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Copyright © 2004 by Fations Flammarion Copyright da teadgdo © 2005 by Eatary Globo S.A Ton dinitos esr. Nerhur pre det cli poe ser wa repre ~em qualquer ei forma, ee evn lee, Sctipa pave ct ~nem apoprads ow etcada em ster de Wns aE das, sem exes tag deo “Tea Baad confrme at eps da novo Acordo Orrico dl ings Peetgues (Deceto Legltio w 84, de 1998) Titulo original La civilization feodale — de Van mil 2 la colonization de TAmerique Preparagto: Beatriz de Freitas Moreira Revisto: Valqutia Della Pozza, Maria Sylvia Correa Indice remissivo: Luciano Marchiori Capa: Extore Bottini, sobre iluminuras de Les ts riches hheures du Duc de Berry (1410-16), dos iemos Limbourg (Musée Condé, Chateau de Chantilly) 3 reimprsso, 2011 Dados Intemacionais de Catalogo na Plog (i) (Camara Bras do Lio, 5, Baal) Bode leone ‘2 china Feudal: do ano 10002 colegio da Amt / Jere Rasch, do Merl Rade pei Jue Le Gall — ‘So Pal Globo, 2006 Til rig: La chitin dale de Tan ml a cli thon de Fane 1. Chiao medical 2. Europa — Hira medial 3. Made Medi Us oft cq Tel. 16 eoom0 Indice para catdlogy stems: 3. Coveagio meen His 940.1 Direitos de edicdo em lingua portuguesa para o Brasil dquitidos por Editora Globo S. A Av, Joguaré, 1485 ~ 05346902 - Sio Paulo - SP swneglobolivrs.com.br SUMARIO Invlice das iustragoes Agradecimentos Preficio — Jacques Le Goff inrnopucko PoR QUE SE INTERESSAR PELA EUROPA MEDIEVAL? |A construgio da ideia de Idade Médis, 23 — Estudar a Idade Média em terras americanas, 26 — Uma “herencia medieval de México"? 31 — Periodiaagio e longa Idade Média, 33, PRIMEIRA PARTE FORMAGAO E DESENVOLVIMENTO DA CRISTANDADE FEUDAL, CaPtmuto 1. GENESE DA SOCIEDADE CRISTA: A ATA ToADE MEDIA Instalagdo de novos povos e fragmentago do Ocidente Invasbes barbaras?, 49 — A fusio romanorgerminica, 52, A conturbagio das estruturas antigas (© declinio comercial e urbano, 54 —O desaparecimento da escravidio, 56 Conversio ao eristianismo e enraizamento da Igreja 'A conversio dos reis getminicos, 61 — Poderio dos bispos ¢ florescimento do movimento monéstico, 63 —A luta contra o paganismo, 67, © renascimento carolingio (séculos vin e 1x) ‘A alianga da Igreja e do Impeno, 69 — Prestig imperil e unificayav euist®, 74 © Mediterrineo das trés civilizagdes © declinio bizantino, 78 — © esplendor islamico, $1 — O desenvolvimento no impertal do Ocidente, 85 — Mudanga de equiltbrio entre as tés entidades, 89 Conclusio: em dirego a uma reversio de tendéncia ry 49 54 60 cy 78 96 ca, fomecet 2 uristocracia a mais s6lida justficativa de sua dominagao social e um dos melhores cimentos de sua coesdo interna, As relagées feudo-vassilicas e 0 ritual de homenagem A vassalidade € habitualmente considerada um dos tragos mais caracterfsticos da sociedade medieval. Entretanto, ao contrério das visdes cléssicas, que faziam das “instituigdes feudais” um sistema homogéneo e bem estruturado, tende-se, hoje, a restringit a importincia do feudo e do lago vassalico, que dizem respei- to a uma proporgao infima da populagio (1% ou 2%). Essa mudanga de pers- pectiva é operada com vigor por Robert Fossier quando qualifica as relagd sélicas de “epifenémeno negligencisvel’, 0 que, apesar de tudo, nao deveria fazer esquecer que elas estruturam, a0 menos parcialmente, as relagdes no seio da classe dominante. Entretanto, mesmo entre os dominantes, nem todas as concessées de bens ganham a forma do feudo e a vassalidade ¢ apenas um dos tipos de lago — ao lado dos pactos de amizade, juramentos de fidelidade, ass ciagdes entre senhores laicos e monastérios etc. — que asseguram as solidarie- dades e a distribuigao do poder no seio da aristocracia (Joseph Morsel). Nao se pode, entretanto, subtrair toda a importancia da relaglo vassélica, vas {que formaliza entre os dominantes (ela pode incluir também os prelados) um lago de homem para homem, entre um senhor e seu vassalo, ‘Trata-se de uma relagio ao mesmo tempo muito préxima e hierdrquica, que se colore de um valor quase familiar, como indicam os termos empregados: 0 senior € 0 mais velho, 0 pai; 0 vassus & 0 jovem, que também pode ser qualificado de homo ou fidelis. Em sua forma clissica, essa relagdo implica uma troca dissimétrica, O vassalo € 0 homem de seu senhor e se engaja a serviclo conforme as obrigacdes do costume feudal. Este varia fortemente segundo as épocas ¢ as regides, mas trés aspectos toram-se essenciais a0 servico vassdlico: a obrigagio de se incorporar 3s opera ‘¢0es militares empreendidas pelo senhor (por um tempo de infcio lutuante, mas que tende a ser reduzido a quarenta dias por ano, ao que se acrescenta um perfo- do de guarda do castelo senhorial), a ajuda financeira (em diversas circunstan- cias que o senhor considera poder decidir segundo seu alvitre, mas, em seguida, Inmitada, sobretudo na Franga © na Inglaterra, aos casos de adubamento © de casamento dos filhos, de pagamento de um resgate, de partida para as cruzadas ‘ou peregrinacao),e, finalmente, o dever de bem aconselhar o senhor, Entre essas trés obrigagées importantes, a primeira € particularmente determinante, pois € a base principal sobre a qual se formam os exércitos feudais. Em troca, 0 senhor deve a seu vassalo protegao e respeito; ele Ihe demonstra sua solicitude (e, entdo, 122 rome Bacher também a sua superioridade) por meio de presentes e assume geralmente a edu- ‘eugdo dos filhos do vassalo, que deixam a casa paterna durante a adolescéncia para viver junto ao senhor. Enfim, e sobretudo, o senhor prové o seu vassalo de tum feudo que Ihe permite manter sua posigdo e preencher suas obrigagdes. Mais do que um bem ou uma coisa, o feudo deve ser considerado a concessio de um poder senhorial, que pode dizer respeito a uma terra e seus habitantes, mas pode também limitarse a um direito particular, por exemplo, o de exercer a justica, de recolher uma taxa ou cobrar um pedégio. A relagao vassélica ¢ institufda por um ritual, a homenagem, que, em sua forma classica, parece caracteristica, sobretudo, das regides ao norte do Loire. Pode-se decompé-la em trés partes principais. A homenagem propria mente dita consiste em um engajamento verbal do vassalo, que se declara 0 homem do senhor, seguido do gesto da immixtio manism, pelo qual o vassa~ lo, ajoelhado, poe suas maos juntas entre as do senhor (este gesto, que expr: me claramente uma relagao hierdrquica na qual a protecdo corresponde & fidelidade, € tao importante na sociedade feudal que transforma as modali- dades da prece crista, que nao se realiza mais & moda antiga com os bracos separados e as mios elevadas para o céu, mas com as miios juntas, sugerindo, assim, uma relagdo de tipo feudal entre o cristio, o fiel, e Deus, 0 Senhor) ‘A segunda parte do ritual, denominada fidelidade, consiste em um juramen- to, prestado sobre a Bi mao, mas com mais frequéncia na boca (osculum), segundo um uso corrente |, € um beijo entre vassalo € senhor, pot veres na na [dade Média. Finalmente, ocorre a investidura do feudo, expressa ritual- mente pela entrega de um objeto simbélico, tal como um punhado de terra, tum bastio, um galho ou um ramo de palha. No geral, esse ritual forma um conjunto simbélico elaborado, do qual participam gestos, palavras e objetos, com a finalidade de construir uma relagao ao mesmo tempo hierarquica e igualitétia. Como bem demonstrou Jacques Le Goff, o ritual de vassalagem instaura, de maneira visivel e concreta, uma “hierarquia entre iguais”, estru- turando, assim, as diferengas internas de uma classe que, em seu conjunto, se quer acima do homem comum, ‘As otigens da relacao vassélica remontam época catolingia. Desde meados do século Vill observa-se a pratica de um juramento de fidelidade pelo qual o rei ‘ou 0 imperador esforga-se para garantir a fidelidade dos grandes. aos quais confia, as “honras” que séo 08 encargos publicos, especialmente o governo das provincias. Depois, na época de Carlos Magno e de Luts, 0 Piedoso, o engajamento vasséli- .comendagao” pela qual se € posto sob a protegao de um personagem eminente, reconhecendo deveres em relagdo a ele, general «0, que & uma forma de como forma de subordinagao, vinculando todos os homens livres a personagens A civitizagho reuoat 123 Slevados ¢, indiretamente, ao imperador, E verdade que, hoje, nie se acredita mais que exista um quadro cléssico da feudalidade, cujo hergo seria o Norte da Franga, em comparagdo com o qual as demais variantes seriam apenas formas ‘degradadas’. preciso, entdo, reconhecer extrema diversidade regional, que se pode evocar apenas brevemente aqui (‘nao existe wma feudalidade, mas feudali dades', sublinha Robert Fossier). Assim, no sul do Loire, o engajamento do vassa- lo pode ser selado por um simples juramento de fidelidade, enquanto em certas regibes mediterrinicas a relagio vassélica, mais igualitéria e menos impositiva, estabelece-se em geral com base em um contrato escrito, como € 0 caso na Catalunha, desde o século Xt, Inversamente, no dominio germénico, a hierarquia interna da nobreza é to pronunciada que o beijo, considerado por demais igual trio, & eliminado do ritual de vassalidade; além disso, em oposigdo & tendéncia a tornar indissociavel a homenagem e a investidura, mantém-se por muito tempo tum prazo de cerca de um ano entre 0 estabelecimento de um lago vassélico e a cesstio do feudo, enquanto a afirmacao dos “ministerales’,servidores de origem as vezes servil, que se integram ao grupo dos milites e vivem na dependéncia direta dos castelées, contribui para manter grande distancia entre a cavalatia e a nobre- 2a, retardando a sua unificagao, Por fim, para tomar um dltimo exemplo, o domt- nnio normando (inclusive Inglaterra), no qual os historiadores veem habitualmen- te © protétipo da fidelidade vassélica, beneficia-se da vigorosa reorganizagao realizada por Guilherme, 0 Conquistador; ali, a obrigagio militar dos vassalos per- manece particularmente forte, se bem que seja habitualmente substituida, a par- tir do século xu, por uma contribuigao em dinheiro (a écuage"), que permite aos grandes senhores ¢ ao rei recrutarem mercendrios, considerados mais seguros, ou ‘mesmo pagarem aos vassalos para garantir seu engajamento para alémn da duracao costumeira das campanhas Apesar das grandes diferengas regionais, é possivel assinalar algumas evo- lugoes de conjunto, a comecar pela difusdo da feudalizago. Nos séculos x e Xt existem ainda muitos alédios, terras livres possufdas diretamente pelos seus Proprietirios. Estes sto beneficiados com privilégios, mas so igualmente obrigados a0 servigo militar e & participaggo nos ttibunais do condado. Depois, ao longo dos séculos xt ¢ xi, as terras do Ocidente deixam, pouco a pouco, de ser alodiais: enquanto os mais modestos se integram em um senho- rio, 08 alédios mais importantes slo geralmente cedidos a um poderoso antes de ser retomado conte feudv. No século xii 0s al6dios subsistem apenas de modo marginal, que significa, de um lado, que © conjunto das terras é dora- 6. 0 éow indies, a principio, © escudo medieval © a utiizagdo de sua imagem nos brasBes; por ‘extensto, também a moede portanda tais armas. (N.'T) 124 Jerome Bascher vante integrado ao sistema senhorial e, por outro, mas de maneira menos generalizada, que uma parte importante dentre elas é possufda como feudo. E ver- dade que € preciso levar em conta as terras da Igreja, das quais uma propor- gio notavel escapa as relagdes feudo-vassdlicas, e das regiées, especialmente ‘as meridionais, em que elas tém peso apenas relativo. No entanto, permane- ce 0 fato de que uma parte significativa do controle exercido sobre as terras (¢ sobre os homens) passa pelo estabelecimento dos lacos vassélicos, 0 que thes confere inegavel importancia ‘Ao mesmo tempo, os lagos feudo-vassélicas sio vitimas de seu sucesso sua eficécia tende a diminuir a medida que seu uso € mais frequente e que a rede de dependéncias vassdlicas faz-se mais densa. Uma das principais dif culdades aparece quando se torna corrente um nobre prestar homenagem @ varios senhores diferentes. Essa pluralidade de homenagens, bem atestada desde o século x1, € vantajosa para os vassalos, mas atrapalha a boa realizagao do servigo vassélico e pode mesmo por em causa o respeito 2 fidelidade jurada a partir do momento em que se tenha de servir dois senhores rivais entre si. Por um momento, acredita-se ter sido encontrada a solugao instituindo a homena- ‘gem-ligia, homenagem preferencial que convém respeitar prioritariamente; mas @ solugZo tem curta duragao, pois, por sua vez, a homenagem-ligia também se multiplica, Por fim, a evoluca0 mais perigosa reside no fato de que o controle do senhor sobre os feudos que outorga atenua-se incessantemente. Se se trata- va, no infeio, de uma concessio feita pessoalmente ao vassalo e destinada a ser recuperada quando de sua morte, 0 feudo € cada vez mais transmitido em heranga pelo vassalo aos seus descendentes, como expressa 0 adigio “o [vassa- lo] morto investe 0 vivo", Por vezes, o senhor exige a homenagem de todos os filhos do defunto (parage) ou se reserva o diteito de escolher o filho que julga ‘mais capaz, mas geralmente, a partir de meados do século XI, apenas o primo- génito presta homenagem, e seus irmios tornam-se, eventualmente, seus pr6- Prios vassalos (frérage). Seja como for, doravante, 0 feudo parece pertencer a0 patriménio familiar do vassalo, que também se permite, as vezes, vendé-lo, S6 resta ao senhor esforcar-se para manter ao longo das geragdes o reconhecimen- to das obrigagdes vassélicas, E isso que manifestam a reiteracio da homenagem no momento de cada transmissio hereditiria do feudo e o estabelecimento de uum direito de sucessio (direito de substituigdo, por vezes bastante elevado € fixado arbitrariamente pelo senhor, mas geralmente estabelecido em um ano de rendimento do feudo). Finalmente, o senhor conserva o direito de punir as fal- tas dos vassalos ¢ até mesmo a possibilidade de confiscar o feudo (direito de arresto) erfi caso de falta grave. Mas, na prética, a confiscagio é cada vez mais dificil de realizar e limitada aos casos de traigo flagrante ou de agressao dircta A eivicizacno eevoan 125 contra o senhor. Em geral, a transmissao hereditaria dos feudos modifica o equi- Iibrio da relagao entre senhores e vassalos, distende o lago pessoal estabelecido centre eles, restringe as exigencias senhoriais e contribui para uma crescente autonomizagao dos vassalos. Disseminagao e ancoragem espacial do poder Mais do que detalhar as regras do direito feudal, é importante captar as formas de organizagao social e as dindmicas de transformagao, no interior das quais as relagdes feudo-vassélicas puderam ter certo papel. Sem ser propriamente sua ‘causa, a dfusio destas acompanhou um processo de disseminagao da autorida- de, inicialmente imperial ou real (quer dizer, do poder de comando e de justiga, que chamamos de han). Como vimos, desde a segunda metade do século x os lagos de fidelidade que sustentavam a aparente unidade imperial revelam-se cada vex mais frdgeis e as entidades territoriais confiadas & alta aristocracia local afir- ‘mam sua etescente autonomia. O século x é, assim, 0 tempo dos “principados”, grandes regides constitufdas em condados ou ducados, cujo senhor confunde aquilo que conceme ao seu préprio poder, militar e fundirio, com a autoridade puiblica, que no passado era conferida pelo imperador ou pelo rei. A patrimoniali- zagao da fungao do conde, que assume a defesa militar e exerce a justiga, leva & formagao de comandos auténomos ¢ transmitidos hereditariamente. O mesmo proceso se repete depois, em um nivel inferior. Condes e duques utilizam a vas- salidade como um dos meios que Ihes permite, além dos lagos de parentesco ou de amizade, garantir a fidelidade dos nobres locais e dispor de um citculo con- fivel e de um contingente militar tio considerivel quanto possivel. Depois, a coesio dos principados acaba, por sua vez, cedendo, no fim do século X ou no decorrer do século x1, 0 que 56 € acentuado pela evolugao no sentido da trans- rmissio hereditéria dos feuidos. Em ritmos diferentes e de acordo com modalida- des varidveis segundo as regies — aqui, desmoronamento precoce e total da ‘autoridade condal, como no Maconnais estudado por Georges Duby; li, presen- sa mais duradoura desta, fazendo apenas concessoes limitadas © revogéveis, ‘como no condado de Flandres; sem falar de uma infinidade de situagdes inter medidrias —, uma parte importante do poder de comando inscreve-se, doravan- te, no quadro dos vice-condados ¢ das “castelanias’, que, por sua vez, encampam o-exercicio da justica eo direito de construir castelos, antes pretrogativas da auto- ridade real e, depois, da autoridade condal. Por fim, senhorios de extensdo ainda mais reduzida tornam-se, no fim do século x! e durante o século xi, um dos qua- dros elementares do poder sobre os homens (uma dominagao que, num tal con: 126. Jvime Bascet texto, hesitarfamos em qualificar, conforme o nosso vocabulitio, de “politica”) ‘A norma da logica feudal consiste, assim, em uma disseminacao da autoridade Aité os niveis mais locais da organizacao social. E preciso, ainda, notar que, se ela faz dos reis personagens dotados de uma capacidade muito fraca de comando, a eneralizagao do quado senhorial amplia-se ainda mais no fim do século x1 e no séeulo Xil, enquanto ji se esboga uma retomada da autoridade real. Para a historiografia do século xix, estreitamente associada ao projeto da bur- suesia, engajada na construgio do Estado nacional e que concebia sta gesta como senhorial aparecia tuma Iuta contra o Antigo Regime feudal, tal fragmentag: ‘como 0 cimulo do horror e 0 complemento légico do obscurantismo medieval Considerava-se, entdo, um dever insistir sobre as desordens e as destruigdes pro- vocadas pelas guerras privadas entre senhores, a fim de melhor revelar a “evide cia’: a anarquia feudal e, em contraste, a ordem trazida por um Estado nacional centralizado, fundado sobre um direito unificado (do qual o diteito romano é cntao, constituide como referéncia mitica). E dificil nfo ver quanto essa visio preciativa da Idade Média esta ligada a ideologia do século XI ¢ aos interesses ime- dliatos daqueles que a promoveram. Era, entdo, mais do que tempo de os historia- lores submeterem essa heranga a critica; e € revelador, a este propésito, que se tenha podido, recentemente, intitular uma obra consagrada a Franga dos séculos Mle xi A Ordem senkorial. Como indica 0 seu autor, & preciso para isso “imaginar ‘que, antes do Estado moderno, certo equilibrio social e politico possa ter existido sragas aos poderes locais e de feigio privada” (Dominique Barthélemy), Mesimo se ela é limitada e regulamentada pelos cédigos da faide, nao se poderia negar a violencia dessa ordem, nem a rude exploragio que ela impde & maioria dos produ- tores. A expresstio no poderia, entdo, ser entendida como um julgamento de valor, mas somente como um julgamento de fato: a ordem reina no mundo feudal, no sem eficdcia, sem 0 que nao poderfamos explicar o impressionante desen- volvimento do mundo rural que se opera ao mesmo tempo que a dispersto Feudal dda autoridade, De fato, esta deve ser analisada menos em termos de fragmenta- do (percepgio negativa a partir de um ideal estatal) que de maneira positiva, ‘como processo de “ancoragem espacial do poder” (Joseph Morsel). A concentra- ‘io de poderes de origens diferentes nas mios de senhotes proximos e exigentes poderia mesmo ser considerada um dos elementos decisivos do crescimento oci- dental. Ao menos, deve-se admitir que essa forma de organizacio era suficiente- mente adaptada &s possibilidades materiais de produgao e & I6gica social global ppara que essa combinagio dé lugar a uma poténcia dinamica que, de resto, nao se limita apenas & quantificagao econémica, mas abrange o conjunto dos fenémenos que cancortem para a afitmagzio da eivilizagao feudal. A caviurzagha supa 127 A CONSTITUIGAO DO SENHORIO E A RELAGAO DE DOMINIUM Uma vez que a vassalidade, restrita aos grupos dominantes, concerne apenas a ‘uma infima proporgio dos homens (e menos ainda das mulheres), ela ndo pode- ia constituir a principal relagZo social no seio do sistema feudal. Esta deve cengajar o essencial da populagao e definir 0 quadro fundamental no qual se rea- lizam a produgao e a reproducao social: assim, s6 pode tratar-se da relagdo entre 0s senhores e os produtores que dependem deles (notar-se-4, aqui, que o termo “senhor” designa aquele que controla um senhorio, na relagao com seus depen- dentes, e no tem o mesmo sentido que na relagao feudo-vassélica; de resto, aquele que tem um senhorio recebeu-o, geralmente, como vassalo de um senhor mais poderoso). Serdo seguidas, aqui, as andlises de Alain Guerreau, que dé a esta relacdo entre senhores ¢ dependentes o nome de dominium: (ou domi- nagio feudal), pois ela engaja — segundo os termos da época —, de um lado, tum domsinus (mestze, senhor) e, de outro, produtores postos em posigiio de depen- déncia, Estes tltimos so qualificados de homines propii (homens do senhor) ou * (villani, quer dizer, os habitantes do lugar, originalmente a villa). ", que de infcio nao é pejorativo, € sem duivida 0 mais adequado, em primeiro lugar porque a nogo moderna de “camponés” nao tem equivalen- te nas concepgdes medievais. Nelas, os homens rurais ndo eram definidos por suas atividades (o trabalho da terra), mas pelo termo "vilio’, que abrange todos 08 aldezos, seja qual for sua atividade (af incluidos os artesdos), e que indica essencialmente residéncia local, Ele também nfo designa um estatuto juridico (livre/nao livre), questo que parece relativamente secundaria. A base funda- mental dessa relacao social é antes de ordem espacial: ela designa todos os habi- tantes de um senhorio, os vildos (ou, se quisermos, aldelos) que sofrem a domi- nnagao do senhor do lugar. Além disso, assim como o lago vassdlico, essa relacdo cenuneia-se nos mesmos termos que a relacdo do fiel com Deus (homaldominus). Perante o senhor feudal, os vildos esto, entio, na mesma posigdo que os homens diante de Deus, de modo que as duas relagées se reforcam mutuamen- te, como em um jogo de espelhos. Antes de precisar a natureza da relagio de dominium, & indispensavel definir 0 quadro espacial no qual ela se estabelece e que, pela razio jé dita, é aspecto decisivo. 128 Jerome Barchet O nascimento da aldeia e o encelulamento dos homens Seja resultante da vinculagdo dos’ escravos aos mansos, seja relacionado aos detentores dos alédios, o habitat rural do fim da Alta Idade Média é disperso e instével. Ele consiste de construgdes leves, cuja armacao € em madeira (e que deixam aos arqueélogos apenas tragos superficiais ou inexistentes). Fora alguns edificios mais importantes, que exercem o papel de pontos fixos, estas frageis ‘moradias sto periodicamente abandonadas. Se lembrarmos,alids, que a agricul- tura de entio € extensiva e parcialmente itinerante, podemos concluit que, ainda por volta de 900, as populagies rurais do Ocidente estao imperfeitamen- te fixadas. Depois, em momentos diferentes segundo as regides (no essencial, ra segunda metade do século x e no decorrer do século XI, mas por vezes mais tardiamente, como no Império), opera-se um amplo remanejamento da zona rural. Ao lado da transformagao das terras em terrenos cultivéveis e da conquis ta de novos solos, deve-se mencionar a reestruturago dos patriménios eclesis- ticos que, além do crescimento das doagdes piedosas de que eles se beneficiam entdo, enseja uma intensa pritica de cessdes, vendas ou troca, 0 que permite 0s dominios da Igreja uma maior coeséo espacial. Isso contribui — junto com outros fendmenos que afetam as terras laicas, como o declinio dos alédios, obri- sgados a se por na dependéncia de um poderoso — para uma fixagio mais clara do loteamento, bem como para uma estabilizago da rede de caminhos. Mas 0 essencial é, sem daivida, 0 reagrupamento dos homens (congregatio hominum) ea fixacdo do habitat rural, cada ver. mais feito em pedra. O resultado é “o nas- cimento da aldeia no Ocidente’, desde que se admita, seguindo Robert Fossier, que uma aldeia supde “um agrupamento compacto de casas fixas, mas também [.-] uma organizagao coerente do territério em tomo e, sobretudo, 0 apareci- mento de uma tomada de consciéncia comunitéria, sem a qual nao ha ‘aldedos, ‘mas apenas ‘habitantes”. Por volta de 900, nao existem aldeias conforme essa definigao; por volta de 1100, o essencial dos campos ocidentais é organizado dessa maneira. Entre os dois momentos, organizou-se o essencial da tede de habitagdes rurais que (com o acréscimo das novas aldeias implantadas ao longo dos séculos xi e xi, nas zonas de colonizagaio, e levando em conta o abandono de certos lugares) vai perdurar até o século xix. Evidentemente, se ndo é uma revolugdo, como tentou dizer Robert Fossier, 6, ao menos, uma mutagao consi- deravel, pois ela desenha a fisionomia dos campos por cerca de oito séculos. Longe de ser homogéneo, esse processo se realiza segundo cronologias e modalidades muito variadas conforme as regides (e no interior de cada uma delas). Pafticularmente precoce na Itélia central, onde comeca antes de meados do século x por iniciativa dos senhores, ele enseja o reagrupamento do habitat Acivitizacto event 129 em aldeias elevadas, cerradamente postadas em torno do castelo senhorial © cere cadas de uma muralha fortificada. Isso ndo quer dizer que essa opgao tenha ‘uma causa essencialmente mi tar (ela 6, antes, social e ideol6gica), nem que a forga seja seu tinico vetor (ela é muitas vezes acompanhada de contratos relati vamente favoriveis aos produtores e de certas vantagens juridicas). Permanece © fato de que ela mostra o exemplo de um processo fortemente marcado pela vontade dos dominantes ¢, por vezes, também pela intervencdo da Igreja. Essas aldeias fortficadas ganham 0 nome de castrum, de onde a expressio “incastella ‘mento’, aplicada por Pierre Toubert a esta variante — a mais dirigida e a mais autoritéria — do reagrupamento dos homens, que, no entanto, no é tio geral como se acreditou a principio: se o castrum & seu elemento principal, 0 reagru- pamento do habitat nao se faz sempre em torno de um castelo e pode tomar a forma de aldeias abertas, enquanto a maior parte dos castelos nao € construida com a finalidade imediata de reagrupar a populagio s6 adquire essa funga0 em tum segundo momento, Em outras regides do Sul, mediterraneas pirenaicas as aldeias castrenses coexistem com as “aldeias eclesiais’, igualmente fortifica- das, mas centradas em um edificio de culto; ao mesmo tempo, convém subli- har que, se 0 reagrupamento do habitat € precoce, a estruturagao dos limites da comunidade e, sobretudo, da territorializagio das zonas incultas pode ser retardada até o século xiV. Na Europa do Norte, 0 reagrupamento dos homens comeca mais tarde e pode-se notar nele um importante papel das comunidades aldeas em formagao. Ao menos, o reagrupamento das casas camponesas, com frequencia no interior de uma muralha de madeira, parece ser af menos forga- do e mais voluntério, e a associagao das habitagdes com um castelo pode se pro- duzir em um segundo tempo, depois de o reagrupamento ja estar realizado, Finalmente, nas zonas de colonizagio, especialmente na Peninsula Ibérica € no Leste da Alemanha, trata-se tanto de reagrupar um habitat antigo como de dar, desde o inicio, a forma de aldeias densas a uma implantagio nova, Em suas formas mais variadas, esse fendmeno pode ser definido como um processo de “encelulamento” nar o reagrupamento dos homens no interior de expressio forjada por Robert Fossier para desig. idades sociais localizadas, ‘or uma delimitagao estrutu rada pela rede de lotes ¢ de caminhos e pelos limites que definem sua extensdo. definidas por um centro — a aldeia, o castelo — Retornaremos, na segunda parte (capitulo 11), ao encelulamento ¢, em patti cular, ao papel que a igreja e o cemitério tem nele. Mas o resultado &, desde logo, claro: dali em diante, os homens serao “encelulados", a um s6 tempo rea: grupados em aldeias mais estiveis e fixados no interior dessas unidades de base que se chamam senhorios. O encelulamento supée, entao, a formacao de uma rede de senhorios que cobre, mais ou menos, todo o tertit6rio ocidental. “Por 130 Joe Baschet volta de 1100, todos os homens estdo presos nas malhas de um tecido de senho- rios, dos quais cada célula € 0 quadro normal de vida” (Robert Fos ier). O ence- wento da aldeta, a genera- lizagao do senhorio, mas também o enquadramento paroquial (sobre 0 qual retomaremos na segunda parte, capftulo il). Embora sejam paralelos e contri- bbuam para o mesmo resultado, esses trés processos nao so estritamente sobre postos: as aldeias, o senhorio ¢ a pardquia raramente coincidem. Enquanto no lulamento associa, portanto, varios processos: 0 nase século x1 um senhorio reagrupa geralmente virias aldeias, a partir do século Xi ¢, sobretudo, do xit! constata-se, ao contrério, que varios senhores exercem sua dominagao no interior de uma mesma aldeia. Além dos cossenhorios, que asso- ciam uma instituigdo clerical € um laico, ou dos consorzi italianos, que asso- iam, por vezes, uma dezena de senhores para um mesmo senhorio, acontece cada vez com mais frequéncia que, no interior da aldeia, terras e direitos espe- cificos remetam a senhores distintos (a tal ponto que um mesmo aldedo pode depender de varios senhores para bens diferentes). O “encelulamento” nao sig- nifica a formacao de uma rede uniforme de células homogéneas ¢ univocas, € toda a dificuldade consiste, entdo, em delimitar como se articulam os diferen tes fendmenos mencionados. Pode-se, assim, ressaltar que o senhorio, que, de resto, é menos uma entidade territorial do que um poder espectfico, se revela bas- tante mével, diferentemente da rigidez do quadro paroquial (assim, a estabilidade ddos lugares de culto contrasta com as frequentes mudangas dos sitios castrenses) No mais, em certas regides, como a Franca do Oeste, o habitat permanece par- cialmente disperso, sem que isso contradiga a légica do encelulamento, £ ‘que a igreja e o quadro paroquial exercem um papel maior na formagao de “al deias dispersas”. A expressdo sugere, de forma judiciosa, que o que faz a aldeia é menos 0 reagrupamento de stas casas do que a coesio da comunidade dos aldeaos (Daniel Pichot). No geral, os fendmenos que contribuem para o encelulamento podem se combinar de maneiras diversas, ora mais firmes, ora mais ténues; mas © fato de que eles se sobrepdem e se imbricam, sem coincidirem completamen- te, parece fazer parte da dinamica de conjunto do proceso Pode-se, entio, delimitar melhor as implicagdes do debate sobre o “ano mil"? Para os defensores da mutacao, 0 que se passa no século que circunda esta data é rnada menos que uma fase aguda do processo de encelulamento dos homens e de formagao do quaclra senharial O que se nameia mutagio, ou mesmo revoliglo, & ‘um momento particularmente intenso de ancoragem da dominagao senhorial, em relagio & multiplicagdo dos castelos e dos montes castrenses. Alguns procuraram identificar as reagdes suscitadas por essas transformagbes, principalmente a “paz de Deus’, proclamagao lancada pelos bispos e pelas assembleias coneciliares a par- tir dos anos 975-90, que condena os “maus costumes” dos senhores laicos, exor- A civitizagae Fevoat 131 tando-os a respeitarem os clérigos e os pobres, chamando a restaurago da ordem publica e da paz. Assim, eles se apropriam de uma preocupagdo abandonada pelo poder real eatraem o apoio popular. Entretanto, Dominique Barthélemy fez obser- var que este movimento no é nem de origem popular nem antissenhorial, pois @ Igreja denuncia a violencia da aistocracia laica na medida em que ela propria 6 sua vitima e, de fato, defende seus proprios senhorios em face de uma pressio arsto- crética que ameaga incomodé-la. Em sua luta contra a nobreza, por vezes, ela faz apelo ao povo, afetado pelas mesmas causas, o que no ¢ isento de perigo e artis- ca a transbordar seus préprios objetivos. Os movimentos da paz de Deus fazem, cento, intervir grupos populares, mas seu objetivo fundamental é a manutengao de uma ordem senhorial que a Igreja pretende dominar. Os criticos das teses muta- cionistas também enfatizaram que, nesse movimento, no se opera nenhuma ‘mudanga de classe dominante. Seja antes, seja depois do ano mil, sio sempre a aristocracia e a Igreja que dominam a sociedade, mas ambas conhecem uma vigo- rosa reorganizagao. Como dissemos, a partir de entdo a dominagio aristocrética ancora-se localmente € torna-se mais eficaz gragas & remodelagem espacial dos campos. Mas a questo cronolégica levantada pelo debate sobre 0 “ano mil” per- manece insoltvel: € evidente que o encelulamento nao poderia ser reduzido aos decénios préximos do ano mil; suas raizes remontam ao inicio do século tx e ele se completa lentamente, até pleno século x1. A progressividade dos fendmenos e suas, discrepancias, assim como a auséncia de uma cronologia uniforme na escala do Ocidente, impéem que se prevalega essa dindmica plurissecular? Ou, enti, seria possivel identificar, por volta de 980-1060, uma aceleragtio do processo (castelani- zacao, senhoralizagio, edificacao de igrejas, sem falar das transformagées da ordem eclesial, de que se falaré no capitulo seguinte) em um ntimero significativo de regides? A polémica sobre 0 ano mil esgota-se e essas duas opgées sao, talvez, ‘menos incompativeis do que parece. Enfim, o essencial consiste em reconhecer a natureza dos processos em andamento: quer se recorra & nogio de encelulamento, quer sejam preferidos outros termos, a reconfiguracao socioespacial — da qual 0 castelo e o senhorio, a igreja e a paréquia, a aldeia e a comunidade so as facetas diversamente combinaveis — leva & formagio de um sistema dotado de uma coe- réncia nova e que € 0 quadto de um desenvolvimento de amplitude inédita A relagdo de dominium Hoje nao se cré mais, como queria a historiografia tradicional, que todos os pro- dutores dependentes do senhor feudal fossem servos. Uma das contribuigdes mais marcantes da obra de Georges Duby € a de ter mostrado que a servidio 132. Jerome Barchet nio era a forma central de explorago do feudalismo. E verdade que esta exis- tiu e pode ser considerada o resultado da evolugao da Alta Idade Média, qua do, paralelamente ao eclipse da escravidao, a distingao entre livres e nao livres perde sua clareza e no consegue mais dar conta das situagbes intermediérias que se multiplicam. A servidao 6, finalmente, a forma estabilizada de uma ps «lo intermediéria entre a escravidao e a liberdade: 0 servo nio é mais uma pro- priedade do senhor, assimilado ao gado, mas sua liberdade 6 marcada por impor- tantes limitagBes. Se a escravidao é um cativeiro definitivo, o ritual de servidio, utilizado em certas regiées e durante 0 qual o servo traz uma corda no pescogo, parece indicar um cativeiro de que se € imperfeitamente resgatado pelo paga- mento de uma obrigacao. Trés marcas principais exprimem a limitago da liber- dade do servo: o chevage (ou captagio), tributo pelo qual alguém se resgata do cativeiro; a mainmorte, que significa a incapacidade & propriedade plena de um patrimOnio € que impde o confisco pelo senhor de parte da heranga transmiti- da pelo servo; e, enfim, o formariage, taxa paga quando do casamento e que manifesta a limitaao da liberdade matrimonial. Finalmente, seria necessério actescentar a importincia das corveias, trabalho devido ao senhor, que ndo sio exclusivas dos servos, mas que, no caso destes, so deixadas em maior grau a0 arbitrio do senhor. Este quadro deveria se tornar muito mais complicado para dar conta da diversidade regional e, sobretudo, pelo fato de que essas obrigacoes pesam, por vezes, sobre camponeses livres. De resto, nio & certo que a situagio material dos servos seja sempre mais dramética que a de seus vizinhos livres € pode-se perguntar se 0 peso espectfico de sua condigio no se refira sobretudo 2 mancha humilhante de uma servidio que dé lugar a miltiplas situagdes de ‘exclusio ou de discriminagio. Mas o essencial é sublinhar que a servidao é ape nas uma forma de exploracio dentre outras. Se, por vezes, seguindo 0 caminho aberto por Georges Duby, tenha-se talvez minimizado excessivamente 0 seu papel, pode-se, sem diivida, concluir atualmente que a escravid2o medieval nao nem dominante nem marginal. “Ela ndo € o coracao do sistema, mas uma de suas chaves", manuseada dentre outras formas de exploragao, ora abandonada, ora retomada (Dominique Barthélemy). Se a tendéncia do conjunto € sobretu- do de declinio, a servidao pode, segundo as regides e as épocas, abranger a metade dos aldedos ou desaparecer completamente. Pode-se admitir que, na media, ela afete entre 10% e 20% da populagao rural E preciso, entio, analisar a forma mais geral da dominacao feudal, aquela que se instaura entre um senhor e os villos que, de maneira completa ou par cial, dependem dele. A relagio de dominium estabelecida entre eles manifesta- -se por um feixe emaranhado e extraordinariamente variado de obrigagées, as quais € comum atribuir dupla origem. A primeira seria fundidria e se assentaria A ewittzacdo revoar 133 sobre a posse eminente do solo, reivindicada pelo senhor. A segunda derivaria da disseminagao do poder politico e da captago, no nivel senhorial, das prerro- gativas de autoridade pablica, ou seja, essencialmente, o imperativo de defesa militar, a manutengdo da paz e 0 exercicio da justiga. Como este poder de comando, de otigem real, € nomeado ban, quis-se forjar a expressio “senhorio banal” (por oposigio a um simples senhorio fundiério), para expressar o fato de ‘que a descida do poder, antes dos soberanos ou condes, para as mios dos senho- res constitui uma pega-chave do novo poderio destes tihtimos (Georges Duby). Mas essa expressdo, sem fundamento nos textos medievais, tem o inconvenien- te de sugerir que se poderia distinguir claramente, no poder do senhor, 0 que se refere ao ban e 0 que é de origem fundisria. Ora, 0 que caracteriza 0 senhorio 6, justamente, a fusio desses dois elementos em uma dominagio tniea, 0 que toma sem pertinéncia o cuidado de diferencié-los. O senhor explora diretamente uma parte do solo claramente mais reduzida do que no sistema dominial da Alta Idade Média. Se esta parte pode atingir um terco ou a metade das terras cultivadas, muitas veres ela se restringe a menos de tum décimo ¢ observa-se uma forte tendéncia dos senhores a se afastarem da ati- vidade produtiva em si, A maior parte do ager é, entéo, constitufda pelas tenén- cias (tenures: conjunto de parcelas dispersas em zonas distintas do terrt6rio) que 0s aldedos cultivam individual e livemente, e que transmitem aos seus descen- dentes. Mas eles tém, em relagao ao senhor, um conjunto de obrigagdes e devem Ihe pagar multiples taxas, algumas sendo “quérables” (cobradas no proprio local de produgio),’ outras (que implicam reconhecimento do lago de dependéncia) devendo ser levadas ao castelo, especialmente uma ou duas vezes por ano, em ‘uma cerim6nia ritualizada, incluindo gestos de submissao. Esse ritual é a forma visfvel da relacdo de dominagao feudal, e como ele poe 0 senhor (ou seu repre: sentante) na presenga de seus dependentes, parece justificar a observagio de ‘Marx sublinhando que a sociedade medieval ¢ fundada sobre uma “dependéncia pessoal”, de modo que “todas as relagdes sociais aparecem como relagdes entre de taxas e deveres impostos pelos senhores, mas convém sublinhar que sua prépria combinag#o, segundo pessoas’, Pode-se evocar, aqui, a ampla panépli jinda mais, seu cardter extraordinaria- proporgdes ¢ modalidades especificas, mente varidvel (inclusive entre hugares vizinhos, entre senhores de uma mesma aldeia ou entre dependentes de um mesmo senhor), so caracterfsticas principais do dominium. Uma dessas taxas, tardiamente generalizada, chama-se “taille” * e 7. Os “arots quérales” sao aqueles direitos que o senhor deve i buscar (quérir) junto aos seus dependents. IN.) ha. (NT) Herne Bechet © possivel, se se far questao disso, atribuir-lhe uma origem no bun, pois preten- cle-se que cla seja cobrada em contrapartida da protegio dos aldedos. O senhor nostaria de estipuls-la como bem entendesse, mas os camponeses exigem dele 0 tabelecidos pelo costume. E pre ciso pagar também ao censo, que parece ser 0 arrendamento da terra e que con siste em uma parte da colheita, entregue in natura (0 champart). A porcentagem varia fortemente segundo os tipos de solo e as regides, entre um tergo e um quin to, sem excluirtaxas particularmente baixas ou outras excepcionalmente eleva- dlas. Mas existem também outras opgdes, como na Ilia, onde o contrato live- ‘ubormement”,® quer dizer, a fixagao nos limites lan!” arrendamento de trinta anos renovavel, é particularmente vantajoso para os 0, reparti ce sementes ¢ parelhas de animais, solugo esta que conheceré grande sucesso camponeses, ou como a mea io pela metade quando o senhor forne- no fim da Idade Média. A evolugao mais importante do censo é sua progressiva transformacdo, a partir do inicio do século X11, em uma renda paga em dinheiro, ‘6 que nao ocorre sem dificuldade, na medida em que o senhor se esforga por impor sua propria estimativa da contrapartida monetiria, que raramente é do gosto dos produtores. E preciso acrescentar, ainda, o direito de hospedagem (abrigar e sustentar o senhor ¢ sua corte um certo niimero de dias por ano), 08 presentes” e ajudas excepcionais que o senhor exige em certas ocasides, tais como © pagamento de um resgate, uma peregrinagio, um casamento ou uma celebracao familiar, mas que tendem a ser convertidos em uma soma paga anual- mente, Outros elementos concorrem, igualmente, para a dominago dos senho- res, que mandam construir 0 moinko da aldeia, mas também o lagar e o forno, e, sobretudo a partir do século xtt, obrigam os habitantes a utilizé-los, em troca de pesadas taxas, como por exemplo um décimo dos grios trazidos (€ por isso que 0 imoleito € visto como um homem do senhor e deixado & margem da comunidade aldea). Enfim, os direitos de matagao (“lads et ventes"),e, para os senhotes que podem cobrévlos, os pedagios sobre as mercadorias, na passagem de rios ou em certos pontos dos caminhos, ou, ainda, no momento da venda no mercado local, oferecem um rendimento razosvel e, por vezes, considerdvel Um outro aspecto fundamental do poder do senhor ¢ a possibilidade de exercer cle proprio a justica, que se torna ainda mais efetiva visto que a justiga do conde se enfraquece e se revela incapaz de realizar sua tarefa. Também nisso 9. No frances antigo, abortement, do verbo abonter, significa estabelecer as frontetas ou marcos (bores) de um campo; esses termos cuitam em desuso, em beneficio de borage ¢ ormer. Dai 0 sentido, no contexto, de restinginse a um limite. (N. T) 10. Do italiana live Foro, censa, (N. T) 11. Lads: temo do dzeto feudal que indica o consentimento do senhor para uma transagi, impli ceando o respectto pagamento, (N. Acivivizagho revpas 135 as cronologias regionais $80 muito variéveis: em certos casos, como no Maconnais € na Catalunha, 05 “plaids” (tribunais) dos condes deixam de se reunir desde 1030-40 e os tribunais senhoriais tomam rapidamente seu lugar; em outros luga- res, especialmente mais ao norte, a justiga condal resiste até o fim do século Xl, ‘ou mesmo até meados do século xi, e € somente entdo que as cortes castelas estendem suas prerrogativas. Além disso, nem todos os senhores tém as mesmas competéncias judicisrias. A justica senhorial aprecia os delitos mais diversos cometidos na aldeia, mas ela é, antes de tudo, uma justica fundiéria: ela impse multa ou 0 confisco de um bem para numerosas infragées, por exemplo, em caso de nao pagamento de uma taxa, de alteragdo de um limite de terras ou de contravengao das regras de utilizagao das matas. Além do caréter bastante ren- tavel dessa justiga, vé-se a grande vantagem que o senhor pode tirar dela, sendo cele em geral juiz e parte, para reforgar sua dominagao sobre os dependentes. Nisso, € em muitas outras ocasides, ele € secundado por seus servidores, os agentes que supervisionam as colheitas ¢ as corveias, inspecionam as florestas ¢ aplicam as decisoes de justica, e ainda mais pelo preboste, responsével pela manutengo do senhorio, recompensado por uma parcela e por uma parte das taxas e das multas judicidrias, 0 que o incita a ser particularmente exigente e explica que ele atraia sobre sua pessoa grande parte da hor e seu preboste devem, em principio, respeitar os costumes locais, mas, nimosidade alded. O se- pelo menos até 0 século Xill, eles julgam sem que se tenha direito de apelat. Enfim, certos senhores encampam uma competéncia total, que pode chegar até a condenagio & morte (direito de alta justiga). Mesmo se ela € pouco utilizada, a forca, instalada na proximidade do castelo, € seguramente um simbolo do poder senhorial, pronta, pelo menos, a imprimir no espirito dos dependentes um respeito glacial. ‘As corveias, trabalho devido nas terras do senhor e, por vezes, também ati- vidade doméstica no castelo e nas éreas de criagao de animais, acabam sendo 0 emblema do sistema senhorial. Entretanto, € sobretudo no sistema dominial caracteristico da Alta Idade Média que elas tém papel central: os detentores dos mansos deviam, geralmente, prestar servigo trés dias por semana a fim de explo- rar as terras da reserva do senhor. Por outro lado, no sistema senhorial, em que 4 parte explorada diretamente pelos senhores restringe-se consideravelmente, as corveias so reduzidas na mesma proporgio. Mesmo se a disparidade predomi- ha, uma situagdo corrente a partir do século Xit consiste em corveias limitadas a trés dias por ano, em outros lugares, a quatro ou seis, com eventual acréscimo «de um dia por més. Além disso, a tendéneia é, também aqui, no sentido do paga- mento anual de uma taxa em dinheiro que substitui a obrigago das corveias. Mesmo se considerarmos as corveias de carroca (transporte de diversos gros, He de Baschet feno, vinho ou outros produtos agefcolas), a participagao na manuteng2o das for- tificagdes do castelo ou na alimentagio dos guardas e dos cavalos, ou, ainda, a cobrigagao de participar das operagées militares, tradicional para todos os homens livres, inclusive os camponeses, podemos concluir que as corveias dei- aram de ser um aspecto central da pungao exercida pelos dominantes. Entretanto, conservam um forte valor simbélico (como testemunha a refeigio surpreendentemente copiosa que o senhor oferece aos aldedos que realizam a corveia) e concentram, muitas vezes, a animosidade dos dependentes, que no param de reclamar sua limitagao e sua monetarizagao: elas sao julgadas ainda tnais humilhantes uma vez que contrastam com a ampla autonomia que carac- teriza a atividade camponesa e aldea. £ assim que as corveias se tornam simbolo ‘que exerce um papel no sentido de mascarar e desviar a atengao para um aspec: to completamente secundério da dominacao (Julien Demade). Inversamente, os mecanismos que asseguram os melhores rendimentos aos senhores sio, em geal, 08 menos contestados, Aqueles que jé foram assinalados, ¢ preciso acres- centar o endividamento de numerosos aldedos (

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