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o DIREITO ROMANO E O NOVO MUNDO*

(NUNCA O BRASIL PRECISOU TANTO 00 DIREITO


ROMANO, COMO AGORA)

Silvio Meira**

É para mim sumamente honroso participar deste Congresso Ítalo-Sul-America-


no de Direito Romano, nesta bela cidade de Aracaju, capital de um dos menores
estados brasileiros, em tennos territoriais, e um dos maiores, em termos de cultura
e tradição. Eu não vos falarei de Tobias Barreto, o revolucionador das idéias fi-
los6ficas e jurídicas no Brasil da segunda metade do século passado; não vos fala-
rei de Silvio Romero, soci610go e pensador, nem de Gumercindo Bessa, um dos
poucos brasileiros a enfrentar com galhardia Rui Barbosa; nem de Felisbelo Frei-
re, historiador de n0980 direito constitucional; nem de Hermes -Fontes, poeta, e de
tantos outros que, no passado e no presente, trazem a força de sua contribuição
mental para maior grandeza da cultura nacional. Eu vos falarei do tema previsto
para este Congresso, promoção da Faculdade de Direito Tiradentes e, muito a
prop6sito, quero aliar ~o elenco de homens cultos do Sergipe, já referido, o patro-
no desta Faculdade, o homem que sacriticou a vida pela liberdade da pátria, liber-
dade que deve ser entendida não apenas nos estreitos limites da independência
política, mas, e principalmente, no da independência espiritual e cultural.
Essa a razão por que escolhi o tema O Direito Romano e o Novo Mundo, tantos
são os elos que ligam o estudo dessa bela e pouco loúvada disciplina aos destinos
da liberdade no mundo americano.
Proferindo a conferência final deste congresso, a de seu encerramento, depois
de terem sido ouvidos os mais eminentes mestres da matéria, não tenho a pre-
tensão de invocar para mim o preceito bíblico, segundo o qual os últimos serão os
primeiros. Lembro, porém, que a palavra "último", nas suas raízes latinas multis-
seculares, já apresentava variados sentidos. Ultimum não é apenas o derradeiro,
pode ser o extremo, como se lê em Tito Livio (2,56,5) ou o mais alto grau, con-
forme se vê em Cícero (Mur. 65). Quando a sociedade romana se via em grave pe-
rigo, a ordem pública ameaçada e as pr6prias instituições corrompidas, o Senado
concedia o poder absoluto aos cÔnsules, através do senatus consultum ultimum.
É nesse sentido de ultimum que vos falo, dada a extrema gravidade da situação
que atravessa o Novo Mundo, especialmente o Brasil,nesta hora crepuscular em
que se finda um século e vai começar outro, que também será o pórtico do segun-
do milênio.
Muita coisa vai mudar nessa virada milenar e por isso é que a Igreja, sempre
precavida e auscultadora do futuro, já ensaia a preparação das almas para essa
mudança na idade do mundo, que representará também uma imensa transformação
nas concepções morais, religiosas e jurídicas da humanidade.
Poderíeis indagar-me, a esta altura: que tem a ver com isso o direito romano?
Ele que tem sido combatido através das idades, acusado de materialista e ateu, de
individualista e autocrático, por alguns; de ultrapassado e caduco, por outros; de
inútil reminiscência de um passado longínquo, inaproveitável nos dias atuais, fora
* Conferência proferida no Congresso Ítalo-Sul-Americano de Direito Romano, em Antcaju, Sergipe, Bra-
sil, ago. 1987.
** Professor catedrático de direito romano.

R. C. poL, Rio de Janeiro, 32(3)3-15, maio/jul. 1989


da realidade, por não poucos; que poderá oferecer a esta sociedade inquieta de ho-
je, exarcebada por descobertas científicas que os romanos não conheceram: o raio
laser, a energia atômica, a bomba de hidrogênio, os medicamentos que curam e
matam ao mesmo tempo, os aviões, os vôos interplanetários, um conjunto de con-
quistas que mudam o comportamento do ser humano em sociedade? Como invo-
car, em defesa de direitos, normas concebidas por Labeão, Celso, Nerácio e tantos
outros, h_á quase 2.000 anos?
E eu vos responderei tranqüilamente afirmando que nunca o Brasil precisou
tanto do direito romano, quanto agora.
As características científicas, de cunho universal, que apresenta, fazem-no
aplicável a todas as sociedades humanas, em todos os tempos. Ninguém ousa dis-
cutir os preceitos morais dos Evangelhos, quase tão antigos quanto o direito ro-
mano, nem a sua utilidade neste século. Os templos acham-se repletos de fiéis e,
quando as armas que a civilização criou fazem desabar sobre as cidades as bombas
e o fogo infernal, o primeiro refúgio que os homens procuram é o templo.
Antigüidade não é sinônimo de inutilidade. Um preceito de 2.000 anos atrás
pode ser mais útil à sociedade moderna, do que leis mal elaboradas por leguleios
sem a necessária estrutura cultural.
Por isso, repito: nunca o Brasil precisou tanto do direito romano como agora,
ao elaborar-se uma nova Carta Política para a nação.
Abri o Corpus Juris Civilise, lede, no Digesto, os ensinamentos de Ulpiano
(D.I, 10, 1): "honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere." Cada
um desses preceitos é fonte perene de idéias novas. O viver honestamente já é, de
si, uma regra moral e jurídica; o niio causar dano a terceiros engendra uma série
de pensamentos relacionados com o direito das obrigações, na ordem civil e o
processual; com o direito penal, na ordem social; e o dar a cada um o que é seu
constitui, por si s6, a grande meta da Justiça.
Se esses três ideais fossem atingidos em nosso país, far-se-ia uma revolução
moral em todos os setores da sociedade.
Falta-lhes, porém, a força coativa. A força que vence a pr6pria força, no dizer
de Tobias Barreto. Constituições com simples enunciados gerais, por melhores
que sejam, não se cumprem. S6 uma refmadíssima educação seria capaz de levar
os seres humanos a respeitarem mandamentos com aquelas características. As in-
tenções dos legisladores são boas, mas esbarram diante de uma realidade que as
soterra, as esmaga. E tanto isso é verdade que, mesmo os dispositivos constitucio-
nais de maior significação, como o que toma o ensino primário obrigat6rio e de-
zenas de outros sobre a ordem econômica e social, direitos e garantias individuais,
caem em desuetudo, fazem-se letra morta e jamais são cumpridos.
Saindo do campo puramente filos6fico para o da realidade objetiva, mais uma
vez sou forçado a dizer que nunca o Brasil precisou tanto do direito romano, como
agora.
Apontaria apenas alguns setores: a redação das leis, a técnica legislativa, no di-
reito civil, no financeiro, no tributário, no penal, no administrativo e no constitu-
cional.
Quereis que o prove?
Uma das características mais assinaláveis do direito romano é a técnica legisla-
tiva e a boa redação das leis. Isso vem de longe. Na Lei decenviral, sete séculos
anterior a Cristo, já se enunciava em mandamentos epigráficos: Sol ocasus supre-
ma tempestas esto. O pôr-do-sol punha término a qualquer ato judicial. Ou neste
outro preceito de direito criminal: Furtivae rei aeterna auctorias esto, vale dizer,

4 R.C.P.3/89
que não haveria prescrição para a aquisição de bens furtados. No entanto, vemos
hoje em dia um projeto de Código Civil, já no Senado Federal, em que se reduzem
os prazos de usucapião de má-fé, vale dizer, das coisas furtadas. E este outro
mandamento: Adversus hostem aeterna auctoritas esto, estabelecendo a proibição
de usucapir por parte de estrangeiros. E este outro dispositivo exemplar, proibindo
os privilégios de qualquer natureza: Privilegia ne inroganto. N6s, que vivemos
em uma nação e num mundo em que os privilégios de toda natureza subsistem,
temos o direito de pensar se os antigos romanos não seriam mais sábios, vedando,
com um s6 ditame, toda e qualquer vantagem espúria a favor de uns e em detri-
mento de outros? É bem verdade que a nossa Carta Constitucional prescreve se-
rem todos iguais perante a lei, mas onde anda essa igualdade, na realidade de to-
dos os dias? Vemos, assim, por esses poucos exemplos, como a lei romana era
concisa, sem enfeites gramaticais, epigráfica. Na montanha legislativa brasileira
dos últimos 50 anos, encontram-se os mais estranhos exemplos de leis abstrusas,
contradit6rias, ininteligíveis, inaplicáveis.
Modestino, há mais de 1.500 anos, dizia que "legis virtus haec est: imperare,
vetare, permiuere, punire" (0.1.3.7).
Com quatro verbos delimitou o campo de ação das leis.
Completa-se o sentido da sentença desse jurisconsulto do lU século com a de
Papiniano, quando afirmava: "Lex est commune praeceptum, virorum prudentium
consultum: delictorum quae sponte vel ignorantia contrahuntur, coercitio, commu-
nis reipublicae sponsio" (0.1.3.1).
É de recordar aquele outro preceito de Celso, segundo o qual "seire leges non
este verba earum tenere, sed vim ac potestatem" (0.1.3.17).
Se os campos de ação da lei se delimitavam claramente, como queria Modesti-
no, no império. na proibição. na permissão e na_punição; se a lei é o preceito
comum e geral, fruto do consenso de todos os cidadãos; se o seu valor não está na
palavra que a reveste, mas na força e no poder que ela encerra - que melhores
lições podem extrair os homens, de refmada sabedoria jurídica, aplicáveis a todas
as épocas?
A verdade, no entanto, é que essas lições não têm sido seguidas pela humani-
dade. A sabedoria romana vem sendo esquecida. A técnica legislativa abandona-
da. O maior exemplo de pureza legislativa em nosso país, in igualado até hoje,
o Código Civil de 1917, vem sendo retalhado, como se tora peça de açougue.
Uma imensa massa legislativa, repleta de decretos-leis, afronta a teoria da divisão
dos poderes, uma das conquistas da civilização. Fala-se em democracia e pratica-
se a autocracia. A massa popular continua sempre sujeita às atrações momentâneas
- panem et circenses - na expressão de Juvenal, nas Sátiras. X, 81. Pão e circo,
procuravam os plebeus da decadência e a hist6ria se repete indefinidamente.
Diante do quadro nacional, posso afirmar sem erro que nunca o Brasil precisou
tanto do direito romano, como agora.
Vejamos, primeiro, o direito de propriedade. Nossas terras rurais aí estão entre-
gues à sanha de grileiros, alguns internacionais, empresas colossais monopolizan-
do áreas descomunais na Amazônia e no sertão, titulares do domínio direto, quan-
do seria muito fácil controlar a sua ambição através da enfiteuse (do grego enfi-
teusin. que significa plantar). Faz vários anos venho alertando os responsáveis pe-
la política fundiária no sentido de aplicar o regime enfitêutico às glebas interiora-
nas, com a bipartição do domínio, em útil e direto, vale dizer, enfiteuse, ou apra-
zamento, também chamado aforamento, segundo a tradição lusíada. Há, no entan-
to, uma prevenção contra a enfiteuse, em virtude de sua degenerescência hist6rica

Direito romano
com aplicação em áreas urbanas, o que é desaconselhável. A enfiteuse nasceu ru-
ral, em Roma, com a finalidade de valorizar grandes extensões territoriais nas
províncias, outrora inexploradas. Contratos a longo prazo, com caráter de jus per·
petuum, são apontados como seus antecedentes históricos. Essa a grande finalida-
de da enfiteuse estatal: valorizar as terras do sertão, deixar ao Governo o controle
através do domínio direto.
Essa solução não agrada aos potentados titulares de imensos domínios, espe-
cialmente na região amazônica, domínios que não e;'ploram convenientemente e
que servem de embaraço à colonização e ao povoamento. Da( os conflitos de ter-
ras, entre os chamados "posseiros" (que nem sempre o são) e os proprietários
(que nem sempre o são).
Se, em vez de leis abstrusas, se recorresse ao ensinamento romano, com a bi-
partição do domínio, muitos dissabores seriam evitados e um plano racional de
distribuição de terras poderia ser elaborado, com penalização daqueles que não as
explorassem convenientemente. Para isso existe a arma do comisso, a rescisão do
contrato enfitêutico e a concessão da gleba a outrem em condição de valorizá-la
pelo trabalho e pela cultura. Outro instituto romano, que fora alijado de nosso Có-
digo Civil de 1917 e, felizmente, restabelecido no projeto em curso no Senado
Federal, é o da superffcie, através do qual se estabelecem normas a respeito das
benfeitorias sobre solo alheio, especialmente aquelas que visam ao desenvolvi-
mento da produção agócola. Toda a teoria dos jura in re aliena, que nos legaram
os jurisconsultos romanos, constitui vasto manancial onde se podem colher idéias
e prindpios úteis ainda hoje, sem necessidade de concepções cerebrinas e fantas-
mag6ricas. Nosso Estatuto da Terra, tão gabado, adota arrendamentos que, em úl-
tima análise, poderiam ser contratos enfitêuticos, mas fugiu à realidade ao abolir a
expressão greco-latina, por filone(smo, talvez.
Outro aspecto digno de menção é o referente à aquisição do domínio pela posse
prolongada, o usucapião. Não faz muito tempo, o Governo Federal embandeirou
em arco anunciando aos quatro ventos uma leizinha que reduzia o usucapião rural
para cinco anos. É digno de nota que, há 2.700 anos, os romanos, através da Lei
das XII Tábuas, adotavam o usucapião, para os bens m6veis, de um ano; e, para
os imóveis, de dois anos. Com a expansão territorial, as grandes distâncias a ven-
cer, esses prazos foram pouco a pouco creséendo, chegando a 30 e 40 anos, ao
tempo do Império, na hip6tese de posse de má-fé. A questão visceral não está nos
prazos em si, mas nas circunstâncias sociais que cercam os casos concretos. Com
extensões territoriais imensas, o Brasil, a fim de realizar uma reforma agrária ou
agrícola, não necessita, em sã consciência de sacrificar propriedades tituladas re-
gularmente e com alguma benfeitoria. E antes de efetivar desapropriações de sur-
presa, deveria o Governo conceder prazo razoável aos titulares para que dessem
início a um programa de beneficiamento, valorização e até de ocupação. E por fa-
lar em reforma agrária, cabe lembrar o vasto ensinamento que se colhe das chama-
das leges agrariae romanas, que tentaram resolver o problema da terra e do super-
povoamento, num período de cerca de 13 séculos.
Os romanos não conheceram a expressão "reforma agrária", mas a executaram
por mais de 20 vezes em sua atribulada república, através das chamadas leges
agrariae, desde as mais remotas, corno as de Spurio Cassio, até as dos irmãos
Gracos (Tibério e Caio) e as de Julio Cesar, realizadas manu militari, e ainda as
de Sila, todas elas com o prop6sito de atrair a plebe para o campo e desenvolver a
agricultura. Uma antigu(ssima lei de Licinius Stolo visara disciplinar a distri-

6 R.C.P.3/89
buição da pequena propriedade. Era uma lex de numero pecoris et de modo agri,
a que se refere Aulo_Gélio (em Noites Áticas, XX, 23).
Tinha por finalidade limitar as áreas de ocupação individual a 500 jeiras, sobre
as quais cada cidadão poderia manter 500 cabeças de ovelhas ou 100 de gado va-
cum. Remonta, segundo Carcopino, ao ano 145 a.C., isto é, a mais de 2.000 anos
atrás. Não muito distante dela a lex Sempronia agraria (ano 133 a.c.), de iniciati-
va de Tibério Graco, parecia trazer a salvação a todos os sem-terra daquela época.
O Estado devia abrir mão de grandes extensões territoriais a favor dos desprovi-
dos de bens fundiários. Cada família teria direito a cerca de 125 hectares, segundo
o atesta Monier1 (v. 1, p. 430), que em linguagem latina chamavam-se 500 juge-
ra. Cada filho acrescentaria ao patrimônio familiar mais 250 jugera. Depois veio
a lex Thoria (XI a.c.) que pretendia transformar em ager privatus o ager publicus,
vale dizer, distribuir pelos cidadãos as terras do Poder Público. E veio mais a [ex
Mamilia Roscia (109 a.c.), a fun de completar a reforma iniciada pela lei anterior.
A história dos irmãos Gracos é de todos conhecida e já deu margem a uma vasta
literatura pela dramaticidade de que se reveste. Quase todos os tribunos e magis-
trados de várias categorias que comandaram tais reformas tiveram tristes fins, trá-
gicos por vezes, como os irmãos Gracos, um deles trucidado e jogado no Tibre, o
outro assassinado e com a cabeça posta a prêmio, a peso de ouro. Os demais re-
formadores não tiveram destino mais venturoso. Viram-se colhidos nas malhas das
próprias leis que elaboravam, vítimas das penalidades que engendravam.
Ficaram, porém, os exemplos históricos. Ficaram as leis, que muito ensinam às
gerações de hoje, em contato com problemas que parecem de nossos dias e são
multisseculares.
Quando assisto ao drama que se desenrola no sertão brasileiro, com os assassí-
nios freqüentes de proprietários, posseiros, sacerdotes, numa sangrenta disputa pe-
la terra, não posso deixar de voltar os olhos para a lição do passado, da qual p0-
dem ser extraídas experiências e até medidas capazes de amenizar tantos males.
Por isso, reafirmo que nunca o Brasil precisou tanto do direito romano, como
agora. Longa seria a exposição em tomo de outros aspectos relacionados com o
direito de propriedade. Urge, no entanto, prosseguir.
No campo do direito fmanceiro - quando vivemos a maior inflação de nossa
história - provocada em parte pela má administração da coisa pública, cabe revi-
ver a fase romana da decadência, especialmente a inflação que assaltou o Império
ao tempo de Diocleciano, tão bem examinada por Rostovtesev, na sua monumental
História social e econômica do irrlpirio romano. A moeda má expulsando a moe-
da boa da circulação, os preços subindo em espiral, o valor monetário aviltado, a
insatisfação geral, a rebelião, a guerra social, um complexo quadro digno de estu-
do e meditação. Até no campo tributário a experiência romana é válida, com sua
estrutura bem montada, conforme se pode verificar com a leitura dos livros respec-
tivos, constantes da compilação Justinianéia: de jure fisci (D. 49.14, 1 a 50). A
fiscalização tributária, as captações, os curiosi, fiscais de fronteira, toda a máqui-
na admiravelmente concebida e que, sob certos aspectos, constitui um ancestral do
direito tributário moderno. É que em geral só se estuda em nossas faculdades tra-
dicionais o direito civil romano, esquecendo os demais ramos da disciplina, nos
quais há muito a aprender.
Há muito a aprender, repito, no campo do direito privado e do direito público.
A divisão administrativa do Império constitui obra-prima de sabedoria. As prov(n-

1 Monier, •.•. ME D. Romain. v. 1, p. 430.

Direito r011UlM 7
cias senatoriais e as imperiais, estas nas fronteiras, na proximidade dos estrangei-
ros, inimigos potenciais.
Não são poucas as lições que se podem colher a respeito desses assuntos, com a
leitura das obras de Mommsen, Kruger, Jhering, Savigny, Carcopino, Serrigny
Dumezil, Rostovtesev, De Martino e muitos outros.
Um saber de experiências feito, sem dúvida.
Os romanos tinham pennanente preocupação com as fronteiras. Considera-
vam-nas misticamente na categoria das coisas divini juris, ao lado das coisas san-
tas, como as portas e os muros das casas e as religiosas, como os túmulos (Gaio,
L 1,2,6,8). As muralhas eram coisas santas, "Sanctae quoque res, veluti muri et
portae, quodammodo divini juris sunt, et ideo nullius in bonis sunt." E tal era a
sua crença na santidade das muralhas, que puniam com a pena de morte os que as
violassem: "Idem autem muros sanctos dicimus, quia poena capitis constituta sit in
eos qui aliquid in muros delinquerint" (Inst. 2,1,8 e 9, em Justiniano).
Quanta lição de sabedoria pode-se extrair desses textos antigos, mas de perene
realidade?
No campo do direito penal e penitenciário, o mundo moderno se encontra numa
estrada sem saída. As penitenciárias regorgitam. Apesar de todas as revoluções
doutrinárias levadas a efeito pelos refonnadores, que desde Beccarla, Ferri, Garo-
falo e muitos outros tenLam introduzir novo sistema penal, pode aftrmar-se que a
situação piorou consideravelmente. Nada mais desumano do que trancar entre qua-
tro paredes um ser que tem alma, um ser que errou, é verdade, que feriu a paz so-
cial, não há dúvida, mas um ser cuja segregação seria para melhorar, não para
aniquilar-se. O sistema penal brasileiro de nossos dias é a maior calamidade que
se pode apresentar aos olhos do mundo. São escolas de vícios, matrizes até de no-
vos delitos, corruptoras daqueles que, pela primeira vez, passam-lhe os umbrais,
ainda jovens e recuperáveis.
Os romanos, muito embora não tivessem sido geniais nesse campo, adotavam,
todavia, algumas penalidades dignas de serem imitadas, como as condenações ad
metal/a, isto é, para trabalhar nas minas, dando assim ao servus poenae, infeliz
condenado, uma ocupação, embora brutal. Em outros casos de menor gravidade
eram muito práticos, reduzindo a dinheiro (multa) a penalidade, porquanto sabiam
que, a certos delinqüentes, d6i mais a bolsa esvaziada do que a honra ultrajada. A
vinculação, levada a efeito no alto Império, entre os delitos e as obrigações, é
digna de reflexão. O delinqüente tornava-se devedor; a vítima, credor. É a vasta
teoria dos delitos privados, de/icta privata, que não se confundiam com os delitos
públicos, os crimina. 2
Crimina seriam, no início, a traição, o sacrilégio, adeserção, o incêndio vo-
luntário. Os atentados contra a pessoa e o patrimônio eram delitos privados. A v(-
tima, credora do autor do delito, poderia acioná-lo nonnalmente perante os 6rgãos
judiciários comuns; nos delitos públicos as causas seriam julgadas pelos júris cri-
minais (quaestiones perpetuae). É bem verdade que, com o tempo, muitos delitos
privados se tornaram públicos. O agigantamento do Estado absorveu a pouco e
pouco muitas atribuições judiciais. Mesmo assim, a vítima poderia pleitear uma
indenização pecuniária (poena priva/a), como ressarcimento do dano sofrido. A
obrigação delitual não se confundia com a obrigação contratual. Em casos de inju-
ria e furtum, a infração poderia ser objeto de um pacto (pactum) entre o de-
linqüente e a vítima, (D. 2,14, fr. 17,1 e D. 2,14, fr. 2,14 e ainda D. 3,2 fr. 6,3).

2 Monier •.... ME D. Romain. v. 2. p. 38.

8 R.C.P.3/89
o pagamento em dinheiro apagava o delito, a vítima se contentava com a satis-
fação monetária e o criminoso sofria as dores do desfalque em suas [manças. Pre-
tio dato pactus est, é a lição de Ulpiano (D. 3, 2, 6) e mais: "pactusve, inquit,
erit: pactus sit accipimus si cum pretio quantocunque pactus est: alioquin et qui
precibus impetravit, ne secum ageretur, erit notatus: nec erit veniae ulla ratio:
quod est inhumanum".
Vivemos em uma época em que os casos de inj\1ria, cal\1nia e difamação proli-
feram, através dos sofisticados meios de comunicação: a imprensa, o rádio, a tele-
visão e até o cinema. As ações judiciais, quando se eternizam, terminam, muitas
vezes, pela absolvição do réu. A privação da liberdade não leva a nada. Mais va-
leriam as condenações pecuniárias, à moda romana. O infrator em potencial pensa-
ria três vezes antes de cometer o delito, certo estaria de que uma pena pecuniária
iria pesar no seu orçamento doméstico, ou na empresa proprietária do órgão inju-
riador, difamador ou caluniador. Bem sei que nossa legislação prevê os casos de
indenização por dano, mas o faz de maneira túnida e incompleta. A população
carcerária no Brasil já ultrapassou os limites do razoável. Não há mais lugar se-
quer para os grandes delinqüentes, quanto mais,para aqueles que podem escapar
pela porta larga da infração primária. De real, nada sofrem. Muito sofreriam se a
Justiça lhes ferisse a bolsa, em benefício do lesado ou de instituições de assistên-
cia social, com fundos espec(ficos.
Todas eSias reflexões, e muitas outras, inspira-nos o direito romano, nos varia-
dos setores da vida jurídica. Centenas de exemplos poderiam ser trazidos à co-
lação, para enriquecimento desta tese, oportuna e verdadeira - nunca o Brasil pre-
cisou tanto do direito romano, como agora.
Estamos com a Justiça estatal emperrada e isto não é novidade. A chamada
"crise do Supremo", apesar da boa vontade das autoridades superiores do Poder
Judiciário, não foi superada. Sugere-se a criação de novos tribunais. A crise con-
tinuará, isso porque ela vem de baixo para cima, começa nos cartórios, com os
oficiais de justiça e vai em escala ascendente até o mais alto tribunal. É uma crise
polifacetada, produto de muitos fatores, de difícil extirpação. Há alguns casos ju-
diciais que nunca foram decididos. Lembro que a questão iniciada pelo advogado
Rui Barbosa, como patrono do Amazonas, contra a União, tendo como objeto o
Acre Setentrional, depois de transformar-se em 14 processos, nnnca foi julgada
em última instância. Os 14 desapareceram, depois de entregues a uma comissão
que os examinaria. É um exemplo apenas. Não houve má-fé, intenção, dolo, mas
ao certo houve qualquer falha na máquina judiciária, que não funcionou conve-
nientemente. A questão acabou sendo resolvida, 30 anos depois, pelas vias admi-
nistrativas, sem estrépito judicial. O Acre, antes território, hoje é um estado da
Federação.
Em todos os setores da vida social há erros a corrigir. É preciso restabelecer o
império da lei (imperare, na definição de Modestino, é uma de suas principais fi-
nalidades). É necessário que a lei que proíbe, proíba mesmo (vetare, a sua segun-
da fmalidade); a que permite, permita realmente; e a que puna, faça-o com justeza.
Que belo panorama nos oferece o direito romano, vasto manancial em que os
legisladores do presente podem obter matrizes para as suas elaborações legislati-
vas! Bem sei que ele vem sendo combatido através dos tempos. Teve e tem inimi-
gos poderosos. Seu ensino foi proibido no passado, na Universidade de Paris, pelo
Papa Honório m, através da bula Super speculam, de 1219; "quia tamem in Fran-
cia et nonnullis provinciis laici Romanorum imperatorum legibus non utantur... "

Direito romano 9
Como bem salienta Olis Robleda, mestre da Universidade Pontifícia Gregoriana,
essa foi uma hostilidade epis6dica, pOrquanto la iglesia ha vivido en su historia
dei derecho romano. Nos prim6rdios de sua organização, principalmente, a Igreja
assimilou de tal forma os preceitos jurídicos vigentes, que até os poderes do Papa
eram expressos como os dos Imperadores, com as palavras auctoritas, potestas e
suas deliberações, ordens ou atos, com os vocábulos constitutio, edicta, praecep-
ta, decreta, rescripta. Quando desejava expressar a sua autoridade, dizia: defini-
mus, praecipimus, da mesma forma como o faziam os príncipes.3 Até mesmo nos
processos eclesiásticos se fez sentir a influência do direito romano, como o salien-
ta Steinwentr, citado por Robleda: "Das Straf - und Disziplinarverfahren der alten
Kirche reruht nicht ausschiliesslich auf eigener Rechtsschoepfung der Kirche,
sondem ist durch das Recht des roemischen Staates und die prozessuale Praxis der
roemischen Behoerden in weitem Umfange beeinflusst worden."4
As oposições hist6ricas ao direito romano já foram por mim examinadas com
certa largueza em conferência realizada no México, em 1972, sob o tema O direito
romano e seus adversários.
Todas essas contestações, quer da igreja, quer dos regimes totalitários da direita
ou da esquerda, tomaram-se infrutíferas. Resta examinar o problema em nosso
país.
A 9 de janeiro de 1825, quando se tentou criar um Curso Jurídico no Brasil,
nos estatutos elaborados pelo Visconde da Cachoeira, Luiz José de Carvalho Mel-
lo, datados de 5 de março daquele ano, fora prevista a disciplina Institutas de Di-
reito Romano, a ser ministrada logo no início do curso, no primeiro ano.
Infelizmente, esse desejo não chegou a tomar-se realidade, como é sabido de
todos. As pretensões do Visconde da Cachoeira continuaram à espera de melhores
dias.
Com a criação dos cursos jurídicos de Olinda e São Paulo, pelo ato hist6rico
constante da Lei de 11 de agosto de 1827, houve omissão do direito romano, ape-
sar de, durante o debate no parlamento, José Clemente Pereira, em 1826, ter apre-
sentado emenda visando incluir a disciplina Instituições de Direito Romano.
Alijada embora, a disciplina continuou a merecer a atenção dos legisladores,
razão por que, em 1855, Silveira da Mota, em sessão de 14 de julho, bradava não
ser poss(vel estudar o direito civil sem o romano. Outros eminentes brasileiros,
formados em Coimbra e com tradição romanística, esforçavam-se por mantê-la
viva. Já o Decreto n!? 608, de 16 de agosto de 1851, autorizava, em seu art. 3!?, a
criação, pelo Governo, de duas cadeiras novas: uma de direito romano e outra
de direito administrativo. Somente em 1853, pelo Decreto n!? 1.134, de 30 de
março, voltou a instituir-se a disciplina intitulada Institutos de Direito Romano,
que não chegou a ser lecionada, sob o fundamento de ausência de recursos fi-
nanceiros, previsto no art. 289 do mesmo decreto, que mandava suspender a
execução dos preceitos que importassem em aumento de despesas até deliberação
do Legislativo. Finalmente, a 28 de abril de 1854, pelo Decreto n!? 1.386, foram
organizados novos Estatutos para o ensino jurídico, sendo criadas as Faculdades
de Direito. Nelas, logo no primeiro ano, foi instituída a disciplina Institutos de
Direito Romano. Foi, assim, somente a partir de 1854,27 anos depois da criação
dos Cursos de Olinda e São Paulo, que a matéria se viu incorporada aos currícu-
los acadêmicos. Com a instituição da República, a reforma Benjamin Constant,
3 Robleda, Olis. EI derec/w romano en la iglesia. Roma, 1972. p. 5.
4 Steinwentr. Das Einfluss des roemischen Rechtes auf den antken kanoschen Prozess. In: Atti dei congres-
so internazionaJe di diritto romano. Pavia.l (24), apr. 1934. apud O. Robleda.

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pelo Decreto n2 1.232-H de 2 de janeiro de 1891, a cadeira foi incluída no pro-
grama do segundo ano. Na primeira metade do século ela se manteve, ora no se-
gundo, ora no primeiro ano, até 1931, quando a reforma Francisco Campos, pe-
lo Decreto n 2 19.852 de 11 de abril, que bipartiu o curso em bacharelado e dou-
torado, transferiu-a, com pouca felicidade, para o doutorado. Os bacharéis di-
plomados entre 1931 e 1935 não estudaram direito romano e isso deve ter-se refle-
tido na sua formação cultural e na sua atividade profissional. Pela Lei n!? 114 de
11 de novembro de 1935, voltou a disciplina para o bacharelado (art. 4 2 ), onde
permaneceu por longos anos. 5 (Ver Mattos Peixoto, Curso, p. 198).
Hoje em dia, quando o Brasil mais precisa do direito romano, a disciplina se
mantém precariamente no curso de bacharelado, em caráter opcional, nas univer-"
sidades federais; em caráter obrigat6rio em poucas universidades, como a estadual
de São Paulo (que dá um belo exemplo de coerência com as suas gloriosas tra-
dições), em várias, apenas nominalmente, nos cursos de doutorado, insuficientes,
incompletos, por motivos de vária natureza.
Um desses motivos é o desaparecimento das grandes figuras de romanistas des-
te país, entre eles Mattos Peixoto, Alexandre Correa, Hemani Guarita Cartaxo,
Elpidio Paes, Afonso Lages, Mario Neves Baptista, Reynaldo Porchat e muitos
outros. O estudo do latim suprimido não apenas no Brasil - mas em numerosas
universidades estrangeiras (até nas Pontifícias Cat6licas), retirou um dos andaimes
em que se sustenta a investigação científica austera. A queda vertiginosa dos ní-
veis de ensino, a pouca base cultural dos cursos médio e primário oferecem a es-
calões superiores uma matéria-prima nem sempre em condições de ser trabalhada.
Isso porque o direito romano exige, ao lado do conhecimento jurídico estrito, o da
filosofia, o da hist6ria, o da lingüística, o da arqueologia, de línguas mortas como
o grego e o latim e de línguas vivas como o francês, o italiano, o alemão, princi-
palmente. A carga mental que se exige de um estudante parece-lhe exagerada, em
face dos frutos que vai colher. Que fazer com o direito romano, depois de receber
o grau, perguntam muitos? Qual a sua utilidade?
Muitos são os proveitos, respondo agora. Estabelece disciplina mentall6gica no
raciocínio jurídico. Alarga os horizontes das mentes, permitindo que a força men-
tal criadora conceba projetos mais adaptados às necessidades humanas. Consolida
formações morais e culturais. Permite análise hist6rica espectral dos institutos
jurídicos vigentes. Ensina pelo exemplo do passado, do qual se podem extrair
normas para o presente, como nos casos, já por mim citados no correr desta
oração, referentes aos problemas fundiários, ao usucapião, à enfiteuse, às obri-
gações delituais, aos pactos, aos processos orais e escritos, à organização da famí-
lia, a proteção dos filhos, a defesa do patrimônio.
Bastaria a função educadora do direito romano para justificar o seu estudo. O
romanista, sem o querer, toma-se mentalmente superior ao comum dos homens e o
jurista, sem a base romanística, é como uma árvore sem raízes ou uma paisagem
sem horizontes.
Por isso, repito: nunca o Brasil precisou tanto do direito romano, como agora.
Contemple-se o panorama nacional de alto a baixo e se sentirá a fraqueza dos
homens e das instituições. É um deserto de idéias, para não dizer um deserto de
grandes homens e de altos ideais. Campeia o egoísmo. Predomina o poder econô-
mico nas eleições. Escolhem-se os piores, isso porque repugna aos melhores com-
petir com armas tão desiguais: a corrupção pelo dinheiro mal ganho, o contraban-

5 Mattos, Peixoto. Curso_o • p. 198.

Direito romnno 11
do, a concussão, os desfalques, a advocacia administrativa, o prestígio pessoal
como força decisiva, a ponto de dizer-se que cada qual vence pelo seu "QI.", vale
dizer, quem indicou. E os homens de bem, que os há, e os homens sábios, que
existem, e os homens úteis, que não faltam, estes se retraem, apavorados com o
tragicômico espetáculo da política nacional, entregue aos oportunistas, que galgam
aos postos à custa de manobras muito hábeis, em que se confunde esperteza com
inteligência, oportunismo com sabedoria. Criou-se neste país uma teoria do golpe,
do "fIm justifIca os meios". Esqueceram-se as lições da religião, dos Evangelhos, .
e daqueles velhos e grandes profetas do Direito, os construtores do direito romano
clássico, alicerce da vida jurídica das nações.
Nunca o Brasil precisou tanto do direito romano, como agora. Nas cdncussões
romanas os magistrados eram chamados à responsabilidade através das leis conhe-
cidas pela denominação genérica de leges repetundarum, ou de repetundis. Os
magistrados romanos, durante a república, serviam gratuitamente. Tinham em alto
apreço a sua honorabilidade e as penalidades se faziam severíssimas. As propinas
e quantias indevidamente recebidas eram devolvidas com sobrecargas penais.
Uma série de leges repetundarum, entre elas a Lex Calpurnia, de 149 a.c., pu-
nia severamente os concussionários, obrigando-os à devolução do que haviam re-
cebido indevidamente. Outra /ex repetundarum, a Lex Acilia, do ano 123 a.c., ti-
nha igual fInalidade. A palavra magistrado tinha um sentido mais amplo, abrangia
os ocupantes dos altos cargos públicos.
Tudo isso são exemplos, ensinamentos, padrões de sabedoria, que não podem
ser olvidados e o seu desconhecimento constitui uma lacuna imensa na formação
dos juristas modernos.
A verdade é que o direito romano, vencendo todos os 6bices que se lhe antepu-
seram, continua a oferecer ao mundo contemporâneo um manancial inesgotável de
idéias e sugestões. Assimilado pela Igreja (Ut ei tabulas secundum legem roma-
nom, quam ecclesia vivit, como o dizia a Lex Ribuaria, § 58), por ela combatido
episodicamente, louvado por sábios e santos, como Tomaz de Aquino, criticado
por f116sofos, como Rogér Bacon" e por escritores de bom humor, como Rabelais,
que põe na boca de Pantagruel palavras torpes: ... "et disait aucunesfois que les li-
vres de loix luy semblayent une belle robbe d'or triunphante et precieuse à mer-
veilles, que feust brodée de merde ..• " (Liv fi, V). Rogér Bacon agredia duramen-
te: duae igitur causae sunt perfectae istorum a quadraginta annis, est abusus iuris
civilis Italiae, qui non solum destruit studium sapientiae, sed Ecclesiam Dei et
omnia regna. (Ed. Brewer, London, 1859, p. 418 apud O. Robleda). Estudado por
sábios, como Goethe, na juventude, e objeto de uma de suas teses acadêmicas, ri-
dicularizado no drama goethiano Goez von Berlichingen, pela palavra leviana do
personagem Olearius, enaltecido ainda pelo gênio alemão quando, em conversações
com Eckermann, comparara poeticamente o direito romano, no curso da hist6ria,
com um cisne que parece desaparecer sob as águas, mas depois volta à tona triun-
fante. Em lugar de um cisne, não se aplicaria melhor a essa imagem literária, com-
parar o direito romano com a Hidra de Lemos, ser de difícil combate, enfrentado
por Hércules, cujos membros cortados renasciam e se multiplicavam?
Poucos sabem que Karl Marx, em sua juventude, deixou-se empolgar pelo Di-
gesto de Justiniano, traduzindo-o do latim para o alemão, em grande parte (ver a
biografIa de Marx por Max Beer).
6 Bacon, Rogér. London, Brewer, 1859. p.418.apudO. Robleda.

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Atacado pelos ftl6sofof> socialistas como um direito individualista e cruel, o di-
reito romano, todavia, não deixa de despertar a curiosidade mental dos estudiosos
de todos os tempos, de todas as latitudes, de todos os credos políticos, o que mais
põe em evidência a sua universalidade.
Numa nação em crescimento permanente como a nossa, em que as instituições
devem aperfeiçoar-se dia-a-dia, de grande utilidade é o estudo dessa disciplina,
hoje relegada a segundo plano, injustamente.
Congressos como este, todavia, têm o seu mérito - servem para despertar as
consciências dos homens responsáveis pelos destinos desta grande nação - de lín-
gua românica, de tradição luso-latina, destinada a desempenhar papel de liderança
no mundo ocidental, se for bem dirigida e disciplinada por autênticos vires, que
tenham sempre em mente o lema romano salus populi suprema /ex esta.
Nunca o Brasil necessitou tanto do direito romano, como agora.
Aspecto para o qual muitos não atentam é que há diversos direitos romanos,
condicionados às épocas hist6ricas desde a fundação, no século VIII a.c., até Jus-
tiniano (o pré-clássico, o clássico e o p6s-clássico) e ainda o posterior a Justinia-
no, obra dos intérpretes, glosadores, comentadores. Savigny falava, no século
XIX, num "direito romano atual" (System des heutigen roemischen Rechts), o que
significa que ele se desdobra através dos séculos, sempre renovado, bafejado por
outros ares. O jurista Floris Margadant, da Universidade Nacional Autônoma do
México, faz alusão à segunda e à terceira vida do direito romano, nesse desdobra-
mento através das idades. Há períodos fecundos, nos quais muito pode aprender-
se: a república, por exemplo, foi fértil na afirmação do poder do povo - no seu
mais vasto sentido - manifestado nas Assembléias Populares, comitia.
Que bela experiência se colhe, por exemplo, com o estudo das chamadas leges
Valeriae Horatiae de provocatione, nas quais se estabeleceu o direito de recurso
ao povo, Provocatio ad populum, quando houvesse condenação à pena capital. O
povo, reunido em assembléias populares, era o supremo juiz.
Tantos exemplos, que poderiam multiplicar-se, servem para demonstrar a utili-
dade dos estudos romanísticos nesta fase histórica em que vivemos, que não pode
desvincular-se do passado nem criar novas concepções para o futuro, sem apren-
der as lições da História.
Clóvis Bevilacqua, em célebre oração aos moços da Faculdade do Recife, pu-
nha em evidência a força educativa do direito na formação cultural das novas ge-
rações. Essa função didática, de disciplina 16gica e moral, vem exatamente do di-
reito romano, alicerce maior na organização mental daquele jurisconsulto.
Retirando de nossos currículos universitários essa disciplina, em que fontes se
abeberão as curiosidades mentais dos futuros juristas, plasmadores da organização
política da nação brasileira? Já demonstrei suficientemente quantos proveitos p0-
dem ser colhidos em tão rico manancial e mais uma vez afinno que nunca o Brasil
precisou tanto do direito romano, como agora.
Contemplando o panorama brasileiro hodierno, chego a essa inelutável con-
clusão. Quereis mais exemplos, além dos já citados?
Observai os noticiários dos jornais a respeito dos massacres e linchamentos de
delinqüentes em plena praça pública. Consta existirem esquadrões e grupos de jus-
tiçadores, fazendo pelas próprias mãos a justiça que está faltando. Isso não lembra
os mais recuados tempos da Roma da realeza e do início da república, quando se
concebeu a figura do homo sacer, o ser humano proscrito (sacer significava sa-
grado e execrado, proscrito). Poderia ser eliminado por qualquer um do povo, sem
necessidade de processo prévio? A única diferença é que as execuções de hoje são

Direito romano 13
bárbaras, sem causa apurada; enquanto na velha Roma o hemo sacer era o patrono
que fraudasse o cliente, segundo lei dos tempos de Rômulo, incorporada às XII
Tábuas, em latim arcaico sei patronos clientei fraudem faxsit, patronos clientis
deiveis sacer esto7 Ser sacer importava na condenação à morte sumaria onde quer
que o criminoso fosse localizado e por qualquer pessoa; sacer est detestabilis, ex-
secrandus, maleficus, scelestus noxius, atestam-no Forcellinus e Facciolatus em
seu afamado dicionário. Mas para merecer tal punição era preciso que o infrator
praticasse um ato nefando: o patrono fraudar o cliente, a violação de túmulos, o
que tentr..sse matar ou matasse um tribuno da plebe, o que retirasse marcos divisó-
rios das propriedades. Observai bem quais os delitos que justificavam tão grave
pena: os limites das propriedades, assim como os muros, as portas, as muralhas
das cidades, os túmulos eram coisas divini juris, e como tais protegidas, sacraliza-
das. O mesmo ocorria com a pessoa dos tribunos da plebe, sacrosancti, inviolá-
veis.
Passados 2.500 anos, a sociedade de hoje é mais cruel do que aquela que insti-
tuiu o sacer esto.
Quereis outro exemplo? Na sociedade atual campeia a usura. Credores estran-
geiros, apresentando contas que não me parecem claras, cobram juros sobre juros,
taxas exorbitantes de serviços e risco, spreads e outras mais, estrangulando as
nações em desenvolvimento. Usura miseranda condenada pelas leis humanas e di-
vinas, pelos textos bíblicos e ... pelo direito romano.
A sociedade romana sempre se caracterizou pela luta entre o forte e o fraco, sua
legislação, suas mutações políticas e sociais, sua evolução s6cio-econômica gira
sempre em torno dessa questão central: a proteção do fraco contra o forte. Isso
está na própria essência da legislação romana: a Lei CCncia restringe as doações
e protege os clientes contra os patronos; a Lei Atma organiza uma nova forma de
tutela, no interesse dos impúberes; a Lei Plaetoria ampara os menores de 25 anos
contra os que abusassem de sua inexperiência.· O imenso direito pretoriano criou
medidas de toda ordem a favor dos mais fracos, haja vista a hipótese de laesio
enormis, em que se abusasse da experiência de menores, dando origem à resti-
tuição por inteiro (restitutio in integrum).
S6 na seara dos interditos possess6rios (adipiscendae possessionis, redperan-
dae possessionis e retinendae possessionis) um mundo de ensinamentos pode ser
colhido pelos juristas modernos.
Quanto à usura, a Lei decenviral fixou juros de 1% ao ano, segundo Bou-
cheaud,' aumentados pela cupidez dos credores e para evitar que eles subissem a
cifras astronômicas, o pretor fixou-os em 12%. Vede bem: quem limitou os juros
foi o magistrado romano, o praetor urbanus, com autoridade para fazê-lo. Era a
chamada usura unciaria que não se confundia com a usura centisima, aquela de
1% ao ano, ou a 122 parte da uncia por mês; esta, de 12% ao ano, ou de uma un-
da por mês. 10 (Vd. a Lei das XII Tábuas, de minha autoria, nota ao capo 3, 9).
Nesta época, em que se fala tanto em pacto social, sem que se chegue sequer à
definição real do que seja esse pacto (produto de leituras mal assimiladas de Mon-
tesquieu e Rousseau, talvez), seria aconselhável voltar as vistas para o grande
pacto social representado pela Lei decenviral romana, elaborada pelos decênviros,

7 Terrasson. Histoire de la jurisprudence romaine. Toulouse, J. M. Come, 1824, p. 45.


• Monier...• op. cito v. I, p. 62.
• Boucheaud. Commentaires sur la Ioi des XD tables. Paris, 1803. p. 201.
10 Meira, Silvio. A lei das XD tábuas. s.n.t. capo 3,9.

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a fim de pôr termo a divergências entre as categorias sociais. Mesmo nos seus as-
pectos negativos, o exemplo ilustra, ensina, ilumina.
Por isso repito, cheio de convicção: nunca o Brasil precisou tanto do direito
romano, como agora. Centenas de outros exemplos poderiam ser citados. Os ho-
mens que conhecerem esse rico passado hist6rico estarão em melhores condições
de conduzir os destinos da pátria. Daí a necessidade do restabelecimento da disci-
plina, quanto antes, nos currículos universitários, tão precisado anda o Brasil de
boas leis e de homens de boa formação cultural.

Direito romano 15

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