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O CELULÁ

No momento em que ela entrou na sala capengando, ele apenas olhou por
cima das lentes, sem interromper a assinatura dos papéis que lhe abarrotavam
a mesa. Talvez pelo peso do corpo, que carregava com visível dificuldade, ou
pela trombose, procurou sentar-se depressa. Aguardou pacientemente ele
terminar. Finalmente, assim que levantou a cabeça, ela calmamente perguntou:
“Posso falá dotor?”.

Tinha diante dele a versão feminina, cuspida e escarrada, do Preto Velho.


Exceto pela falta do cachimbo, associou à figura não apenas pelos cabelos
brancos encaracolados ou pela pele negra, mas também no jeito calmo, na
humildade e na sabedoria que a senhora parecia transmitir.

“Sim... Benedita, é isso?”, assentiu, buscando o nome nos papéis.

“Maria Benedita”, ela corrigiu.

“Óia dotor, o que vou falá aqui não foi de oví dizê não, eu mema vi”. Parecia
incomodada com a bengala sem o protetor de borracha, que insistia em
escorregar e ameaçava ir ao chão. Pegou o bastão, enfiou por dentro do braço
da cadeira e continuou: “Moro dois barraco inriba do Beníço. Aquele dia eu vi
ele descê o morro avoando. Quero dizê, sempre descia avoando, mais naquele
dia parecia que tava muito atrasado, acho inté que nem tomô café, tamanha a
correria. Decerto que não queria perdê o trabáio. Ele tinha dois emprego, um
pra sobrevivê, ôtro pra pagá o curso de dotor. Sim, dizia que ia sê dotor, igual
o sinhô, mas tava sempre atrasado. Acho que nem durmia bem o moço, de
maneira que vivia correndo. Uma veiz me confessô que o patrão meaçava de
dá a conta pra ele se atrasasse de novo”. Ajeitou-se na cadeira. “Ele nunca
parava. Naquele dia viu arguma coisa no meio da escadaria, um apareio
igualzin esse celulá aí na tua mesa e, tarveiz movido pela curiosidade, resorveu
ajuntá. Coitado do Beníço, devia de tê ido em frente”.

Ouvia-a desfiar o rosário da vida do Benício, de como ele crescera sem os pais,
o quanto era religioso e prestativo com a comunidade, do Benício que fora
injustiçado. Apenas o arrastar da narrativa e das digitações do estenotipista
eram ouvidos na sala.

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“Ele ficô ali, dotor, ligando pros nome que via no apareio”, ela prosseguiu.
“Dadonde que eu tava dava de oví arguma coisa. Ovia ele repeti os nome;
Tereza, Crê da loja, Érica, Antônho, Samara. Num tenho certeza se o úrtimo
nome era Samara, mas acho que sim. Preguntava a mema coisa pra todos.
Conhece Ismaer? E depois balangava a cabeça, parecia que ninguém conhecia.
Pra mim, esse Ismaer devia de sê o dono do celulá. Aí, na úrtima veiz que vi ele
ligá, preguntou se tava falando com um tar de Pedro. Pela cara alegre que o
Beníço feiz, parecia que sim e que o cara no ôtro lado da linha conhecia o
dono. Vi que acertava argum lugá pra se encontrá. Despois, em veiz de i
trabaiá, inda ficou um tempão vascuiando o celulá. Uma hora eu vi ele ficá
branco qui nem cera, o sangue sumiu todo da cara. Decerto, deve de tê visto
arguma coisa proibida naquele apareio que deixô ele daquele jeito”.

“Como a senhora pode ter tanta certeza?”.

“É que chegaro dois home de quepe preto e farda azur, o dotor sabe, Deus me
livre acusá arguém. Pararo a viatura no pé do morro e já descêro com as
borracha na mão. Quando o gordo grandão tomô o celulá do menino, quase
que levô um dedo junto. Aí, coloco no ovido e falô com arguém que tratava de
gerente. Falou que o valô agora era ôtro, que tava com a mercadoria. Foi isso
que eu comprendi”. Sem cerimônia, cuspiu na lata de lixo ao lado dela e
continuou narrando.

“Mais esse menino apanhô, dotor, e como apanhô. Eu escuitava as costelas


dele estalando com as bordoadas. Aquilo doía até ni mim. Foro ao meno uma
cinco ou seis. Virgem Maria, não gosto nem de alembrá”. Fez o sinal da cruz.
“Nem reagí, reagia, coitado. Aceitô a pancadaria calado. Não ia reagí memo, o
Beníço era moço alheio, conheço ele desde que nasceu. Em todo esses
dezenove ano, nunca que vi se envolvê com nada de errado. Era do barraco pro
trabáio, do trabáio pra escola. Sabe o que eu acho, dotor? Que aquele celulá
era de arguém que manda no morro, argum cabeça. Vai vê, o apareio era pra
otra pessoa pegá, caiô do Beníço tá no lugá e na hora errada. O dotor sabe”.
Recolheu a bengala, apoiou-se nos braços da cadeira e fez menção de
levantar. “Isso é tudo o que tenho a dizê. Posso i agora, dotor?”.

“Pode. Se precisar, mando chamá-la novamente”.

“O dotor acha que o menino vai ficar bão?”.

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“Creio que sim. Logo que sair do hospital, quero ouvir a versão dele”.

“Hã, hã”. Deu uma última cuspidela no balde. “Sei como são essas coisa”. Pôs-
se de pé e caminhou para a porta, a cabeça balançando negativamente.

O delegado ficou ouvindo o toc toc da bengala, que diminuía gradualmente à


medida que a Preta Velha se afastava. Quando o barulho cessou, pegou a
prova do crime, que estava sobre a mesa, e discou algumas teclas. “Pedro,
caso encerrado”.

Em seguida, rubricou cada folha, bateu o carimbo e jogou tudo na gaveta.

Leonel dos Santos Rosa


25 de abril de 2014

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