, para quem o ser é um constante vir-a-ser, cujo princípio é
o Fogo. Empédocles (490-435 a.C.), que reúne os quatro elementos
defendidos pelos mitos, por Tales, Anaxímenes e Heráclito: Terra,
Água, Ar e Fogo; de cuja união – pelo Amor – ou separação – pelo
10 Ódio – se originam todos os seres. E por fim, Parmênides (530-460
a.C.), que consegue sintetizar todo o pensamento dos demais numa
palavra – o Ser, como a dar prosseguimento à provocação de
Anaximandro –, sobre cuja abstração apresenta-se como, talvez, o
mais originário dos pensadores, juntamente com o seu antitético,
15 Heráclito. Ambos, portanto, merecem mais algumas considerações.
Parmênides e Heráclito foram contemporâneos. O primeiro,
natural de Eléia; o segundo, de Éfeso. Se aquele foi originário por
apresentar a primeira categoria fundamentalmente filosófica, uma vez
que o conceito de Ser é a primeira grande abstração e o mais
20 abrangente de todos, congregando todo o existente, todas as coisas e
cada uma em particular, como ente (), sintetizando tudo o que os
outros haviam tentado dizer através dos diversos nomes dados ao
arqué e possivelmente complementando o pensamento de
Anaximandro, à medida que abstrai toda a realidade em um único
25 termo; Heráclito torna-se originário, a meu ver, por dois motivos: o
primeiro no tocante à questão conceitual, haja vista o termo “fogo”,
em seu pensamento, não parecer referir-se ao elemento concreto do
qual se serviam os mitos, mas sim à condição de movimento que tal
elemento representa: “o mundo, o mesmo em todos, nenhum dos

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deuses e nenhum dos homens o fez mas sempre foi, é e será, fogo
sempre vivo4, acendendo segundo a medida e segundo a medida
apagando” (frag. 30). Nesse sentido, o fogo, em Heráclito, a meu ver,
permite a passagem do discurso mítico ao pensamento filosófico,
5 fazendo uma ponte entre o concreto e o abstrato de que ele queria falar
como essência do ser: o movimento constante gerido pela luta dos
contrários – verdade-falsidade, amor-ódio, belo-feio, cheio-vazio,
quente-frio, branco-preto, macho-fêmea etc. Nisto consiste o segundo
aspecto pelo qual ele é considerado originário. O seu pensamento foi
10 revolucionário: a compreensão de que a realidade última das coisas é
puro movimento; que os seres são mutáveis não apenas na aparência
captada pelos sentidos, mas fundamentalmente na essência apreendida
pelo logos, pela razão: “A vida tem um Logos que se aumenta a si
mesmo” (frag. 115).
15 Segundo Parmênides, contudo, o ser é e o não-ser nada é (frag.
5
6) . O ser é uno, imóvel, imutável e eterno. Não é possível que ele
mude porque mudar é deixar de ser, o que impediria o conhecer.
Portanto, o ser é. Só o ser existe. O não-ser não pode ter existência,
uma vez que não pode ser pensado. Pensá-lo exige nominá-lo e
20 copulá-lo com o verbo ser, isto é, atribuir-lhe um predicado, predicar-
lhe alguma coisa. Ora, ser e pensar são uma e a mesma coisa (frag. 3),
de modo que aplicar ao não-ser o verbo ser é trazê-lo à existência,
uma vez que o verbo diz o ser, expressa-o. Portanto, o Ser e o
pensamento são o mesmo. E se não fosse assim, nada seria passível de
25 ser conhecido, pois é no pensamento que se gera o conhecimento.

4
Grifo meu: o termo fogo sem artigo definido, permite-nos supor um comparativo
...sempre vivo [como] fogo. Conf. ANA XIMANDRO, P ARM ÊNIDES, H ERÁCLITO
(199967).
5
Conf. Os Pensadores originários (199947), tradução de Sérgio Wrublewski; e Da
Natureza (Parmênides 2002), tradução e comentário de José Trindade Santos.

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5. O Conhecimento do Ser

O que é o conhecimento, senão uma apreensão do ser das


coisas e sua expressão numa linguagem?! Mas se o ser está em
5 movimento constante – como pregava Heráclito –, como apreendê-lo?
Como, então, seria possível conhecer alguma coisa se, ao expressar-
lhe o ser, este já teria mudado?! Por outro lado, se o ser é imóvel e
imutável, conforme a concepção de Parmênides, como negar o mundo
captado pelos sentidos, com toda a sua diversidade e mudanças
10 constantes? Quem estaria com a razão: Parmênides ou Heráclito? 6
Assim, o problema do Ser, agora acirrado pelo problema do
conhecimento, é assumido por Platão e Aristóteles que tentarão
resolver retomando os dois pensadores originários: Parmênides e
Heráclito. Faz-se necessário, portanto, considerar as suas concepções
15 do ser de modo a possibilitar o conhecimento sem negar a existência
do mundo vivido.
Para tanto, Platão concebe dois mundos distintos: o Mundo das
Ideias e o Mundo das Sombras. Como matemático, trabalhando com a
ideia de número e com as formas geométricas, esse filósofo concebe
20 tais seres com existência própria, independente da experiência
sensível, porquanto exatos. O matemático-filósofo supõe que tal
existência só seria possível se esses seres que permitem um
conhecimento exato da realidade tivessem sua existência assegurada

6
Ambos constituem os pilares da Filosofia no tocante à questão ontológica,
proporcionando a divisão do pensamento filosófico em idealista e materialista. A
primeira corrente concebendo o ser imutável atribui-lhe uma substância ideal,
priorizando a forma racional sobre a matéria sensível, dando ao ser uma existência
possível somente no plano das ideias, escapando às apreensões sensíveis do mundo
real. A segunda, por sua vez, concebe o ser como primordialmente material,
priorizando a matéria apreendida pelos sentidos sobre a forma idealizada pela razão.

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em um plano superior ao da realidade material. Portanto, eles teriam


uma existência puramente formal num mundo onde a matéria não
interfere e, neste sentido, o Ser seria uno, imóvel, imutável e eterno.
No entanto, Platão não nega o mundo material. Para ele, este mundo é
5 constituído apenas de reflexos, sombras das coisas verdadeiras que se
encontram no Mundo das Ideias. Isto significa que as coisas que
vemos, ouvimos, pegamos, sentimos no Mundo das Sombras não são
reais, mas sim mera aparência das coisas ideais, constituintes da
verdadeira realidade que é o Mundo das Formas. Neste é onde se pode
10 encontrar a verdadeira ideia de Bem, como ideia suprema que guia
todas as outras, a ideia de Beleza, de Verdade, de Justiça, de Homem,
enfim, o verdadeiro conhecimento só alcançável pela razão. Os
sentidos, portanto, são dispensáveis para tal conhecimento, haja vista a
sua imprecisão ao captar a realidade concreta, vinculados a prazeres e
15 dores, pelo que não merecem a confiança do filósofo, considerando-os
não apenas impotentes para atingir o conhecimento verdadeiro, mas
também como obstáculos à compreensão da verdadeira realidade do
mundo formal.
Se o debate entre Parmênides e Heráclito sobre o problema
20 ontológico apontou para a questão acerca da possibilidade do
conhecimento, a proposta platônica, por sua vez, ao tentar conciliar o
pensamento dos dois filósofos na sua concepção dos dois mundos,
apontou também para uma outra questão do conhecimento: a da sua
origem – isto é, se o conhecimento se dá pela razão ou pela
25 experiência sensível. Platão optou pela primeira, desconsiderando a
segunda. O conhecimento universal e necessário, segundo ele, só é
possível graças ao Mundo das Ideias, condição de possibilidade de
que as almas tenham contemplado os conceitos, as formas, as ideias
das coisas em sua verdadeira realidade. Isto explicaria o porque de o

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A Questão Fundamental

ideal e o real se corresponderem na necessidade e na universalidade do


ser. Contudo, o seu pressuposto na crença de um mundo superior,
embora puramente racional, coloca em xeque o propósito originário da
Filosofia, que era explicar o mundo material por ele mesmo e não
5 mais a partir ou mediante entidades extra-mundanas.
A teoria platônica das formas, embora não crie tais entidades,
funda-se, porém, na crença em um mundo supra-humano, divinal,
improvável ou indemonstrável, mas que permitiria realizar o ideal de
conhecimento absoluto, exato, porquanto de um ser estático, imutável,
10 pronto e acabado. O pressuposto do conhecimento, portanto, residiria
na imortalidade da alma e em sua transmigração, processo pelo qual
ela transportaria ao mundo humano o que contemplara no Mundo das
Ideias, consistindo o ato de conhecer em nada mais que um relembrar
– conforme o mestre Sócrates 7. Poder-se-ia perguntar quanto à ideia
15 de cor, por exemplo, para quem não dispõe da capacidade visual; ou
da ideia de música, para quem não ouve, o que, aliás, impossibilita até
a fala, o uso da palavra...
Aristóteles, como bom discípulo de Platão, discorda do mestre
quanto à necessidade dos dois mundos para resolver tal problema.
20 Menos afeito às Matemáticas e mais familiarizado com o estudo da
natureza viva, certamente influenciado pela arte médica do seu pai, faz
um exercício dialético diferente: diz respeito à investigação sobre
aquilo de que todos falam, ou do que é admitido pela maioria, ou o
que é dito pelos mais eminentes, isto é, os sábios. Assim, o filósofo

7
Ou mesmo, mais platonicamente, o verdadeiro conhecimento consistiria no
aprimoramento da razão mediante o exercício da dialética enquanto método
geométrico de ascendência à pureza das formas para justificar a descendência da
matéria. Quanto ao esclarecimento sobre o que há de geométrico neste método em
Platão, conferir Dialética, Educação e Política: uma releitura de Platão, do Prof.
Antônio Jorge(Soares 1999).

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A Questão Fundamental

assume como ponto de partida de toda pesquisa a análise da coisa


mesma em sua condição de existência na relação material com o
homem. Desse modo ele concebe a razão humana como uma
capacidade de abstração da forma que é intrínseca ao ser material
5 percebido pelas sensações. Ou seja, quanto à questão da origem do
conhecimento, para ele, nada há no intelecto que antes não tenha
passado pelos sentidos. Quanto à questão do fundamento, porém, é
preciso fundar algumas categorias do Ser.
Aristóteles, então, na busca pelos primeiros princípios, ou pelas
10 últimas causas, observa que todo ser na natureza é constituído de uma
determinada matéria, encontra-se sob certa forma, foi gerado por outro
ser e tende a um fim8. Nisto constituem-se as causas físicas dos entes
singulares. Entretanto, a razão investiga o ser em geral, o que
prosseguiria ao infinito questionando sempre sobre as causas das
15 causas. Nessa impossibilidade racional, o intelecto funda um princípio
sobre duas categorias: o de ato e potência 9. Todo ser tem a tendência, a
capacidade de se transformar noutro ser. Isto é o que o filósofo chama
de potência (: dínamis) como expressão do movimento do
ser, enquanto capacidade constante de mutação. Por outro lado, esse
20 movimento constante do ser, quando atinge o seu fim, o seu estágio
final (Met. ), assume certas características, apresentando-se sob
determinada forma pela qual se pode dizer o que a coisa é. Isto é o que
o filósofo chama de ato (: energueia): a coisa atualizada –
isto é, em sua forma atual –, atificada, efetivada, realizada, ou seja, em
25 sua forma real. Portanto, é sobre este aspecto que o ser pode ter suas

8
As causas primeiras: material, formal, motriz e final. Conf. (Aristóteles 2002), Met.
I 3, 983a24; Physique (2005) II 3, 194b23.
9
Met. IX 1, 1046a: “as noções de potência e de ato ultrapassam os significados
relativos unicamente ao movimento”.

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A Questão Fundamental

características apreendidas pelos sentidos e a sua forma abstraída pela


razão. E nisto consiste o conhecimento, para Aristóteles.
Portanto, o problema do Ser, como respondido por Parmênides
e Heráclito, gerou o problema da possibilidade do conhecimento. Na
5 tentativa de solucionar tais problemas, Platão apontou para a distinção
entre duas vias de acesso ou de formação do conhecimento: a razão e
os sentidos, optando pela primeira. Aristóteles, por sua vez, optou pela
segunda, conforme a sua concepção do ser. Com eles, geraram-se,
pois, mais duas correntes filosóficas; agora quanto ao problema
10 gnosiológico: o racionalismo e o empirismo.
Entretanto, Aristóteles só pode ser classificado como empirista
no tocante à questão da origem do conhecimento, visto que, embora
ele compreenda os sentidos humanos como potência do conhecimento,
a qual é ativada pelos objetos sensíveis, o próprio filósofo reconhece à
15 razão a atividade de concepção ou elaboração dos conceitos, portanto
a instância produtora do discurso pelo qual o ser é expresso e
devolvido ao mundo no formato de palavras, as quais são símbolos
dos sons produzidos pela fala (Da Int. 16a5) que comunica uma ideia
abstraída das sensações, por sua vez derivadas do mundo material.
20 Nesses termos, Aristóteles aponta para um novo problema,
agora epistemológico10: o da validade do conhecimento universal e
necessário, isto é, daquele que se refere a causas suficientes ou
necessárias. Daí Aristóteles ter fundado um instrumento 11 capaz de
testar a validade do discurso dito científico: a Lógica.

10
A diferença entre os aspectos gnosiológico e epistemológico, a rigor, diz respeito
à abrangência do primeiro – concernente à origem do conhecimento em geral – em
relação à restrição do segundo ao âmbito do discurso de pretensões científicas.
11
Instrumento seria a tradução para Organon(2005) título da obra em que
Aristóteles trata da Lógica, composta de seis livros distintos: Categorias, Da

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6. As Leis do Pensamento e o Movimento do Ser

Entendendo que o conhecimento só é possível não por se captar


o ser em movimento, mas sim por apreendê-lo em um dado estágio,
5 caracterizado sob certa forma, então, uma vez categorizado o
movimento no princípio de ato e potência, resta explicitar a estrutura
do pensamento que o expressa em discurso. Aristóteles, analisando as
frases que denotam conhecimento, sobre as quais cabe atribuir os
valores verdadeiro ou falso, apresenta algumas leis do raciocínio que
10 estão em voga até os nossos dias12.
Se entendemos que a Lógica é o instrumento da Filosofia no
sentido de que é ela que trabalha com os argumentos enquanto
discursos de expressão do raciocínio pelo qual guiou-se o pensamento
na elaboração de suas ideias, então precisamos explicitar cada um
15 desses elementos, isto é, desses conceitos. Uma vez que o
conhecimento se apresenta numa afirmação de algo sobre alguma
coisa, podemos, a partir disto, supor como ocorre o processo mental
do qual resulta aquilo pelo que a Lógica se interessa.
Podemos dizer que, aristotelicamente, o conhecimento se
20 origina pelas impressões que os órgãos sensoriais captam das coisas
no mundo real 13. Este funciona como ato em relação àqueles, os quais
encontram-se dispostos em potência, enquanto capacidade de tatear,

Interpretação, [Primeiros] Analíticos Anteriores, [Segundos] Analíticos Posteriores,


Tópicos e Argumentos Sofísticos.
12
Não é nossa pretensão expor aqui a Lógica de Aristóteles, precursora de toda a
Lógica até Frege, mas tão-somente explicitar algumas categorias introdutórias
visando à compreensão do instrumental lógico para o raciocínio científico-filosófico,
como consequência da resposta à questão fundamental sobre o conhecimento do ser.
13
Conf. (Aristóteles, De Anima 2006): “sem objetos externos os sentidos não
produzem percepção” (DA 2.5 417a4).

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A Questão Fundamental

ver, ouvir, cheirar, saborear, sendo atualizada pelos objetos sensíveis,


isto é, por aqueles objetos passíveis de serem sentidos. O intelecto,
porém, é concebido como uma tábula rasa (DA 3.4 430a), um papel
em branco no qual as sensações são impressas criando imagens que
5 uma vez guardadas geram a memória. Essas impressões, porém,
associadas à sua imagem, geram na mente uma ideia, que é uma
abstração, isto é, uma elaboração mental a partir do que fora extraído e
absorvido do objeto pelos órgãos sensoriais. Essa ideia, então, recebe
um nome para que aquela sensação possa agora ser comunicada numa
10 linguagem. A coisa, já nominada, é associada a outras coisas que a
caracterizam, enquanto propriedades suas, seus atributos, gerando
assim o conceito. Este, por sua vez, consiste na articulação das ideias
que perfazem uma coisa linguisticamente explicitada. Ou seja, o
conceito é a apreensão mental de determinada coisa. Num sentido
15 mais etmológico, é o concepto, o produto da concepção, isto é, o fruto
concebido, ou seja, o resultado do processo mental de geração do
conhecimento. Portanto, diz respeito sempre a uma afirmação de algo
– que chamamos de atributos ou propriedades – sobre alguma coisa –
que chamamos de ente. Isto significa que o conceito expressa um
20 conhecimento, apresentando-se sempre numa frase, como apontou
Aristóteles, constituída de um sujeito, que é a coisa de que se fala, e
um predicado, que é aquilo que se atribui ao sujeito, como próprio
dele, pertencente à sua natureza. O sujeito e o predicado, porém,
aparecem interligados, copulados, pelo verbo ser. Ex.: 1) ideia é a
25 imagem mental de uma coisa; 2) conceito é a expressão linguística de
uma ideia. Na primeira frase ideia é o sujeito que, seguido do verbo
ser, recebe uma predicação, o atributo de imagem mental. Na segunda,
o sujeito é conceito, conquanto lhe é predicado o atributo de exprimir
linguisticamente uma ideia.

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A Questão Fundamental

Assim, aquilo que aparece gramaticalmente (numa frase) como


sujeito corresponde, semanticamente (na mente), àquilo que é o objeto
do pensamento, isto é, o ente analisado. Em outras palavras: o ente
pensado, para ser comunicado, foi substituído por um termo que
5 constitui o sujeito da frase que o define. Do mesmo modo, aquilo que
o define, ou seja, as coisas a ele relacionadas, isto é, declaradas como
seus atributos ou propriedades, expressam-se em termos
presumivelmente conhecidos que, como tais, constituem o predicado
da frase. Esses termos são representados na Lógica como S e P, e
10 servem para expressar qualquer declaração com valor de verdade.
Os conceitos, porém, uma vez articulados entre si, formam os
juízos, que são a afirmação pela qual as ideias são comunicadas. No
exemplo 1 mencionado, a palavra ideia está sendo concebida, por isso,
enquanto conceito, ela exige sua explicitação, o que é dado no
15 predicado. E este é composto por várias outras palavras. Estas, no
entanto, tem seus significados supostamente compreendidos. Contudo,
cada uma delas poderia também recair na exigência da concepção, da
conceituação; e assim careceriam ser explicitadas por outras palavras
com significados já presumivelmente conhecidos. Assim, o conceito,
20 para ser explicitado, definido, requer a elaboração de um juízo, ou
seja, um enunciado, uma declaração de que ele (o conceito) é
identificado por certas características, propriedades ou atributos.
Os conceitos, entretanto, compõem-se de extensão e de
compreensão do significado. A primeira diz respeito ao seu alcance
25 material, à sua abrangência, a quantos elementos ele se refere. Já a
compreensão consiste nas qualidades ou atributos do sujeito,
constituintes do próprio predicado do juízo. Por exemplo: Ser. Este
conceito é o mais extenso que conhecemos, pois abrange a todas as
coisas existentes. Por outro lado, a compreensão que ele expri me é

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A Questão Fundamental

imprecisa, infrutífera, senão inconsequente, pois nada acrescenta ao


significado de uma coisa chamá-la de ser, nada acresce à explicação
dessa coisa. Por exemplo: dizer que o homem é um ser nada esclarece
a respeito do homem. Portanto, essa dimensão do conceito concerne à
5 clareza da ideia sobre os objetos referidos, à precisão do seu
significado. Por isto, quanto maior a extensão do conceito, menor a
sua compreensão e vice-versa. Tomando o mesmo conceito,
poderíamos aumentar a sua compreensão acrescentando o termo
animal – ser animal –, restringindo assim a sua extensão. Isto
10 estenderia tal conceito apenas aos seres animados, isto é, àqueles que
tem alma (ânima), tem vida e se locomovem, esclarecendo melhor a
respeito de quem se fala, uma vez que diminuiu o seu alcance,
deixando de fora todos aqueles seres que não participam dessa ideia
de movimento. Se lhe acrescentamos o atributo racional – ser animal
15 racional –, sua extensão reduzir-se-á a um grupo interno ao dos seres
que se locomovem, ou seja, ao daqueles dotados da capacidade de
raciocinar, ampliando a sua compreensão a mais esta característica.
Tomemos o conceito de sacerdote (quer dizer: a ideia que nós
temos dessa coisa chamada por esse nome): a sua compreensão refere-
20 se à ideia de dirigente de culto religioso, estendendo-se, portanto, a
qualquer pessoa que mantenha essa atividade em qualquer religião.
Entretanto, se lhe acrescentamos o termo católico, diminuímos a sua
extensão e aumentamos a sua compreensão, significando dirigente de
culto religioso católico, identificando-se com o conceito de padre
25 (sacerdote católico).
Assim, conforme a extensão do significado, todo padre é
sacerdote, embora nem todo sacerdote seja padre, haja vista a maioria
das religiões ter, cada qual, o seu sacerdote específico, como o pastor,
o rabino, o guru etc. do mesmo modo que todo homem, como animal

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racional, é ainda animal, visto que se locomove, mas nem todo animal
é homem, haja vista não participarem do atributo do raciocínio.
Observemos, portanto, que a compreensão do significado é a
dimensão a partir da qual podemos estender (ou restringir) o conceito
5 a uma determinada classe ou espécie de seres até alcançarmos os
gêneros, os quais são termos mais abrangentes, mais universais, como
ser e movimento, em cujo seio comporta as espécies, os particulares e
os singulares.
Os juízos, porém, são a estrutura linguística composta de
10 sujeito, verbo e predicado pela qual se expressa uma afirmação
explicitando determinado conceito. Eles consistem na objetivação dos
conceitos; são o seu pronunciamento, as frases mesmas articulando as
ideias mediante o verbo ser. E quando declaram algo sobre o real,
atribuímos-lhes o valor de verdadeiro ou de falso. Os juízos são,
15 portanto, proposições, supondo que propõem uma elucidação do
objeto real pensado. Mas tem também o caráter de sentenças, pela
determinação que eles comportam ao declararem algo da coisa. A
rigor, são chamados apenas de enunciados. 14
É, pois, com sentenças declarativas que lida a Ciência ou
20 qualquer outra atividade humana que visa produzir algum discurso
racional sobre o mundo, que busca informar com pretensões de
verdade a relação entre duas coisas, expressando-as nos termos Sujeito
e Predicado. Portanto, os juízos ou enunciados aos quais se atribui
verdade ou falsidade é que servem de objeto da Lógica. A ela não
25 cabe, por exemplo, examinar frases que denotam pergunta ou ordem,
visto que nem as interrogativas nem as imperativas tem pertinência

14
A diferença entre proposições, sentenças e enunciados é um problema sobre o
qual os lógicos não são unânimes. A rigor, nem é um problema de introdução à
Lógica. Conf. (Mortari 2001, 10).

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quanto aos valores de verdadeiro ou falso. Ex.: 1) Sócrates é homem;


2) Sócrates, seja homem!; 3) É verdade ou é falso que “Sócrates é
homem”? Somente no primeiro exemplo existe uma declaração, sobre
a qual recaem os valores verdadeiro ou falso. No segundo, a frase é
5 imperativa, nada cabendo a esse respeito; assim como na interrogação
do terceiro exemplo.
Aristóteles observou que as sentenças declarativas podem ser
de dois tipos: quanto à extensão do sujeito elas são universais,
particulares ou singulares – abrangem, respectivamente, a uma
10 totalidade de seres, ao conjunto de uma espécie ou apenas a uma parte
dela. Os enunciados universais geralmente expressam-se pelo
quantificador lógico todo ou pelo nome da coisa, antecedido pelos
respectivos artigos definidos. Ex.: todo homem é mortal; o homem é
mortal; ou, os homens são mortais. Os enunciados particulares
15 apresentam-se sob o quantificador lógico alguns, significando não
todos, mas pelo menos um..., ou ainda, referindo-se somente a um
indivíduo singular, usa-se apenas o nome próprio do objeto referido.
Ex.: alguns homens são sábios; algum homem é sábio; ou Sócrates é
sábio.
20 Quanto à compreensão do predicado, as sentenças declarativas
classificam-se em afirmativas ou negativas, correspondentemente ao
modo de o sujeito se relacionar com os seus atributos, pela identidade
quando afirma (ex.: Sócrates é sábio) ou pela diferença quando nega
(ex.: Sócrates não é belo).
25 As sentenças afirmativas universais se referem a um sujeito
universal, um conceito com conteúdo amplo, geral, total, embora o seu
predicado refira-se a um conceito representativo apenas de uma classe
de seres, não totalizante. Ex.: Todo homem é mortal. Homem, aqui,
sob o quantificador lógico todo, é um sujeito (S) de caráter universal,

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A Questão Fundamental

pois se reporta ao conjunto dos indivíduos humanos existentes ou por


existir, que, pelo fato de pertencerem a essa espécie ou classe
participam desse atributo – ser mortal. No entanto, o predicado mortal,
enquanto conceito atribuído a essa espécie, assume um caráter
5 particular, pois nada diz dos demais seres vivos que também
participam de tal característica. Ou seja: não se refere a todos os
mortais, mas tão-somente àqueles que são homens, nada dizendo dos
demais, uma vez que nem todos os mortais são homens.
A categoria das sentenças declarativas afirmativas particulares,
10 porém, comporta um sujeito com escopo restrito a alguns e não a
todos os seres a que se refere o conceito, assim como um predicado
também particular. Ex.: Alguns homens são belos ou Sócrates é belo.
Nem todos os homens são belos e nem tudo que é belo é homem, mas
somente alguns; isto é, não todos, mas pelo menos um: Sócrates.
15 No entanto, as sentenças declarativas negativas universais
comportam um sujeito universal e um predicado também universal.
Ex.: Nenhum homem é belo. O quantificador lógico nenhum, aí,
significa: não há um único indivíduo sequer, pertencente à classe dos
homens, que possa ser belo. E o predicado belo se refere a todo o
20 conjunto das coisas belas, dentre as quais não há uma só que seja
homem.
Quanto às sentenças declarativas negativas particulares,
constituem-se de um sujeito particular, mas de predicado universal.
Ex.: Alguns homens não são belos ou Sócrates não é belo; sendo o
25 mesmo que dizer: alguns homens são não-belos ou Sócrates é não-
belo. Significa que no conjunto das coisas belas não existe Sócrates ou
não existem alguns homens. Dito de outro modo: no conjunto das
coisas não-belas existem algumas que são homens, ou ainda: existe
pelo menos uma, que é Sócrates.

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A Questão Fundamental

Além disso, a articulação dos juízos, enquanto processo mental


constitui o raciocínio que, uma vez expresso, comunicado, transforma-
se em argumento, composto de premissas e conclusão, que é o que
interessa fundamentalmente à Lógica. As premissas são as sentenças
5 que expressam algo já tido como verdadeiro ou um fato, um dado,
algo observado. A conclusão é a sentença que expressa uma
consequência das afirmações tomadas como verdade nas premissas.
Ex.:
Premissa 1 – Sócrates é homem (fato, dado, condição particular
10 observada);
Premissa 2 – Ora, todo homem é mortal (dado como
verdadeiro; verdade admitida);
Conclusão – Logo, Sócrates é mortal (consequência derivada
das afirmações anteriores; inferência lógica,
15 dedução).
Na Analítica aristotélica este modelo de argumento foi
considerado o reflexo da estrutura do pensamento que, por sua vez,
representava a própria estrutura do Ser no processo de geração:
ontologicamente, o Ser desdobrando-se em suas partes;
20 epistemologicamente, o Todo explicando as partes. O Todo (o Ser)
encontra-se como sujeito universal da sentença, pelo que ela é
denominada premissa maior (PM: premissa 2). A outra sentença é
chamada premissa menor (pm) por constituir-se de um sujeito singular
ou particular (premissa 1). Porém entre elas há o que foi chamado de
25 termo médio (M): homem, sujeito na premissa maior e predicado na
premissa menor, cuja função é permitir que o sujeito de uma frase
(termo S: Sócrates) se relacione com o predicado da outra (termo P:
mortal), do que resulta, deriva ou se infere a terceira sentença, a qual
chamamos conclusão.

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A Questão Fundamental

Esse esquema de duas premissas mais a conclusão é chamado


de silogismo 15, de cuja análise foram inferidas algumas regras:
1) o silogismo deve ter três termos: Sujeito, Predicado e Médio;
2) a extensão da conclusão não deve extrapolar a das premissas;
5 3) o termo médio não deve aparecer na conclusão;
4) o termo médio (M) deve aparecer pelo menos uma vez como sujeito
(S) na premissa maior (PM);
5) nada se conclui de duas premissas negativas;
6) nada se conclui de duas premissas particulares (pm);
10 7) de duas premissas afirmativas não se conclui uma negação;
8) a conclusão segue sempre o termo “inferior” das premissas, quer
seja o particular, quer seja a negação.
Se “no princípio era o Verbo”, isto é, se o Ser era o Lógos,
então ele deve explicitar-se no discurso racional, portanto deve haver

15
Além da dedução, Aristóteles também pensou sobre a indução como forma de
elaborar o conhecimento a partir da experiência sensível, conhecimento dos
singulares, mas não lhe deu crédito quanto à validade do conhecimento “científico”,
devido a sua falta de apoio lógico para a universalização.
Ex.: Premissa 1 – Sócrates morreu (fato 1, dado, condição particular observada);
Premissa 1.1 – Platão morreu (fato 2, dado, condição particular observada);
premissa 1.2 – Sólon morreu (fato 3, dado, condição particular observada);
Premissa 1.3 – Pitágoras morreu (fato n, dado, condição particular observada);
Premissa 2 – Ora, Sócrates, Platão, Sólon e Pitágoras são homens (enumeração
dos casos observados; verdade demonstrada);
Conclusão (formal) – Logo, todo homem (observado) é mortal (consequência
derivada das afirmações anteriores: verdade da totalidade dos casos).
Inferência (material) – Todo homem é mortal (extrapolação do observado;
hipótese provável).
Somente na Idade Moderna a indução foi retomada por Francis Bacon, no seu
Novum Organon, como método verdadeiramente científico, reconsiderando a
inferência material como condição de possibilidade do progresso do conhecimento.

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A Questão Fundamental

um discurso que o apreenda e o depreenda. Tal discurso é baseado no


silogismo, no raciocínio dedutivo, o qual representa a estrutura do
pensamento, o movimento das ideias no processo de explicação do
ser.
5 Contudo, no mundo real as coisas não se movimentam
silogisticamente. Nós vemos as coisas, os seres em movimento e este
não pode ser explicado pela dedução. Não há como deduzi-lo do ser
ou este dele. O pensamento não absorve o movimento, por isso ele
busca o princípio: algo que permaneça enquanto tudo muda e que, por
10 isto mesmo, se preste como estrutura para explicar o ser, apesar do
movimento.
O princípio epistemológico concebido por Aristóteles funda-se
em duas categorias ontológicas: ato e potência. O ato como estágio
final do ser propriamente dito, isto é, condição na qual é possível
15 apreender-lhe a forma, seus elementos essenciais, portanto necessários
à sua existência. E a potência como o movimento próprio do Ser,
tendência, possibilidade, capacidade de se tornar outro, certamente
uma condição natural, essencial, necessária a todo ser, da qual,
portanto, não há escapatória. Entretanto, o ato, enquanto momento
20 apreensível do ser, caracteriza-se na própria análise do ser, isto é, no
seu exame, ou seja, no momento da sua investigação, expressando-se
no instante presente pelas condições de possibilidade de conceituar o
ser enquanto é.
Por outro lado, a potência, porém, enquanto movimento do ser,
25 é apenas inferida pela experiência segundo a qual os seres particulares
da mesma espécie tem seguido diversas fases em sua existência, por
exemplo: nascer, crescer, morrer; semente, planta, fruto; infância,
adulto, velhice etc. É pela experiência que sabemos que aquilo que
nasce também cresce e morre, assim como a semente torna-se planta e

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A Questão Fundamental

dá fruto. Este movimento, contudo, não é explicado pela dedução. E


os termos de ato e potência só o explicam se pressupusermos um
outro princípio como explicação do próprio movimento: a oposição de
contrários – como o ser e o nada, o estático e o movimento, o mesmo
5 e o outro, o cheio e o vazio, a terra e o ar, a água e o fogo, o bom e o
mal, o belo e o feio, o verdadeiro e o falso, a afirmação e a negação, o
sim e o não etc – ato e potência. Então o ser é constituído de ato e
potência, contrários que se opondo colocam-no em movimento, um
como identidade do ser – causa suficiente, eficiente e formal, princípio
10 ativo de geração do ser – e o outro como o seu contrário, a sua
negação – causa necessária, material e final, princípio passivo que é
atualizado, ativado, posto em movimento pelo ato –, que muda o ser 16.
É interessante observar que, ao contrário do grande discípulo,
Platão concebe o ser como imutável. No entanto, ele propõe a
15 dialética como o método pelo qual se poderia atingir o conhecimento
verdadeiro, isto é, como modo de apreensão do ser na sua verdadeira
realidade: ideal, formal. Aristóteles, contudo, parece inverter a
concepção do mestre, como mais tarde diria Marx fazer com Hegel:
fundamenta o ser como movimento, graças às categorias de ato e
20 potência, pelas quais o repouso e o movimento se distinguem
racionalmente, mas não se separam existencialmente. Por isso ele
propõe a analítica como método estruturado sobre a fixidez do
pensamento, objetivando explicitar o ser apesar do movimento; em
contraposição à dialética de Platão que parece estruturar-se sobre o

16
Embora aqui tenham sido usadas as categorias aristotélicas, a rigor, essa última
concepção é tradicionalmente chamada de dialética e, como tal, modernamente
pensada no idealismo de Georg Hegel e retomada no materialismo de Karl Marx,
mas remontada a Platão e principalmente a Heráclito, respectivamente pelo
idealismo e pelo materialismo. Conf. Carlos Cirne-Lima, (Dialética para
principiantes 1997).

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A Questão Fundamental

movimento, buscando apreender o ser imóvel. Nesse sentido, a Lógica


como estrutura formal do pensamento parece apontar para duas
vertentes cujos seguidores reclamariam para si o modelo de estrutura
do ser: a Analítica de Aristóteles e a Dialética de Platão 17; as quais,
5 como modelo, cada qual se constituiria no método próprio para a
construção do conhecimento.
Entretanto, na perspectiva metodológica aristotélica a dialética
adquire outro sentido. Para Aristóteles, a dialética é o método de
raciocínio que parte de uma tese geralmente aceita por todos, ou seja,
10 uma afirmação admitida como verdadeira, por todos ou pela maioria
ou pelos mais eminentes (Top. 1.1 100b20). Com ele Aristóteles
propõe argumentar sobre qualquer coisa e se esquivar de
falseamentos, contrariedades, refutação; isto, claro, desde que se
admitam três princípios a regerem toda e qualquer pretensão de
15 conhecimento racional: o princípio de não-contradição, o de
identidade e o do terceiro excluído.
O princípio da não-contradição é a lei do pensamento pela qual
se torna possível desenvolver toda e qualquer discussão: é a exigência
lógica de que uma afirmação não pode valer como verdadeira e como
20 falsa, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Esse princípio tem
como pressuposto ontológico a condição de que uma coisa (sujeito)
não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto

17
(resgatada por Hegel) Conf. CIRNE-L IMA , op. cit. Não corresponde exatamente à
minha leitura de Platão, no entanto, não dá para descartá-la se tomarmos por base a
obra O Sofista, na qual o problema do ser é dialeticamente discutido. Não obstante, a
presente abordagem comporta tal interpretação, considerando as cisões decorridas na
História da Filosofia a partir das concepções de Ser, desde Parmênides e Heráclito,
mas principalmente em Platão e Aristóteles. Ficam, contudo, questões como: e
quanto à concepção platônica das ideias universais de Verdade, do Belo, da Justiça
etc, inatas e imutáveis, seriam socráticas? Se não, como concilia-las com a
concepção dialética de um ser que gera o seu contrário?

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A Questão Fundamental

(atributos, propriedades, predicado)18. Não se pode admitir, por


exemplo, que o enunciado Sócrates é mortal seja verdadeiro e falso ao
mesmo tempo; que é verdadeiro porque Sócrates, de fato, morreu, e é
falso porque as ideias dele não morreram na filosofia.
5 Em outras palavras, só há diálogo possível se, por princípio,
houver uma afirmação com pretensão de verdade 19, de modo que esta
possa ser debatida, refutada, falseada, sem subterfúgios na
ambiguidade ou multiplicidade de sentido dos termos (S e P),
inclusive do verbo.
10 O princípio da não-contradição, portanto, supõe o princípio de
identidade20. Este é a lei do pensamento pela qual o nome dado a uma
coisa deve se referir sempre, em dada discussão, àquela mesma coisa.
Como lei do discurso, ela exige que a definição de um objeto guarde
sempre, em certo diálogo (dialógico, dialético) a identidade entre o
15 objeto e o termo pelo qual ele é designado, ou entre as ideias e as
respectivas palavras que as comunicam. Assim, sempre que se disser,
por exemplo, Sócrates é mortal, deve-se ter claramente acertada a
ideia que se tem em mente: se o termo Sócrates se refere a um homem
histórico ou a um personagem fictício; e se, pelo termo mortal tem-se
20 em mente o fato físico de deixar de viver no mundo sensível, ou se é a

18
Conf. (Aristóteles 2002) Metafísica 4.3: “É impossível que a mesma coisa, ao
mesmo tempo, pertença e não pertença a uma mesma coisa, segundo o mesmo
aspecto” (1005b20).
19
Ibidem: “Se o adversário não diz nada, então é ridículo buscar uma
argumentação para opor a quem não diz nada ... mas que diga algo e que tenha
significado para ele e para os outros.” (Met. 4.4 100ba13).
20
(Aristóteles, Órganon 2005) Analíticos Posteriores 1.3: “há um específico
primeiro princípio do conhecimento graças ao qual reconhecemos as definições ”
(72b24).

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A Questão Fundamental

ideia psicológica de apagar-se da memória, tornar-se sem efeito para


aprendizagem.
Observe-se que o princípio de identidade pertence diretamente
ao pensamento, portanto é logicamente anterior ao princípio da não-
5 contradição, que pertence ao âmbito do discurso, ou seja, da expressão
do pensamento que se objetiva como verdadeiro. Ora, como a dialética
aristotélica pretende-se um método para discutir sobre qualquer
assunto (Tóp. 1.1 100a18), visando estabelecer a verdade ou falsidade
de uma tese, isto exige um terceiro princípio que é a lei segundo a
10 qual uma afirmação só pode valer como verdadeira ou como falsa;
excluindo-se, portanto, um terceiro valor além de verdade e falsidade.
Daí porque se chama de princípio do terceiro (valor) excluído.
Esses três princípios lógicos ou leis do pensamento erigidos
por Aristóteles tem fundamentado todo discurso, ou seja, toda
15 objetivação do pensamento, como condição de possibilidade de
discussão sobre a realidade e até sobre a metafísica até os dias atuais,
valendo, inclusive, como base para a linguagem moderna dos
computadores, na qual os valores de Verdadeiro e Falso (V e F) são
substituídos por 1 e 0 (Um e Zero), regidos pela exclusão de um
20 terceiro valor.
Além disso, somente com base em tais princípios é que se
podem fazer as inferências lógicas na análise dos discursos e
determinar a validade ou invalidez de argumentos. E isto é do que
propriamente se ocupa a Lógica como condição de possibilidade do
25 fundamento à questão primordial pelo ser: o que é?

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A Questão Fundamental

Obras Citadas
ANAXIMANDRO, Parmênides, Heráclito. Os Pensadores
originários. Pensamento Humano: bilíngue. Tradução: Emanuel
Carneiro Leão. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
5 ARISTOTE. De l'âme. Tradução: E. Barbotin. Paris: Les Belles
Lettres, 2002.
—. Physique. Paris: Gallimard, 2005.
ARISTOTELES. De Anima. Tradução: Maria Cecília Gomes dos
Reis. São Paulo: 34, 2006.
10 —. Metafísica. Tradução: Marcelo Perine. São Paulo: Loyola,
2002.
—. Órganon. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2005.
ARISTOTLE. The Completes works. The Great books of the
western world. Edição: W. D. Ross. Vols. I-II. 8-9 vols. London:
15 Oxford University, 1952.
—. The Completes works. Edição: Jonathan Barnes. Vols. 1-2.
New Jersey: Princeton University, 1984.
C IRNE-LIMA, Carlos. Dialética para principiantes. Porto Alegre:
Edipucrs, 1997.
20 HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. bilíngue. Tradução:
Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2001.
MORTARI, Cezar A. Introdução à lógica. São Paulo: Unesp,
2001.
PARMÊNIDES. Da Natureza. Leituras Filosóficas. Tradução: José
25 Trindade Santos. São Paulo: Loyola, 2002.
PEREIRA, Isidro. Dicionário de português-grego e grego-
português. Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, 1990.
SOARES, Antônio Jorge. Dialética, educação e política: uma
releitura de Platão. São Paulo: Cortez, 1999.
30

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7. Indicações de Leitura

1. ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO . Os Pensadores


5 originários: texto e tradução. Trad. Emmanuel Carneiro Leão e
Sérgio Wrublewski. 3 ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1999.
2. ARISTÓTELES, Metafísica. trad. do grego: Giovanni Reale. Trad.
do italiano: Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002. (bilíngue)
3. BACON, Francis. Novum organum. 2 ed. São Paulo: Abril
10 Cultural, 1978. (Os Pensadores)
4. CIRNE-LIMA, Carlos. Dialética para principiantes. 2 ed. Porto
Alegre: Edipucrs, 1997.
5. DESCARTES, Meditações. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
(Os Pensadores)
15 6. HEGEL, Fenomenologia do espírito. 2 ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1978. (Os Pensadores)
7. HEGENBERG, Leônidas. Lógica, simbolização e dedução. São
Paulo: EPU, 1975.
8. HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica. 2 ed. São Paulo: Abril
20 Cultural, 1978. (Os Pensadores)
9. HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Trad. Antonio
Correia. 8 ed. Coimbra: Arménio Amado, 1987.
10. HUME, David. Ensaios sobre o entendimento humano. 2 ed. São
Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores)
25 11. LARA, Tiago Adão. Caminhos da razão no ocidente:a filosofia
nas suas origens gregas. Petrópolis, RJ: Vozes, 1989.
12. LEFEBVRE, Henri. Lógica formal/lógica dialética. Trad. Carlos
Nelson Coutinho. 5 ed. São Paulo: Civilização Brasileira, 1991.
13. LUNGARZO , Carlos. O Que é método. São Paulo: Brasiliense,
30 1988. (Primeiros Passos).

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14. ______. O Que é lógica. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.


(Primeiros Passos, 215)
15. NAGEL, Ernest. La Lógica sin metafísica. Trad. Jaime Melgar
Botassis. Madri: Tecnos, 1961. Col. Estrutura y Funcion – o
5 porvenir actual de la ciencia, 5.
16. PLATÃO, Sofista. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os
Pensadores)
17. PRADO JÚNIOR, Caio. Dialética do conhecimento: História da
Dialética e Lógica Dialética. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, s/d.
10 18. SALMON, Wesley C. Lógica. Trad. Leonidas Hegenber e Octanny
Silveira da Mota. 3 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
19. SOARES, Antônio Jorge. A Lógica como uma forma de
desconfiança da razão. Expressão-Revista da Fundação
Universidade Regional do Rio Grande do Norte, Mossoró, RN,
15 ano 21, n° 4, p. 143-152, dez/1990.
20. ______. Educação, política e dialética: uma releitura de Platão,
São Paulo: Cortez, 1997.
21. TUGENDHAT, Ernst & WOLF, Ursula. Propedêutica lógico-
semântica. Petrópolis/RJ: Vozes, 1997.

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