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VI SIMPÓSIO MUNDIAL DE ESTUDOS DA LÍNGUA PORTUGUESA

A UNIÃO NA DIVERSIDADE

Escola Superior de Educação de Santarém


Departamento de Línguas e Literaturas

SIMPÓSIO 40

A literatura entre o ENEM e o livro didático: um mapeamento de


textos acadêmicos

Autores:
Lucas Rodrigues OLIVEIRA
UEMS – Unidade Universitária de Paranaíba, Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Educação. rodriguesoliveiralucas@yahoo.com.br. Chapadão do Sul -MS,
Brasil.
Valnice Ferreira de Lima COSTA
UEMS – Unidade Universitária de Paranaíba, Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Educação. nicelima_39@hotmail.com. Ilha Solteira – SP, Brasil

Resumo:

Não há dúvida que arte literária é indispensável para a formação humana e que,
enquanto produção artística, é capaz de apurar o gosto cultural e estético dos
indivíduos. Seja pelo pouco tempo destinado ao ensino da leitura literária na
escola, ou por outros motivos, os alunos, no ensino médio brasileiro, estão mais
acostumados a “estudar” literatura lendo sobre os períodos literários, contextos
históricos, biografia e bibliografia de autores, sem se voltarem, efetivamente, à
leitura literária. Tendo em vista esse cenário em relação ao ensino de literatura no
ensino médio, é preciso refletir sobre alguns aspectos, tais como: o conteúdo
estudado nas aulas de literatura; a abordagem dos livros didáticos em relação a
essa disciplina; os direcionamentos da legislação educacional e o enfoque do
Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM (que é o mecanismo pelo qual os alunos
brasileiros são selecionados para ingressar na maior parte dos cursos superiores
no Brasil) em relação às questões que envolvem literatura - linguagens, códigos e
suas tecnologias. Assim, o objetivo principal de nossa comunicação é apresentar
um mapeamento dos trabalhos acadêmicos produzidos no Brasil e que tratam da
literatura nas avaliações externas, particularmente no ENEM. O levantamento e a
análise dos textos revelaram que alguns autores têm se preocupado com questões
relacionadas à Literatura no ENEM; que alguns estudos ressaltam contrastes em
relação ao que é ensinado em sala de aula com a abordagem do exame; também foi
possível perceber que não há trabalhos com um enfoque baseado na discussão e
intersecção de quatro itens (literatura, livro didático, legislação educacional e
ENEM), como pretende a pesquisa que originou este trabalho.

Palavras-chave: Literatura; Livro didático; ENEM; Pesquisas acadêmicas.

1. Introdução

Além de muitas outras características, a arte literária é capaz de apurar o


gosto cultural e estético das pessoas, por isso, seu estudo é justificável. Há várias
possibilidades de realizar estudos que tenham como foco a literatura, mas, sem
dúvida, refletir sobre como essa arte tem sido abordada nas escolas, principalmente
no ensino médio, é muito relevante.
O objetivo principal desse texto é apresentar um mapeamento dos trabalhos
acadêmicos produzidos no Brasil e que tratam da literatura nas avaliações externas,
particularmente no Enem. Para isso, foi realizada uma pesquisa em uma página da
internet chamada “BASE - Bielefeld Academic Search Engine”, através do endereço
eletrônico “https://www.base-search.net/”.
A busca foi realizada por meio das palavras-chave “literatura” e “Enem” - a
primeira pesquisa, na verdade, foi realizada por meio das palavras: “literatura”,
“Enem” e “livro didático”, mas não obteve resposta satisfatória. Dessa primeira
pesquisa na página, surgiram oitenta e oito (88) resultados. Porém, por meio da
leitura do resumo desses primeiros resultados, foram selecionados apenas oito (8)
documentos que, de fato, abordavam a questão da literatura e Enem.
Desses oito trabalhos, temos uma Tese de Doutorado da UFRGS, um Trabalho
de conclusão de Curso de Letras da UFRGS, e seis artigos publicados em Revistas de
circulação acadêmica nacional.
Antes de analisarmos o que estes trabalhos discutem, faremos um breve
histórico do ENEM e as documentações legais que o regem.

2. O Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM


O Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM – foi criado em 1998 e teve
como princípio avaliar anualmente o aprendizado dos alunos do ensino médio em
todo o país e auxiliar o Ministério da Educação na criação de políticas públicas para
a melhoria do ensino, através dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs – do
Ensino Fundamental e Médio.
A prova do Enem é realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira – INEP, autarquia vinculada ao Ministério da Educação
do Brasil. O resultado dessa prova é utilizado para o acesso ao ensino superior em
universidades públicas brasileiras, através do Sistema de Seleção Unificada (SiSU),
bem como em algumas universidades no exterior.
No início, entre 1998 e 2008, a prova continha 63 questões e era aplicada em
um único dia de prova e a nota era utilizada para o ingresso no ensino superior
pelos candidatos que se inscreviam para conseguir bolsa de estudos em faculdades
particulares no Brasil.
Em 2009, o exame passa a contar com um novo modelo de prova que visa
unificar o concurso vestibular nas universidades federais. A partir desse novo
modelo de prova, contendo 180 questões objetivas e uma questão de redação, o
exame passou a ser realizado em dois dias
O exame é realizado anualmente, em dois dias, contendo 180 questões
objetivas divididas em quatro grandes áreas: Ciências da natureza e suas tecnologias
(Biologia, Física e Química); Ciências humanas e suas tecnologias (História,
Geografia, Filosofia e Sociologia); Linguagens, Códigos e suas Tecnologias (Língua
Portuguesa, Literatura, Língua Estrangeira, Artes, Educação Física e Tecnologias da
informação e Comunicação); Matemática e suas Tecnologias (Matemática); além de
uma questão de redação dissertativa-argumentativa.
Até o ano de 2016, a prova era realizada em um único final de semana, sendo
no sábado com duração de 4h30 as provas de Ciências da Natureza e suas
Tecnologias, Ciências Humanas e suas Tecnologias. No domingo, com duração de
5h30, as provas de Linguagens, códigos e suas Tecnologias, Redação, Matemática e
suas Tecnologias.
Em 2017 o exame passará a ser realizado em dois finais de semana, ou seja,
em dois domingos consecutivos. No primeiro domingo, com duração de 5h30, serão
realizadas as provas de Redação, Linguagens, Códigos e suas Tecnologias e Ciências
Humanas e suas Tecnologias. No segundo domingo, com duração de 4h30, será a vez
das provas de Ciências da Natureza e suas Tecnologias e Matemática e suas
Tecnologias.
Essas 180 questões estão divididas nessas quatros matrizes de referência,
seguindo a mesma divisão proposta pelos Parâmetros Curriculares Nacionais,
ficando 45 questões para cada matriz e uma questão de Redação.
A matriz de referência do Enem traz um conjunto de 120 habilidades, sendo
30 para cada uma das quatro grandes áreas que o compõem. A matriz de referência
da redação não possui habilidades, porém conta com um conjunto de competências
específicas, bem como níveis de conhecimentos associados a elas.
O Enem sempre foi estruturado em habilidades, incentivando o raciocínio e
trazendo questões que medem o conhecimento dos alunos por meio de enfoque
interdisciplinar. O modelo atual mantém essa característica, agregando às
habilidades medidas um conjunto de conteúdos formais mais diretamente
relacionado ao que é ministrado no ensino médio. As questões são contextualizadas
e exigem do estudante a aplicação prática do conhecimento, e não somente a
memorização de informações.
De acordo com a matriz de referência do ENEM, as questões da área de
“Linguagens, Códigos e suas Tecnologias” avaliam nove competências. A palavra
competência está ligada à capacidade do estudante de dominar a norma culta da
Língua Portuguesa, compreender fenômenos naturais, enfrentar situações-
problema, construir argumentações consistentes e elaborar propostas que atentem
para as questões sociais. A cada competência corresponde um conjunto de
“habilidades”, que seriam a demonstração prática dessas competências. Esses
conceitos são apresentados no Documento Básico do ENEM:

Competências são modalidades estruturais da Inteligência, ou


melhor, ações e operações que utilizamos para estabelecer
relações com e entre objetos, situações, fenômenos e pessoas
que desejamos conhecer. As habilidades decorrem das
competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do
“saber fazer”. Através das ações e operações, as habilidades
aperfeiçoam-se e articulam-se, possibilitando nova
reorganização das competências. (INEP/MEC 2000, p. 7)
Uma das competências da prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias,
presente na Matriz de Referência do exame, a de número 5, objetiva “analisar,
interpretar e aplicar recursos expressivos das linguagens, relacionando textos com
seus contextos, mediante a natureza, função, organização, estrutura das
manifestações, de acordo com as condições de produção e recepção” (2009, p.03).
Portanto, nesta competência exige-se que o aluno demonstre a capacidade de
desenvolver três habilidades:

H15 - Estabelecer relações entre o texto literário e o


momento de sua produção, situando aspectos do contexto
histórico, social e político.H16 - Relacionar informações
sobre concepções artísticas e procedimentos de construção
do texto literário. H17 - Reconhecer a presença de valores
sociais e humanos atualizáveis e permanentes no patrimônio
literário nacional. (INEP/MEC, Matriz de Referência do Enem,
2000, p. 3)

De acordo com o Documento Básico do Enem, as questões relacionadas à


Literatura exigem do aluno o domínio de conteúdos que podem levar o candidato a
pensar que a Literatura está presente na prova. Esses conteúdos são:

Estudo do texto literário: relações entre produção


literária e processo social, concepções artísticas,
procedimentos de construção e recepção de textos –
produção literária e processo social; processos de formação
literária e de formação nacional; produção de textos
literários, sua recepção e a constituição do patrimônio
literário nacional; relações entre a dialética
cosmopolitismo/localismo e a produção literária nacional;
elementos de continuidade e ruptura entre os diversos
momentos da literatura brasileira; associações entre
concepções artísticas e procedimentos de construção do
texto literário em seus gêneros (épico/narrativo, lírico e
dramático) e formas diversas.; articulações entre os recursos
expressivos e estruturais do texto literário e o processo
social relacionado ao de sua produção; representação
literária: natureza, função, organização e do texto literário;
relações entre literatura, outras artes e outros saberes.
(INEP/MEC, Matriz de Referência do Enem, 2000, p. 14 -15)
Mas ao depararmos com as análises feitas nos trabalhos pesquisados neste
estado da arte, verificamos que os conteúdos ditados pela Matriz de Referência não
estão presentes no exame.
O que podemos observar é que as Matrizes de Referência não privilegiam o
texto literário, mas as habilidades discursivas de uma maneira generalista: uma
perspectiva que vai de encontro aos pressupostos defendidos nas Orientações
Curriculares do Ensino Médio, mais especificamente em relação ao ensino de
literatura.

3. A Literatura entre o ENEM e o livro didático: um mapeamento de textos


acadêmicos

Os textos analisados provam que a problemática envolvendo o Enem e a


literatura é relevante. Foi possível perceber que há estudiosos que, ao perceber
que há questões para serem observadas e analisadas com relação ao exame, se
propuseram a refletir sobre ele. Os artigos analisados iniciam-se relatando o
histórico dessa avaliação, falando sobre o seu inicio em 1998 e como,
paulatinamente, foi mudando de formato e de foco.
Criado por meio da portaria do Ministério da Educação - MEC nº 438, de 28
de maio de 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio – Enem tinha como objetivo
avaliar o desempenho escolar dos alunos concluintes da educação básica (LUFT,
2014). A autora ainda informa que o exame, desde seu primeiro ano, já era
pensado também como um mecanismo de acesso ao ensino superior; mas, em
princípio, seu resultado deveria ser utilizado de forma concomitante a outros
processos seletivos, como o vestibular.
Fisher et al. (2012) relatam que, em 2009, mais de uma década depois de
sua criação, o Enem passou por reformulações: começou a ser utilizado com meio
de ingresso ao ensino superior (substituindo ou complementando outros
processos seletivos); passou de 63 para 180 questões, divididas em matrizes de
referência (45 questões cada) - “Matemática e suas Tecnologias”, “Ciências da
Natureza e suas Tecnologias”, “Ciências Humanas e suas Tecnologias” e
“Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”, além da redação.
De acordo com os autores mencionados, a partir de então, o exame começou
a ser entendido como um instrumento democrático de acesso às vagas federais de
ensino superior. Para Vitoriano, Tatagiba e Mata (2016, p. 370), com base em
Cunha (1980) e Zago (2006), o Enem promove, de fato, a democratização do acesso
ao ensino superior; eles afirmam que o exame “[...] tem se mostrado mais inclusivo
que a maioria dos exames vestibulares precedentes. ” Defendem ainda que a
fragilidade do ensino de Literatura não deve ser delegada somente ao Enem, e
ainda se posicionam contrários à argumentação de Fisher et al (2012) ao
afirmarem que devemos pensar no ensino de Literatura para além dos exames e
vestibulares:

Isso significa que não se pode mais pensar o ensino da


literatura para metade dos estudantes, ou pior, para a
minoria desta metade que irá para a universidade, daí
advém a fragilidade da argumentação de Fischer et al, que
ainda se ancora num posicionamento elitista vinculado à
educação literária, pois transparece a ideia que somente os
pré-universitários e universitários necessitam de formação
sólida neste campo. (Vitoriano, Tatagiba e Mata, 2016,
p.382).

Luft (2014) menciona que, antes de sua reformulação, o exame começou a


se popularizar em 2004, quando foi criado o Programa Universidade Para Todos –
ProUni, que proporcionava bolsas integrais ou parciais em universidades privadas
a alunos oriundos do ensino médio de escolas públicas.
Nessa perspectiva de acesso ao ensino superior, avaliação em larga escala
da educação e criação do Enem, Silva (2015) enfatiza que a educação
contemporânea, depois de aprovadas leis, como a LDB, flexibilizou-se, em relação
ao seu planejamento; contudo, em contrapartida, centralizou-se, com relação à
avaliação.
Assim, o controle da educação não é feito na base, mas sim nas avaliações de
saída. Em sua tese, Luft (2014), concorda com as declarações de Silva (2015) e,
tendo essas afirmações como base, acrescenta que, já que há um foco nas
avaliações de saída, o ensino secundário foi/é norteado por aquilo que os
programas de avaliações abordam.
Fisher et al. (2012, p. 113) afirmam que “[...]o que é cobrado no vestibular
tende a ditar o programa de ensino das escolas[...]”, assim, com a popularização do
Enem, “[...] a tendência é que ele seja o novo paradigma a ditar os conteúdos a
serem desenvolvidos no Ensino Médio. ”
Analisando os textos do PCNs, especialmente aqueles direcionados ao
ensino médio, Franco, Souza e Paulo (2015) observam que as normativas
direcionam o ensino de literatura para a formação do leitor literário, formando-o
para que ele possa se apropriar da experiência estética permitida pela arte.
Ao refletir sobre as questões de literatura no exame, nas provas de 1998 a
2010, Fisher et al. (2012) observaram que: 13% das questões é sobre literatura; o
autor mais retomado é Carlos Drummond de Andrade, seguido por Machado de
Assis e Manuel Bandeira; textos líricos, como poemas e letras de músicas,
sobressaem-se em relação aos gêneros narrativos e o período literários mais
abordado é o Modernismo, entre 1920 e 1930.
Diante dessa relevante análise dos autores, causa-nos preocupação a
percepção de que “as aulas de literatura são dispensáveis para se responder a
cerca de 80% das questões, as quais, em sua maioria, só exigem do aluno a
interpretação direta de um texto, geralmente um poema. ” (FISHER et al., 2012, p.
118).
Fisher et al (2012) mostram como, para o Enem, a literatura não é válida
enquanto arte; isso porque, de acordo com eles, o exame tende a abordar os textos
literários da mesma forma como aborda uma placa de trânsito ou um bilhete. Em
outras palavras, para responder às questões sobre literatura, o candidato precisa
apenas ler e interpretar textos; não há preocupação com a estética, a cultura ou a
arte que envolve os textos literários, “[...] está claro que o estudante precisa
demonstrar somente a habilidade de decodificar textos (nesse sentido, Drummond
está na mesma posição de uma placa de ônibus, de uma letra de rap [...]).” (FISHER
et al., 2012, p. 118)
Na tese de doutorado de Luft (2014), estudiosa que é coautora do texto de
Fisher et al. (2012), como não poderia deixar de ser, há reflexões semelhantes as
do parágrafo anterior e também há o acréscimo de informações relevantes acerca
da relação entre a literatura presente no Enem e a literatura ensinada nas escolas
brasileiras de ensino médio:
O conteúdo do Enem, assim, parece deixar professores e
alunos de ensino médio sem orientação. É fato que já algum
tempo precisávamos repensar a maneira de ensinar
literatura, pautada no estudo diacrônico de escolar, estilos,
obras e autores, mas o atual programa apresentado pelo
exame não parece solidificar outra proposta plausível de
ensino. Da maneira como vem apresentado, não encontra
ressonância em livros didáticos atuais ou mesmo nos
conteúdos de literatura expressos nas ementas das
disciplinas dos cursos de licenciatura em Letras. (Luft, 2014,
p. 190)

A citação de Luft (2014) foi transcrita com o objetivo de reiterar as ideias


pretendidas pelo projeto de pesquisa motivador do presente texto. Afinal, a autora
declara que a abordagem literária do Enem não encontra ressonância nos livros
didáticos atuais do ensino médio, e essa foi a percepção geradora de um futuro
projeto de pesquisa que se inicia nessa pesquisa de “estado da arte”: se o professor
de literatura contemporâneo pautar seu trabalho no conteúdo programático para o
ensino médio e, ao mesmo tempo, utilizar o livro didático como uma das
ferramentas para ministrar suas aulas, os seus alunos não utilizarão os
conhecimentos construídos nessas aulas quando realizarem o Enem; e se, pelo
contrário, o professor se pautar na abordagem literária do exame para ministrar
suas aulas de literatura, certamente, não cumprirá o cronograma de conteúdos
propostos pelo sistema e utilizará o livro didático poucas vezes durante os três
anos de ensino médio.
Luft (2014) ainda discute e analise a polêmica retirada da disciplina de
Literatura do currículo do Ensino Médio, a partir das reformas educacionais
ditadas pelos documentos oficiais.
Ao analisar as questões que tratam de Literatura, na área de Linguagens.
Códigos e suas Tecnologias presentes nos exames de 1998 a 2013, Luft (2014)
constata um dado alarmante:

... as aulas de literatura são dispensáveis para se responder


cerca de 79% das questões, as quais, em sua maioria, exigem
do aluno apenas a interpretação direta de um texto,
geralmente um poema; nada de relações históricas entre
autores ou períodos literários, de contextos estéticos, de
traços de teoria literária, enfim, dos conteúdos arrolados na
Matriz de Referência do exame. (Luft, 2014, p. 172)

Luna e Marcuschi (2015), em seu artigo, preferem não ser tão categóricas
em estabelecer uma abordagem clara e específica para o exame em relação ao seu
foco literário, como fazem Fisher et al. (2012) e Luft (2014). Luna e Marcuschi
(2015, p. 25) afirmam que o Enem transita entre “[...] uma abordagem diluída, a
serviço de outros aspectos das ciências e da língua [...]” e um “[...] tratamento pelo
viés dialógico, a serviço da compreensão da literariedade dos textos [...]”; mas é
importante ressaltar que elas elegeram apenas o exame de 2013 como objeto de
análise. Andrade (2011), vê como positiva essa nova maneira de abordagem do
Enem, ele diz que é interessante que o exame retire da arte literária o “ser sacra”, a
fim de aproximá-la dos alunos.
Elisbon e Valtão (2015) discutem em seu trabalho os diferentes conceitos
de Literatura presentes nos documentos que norteiam as avaliações em larga
escala no Brasil e que fazem parte do Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Básica – Saeb, do qual constam os exames do Enem e a Prova Brasil. Os
documentos analisados neste trabalho foram as Orientações Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio – OCEM e as Matrizes de Referência de Língua
Portuguesa.
Para as autoras acima, as Matrizes de Referência têm como objetivo
principal orientar os professores em relação aos métodos, os pressupostos teóricos
e inclusive em relação aos itens cobrados nas avaliações em larga escala, com o
objetivo de treinar os alunos para as provas, visando a obtenção de melhores notas
de desempenho dos alunos. Elas afirmam ainda que as Matrizes não privilegiam o
texto literário, principalmente em relação à Literatura.
Em relação às OCEM, as autoras afirmam que:

Assim, o documento propõe, a partir do conceito de


humanização de Antonio Candido já mencionado, a
constituição do leitor literário através da experiência
estética, o que só é realizável pelo contato efetivo com o
texto literário: uma prática muitas vezes negligenciada em
sala de aula e substituída por releituras, resumos,
fragmentos ou, ainda, pela substituição de obras
consideradas difíceis por outras mais simples e digeríveis.
(Elisbon e Valtão, 2015, p. 51)
As autoras ainda concluem que as OCEM “apresentam uma proposta mais
crítica, mais bem fundamentada e, principalmente, mais próxima do desejado em
relação ao ensino de literatura”, enquanto que as Matrizes “aportadas na
pedagogia das habilidades e competências, numa concepção utilitarista da
educação, privilegiam o pragmatismo das questões cotidianas em detrimento da
função humanizadora e ignoram as potencialidades da literatura”. (Elisbon e
Valtão, 2015, p. 60).
Vale salientar que alguns autores citaram o papel do professor como
mediador e sua importância na relação ao ensino de literatura, destacando ainda que:

Surge, aqui, a necessidade de rever conceitos, usos,


paradigmas e posturas no Ensino Médio, já tão fortemente
enraizados e buscar uma prática que envolva o contato
direto com a leitura, num processo reflexivo que vise ao
letramento literário, isto é, a apropriação de sua leitura, a
fruição. (Andrade, 2011, p. 151-152).

Os textos que foram levantados para a realização desse “estado da arte”,


basearam-se, teoricamente, em autores como: Zilberman, Lajolo, Candido, Cereja e
Cosson. Além de todos esses autores, os nove textos em questão, citaram,
constantemente, as leis e diretrizes: PCNs, PCNEM , PCNEM +, OCNEM.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Literatura origina-se da palavra latina littera, que significa letra. Mas, o


homem sempre se manifestou artisticamente a partir da palavra, mesmo quando
ainda não havia a escrita, por meio da expressão oral. Se literatura é a arte através da
palavra, podemos dizer que ela é um instrumento de comunicação e, por isso,
cumpre o papel social de transmitir os conhecimentos e a cultura de uma sociedade.
Apesar de estar ligada a uma língua, que lhe serve de suporte, a literatura não
está presa a ela. Faz uso da língua, chegando a revolucionar suas regras e os sentidos
das palavras no texto.
O texto literário deve ser o ponto de partida para a compreensão do mundo,
pois a linguagem literária amplia a capacidade de compreensão, uma vez que
estamos rodeados de linguagem.
A concepção de Roland Barthes (1978) de que literatura é a utilização da
linguagem que não se submete ao poder, deve-se ao fato da linguagem literária não
necessitar de regras para se fazer compreender.
Antonio Cândido constrói seu conceito de literatura:

A arte, e portanto a literatura, é uma transposição do real


para o ilusório por meio de uma estilização formal da
linguagem, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as
coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um
elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um
elemento de manipulação técnica, indispensável à sua
configuração, e implicando em uma atitude de gratuidade.
(CANDIDO, 1999, p. 53).

Antonio Candido, em A literatura e a formação do homem (CANDIDO, 1999),


cita três funções da literatura: função psicológica, função formadora e função social,
que em conjunto formam a função humanizadora da literatura.
A função psicológica diz respeito a sua ligação com a capacidade e a
necessidade que o homem tem de fantasiar; necessidade esta que se expressa por
devaneios diários que todos nós temos e que a literatura é muito rica neste aspecto.
A função formadora tem relação com a formação educacional do homem. A
literatura tem a capacidade de atuar na formação dos indivíduos, pois consegue
moldar as características de um indivíduo através da simples fruição da arte literária,
moldando valores e ideologias.
A função social tem a capacidade de possibilitar ao leitor o reconhecimento
da realidade que o cerca quando transposta para o mundo ficcional. Mas, isso só é
possível quando o leitor participa diretamente da realidade expressa no texto. Essa
integração proporcionada pela função social faz com que o leitor incorpore a
realidade da obra ou do texto às suas próprias experiências pessoais.
Diante dessas funções da literatura, podemos perceber a importância que ela
exerce no homem e em seu meio social.
Mas, a literatura só poderá exercer o seu papel e suas funções se for
compreendido o seu papel e seu amplo significado.
Quando se fala em leitura do texto literário, segundo Paulino, devemos refletir
sobre suas especificidades, sem deixarmos de levar em conta o que há de comum (as
semelhanças) entre essa leitura e a de textos não-literários, já que, numa
perspectiva contemporânea, “todos os domínios discursivos, sem exceção, exigiriam
e desenvolveriam habilidades complexas e competências sociais de seus leitores”
(PAULINO, 2005, p. 61).
Segundo Paulino, como também Soares (2005), da mesma forma que existe
diversidade de textos, existe, em função desses textos, diversidade de leituras, de
modos de ler. Não basta defendermos a presença de diversos tipos e gêneros textuais
na escola, se não levarmos em conta os diferentes modos de leitura, de acordo com
determinadas especificidades do texto.
A pesquisa de “estado da arte” realizada nesse texto que foi apresentado
aqui partiu da constatação de que a disciplina de literatura no ensino médio, em
relação aos seus conteúdos, não correspondia à abordagem do Enem. Entretanto,
por meio das reflexões analisadas nos artigos selecionados, foi possível perceber
que há um problema ainda maior: o Enem, pouco a pouco, tem deixado a literatura
de lado, não a abordando enquanto arte, mas sim como pretexto para outros
conteúdos, principalmente os relacionados à interpretação de textos.
Mas, como citou Andrade, devemos acreditar que:

... o Enem, com algumas restrições já apontadas aqui e outras


que vamos encontrando à medida que nos detemos em sua
análise, vem a possibilidade de podermos olhar o ensino de
literatura como uma de apropriação da linguagem e de
valorização do patrimônio cultural. (Andrade, 2011, p. 151).

O levantamento e a análise dos textos revelaram que alguns autores têm se


preocupado e analisado as questões relacionadas à Literatura no Enem; que alguns
estudos ressaltam contrastes em relação ao que é ensinado em sala de aula com a
abordagem do exame; também foi possível perceber que não há trabalhos com um
enfoque baseado na discussão e intersecção de quatro itens (literatura, livro
didático, legislação educacional e Enem), como pretende a pesquisa que originou
este trabalho.
E, como pudemos observar nos trabalhos analisados, a maioria se deteve em
analisar as questões que envolvem a disciplina de Literatura no Enem, em
comparação com os documentos legais que regem o exame, mas poucos se
detiveram no ensino desta disciplina nas escolas e sobre o material didático utilizado
para tal.
5. Referências bibliográficas

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