“Em algum momento nesses últimos anos adquiri uma habilidade que
Sei que é uma ansiedade tola, mas às vezes – tipo, todo dia – me ocorre
a ideia de que se eu não fizer algo decente agora, mesmo que aos 40
minutos do segundo tempo da infância, aos 40 anos a Nina estará
sentada na frente de uma terapeuta lamentando os efeitos nocivos da
educação que dei para ela.
Porque essa é a fase em que ela está. A menina que às vezes ainda me
pede para lhe contar histórias, agora já julga algumas partes do mundo
com seu próprio critério. Porque ainda que esteja, desde sempre, lendo
a vida com seus olhos, até pouco tempo ainda dependia do nosso filtro
para interpretar as coisas. Éramos nós quem, de certa forma, lhe
abríamos as cortinas para as descobertas. Agora a Nina tem fechado
essas cortinas e aberto as suas próprias, para ser protagonista da
história que deseja contar. Agora ela quer explorar e formar uma visão
independente das coisas, agora ela quer ouvir música sozinha às vezes,
quer ousar achar minhas piadas ruins. Agora ela junta as amigas só
para conversarem, sem que isso implique necessariamente em ter um
brinquedo junto. E esse agora dela, essa fase que vai mudar tudo para
sempre, ainda que seja exatamente o que precisa acontecer, é rápido
demais para mim.
E se ela, sem perceber, tem pressa em crescer, eu, por outro lado,
aperto o passo para correr e tentar prolongar meu papel em sua vida
por mais algum tempo, o tempo que ela deixar, estando presente,
edificando pontes que nos conectem de outras formas, tentando me
interessar pelo Harry Potter, pelas músicas pop de batidas repetidas,
pelos filmes de fantasia e as roupas coloridas.
Por um período que daqui a pouco acaba, ainda somos, Manu e eu, os
caçadores dos monstros que a assombram, somos seus guias, sua
companhia preferida de viagem, de conversa e de cinema. Ainda
seremos, por um tempo, seus tutores para aprendizados escolares e
extracurriculares, a voz da verdade para dúvidas existenciais e os
contadores de histórias na hora de dormir. Ainda teremos, por mais
uns anos, o colo onde repousam suas frustrações, os donos das beijocas
que curam doenças e os ombros que amparam lágrimas.
Ela fecha cortinas, mas sinto que nós não, que estaremos sempre no
mesmo lugar, nos bastidores, na plateia, atrás do palco a observando e
aplaudindo. Teremos esse lugar, para sempre, de ser quem lhe deseja o
melhor da vida. Seremos os que se contentam com um telefonema de
dois minutos que ela nos der, os que torcem incondicionalmente pela
sua felicidade. Seremos eternamente essa condição, esse papel em que
Deus nos colocou um dia, o dia em que ela nasceu, e que passou a ser a
nossa condição preferida, adjetivo e substantivo, o sinônimo do que
melhor nos define, porque desde então somos pais.
E se isso não for a melhor lembrança que ela carregue para a vida, para
a sessões de terapia e nas noites em que sentir falta do ninho, que ao
menos ela se lembre de um legado fundamental: somos descascadores
ninja de laranjas.”