Você está na página 1de 10

471

O cuidado ao portador de transtorno psíquico

TEMAS LIVRES FREE THEMES


na atenção básica de saúde

Health care given to people suffering of mental


disorders assisted by basic health attention

Mércia Zeviani Brêda 1


Lia Giraldo da Silva Augusto 2

Abstract The aim of this study is to understand Resumo Este trabalho objetiva compreender o
how health care is given by the basic health cuidado prestado em saúde aos portadores de
attention to people who have mental disorders. transtornos psíquicos na atenção básica em saú-
It was carried out in a suburb, assisted only by de. Foi desenvolvido em um bairro periférico do
The Family Health Program, in the outskirts of município de Maceió, de exclusividade do Pro-
the borough of Maceió, in the state of Alagoas, grama de Saúde da Família. Buscou nesse cená-
Brazil. This study searched for the material for rio e nos relatos de experiência dos portadores,
this comprehension in this scenery and patient’s seus familiares e profissionais de saúde, o mate-
experience reports their families and profession- rial para essa compreensão. Utilizou uma abor-
als of health. A qualitative approach of the dagem qualitativa de estudo de caso referenda-
study case was based on Lüdke and André’s the- da por Lüdke & André e Minayo para a análise
ory for data collection and Minayo’s theory for final. Revelou que o cuidado ao portador psí-
final analysis. This study case showed that the quico na atenção básica em saúde tem sido me-
health care to people given by the basic health dicalizado, hospitalar e fragmentado. Os profis-
attention who have mental disorders had been sionais de saúde, assim como as famílias têm
medicated, hospitalised and fragmented. The reproduzido a lógica do internamento psiquiá-
professionals of health, as well as, the families trico, que é reforçada pela insuficiência e inefi-
have reproduced the committal’s logical, that is cácia do sistema público de atenção em saúde
reinforced for insufficiency and inefficiency of mental local. O Programa de Saúde da Família,
the mental health public system. The Family neste caso, não tem sido capaz de mudar a lógi-
Health Program, in this case, isn’t able to change ca da atenção centrada no modelo biomédico e,
the logical centred in the biomedical model, its sua forma de cuidar em saúde não se coaduna
way of care isn’t coherent with the principles of com os princípios da Reforma Sanitária e Psi-
1 Departamento de
Enfermagem, Universidade
Sanitary and Psychiatric Reform. The penetra- quiátrica. Sua penetração nas redes sociais é
Federal de Alagoas. tion of the professionals in social nets is still very tímida e a dinâmica das ações é passiva e indi-
Fundação Oswaldo Cruz. small and the dynamic of theirs actions is indi- vidual. Formas de abordagem baseadas na es-
Rua dos Coelhos 450/1o
andar, 50070-550, Recife PE.
vidual and passive. Forms of approaches found- cuta, no acolhimento e no vínculo são raramen-
mzb@fapeal.br ed in listening, in welcome, and in linking are te utilizadas.
2 Departamento de rarely used. Palavras-chave Cuidado em saúde, Transtorno
Estudos em Saúde Coletiva,
Centro de Pesquisa
Key words Health care, Basic health attention, psíquico, Atenção básica em saúde, Programa
Ageu Magalhães. Mental disorders, Family Health Program de Saúde da Família
Fundação Oswaldo Cruz.
472
Brêda, M. Z. e Augusto, L. G. S.

Transtornos psíquicos: com internação psiquiátrica. Dos 1.450 leitos


problema de saúde coletiva psiquiátricos, a maioria (80%) é do setor priva-
do e com um custo médio de R$800,00/mês por
Em 1989, a Organização Pan-Americana de paciente (Coordenação de Saúde Mental, 1998).
Saúde alertava para o fato de que a América La- Essa situação coloca um grande desafio aos
tina enfrenta uma pandemia de transtornos pesquisadores, profissionais de saúde, gestores,
psiquiátricos, que terá: importantes repercusio- órgãos formadores e usuários dos serviços de
nes en el desarrollo social de los países latinoa- saúde do estado e do município. Cabe a eles,
mericanos y en la planificación y prestación de portanto, de forma democrática e pactuada, ar-
serviços de psiquiatría e salud mental. (Levav et ticular saberes e desenvolver estratégias de mu-
al., 1989). danças no modelo assistencial e na legislação
Pesquisas recentes evidenciam a dependên- em saúde mental para que, paulatinamente, se
cia crescente e cada vez mais precoce de álcool observem mudanças culturais secularmente
e de drogas entre os jovens brasileiros, acarre- enraizadas na sociedade.
tando perda da produtividade, mortes prema-
turas e gastos substanciais com tratamento
(Galduróz, apud Ministério da Saúde do Bra- Movimentos de mudança
sil, 1999).
As internações psiquiátricas no Brasil, não No Brasil, nas últimas décadas, um conjunto de
obstante seus danos, vêm apresentando um dos iniciativas políticas, científicas, sociais, admi-
maiores gastos com a rede hospitalar do Siste- nistrativas e jurídicas têm lutado para transfor-
ma Único de Saúde. Os leitos, na sua maioria mar a compreensão cultural e a relação da so-
(78,8%), privados e contratados pelo setor pú- ciedade com as pessoas que apresentam trans-
blico, apresentam internações longas, chegan- tornos mentais. Este processo resultou na pro-
do a alcançar em média 55,6 dias de duração visão de incentivos para o uso de recursos ex-
(Ministério da Saúde do Brasil, 1999). tra-hospitalares, prezando pela manutenção do
A situação torna-se mais preocupante caso portador de transtorno mental em seu meio fa-
se considere o crescimento absoluto de habitan- miliar e comunitário. Essas iniciativas, aliadas à
tes, o impacto psiquiátrico causado pela cres- divulgação pelos meios de comunicação, da
cente concentração de renda, e a diminuição precária assistência psiquiátrica hospitalar,
do acesso aos bens e serviços distribuídos pelo com violação dos direitos civis dos pacientes,
Estado, que em última instância, caracterizam- têm criado, junto à opinião pública, o consen-
se num processo destrutivo da qualidade de vi- so quanto à necessidade de mudança (Melman,
da e saúde (Levav et al.,1989). 1999).
O resultado mais drástico desse modelo Em Maceió, acredita-se haver uma percep-
econômico tem sido a desigualdade social que ção de emergência na criação de modelos subs-
divide o país em regiões desenvolvidas e subde- titutivos e descentralizados, apoiados pelo go-
senvolvidas. No Nordeste, mais concretamente verno local. Em 1998, foram implantados três
em Alagoas, exemplo de região subdesenvolvi- centros de assistência psicossociais, com a pro-
da, a crise político-econômica dos últimos anos posta de implantação de outras variedades de
fez com que o Estado perdesse sua capacidade serviços especiais articulados à rede básica de
de investimento em infra-estrutura e promo- saúde, com destaque ao Programa de Saúde da
ção de políticas sociais (Veras, 1997). Família/PSF (Coordenação de Saúde Mental,
Em relação à assistência em saúde mental, 1998).
no ano de 1998, segundo informações do Mo- Vale salientar que, nesse município, essa
vimento Nacional de Luta Antimanicomial modalidade de atenção básica (PSF) constitui-
(1999), Alagoas foi o “terceiro estado do país se, hoje, na principal porta de entrada do siste-
que mais gastou com internações psiquiátri- ma de saúde, o elo mais próximo entre as uni-
cas”, o que pode ser considerado paradoxal dades assistenciais, família e a comunidade
num Estado que possui 2.633.339 habitantes (Maceió, 1999).
(IBGE, 1996). Para Campos (1992), um projeto de reinser-
Em Maceió, capital do estado, não há regis- ção social dessa parcela da população, que apre-
tros de internações psiquiátricas em hospitais senta transtornos mentais, exigiria que a rede
gerais. Vinte e cinco por cento das Autorizações básica de saúde fosse habilitada a interromper
de Internações Hospitalares (AIHs) são gastas essa ciranda infernal de crise-internação-crise.
473

Ciência & Saúde Coletiva, 6(2):471-480, 2001


A Declaração de Caracas, redigida em 1990, quer que fosse o problema, era medicar com
também, reforça a idéia da reestruturação da benzodiazepínicos.
atenção psiquiátrica vinculada à Atenção Pri- Outro que chama atenção é Danese (1998),
mária à Saúde, permitindo a promoção de mo- que se deparou com pessoas que faziam uso
delos substitutivos concentrados na comunida- constante de psicofármacos numa população
de e integrados com suas redes sociais, prepon- atendida pelo PSF e, que não identificavam o
derando a manutenção do doente em seu meio serviço de saúde como o lugar onde poderiam
social (Kalil, 1992). ser ajudadas. Diante do descuido do serviço de
Tal idéia tem dupla repercussão: por um la- saúde essas pessoas procuravam a religião para
do, o hospital psiquiátrico deixa de ser o com- o enfrentamento de seus problemas. Eviden-
ponente central da atenção psiquiátrica e, por ciando um conflito culturalmente construído,
outro, propõe que os serviços comunitários em que o serviço de saúde utiliza tratamentos
passem a ser o principal meio para se obter tecnicamente fixos, ao passo que, os pacientes
atendimento. buscam mais do que o alívio dos sintomas, ex-
Outro aspecto subjacente a este é a proposta plicações significativas e tratamento psicosso-
da transformação do conceito de doença mental cial da doença.
na noção de existência – sofrimento. Para Ama- A esse respeito Kleinmann (1978) se refere
rante (1999) isso significa que, deixamos de nos a sistemas de cuidado à saúde – tarefas cultural-
ocupar da doença e nos ocupamos dos sujeitos. O mente adaptativas em face da doença. Estes sis-
tratamento e a instituição do cuidado deixam de temas estabelecem relações entre as crenças so-
significar apenas a prescrição de medicamentos, a bre causação, experiências de sintomas, deci-
aplicação de terapias, para tornar-se um ocupar- sões e avaliação sobre tratamento e práticas te-
se cotidiano do tempo, do espaço, do trabalho, do rapêuticas. Contém três arenas: a popular, a
lazer, do ócio, do prazer, do sair, da organização folclórica e a profissional. Cada uma utiliza-se
de uma atividade conjunta (...). de um “modelo explicativo” que congrega sis-
O que envolve construir uma nova forma de temas específicos de conhecimento e valores.
cuidado que, não seja mais de exclusão e isola- De acordo com essa concepção, o modelo ex-
mento, mas, pautada, sobretudo, na democra- plicativo biomédico pode estruturar uma visão
cia, solidariedade e tolerância em relação à di- clínica, centrada no atendimento médico, na
ferença. Uma forma de cuidado que se revele qual a doença (disease) é localizada dentro do
numa atitude de colocar atenção, mostrar inte- corpo do doente e a assistência é vista como o
resse, compartilhar e estar com o outro com pra- tratamento orgânico. E, o modelo explicativo
zer; não numa atitude de sujeito-objeto, mas de popular pode localizar o problema (illness) na
sujeito-sujeito, numa relação não de domínio so- família e o alvo do tratamento envolverá muito
bre, mas de com-vivência, não de intervenção, mais do que o corpo do paciente.
mas de interação (Boff, 1999). A partir destas informações, pode-se traba-
Há que se considerar que, apesar do impor- lhar com duas pressuposições. Primeiro, que
tante papel que os serviços de atenção básica existe uma dicotomia no PSF, entre o modelo
assumem na concretização ou inviabilização da biomédico e o modelo popular de atenção. Se-
transformação do cuidado prestado aos porta- gundo, que este programa, apesar de se consti-
dores de transtornos mentais, raros são os es- tuir numa nova proposta de reorganização da
tudos que abordam este tema. atenção em saúde, não supera o modelo bio-
Dentre eles, está o de Amaral (2000) onde médico dominante.
revela que a rede básica de saúde em Campinas Nesse sentido, buscar compreender a di-
(SP) não tem contribuído para redução das mensão social do cuidado, a inserção das redes
reinternações, afastando o portador de sua re- sociais na atenção básica em saúde e vice-versa,
de social. Aponta como principais causas: a pe- poderá contribuir com o debate de novos mo-
quena inserção das equipes de saúde na comu- delos assistenciais. Sabendo-se que o PSF apro-
nidade local, o não uso de novos equipamen- xima-se do cotidiano destas redes, esta pesqui-
tos/recursos de saúde mental (oficinas, grupos sa buscou responder: Como é prestado o cuida-
etc.) e a ausência de articulação intersetorial. do em saúde ao sujeito portador de transtorno
Oliveira (1998), em um estudo sobre aten- psíquico num território de abrangência do Pro-
dimento médico em um Centro de Saúde, ob- grama de Saúde da Família?
servou que a conduta mais freqüente dos mé-
dicos em relação ao adoecimento psíquico, qual-
474
Brêda, M. Z. e Augusto, L. G. S.

Trajetória metodológica go, auxiliares de enfermagem, agentes comuni-


tários de saúde e atendentes. Oferece 100% de
Para responder esta pergunta, utilizou-se da cobertura às 744 famílias residentes, onde 99%
Abordagem qualitativa de estudo de caso, refe- destas dependem exclusivamente do Sistema
rendada por Lüdke & André (1986). Foram em- Único de Saúde (Secretaria Municipal de Saú-
pregadas técnicas de entrevista semi-estrutura- de de Maceió, 1999).
da, de observação direta e, registro em diário Em julho de 2000, o mural da Unidade de
de campo. Para a análise dos dados, foram con- Saúde expunha as cinco principais doenças re-
siderados os pressupostos de Minayo (1992). A feridas pela comunidade no ano anterior: 69%
partir da transcrição e leitura repetida dos rela- hipertensão, 15% alcoolismo, 13% diabetes, 2%
tos destacaram-se e recortaram-se os trechos epilepsia e 1% tuberculose.
mais significativos das experiências dos sujei- Em relação aos problemas de saúde mental,
tos e, convencionou-se chamá-los de “unidades além da alta prevalência de alcoolismo, sabe-se
significativas”. Essas unidades foram separadas que o distrito de Saúde a que pertence este bair-
por temas que guardavam íntima relação com ro foi responsável por 15% das internações psi-
os objetivos e pressupostos da pesquisa. Da quiátricas no ano de 1999 e, não possui nenhu-
perspectiva da equipe, os temas versam sobre ma referência para assistência em saúde mental
os transtornos psíquicos mais freqüentemente (Coordenação Municipal de Saúde Mental,
percebidos, a forma de cuidado prestada aos 1998). A unidade de saúde local contou com o
sujeitos acometidos e sugestões de como lidar atendimento semanal psiquiátrico que se ex-
com o problema. Da perspectiva dos portado- tinguiu na primeira semana da etapa de traba-
res, foram observadas a história de vida e de lho de campo desta pesquisa.
adoecimento, as formas de enfrentar o proble-
ma e o tipo de cuidado prestado pelos familia-
res e equipe do PSF. Destes temas emergiram as Sujeitos da pesquisa
categorias orientadas, sobretudo, na com-
preensão do cuidado ao portador de transtor- São sujeitos desta pesquisa: os portadores de
no mental num espaço social particular. transtorno psíquico residentes nessa comuni-
dade e os profissionais de saúde da família que
nela trabalham. A escolha desses dois grupos
O cenário da pesquisa de sujeitos se baseou na tentativa de captar a
perspectiva de quem, pelo menos a princípio,
Trata-se da comunidade do Pontal da Barra, presta formalmente o cuidado e de quem o re-
como é habitualmente chamada, localizada en- cebe. Os personagens ganharam pseudônimos
tre o mar e a lagoa, no litoral sul de Maceió, e por questões éticas.
separada do resto da cidade por vazios urbanos
e pela indústria cloroquímica Salgema.
Sua história remonta a um tempo em que o O depoimento da equipe do Programa
bairro era “terra de índio”, época em que for- de Saúde da Família
mava uma aldeia, no sentido de uma só famí-
lia, e onde a solidariedade fazia parte das rela- 1) Sobre a existência, tipo e intensidade
ções familiares e de vizinhança. A implantação de transtornos psíquicos com os quais
da Salgema em 1976, a integração da população a equipe se depara no seu dia a dia
com o mercado de trabalho urbano, e o aumen-
to do fluxo de turistas contribuíram para intro- O conteúdo da fala da equipe destaca o al-
duzir no Pontal a perspectiva da rua – da indi- coolismo, a depressão, o uso indiscriminado de
vidualização – rompendo com a perspectiva do psicofármacos e as recentes tentativas de suicí-
bairro. O Pontal era uma bucólica vila de pesca- dios como os problemas psíquicos mais preva-
dores (hoje se constitui em um bairro de perife- lentes.
ria urbana de Maceió), que apesar das transfor- O alcoolismo, infiltrado na maioria das fa-
mações de ordem econômica que vem sofrendo, mílias do Pontal, tem gerado dor e sofrimento
preserva ainda suas atividades tradicionais de aos dependentes e aos que convivem com ele. É
subsistência: a pesca e o artesanato (Vieira, 1997). comum o relato de mulheres que “sofrem dos
Possui uma Unidade de Saúde da Família, nervos” ou que desencadeiam um processo de
conta com um médico, enfermeira, odontólo- hipertensão arterial devido à presença de al-
475

Ciência & Saúde Coletiva, 6(2):471-480, 2001


coolistas na família. Tem gerado conseqüências até nas coisas pequenas, por exemplo: marcar
altamente destrutivas, como é o caso de recen- consulta por telefone.
tes tentativas de suicídio. Os fatores desenca- Bandeira (1993) alerta para o fato de que a
deantes apontados são: a falta de oportunidade desinstitucionalização falha quando se depara
de emprego, a atividade pesqueira, a exposição com a falta de apoio financeiro suficiente para
precoce ao álcool no ambiente familiar e a criar serviços substitutivos, de formação pro-
abertura constante de bares na comunidade. fissional, de preparação e engajamento da co-
A utilização indiscriminada de medicação munidade no acolhimento ao doente, de aten-
psiquiátrica é “denunciada” na fala de uma dimento permanente e, de comunicabilidade
atendente que há vinte e um anos reside no entre os diferentes setores.
Pontal: “Aqui o pessoal toma o remédio contro- Quanto ao relacionamento da equipe com
lado direto!” Relacionada à automedicação, po- a população em geral e com os que vivenciam
de indicar a dificuldade de acesso da popula- o processo de adoecimento psíquico, constata-
ção aos serviços de saúde, a ação iatrogênica se que os agentes de saúde foram os únicos
das prescrições médicas ou, o que é pior, o uso membros da equipe que visitaram os portado-
como válvula de escape de crises vivenciais co- res em seu domicílio e, sua atitude se diferen-
mo o desemprego, o alcoolismo, problemas fa- ciava do restante da equipe por ser mais cor-
miliares, dentre outros. dial, compreensiva e afetuosa.
A passividade do programa, característica
2) Sobre o tipo de assistência prestada do trabalho de demanda espontânea, que não é
aos portadores de transtornos psíquicos o seu propósito, fica evidenciada nesta fala:
“Esse Márcio, eu nem sabia que ele tinha esse
Depara-se com uma dinâmica assistencial problema, a mãe dele nunca chegou aqui pra
individual, passiva, pouco criativa, centrada na mim, pra conversar, nunca!”.
internação psiquiátrica e na medicalização dos Para o enfermeiro, a atitude de ouvir o ou-
sintomas. Uma conduta freqüente é a indica- tro perde prioridade diante das exigências bu-
ção de benzodiazepínicos, claramente expressa rocráticas e administrativas da Unidade de
na fala de um agente de saúde: “é sempre o Saúde: “Não tenho tempo disponível para ficar
mesmo medicamento que o doutor passa, sem- escutando, tô cheia de coisas pra fazer na Uni-
pre Diazepan”. dade”.
A internação psiquiátrica é reforçada pela Carl Rogers (1971) chama este processo do
insuficiente rede substitutiva de atenção em homem se relacionar com outros seres huma-
saúde mental no município. Enquanto no ce- nos de “misterioso ofício”. A razão disso reside
nário nacional e internacional a centralidade no fato de que as pessoas dificilmente conse-
do hospital na assistência a estes portadores es- guem estabelecer uma comunicação interpes-
tá sendo fortemente rejeitada. Nessa comuni- soal satisfatória, mas quando conseguem sen-
dade os depoimentos desses profissionais reve- tem-se extremamente compensadas. Para ele,
lam uma tendência oposta: “A gente sempre alguns elementos como a disposição positiva
encaminha para o Bebedouro [referência de em ouvir e o interesse em compartilhar senti-
outro distrito sanitário] (...) sempre encami- mentos e idéias são imprescindíveis para uma
nha pra algum canto (...)”. Estes encaminha- comunicação rica e engrandecedora entre as
mentos, por sua vez, dificilmente se concreti- pessoas.
zam, o agente de saúde revela: “fica difícil pra
gente dizer – ‘vá pra tal canto que você vai ser 3) A equipe aponta algumas sugestões de
atendida lá’, fica difícil. Acaba internando é melhoria de assistência a estes portadores
mais fácil”.
A não comunicabilidade entre o Programa Percebe-se, porém, ser tímido o desejo e a
Saúde da Família e os serviços de referência em busca de penetração do programa nas redes so-
saúde mental é sentida, porque a Secretaria ciais, limitando-se, na maioria das vezes, ao re-
sempre fala desses “CAPS” mas, sinceramente! A lacionamento com o Conselho Gestor de Saú-
gente já encaminhou tanta gente lá e não sabe de e escola municipal local.
nada (...) eu não sei o que eles fazem lá, não dá A psiquiatra é uma ausência sentida. O de-
um retorno, a gente não sabe nem se a pessoa tá sejo de que a Unidade volte a contar com esse
seguindo o tratamento ou não tá. No dia a dia profissional foi manifestado por todos os pro-
não funciona (...) A burocracia é muito grande fissionais entrevistados. Para os portadores re-
476
Brêda, M. Z. e Augusto, L. G. S.

presentou a perda de um acompanhamento te- uma maneira não escolhida de ter que andar
rapêutico que não foi substituído por outro. pelo mundo.
Mesmo entre as pessoas que se dispõem a pro- Para dona Maria Rosa, 49 anos, o sofrimen-
curar os serviços de referência, há a queixa da to vivenciado sob essa “ordem” se expressa bem
grande distância e dificuldade de transporte. neste pequeno relato: Eu fui criança sofri de-
Ficam a mercê de sua própria sorte, já que to- mais, eu nunca fui à escola (...) fui criança sofri-
dos dependem exclusivamente do sistema pú- da, meu pai foi um carrasco (...) eu tinha 5 ano,
blico de saúde e esperam dele a sensibilidade e ele cuspia na minha cara (...) levava pisa de can-
a atenção para a solução dos seus problemas. gaço de coro cru (...). Bom, daí eu fui crescendo,
São dadas outras sugestões, como uma me- né? Quando foi com 12 anos fui mãe(...) fiquei
lhor articulação entre setores, ampliação mul- criando fio sem pai (...) sem se casá (...) fui ven-
tiprofissional da equipe, desenvolvimento de dê o corpo pra dá o de comê Às minhas filhas e,
trabalhos de grupo e a necessidade de preparo fui sofrendo demais, né?
profissional para lidar com os portadores de No caso de Gal (47 anos) que após ter so-
transtorno psíquico. Um Agente de Saúde, que frido a violência e a incompreensão dos pais e
trabalha com esta comunidade desde a implan- do marido, por acréscimo, perde também a
tação do Programa avalia: A gente não tem pre- guarda dos filhos. Segundo ela: Eu fiz um esfor-
paro nenhum (...) a Secretaria dá curso, mas não ço sobrenatural pra cuidá dos meus filho, mas eu
é um curso (...) é muito assim (...) eu acho que não tive essa condição, não me deram essa condi-
depende de cada realidade de cada bairro, né? ção, e de tanto maltrato que eu tive dentro de ca-
Porque o pessoal do Pontal é por causa do álcool, sa, minha mãe aproveitou a minha ausência (...)
outros “pode” não ser por causa do álcool, né? pegô os meus filho junto com a minha irmã, apa-
Então eles não “trabalha” com a terapêutica da- nhou um táxi e levou (...) me desesperei, eu me
quilo, foge muito à realidade, né?(...) A gente desesperei, eu perdi minhas cria, né? Eu queria
quer saber como se comportar diante do paciente criar os meus filho, e eu perdi os meus filho dessa
(...) A gente precisa ser preparado para saber co- forma: – foi arrancado de mim. (...) ouvia o cho-
mo agir com eles(...) a gente não sabe. ro deles, quando na hora da mamada, ouvia o
A fala do sujeito a ser cuidado, por sua vez, choro deles na hora do banho, tudo, tudo ficou
reforça e insere novos elementos para reflexão no meu subconsciente, né? (...) eu tenho certeza
e análise da relação destas pessoas com os ser- que o meu problema de saúde começou daí.
viços de saúde. Para dona Marli do Véio, de aproximada-
mente sessenta anos, nada a marcou mais do
que o abandono na infância: (...)eu nasci, mi-
O depoimento do portador nha mãe me teve, por volta de seis meses ela mor-
de transtorno psíquico reu (...)meu pai morreu eu só tava com três anos.
Não conheci pai, não conheci mãe, não conheci
1) As histórias de vida e de adoecimento psí- nem avó, nem avô nem ninguém. (...)Aí, fiquei
quico revelam experiências que favorecem rup- na casa de um, na casa dos outros. (...)até esmo-
turas na vida psíquica. Quebras de vínculos la eu pedi pra comer(...) Nem tive carinho de
afetivos, abandono na infância e violência fa- mãe nem de pai. Amor só pode dar quem rece-
miliar marcam a trajetória dessas pessoas. A beu, né?
violência sofrida na infância e juventude, por O adoecimento psíquico de um familiar,
vezes, se estende para a vida adulta. comumente, associado à incapacidade da famí-
Segundo Agudelo (1997) a “ordem violen- lia em se prover do sustento adequado, faz com
ta” manifesta-se por meio da penetração e ins- que as dificuldades se acumulem e, a rede do
talação da violência em todos os cenários da vi- sofrimento se amplia. Heloísa (30 anos), que
da social, inclusive nas relações familiares. É perdeu a mãe há pouco tempo, tem o pai e o ir-
ubíqua e absoluta, substituindo a palavra e o mão vivenciando o adoecimento psíquico reve-
argumento, silenciando a razão, criando heróis la: (...) saber que a minha mãe tava com aquela
e normas, regulando os tempos, os espaços, os doença foi como se o mundo tivesse caído. Daí,
gestos, as palavras e as idéias, destruindo o go- me arrasô mesmo, psicologicamente eu tô arrasa-
zo, os sonhos e a vida. É a intolerância à dife- da (...) pra completar, meu pai, depois que a mi-
rença e o império do medo e da impunidade. nha mãe morreu, começou a se arrasá (...) aí, me
Conforma uma rede por vezes invisível, mas arrasou também, eu ultimamente não tenho
sempre presente. É uma maneira, um clima, conseguido nem dormir, minha cabeça queima, é
477

Ciência & Saúde Coletiva, 6(2):471-480, 2001


a maior agonia, preocupada com tudo, desem- anos) as longas e sucessivas internações foram,
pregada (...) eu penso muito, me apareceu gas- ao mesmo tempo, uma forma de tratamento e
trite, ansiedade, eu não me alimento bem, não causa de sofrimento. Ele mesmo expressa a ex-
durmo, tudo eu boto na cabeça, fico preocupada tensão da sua dor: fiquei doente (...) fiquei
pensando na minha vida (...) eu não tenho ami- doente (...), eu era pobre (...) eu era pobre (...),
ga, vivo dentro de casa, nem na praia eu vou, não eu era doido (...) eu era doido, (...) eu sofri dos
saio nem do lado de fora. (...) não consigo comê pulmão (...) sofri dos nelvos (...) não teve cura
começo fazer uma coisa não consigo (...) então (...) não teve cura mesmo (...) aí, eu era com
minha cabeça começa a martelar. trinta anos e tava sofrendo e, com aquela espe-
Para Teles (1992), quando para o ser huma- rança. Aí eu fiquei sofrendo (...) com aquela es-
no existe a necessidade de prover-se do susten- perança (...) eu estava sofrendo, eu estava sofrendo
to adequado e esta condição lhe é tirada, gera (...) eu estava sofrendo até os sessenta anos.
dificuldades materiais concretas que podem le- Goffman (1961) alerta para o fato de que
vá-lo ao adoecimento psíquico. na internação psiquiátrica as pessoas: podem
A necessidade da inserção no mercado de descobrir-se numa “atadura” muito especial. Pa-
trabalho é freqüentemente expressa por estas ra sair do hospital ou melhorar sua vida dentro
pessoas. O desemprego, presente entre mais da dele, precisam demonstrar que aceitam o lugar
metade dos entrevistados, os tem privado desta que lhes foi atribuído, consiste em apoiar o papel
oportunidade. Resultado cruel do modelo eco- profissional dos que parecem impor essa condi-
nômico vigente no país, fragiliza o homem e ção(...) servidão moral auto-alienadora(...) on-
não deve ser desconsiderado, ainda mais, entre de podem ser esmagados pelo peso de um ideal
os que sofrem as influências da realidade sub- de serviço que torna a vida mais fácil para to-
jetiva e objetiva. Caracteriza-se em verdadeiro dos nós.
descuido social. É o caso de dona Maria Rosa (49 anos) que
Para Dona Gilda (50 anos), por exemplo, também, passou boa parte da sua vida interna-
parte do seu desencanto pela vida e o de mui- da. No seu depoimento ela diz: (...) eu dei 44
tas outras pessoas em Alagoas, começou quan- entrada (...), mas, eu sou boa conduta, faço tu-
do teve que pedir o desligamento voluntário de do, vou pegá o paciente, todo mundo gosta de
uma função de merendeira que exercia no Es- mim, ajudo na cozinha vô na casa da minha mé-
tado, (...) depois que eu perdi meu emprego, que dica, cozinho lá, faço de um tudo pro doutor X.
eu fiquei desse jeito (...) O Suruagy foi muita coi- As sucessivas internações tornaram-se para ela
sa, ele fez muita coisa ruim, ele foi muito cruel, um hábito, (...) daí, eu fiquei aviciada(...) cê sa-
muita gente se acabou-se [suicidou-se] (...) Pas- be que a gente se habita, entendeu? Qualquer
sei mais de 6 meses, eu não fazia nada, não dor- coisinha que eu tinha uma dorzinha: “eu vou me
mia, não tomava banho, não queria comê. Pra interna” (...)lá eu ficava à vontade(...) assim à
tomá banho precisava que os meus filho me desse. vontade de cama assim, eu não tinha a preocu-
Me jogasse dentro do banheiro e me desse. (...) o pação com casa.
dia que eu não dava 3 entrada no Pronto Socorro O que era fortalecido pela instituição, ela
eu não dava nada (...) eu só dormia as custa do diz: Eu telefonava de qualquer canto e dizia Fu-
remédio do Pronto Socorro. lana [referindo-se à Assistente. Social]: “vou me
A falta de independência financeira causa- interná”. E ela dizia: “venha meu amor, não pre-
da pelo desemprego é geradora de ainda mais cisa nem pegá guia, tá aqui a sua vaga!”
sofrimento: Hoje em dia eu dependo (...) se eu Para Rotelli (1990) o manicômio é muito
quero ir daqui pra cidade eu tenho que pedi – “Ô mais do que paredes, muros e grades. Desmon-
José, não tem não meu filho dois passe que me tar essas instituições significa, fundamental-
arranje?” (...)Daí, eu corto tudo e não saio pá mente, desmontar estruturas mentais que dão
canto nenhum, além do mais os meus fio me dá sustentação e legitimidade ao modelo psiquiá-
um bocado pá comê e vai dá mais dinheiro de mo- trico centrado no hospital.
do eu passeá? (...) Repare se não é uma coisa re- Nesse cenário, a família tem tido papel pre-
voltante na vida da pessoa? Cada um pense e, bo- ponderante. A mãe de Davi (27 anos), um ra-
te o sentido de si que não é uma coisa revoltante? paz que sofre de epilepsia e alcoolismo, ao mes-
2) Dentre as formas de enfrentamento do mo tempo em que manifesta o desejo de inter-
adoecimento psíquico, a internação em insti- nar o filho para protegê-lo dizendo: Eu queria
tuição psiquiátrica é a mais usada por estas uma internação pro Davi, ele internado ficava
pessoas e seus familiares. Para Damião (62 melhor. (...)Porque, lá tá tomando o medicamen-
478
Brêda, M. Z. e Augusto, L. G. S.

to e não tá aqui bebendo(...) Lá na Ulisses Per- Para Neno (22 anos) as formas de lidar da
nambucano [Hospital Psiquiátrico] é tão bonzi- família e do sistema de saúde para com seu so-
nho (...)ele já internou no Zé Lopes, no Ulisses frimento se reduzem ao puro abandono. Se-
vária vezes(...) é bom porque, ele para mais de gundo a irmã: “A gente deixa de mão(...) ele é
bêbe e volta pra casa direitinho, né?, parece de- um mendigo(...) come na casa de um, come na
sejar libertar-se do fardo ou de até mesmo pu- casa de outro (...) a gente deixa ele de mão”.
ni-lo, quando diz na sua frente: Já falei pra Da- Para Agudelo (1997), ao aceitar esta lógica,
vi: “vou pegar um encaminhamento pra deixá a sociedade reconhece sua impotência para re-
você no Zé Lopes por vida porque, só assim eu cuperar parte dos seus membros e opta, ativa
vou tê paz!” ou passivamente, por autorizar, tolerar ou coo-
Para Foucault (1972) o internamento se jus- nestar sua exclusão.
tificaria assim duas vezes, num indissociável Por outro lado, o amor, a amizade, a reli-
equívoco, a título de benefício e a título de pu- gião e o entretenimento são tidos como recur-
nição. É ao mesmo tempo recompensa e castigo, sos de alto valor terapêutico para a maioria des-
conforme o valor moral daqueles sobre quem é sas pessoas e, por vezes, é o único de que dis-
imposto. põem. É o caso de Gilda (50 anos), impossibili-
O uso do medicamento sem acompanha- tada de realizar-se dentro das condições de vi-
mento também é fato muito comum. O medi- da que lhe foram impostas, buscou manter sua
camento toma um grau de importância para sanidade através da fé e da ajuda dos amigos:
essas pessoas que, em muitas vezes, supera a (...)a minha vizinhança me deu muito apoio (...)
necessidade de outra forma de cuidado à saú- Foram muito bacana(...) o grupo da legião de
de. Essa atitude, quando parte dos serviços de Maria, o grupo da oração carismática(...) tudo
saúde, tem gerado sérios malefícios. É o que era aqui junto comigo. Graças a Deus, nunca me
aconteceu com Neno (22 anos), segundo a ir- deixaram sozinha(...) eu tive muito apoio dos
mã: Teve uma crise há poucos dias e eles conse- meus vizinho e das minhas irmã em Cristo(...)
guiram chamá o camburão da polícia pra levá foi só.
ele no hospital. Daí, quando chegou lá não tinha Para dona Berenice (52 anos), além do
vaga, fizeram a medicação nele, depois trouxe- acompanhamento terapêutico regular, ela acha
ram ele pra casa. Daí, até uns dois dias ele ficou que (...) o que fez eu sair mais desse sofrimento
bem com o efeito do remédio, mas depois (...) ele foi a confiança e as amizades que a gente tem
começou a ter dor de cabeça, desmaio, agonia, o com as pessoas, isso é muito importante! (...)eu
coração batendo muito forte. (...)Aí, a gente levou acho que as pessoas tem que se ajudar porque,
ele no Pronto-Socorro (...)eu vi que o negócio ta- tem pessoas que precisa da medicação mas, tem
va feio. Ele pediu: “me leve que eu tô morrendo, pessoas que eu aconselharia, que a palestra aju-
eu vô morre, eu vô morrê”. Quando chegou lá, daria muito mais, muito mais!
descobriu que foi por causa da medicação que ele A atitude de dona Maria Rosa (49 anos) pa-
tomou no Portugal Ramalho [Hospital Psiquiá- ra com as pessoas que, como ela, vivenciam o
trico], ficou como se diz? – Impregnado, né? adoecimento psíquico, traduz a importância
Para um pequeno grupo de alcoolistas, re- que assume o diálogo para essas pessoas: eu
sidentes no Pontal, o programa Alcoólicos consolo muito a pessoa que sofre nessa fase que
Anônimos representa uma saída para a depen- eu passei. Eu tiro de tempo, eu converso. (...)Eu
dência. Para Cosme (47 anos), alcoolista em re- dialogo, né? Por que você sabe o que é dialogá?
cuperação, foi sua tábua de salvação: se não fos- Para Rúdio (1990) dialogar tem caracterís-
se o A.A, eu não tinha nada(...) foi vinte dois ano ticas de ser uma conversa não autoritária e nem
de cachaça(...) se eu demorasse mais um mês de dogmática, onde as pessoas se colocam em pé
cachaça eu morria. (...)antes eu era um cachor- de igualdade quanto à participação de cada
ro, agora eu sou um homem e o meu nome agora um. Essa igualdade se refere ao fato de que ca-
é Cosme !. da participante possui as mesmas oportunida-
Em certos casos, a forma da família “enfren- des de ouvir e falar, de indagar e responder, de
tar” o problema se revela em violência e aban- concordar e discordar, de emitir idéias, juízos e
dono. A família de Davi, anteriormente cita- opiniões. Para ele, o “diálogo de ajuda” deve-se
do, para protegê-lo das crises de epilepsia diz: basear na certeza de que todas as soluções exis-
“Quando ele adoece a gente amarra ele, a gente tenciais, necessárias para a vida do indivíduo,
amarra com a corda, bota ele no quintal (...) encontram-se dentro dele, ou então, que aí de-
pra gente ter paz; senão ele quebra tudo”. vem ser construídas.
479

Ciência & Saúde Coletiva, 6(2):471-480, 2001


Vale ressaltar, que a palavra “palestra” apon- No contexto familiar, na tentativa de convi-
tada pela equipe e usuário em seus discursos ver e respeitar as diferenças, na proteção e am-
toma conotações completamente diferentes. En- paro dos mais fracos e dependentes e na busca
quanto para um é o desenvolvimento de uma de relações abertas, flexíveis, democráticas há
técnica diretiva de orientação, para o outro é muita coisa que poderia ser feita pelos profis-
compartilhar sentimentos e idéias. Para os pro- sionais de saúde e, em especial, do PSF: aconse-
fissionais surge como uma forma de interven- lhamentos, diálogo, oficinas de expressão, de-
ção; para os usuários, como uma forma de in- senvolvimento de trabalhos grupais, não so-
teração e de diálogo. mente para prevenir doenças, mas para inven-
As formas que essas pessoas desenvolvem tar e reinventar a prática da atenção em saúde.
para lidar com o adoecimento psíquico extra- Para tanto, precisa ampliar as suas relações com
polam, em muito, os limites da intervenção mé- a comunidade retratada em toda sua rede so-
dica tradicional. Dona Berenice (52 anos), por cial. Valorizar os recursos de auto-ajuda e de
exemplo, concilia várias estratégias: Eu procuro ajuda mútua. Ampliar os referenciais de escuta
ir pra médica, conversar com ela, se divertir com e do atendimento não diretivo. Buscar em ou-
as pessoas, sempre passear, a gente tem que divi- tros setores sociais ajuda para o que se sente im-
dir com as pessoas, procurar conversar, sair, se di- potente. Desenvolver seu poder criativo em to-
vertir. Busca, além disso, o envolvimento com das as direções, não se restringindo à monoto-
outras pessoas, eu sou do grupo dos idosos, a nia de um trabalho meramente instrumental.
gente sempre sai para passear (...). E, usufrui a Aos gestores municipais de saúde cabe trans-
companhia dos familiares, o que também me formar a característica sanitária – campanhista
fortifica muito é que eu tenho muito neto, levo – dada ao programa, descentralizando, não ape-
eles pra o colégio, eu mesmo vou apanhar, é uma nas ações expressas nos diferentes programas,
maravilha! mas promovendo a auto-gestão, a gerência par-
3. A interação com a equipe local de saúde, ticipativa, o desabrochar da essência humana e
segundo essas pessoas, infelizmente, se restrin- não apenas da produtividade. Preparar seus
ge à relação com as agentes de saúde, ao espaço profissionais para o relacionamento interpes-
da Unidade de Saúde e às ações individuais, soal e comunicação terapêutica. Favorecer e es-
onde o acolhimento e a escuta são tecnologias tar mais aberto à expressão das demandas sub-
pouco exploradas pelos profissionais. jetivas de usuários, familiares e profissionais.
Para Guatari (1992) seria preciso arriscar- Construir uma rede substitutiva eficaz e sufi-
se em novos territórios, mobilizar novos recur- ciente, provida de profissionais envolvidos com
sos em direções inusitadas. Redefinir o papel o processo de mudança da atenção. Intensificar
dos técnicos em saúde, abrindo perspectivas o processo de reabilitação psicossocial dos al-
para que cada profissional possa diferenciar-se, coolistas, que não se restrinja apenas ao Centro
inventar para si um modo mais autêntico de de Recuperação de Alcoolistas, mas que integre
trabalhar. Repensar e ampliar a noção de tera- outros espaços sociais.
peuta, a fim de abarcar a multiplicidade e a he- Ao poder político local, incentivar todo ti-
terogeneidade de opções que a nossa subjeti- po de iniciativa cultural, que vise trabalhar os
vidade comporta. Dispor-se a acompanhar a preconceitos com a pessoa doente e toda ativi-
aventura desses sujeitos na procura de uma dade solidária de grupos mais sensíveis e dis-
existência mais livre e autônoma, criativa e fle- poníveis.
xível, aberta à negociação e ao conflito. No contexto político nacional, esse cuidado
deve se revelar na adoção de uma política geral
de desenvolvimento e de economia capaz de
Palavras finais gerar uma cidadania emancipatória e não tute-
lada, guiada, sobretudo, em princípios de justi-
Acredita-se que para cada contexto ou dimen- ça social e de uma ética humanista.
são social há pontos cruciais de possível inter-
venção para a transformação do cuidado pres-
tado a essas pessoas.
No nível individual, o cuidado deve se reve-
lar no autoconhecimento e no conhecimento
do outro, conhecer limites e possibilidades e
aprender a respeitá-lo em si mesmo e no outro.
480
Brêda, M. Z. e Augusto, L. G. S.

Referências bibliográficas
Agudelo SF 1997. Violência, cidadania e saúde pública. In Kalil MEX (org.) 1992. Saúde mental e cidadania no con-
Barata RB et al. (org.). Eqüidade e saúde: contribui- texto dos sistemas locais de saúde. HUCITEC/Coope-
ções da epidemiologia. Fiocruz, Rio de Janeiro, pp. 39- ração Italiana em Saúde, São Paulo 237pp.
62. Kleinmann A 1978. Concepts and a model for the com-
Amaral M 2000. Atenção à saúde mental na rede básica: parison of medical systems as cultural systems. Soci-
estudo sobre a eficácia do modelo assistencial. Re- ety Science & Medical, n. 12, pp. 85-93.
vista de Saúde Pública, 31(3). Disponível em: http:// IBGE. População do Brasil 1996. Disponível em: http://
www.sielo.br...fbetext? Acesso em: 10 abr. www.ibge.gov.br. Acessado em 10/4/2000.
Amarante P 1999. Manicômio e loucura no final do sécu- Levav I et al. 1989. Salud mental para todos en América
lo e do milênio. In Fernandes MI (org.). Fim de sécu- Latina y e Caribe: bases epidemiológicas para la ación.
lo: ainda manicômios? IPUSP, São Paulo, pp. 47-56. Boletin de La Oficina Sanitária Pan-Americana, n.
Bandeira M 1993. Reinserção de doentes mentais na co- 107:196-219.
munidade: fatores determinantes de rehospitaliza- Lüdke M & André M 1986. Pesquisa em educação: abor-
ções. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 42(9): 491-498. dagens qualitativas. EPU, São Paulo, 99pp. (Temas
Boff L 1999. Saber cuidar: ética do humano – compaixão Básicos de Educação e Ensino).
pela terra. Vozes, Petrópolis, 199 p. Melman J 1999. Intervenções familiares no campo da re-
Brasil 1999. Por uma política de saúde mental. Ministério forma psiquiátrica. In Fernandes MI (org.). Fim de
da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departa- século: ainda manicômios? IPUSP, São Paulo, pp. 173-
mento de Políticas e Estratégias. Área Técnica de 185.
Saúde Mental. Brasília, 9pp., (fotocopiado) Minayo MCS 1992. O desafio do conhecimento: pesquisa
Brasil 1999. Programas e projetos: saúde da família – doc- qualitativa em saúde. Hucitec/Abrasco, São Paulo,
umento. Disponível em: http://www.saúde.gov.br/ 269pp.
programas/pacs/psf.htm, 9pp. Acesso em 17/1/2000. Oliveira GG 1998. O atendimento dos médicos em centros
Ministério da Saúde. de saúde e a prevalência das desordens mentais. Dis-
Campos GWS 1992. Reforma da reforma: repensando a sertação de mestrado. Faculdade de Medicina de Ri-
saúde. Hucitec, São Paulo, pp. 143-193. beirão Preto. Universidade de São Paulo, 178pp.
Código Internacional de Doenças/CID10 1998. Diretrizes Rogers CR 1971. Liberdade para aprender. Resumo e
diagnósticas e de tratamento para transtornos mentais adaptação de Maria José Vidigal. Interlivros, Belo
em cuidados primários/Organização Mundial de Saú- Horizonte 4 pp.
de; [tradução de Maria Cristina Monteiro]. Artes Rotelli F, Amarante P 1990. Reforma psiquiátrica na Itália
Médicas, Porto Alegre, 105pp. e no Brasil: aspectos históricos e metodológicos. In
Coordenação de Saúde Mental do Município de Maceió Bezerra Júnior B (org.). Psiquiatria sem hospício: con-
1998. A reestruturação da assistência em saúde mental tribuições à reforma psiquiátrica. Relume-Dumará,
em Maceió. Boletim Informativo. Rio de Janeiro, pp. 41-67.
Danese MCF 1998. O usuário de psicofármacos num Pro- Rúdio FV 1990. Compreensão humana e ajuda ao outro.
grama Saúde da Família e suas representações sobre os Vozes, Petrópolis, 96pp.
serviços de saúde e os serviços religiosos. Dissertação SMS 1999. Programa de Saúde da Família. Relatório das
de mestrado. Escola de Enfermagem de Ribeirão Pre- atividades desenvolvidas. Maceió.
to. Universidade de São Paulo, 103pp. Teles MLS 1992.O que é depressão. Brasiliense, São Paulo,
Foucault M 1983. Vigiar e punir. Vozes, Petrópolis. 76pp.
Guatari F 1992. Caosmosis. Manantial, Buenos Aires, pp. Veras E 1997. Introdução à crise da economia alagoana.
11-46, 121-144. EDUFAL, Maceió, 41p. (Série Apontamentos, 21).
Goffman E 1961. O modelo médico e a hospitalização Vieira MC 1997. Daqui só saio pó. Conflitos urbanos e
psiquiátrica. Manicômios, prisões e conventos (2a ed.). mbilização popular: a Salgema e o Pontal da Barra.
Perspectiva, São Paulo, pp. 261-312. (Coleção Deba- EDUFAL, Maceió, 96pp.
tes em Psicologia)

Você também pode gostar