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4 A aula como desafio a experiéncia da historia Valdei Lopes de Araujo Para Ilmar R. de Mattos, que fez da aula vida. Introdugao Nao € minha intengao discutir neste texto a natureza do presente em geral ou de nosso presente em particular, nem as possibilidades contemporaneas de uma historia do tempo presente, mas, a partir de um panorama de como se transformou o valor epistemolégico do presente no comego dos tempos mo- dernos, pensar os desafios pedagogicos para o enfrentamento, em sala de aula, da temporalidade em geral. Nao farei isso como um especialista em pratica de ensino de histéria, mas como um professor universitario que, na disciplina de teoria da historia, precisa planejar essas tarefas em sua atividade cotidiana. Colocar o problema do presente nesses termos deve nos levar a questio- namentos em duas diregdes. Primeiro, 0 que é isso que podemos chamar de presente e como ele afeta, de forma especifica, nossa relagdo com a historia. Em segundo lugar, como certos tracos de nossa contemporaneidade exigem uma reformulacgao do modo como geralmente lidamos com o problema do tempo em sala de aula. Transformacées no valor epistemoldgico do tempo presente Nossa compreensio da temporalidade avangou de forma significativa a par- tir da fundamentacao do tempo na subjetividade transcendental proposta por Husserl. Como base de toda experiéncia, o tempo deriva da forma como A aula como desafio a experiéncia da historia nossa consciéncia estd estruturada, permitindo que possamos distinguir processos anteriores e posteriores, retencdo e propensdo, memoria e expec- tativa, passado e futuro. O presente, como o tempo do agora, é justamente esse ponto onde a ex- periéncia se torna possivel. A partir de motivacées mais ontoldgicas, Heideg- ger langou as bases decisivas para uma descrigio da temporalidade enquanto condigio humana. Na segunda parte de Ser e tempo (1996), 0 filésofo abre a possibilidade para pensarmos o tempo histérico a partir de uma perspectiva nao meramente historicista. Afirma que a experiéncia cotidiana do agora, em sua realidade quase que imediata, destacar-se-ia do ontem e do amanha, do que ja nao é e do que ainda nao aconteceu. No entanto, nesse instante do ago- ra, aparentemente autorreferido, o passado e 0 futuro vigorariam sob formas variadas: lembranga e angtistia, saudade e falta, medo e esperanca, incerteza e confianca, entre muitos outros efeitos e afetos que formam a trama do ago- ra. O nascimento/passado/origem e a morte/destino/futuro devem ser entdo encarados como partes inseparaveis do instante/agora. Por isso, para Heideg- ger, toda compreensao da historia é sempre a compreensao desse espago entre nascimento e morte, passado e futuro, ou seja, da temporalidade, Todo fato so € possivel por encontrar uma situagao neste entre. Ea partir dessa experiéncia priméria que a historia pode acontecer e tornar-se objeto de uma historiografia, de uma escrita da historia. A disposicio do homem enquanto um ser entre nascimento e morte constitui seu carater temporal, ¢ 86 porque o homem é temporal pode haver uma historia e uma historiogra- fia. Nao é a hist6ria que constitui a temporalidade humana nem a historio- grafia que constituiu os fatos ou a histéria, mas é a temporalidade, enquanto condigdo estrutural do humano, que possibilita qualquer historia e essa con- digo € a base sobre a qual podemos nos relacionar com o passado eo futuro de diferentes formas. Certamente, essa afirmagio ainda nao foi digerida por grande parte da reflexio sobre a historiografia desenvolvida ao longo do sé- culo XX. A maior parte dos autores reduz a teoria da historia a uma simples epistemologia. Dessa armadilha néo escapam mesmo aqueles que, acredi- tando produzir um discurso anticientifico, apenas ocupam seu oposto estru- tural, ou seja, a celebragao de uma subjetividade hipertrofiada. A redugao do problema da histéria a busca de equilibrio entre os polos da subjetividade e da objetividade somente obscurece a dimensao mais fundamental das con- digdes ontolégico-existenciais que fundamentam as diversas possibilidades da histéria, inclusive a da sociedade cientifico-tecnologica que naturalizou nossa compreensao do mundo no par metafisico sujeito/objeto. 67 Valdei Lopes de Araujo Da mesma forma, dizer que toda histéria é uma histéria do presente, uma espécie de projecao de nossos interesses sobre 0 passado, é dizer muito pouco, embora a popularidade da formula seja um sintoma de nosso tempo. Se admitirmos o carater temporalmente denso do presente, ele deve ser visto nao como uma dimensao fechada em si mesma, mas como o resultado da propria histéria viva com a qual sempre nos relacionamos. Portanto, se toda histéria é uma historia do presente, todo presente, inclusive nos interesses que pode articular, é 0 resultado de uma histéria da qual nao pode separar, senao apenas formalmente, suas dimensées pretéritas e futuras. Essa pequena descri¢ao pode nos servir de guia para entender as trans- formagées na relacdo com o tempo presente. A ideia de uma universalidade da natureza humana, ou seja, a crenga de que o homem poderia ser definido por algum traco nao histérico como ser dotado de razdo ou animal politico permitiu uma espécie de proximidade entre o ontem e o hoje. A distancia poderia se dar apenas pelo arruinamento e decadéncia dos povos, logo, o tra- balho de reaproximagao seria como o de uma restauracao, uma redescoberta de si mesmo. O presente, igual a qualquer outro presente passado ou futuro, poderia ser o lugar a partir do qual nos relacionariamos com a verdade. Do ponto de vista historiografico, a melhor narrativa sé poderia ser a historia escrita no presente, a histéria testemunho. A passagem do tempo nao afeta o valor dessa histéria, a nao ser que a comunidade para a qual ela fazia sentido seja destruida, perdendo-se assim o precioso fio da continuidade. O valor de verdade desse relato dependeria da posicao de autoridade de quem o escreveu. Quando o problema da imparcialidade aparecia, ele nunca era resolvido pela distancia temporal. As respostas poderiam ser a de assu- mir a posigao de estrangeiro nao envolvido ou a de levantar os diversos pon- tos de vista sobre os acontecimentos, na tentativa de reconstruir uma visio total, o oposto da visao parcial. Nos tempos modernos, a emergéncia de um novo campo de experién- cia da histdria, entendida como uma totalidade em formacao acumulativa no tempo, exigiu uma mudanga quase completa na forma de se relacionar com 0 tempo presente. Por um lado, ele é valorizado como 0 tempo mais evoluido, como na metéfora inicial da querela dos antigos e modernos: os modernos podem ver melhor ndo por serem superiores aos antigos, mas por contarem com sua heranga, s4o andes em ombros de gigantes. Como con- sequéncia dessa premissa, todo presente tornar-se-d ultrapassado, ou seja, sera superado por um presente-futuro superior e diferente. Surge a sensacado 68 A aula como desafio a experiéncia da historia de estarmos vivendo em um momento de transic¢3o, de passagem para algo ainda por vir. Com isso, o presente perde parte de sua forca epistemolégica. Para a historiografia, um dos efeitos dessa situagao é a afirmacao do valor epistemoldégico da distancia temporal — na formulagio de Tacito, nao ser parcial aqui nao era mais apenas um problema da forma de lidar com as pai- x6es e os interesses, na produgao de um relato sine ira et studio, sem 6dios ou prevengées, mas no cardter sempre incompleto e inconclusivo do préprio proceso histérico. O ponto de vista do presente é superior se comparado as épocas passadas, mas inferior ao do tempo que esta por vir, principalmente para 0 julgamento do sentido desse préprio presente. No conceito antigo, a distancia no tempo era vista como negativa, pois esvaziava a forca testemunhal sem necessariamente acrescentar distancia e imparcialidade. A forma mais frequente de resolver isso era a distancia es- pacial — a condi¢o de estrangeiro, ou procedimentos de levantamento dos diversos testemunhos contempordneos. Na historiografia moderna, como o sentido do presente depende de um encadeamento inacabado, a simples passagem do tempo pode agregar melhor posi¢do cognitiva. Assim, a no- vidade na relacao com o presente que traz o mundo moderno nfo é tanto 0 problema da imparcialidade — que era um tema muito tratado nos modelos antigos —, mas 0 carater ainda nao acabado dos eventos presentes. No limi- te, a historia nunca esta encerrada; por isso, surge a necessidade estrutural de sua constante reescrita. Uma das formas de resolver o problema de uma historia do presente nos tempos modernos foi a aplicagao, a historia, do principio hermenéutico da antecipagao de sentido pela oscilagao parte/todo. Assim como a comecar a ler ou ouvir uma narrativa nao esperamos pelo fim para interpretar seu sentido, vamos antecipando o sentido e a natureza do relato a partir de pe- quenas informaces que atualizamos a medida que a narrativa avanga. Tam- bém na histéria, entendida como um processo total, antecipamos um fim ou sentido pela interpretacao das partes disponiveis. Assim, como tltima parte dessa cadeia, o presente nos orientaria na releitura do passado e na redescrigio do futuro. Por sua vez, essa reprojeciio do futuro — uma parte desse todo — nos levard a reinterpretar o sentido do passado e do proprio presente, movimentando o circulo interpretativo. A possibilidade de experimentarmos nosso presente como uma época, aquilo que durante muito tempo chamamos de época contempordinea, de- pendeu de algum consenso sobre a posic’o dessa época na historia da huma- 69 Valdei Lopes de Araujo nidade. Ela s6 pode ganhar sentido se estiver situada em relacao as demais €pocas: moderna, medieval, antiga. E é justamente esse consenso, ou seja, 0 sentido da histéria humana enquanto uma totalidade, que nao parece estar mais disponivel. Nao significa dizer, com isso, que no somos mais capazes de produzir sentido com os acontecimentos, mas que essa producdo parece ter-se democratizado no interior das diferencas produzidas dentro e entre as nagées. Assim, os diversos setores sociais segregam suas proprias narrativas, suas historias-memérias fundadoras, com maior ou menor grau de controle erudito e cientffico — isso, no fundo, nao importa tanto para esses setores. Porém, nao conseguimos vislumbrar mais uma meta-histéria que possa con- ciliar as inevitaveis contradigdes entre essas miltiplas narrativas nem, muito menos, a atividade académico-cientifica é capaz de se constituir enquanto es- paco monopolizador do discurso legitimo sobre o pasado. O fato de esse fe- némeno no abalar a propria legitimidade do conhecimento histérico talvez seja apenas um sintoma de sua perda de relevancia em termos tradicionais. Para resumir, e de modo esquematico, o presente pode entiio ser pensa- do como: 1. presenca: o instante para o qual constantemente convergem imagens do passado e do futuro. Retengao e propensao. Experiéncia e expectativa. Nessa acepgao, o presente é 0 agora, a simultaneidade das experiéncias assimétricas de passado e futuro. 2. época: um momento cujos sentido e identidade dependem de uma in- terpretacao coesa do passado e do futuro. Seja como época moderna, seja como contemporanea, sempre pressupomos uma grande narrativa da historia humana. Nessa dimensao, o presente ganha sentido quando pode ser referido histéria, como o lugar e o momento que fazem vin- gar o passado no futuro como um projeto. A segunda concepgio de presente passa a predominar com a emergéncia do conceito moderno de histéria. O presente é vivido como transi¢o, mas ganha consisténcia por estar enlagado em uma grande narrativa que parece produzir a certeza de que a historia sera redimida em uma espécie de rea- lizagao ou fim da histéria. Isso nao quer dizer que essa visio que tendeu a hegemonizar-se ndo encontrou as mais diversas formas de resisténcia: seja pela reagdo e convivéncia com modelos antigos de experiéncia da historia, seja pela perda de confianga no sentido geral da histéria ou mesmo nas ten- tativas de liberar outras historias possiveis. Lembro apenas dois grandes A aula como desafio 4 experiéncia da historia autores nessa tradigdo: Niezstche e Walter Benjamin. Nao por acaso os dois tornaram-se referéncias constantes no debate atual que procura recolocar o problema do tempo, da histéria e do presente. Na “Segunda consideracdo intempestiva” (2005), Nietzsche revoltava- -se contra a confianga historicista no progresso constante para melhor; esse excesso nao condizia com a experiéncia de que ainda poderiamos identifi- car no passado momentos nao superaveis, modelos intemporais. Nietzsche reintroduz, entao, o valor ético do anacronismo e, assim, outro tipo de rela- cao com o tempo, diferente da linearidade do historicismo tardio. Como somos 0 resultado de geragées anteriores, somos também o resul- tado de suas aberragées, paixdes e erros, mesmo de seus crimes; nao é possivel libertar-se totalmente dessa cadeia. Se condenamos aquelas aberragées e nos consideramos desobrigados em relagao a elas, 0 fato de provirmos dela nao é afastado. O melhor que podemos fazer é confrontar a natureza herdada e here- ditaria com 0 nosso conhecimento, combater, por meio de uma nova disciplina rigorosa, 0 que foi trazido de muito longe e o que foi herdado, implantando um novo habito, um novo instinto, uma segunda natureza (Nietzsche, 2005). Em suas teses sobre a historia, Benjamim propora a explosio desse con- tinuum temporal produzido pela narrativa histérica que ele chama de histo- ricista, sugerindo um uso do passado que pudesse nos liberar para o instante capaz de reconstruir a historia e desvid-la do curso do desastre. Essas duas reflexes antecipavam a critica da modernidade e de sua ancoragem na ideia de continuidade, proceso, identidade e orientacgdo. Ambos duvidavam nao 86 da capacidade da histéria nos orientar, mas também da direc para a qual essa histéria estava apontando. O trabalho de desvendamento teérico-historiografico da modernidade realizada por autores como Arendt, Koselleck, Habermas e Foucault, entre outros, parece ter-nos conduzido a um momento que poderiamos chamar de época classica dos tempos modernos, ou seja, a rotinizacao e democra- tizago das formas modernas de produgao de sentido e historicizagao. Nao que essa rotinizacio seja satisfatoria, mas assinala a transformacio do pro- blema moderno em uma tecnologia pronta a servir a qualquer interesse. Por isso, talvez, vemos proliferar mais do que nunca, na cultura historica atual, narrativas histérico-identitarias. Quase todos os grupos, segmentos e insti- tuigdes sociais parecem ter descoberto a formula para a produgio de iden- tidade, orientacao e legitimacao por meio de narrativas histéricas. Um dos problemas a ser destacado é que esses mesmos autores, que revelaram os 71 Valdei Lopes de Araujo modos de formacio de sentido e subjetividade, também nos alertaram para as armadilhas dessas configurasées. No cenario contemporaneo, vemos duas diregdes opostas e complemen- tares. Por um lado, temos um controle social crescente das formas de pro- dugio de sentido histérico por meio das praticas de historicizagao. A fungao de orientagio da histéria é mobilizada na legitimacao dos mais diferentes projetos e grupos, sem que sua legitimidade possa ser questionada, mas sem que qualquer dessas orientagdes consiga alcancar o grau de adestio e natu- ralidade das grandes narrativas nacionais produzidas desde 0 século XIX. Essa perda de orientacao global tem produzido o que muitos autores, desde o final da década de 1970, caracterizaram como um alargamento do tempo presente em funcio da perda de confianga em nossa capacidade de enfrentar o futuro como um projeto, como um momento histérico integrado ao passa- do e presente como o lugar de realizacao.! Talvez, esse esgotamento por exaustiio e excesso da capacidade de ar- ticular 0 passado e o futuro em uma narrativa explique o interesse crescen- te por uma histéria do tempo presente, um esforgo por tornar transparente algo que, para nés, jd nao tem o sentido estabelecido em uma cadeia que vai do passado ao futuro. Ao deixar de ser uma época, o tempo presente torna-se um enigma — assim como 0 passado ¢ 0 futuro. Temos, entio, a sensagiio de que talvez o futuro nfo sejao lugar da soma, da redengao do passado e do presente, mas apenas outro momento nessa sucessdo temporal que j4 nao sabemos aonde nos leva. Essa situagao torna mais aguda apercepcao da finitude das coisas humanas, a perda da possibili- dade de transcendermos, de sobrevivermos — pois também ja nao acredita- mos em uma estabilidade da natureza ou esséncia humana. Nesse cenario, a visdo do presente como uma época cede lugar a sua percep¢4o como instante e presenga. Essa perda da histéria, dessa grande cadeia causal, nos desperta uma vontade de viver no passado, de torna-lo fisicamente presente por meio de objetos, textos, pessoas, cidades e ambientes inteiros. Esse desejo é um dos motores do que tem sido chamado hoje de historiografia de presenga, que tem em Gumbrecht um de seus principais tedricos e praticantes. Nao haveria espago aqui para expor mais detidamente os aspectos des- sa historiografia, a bibliografia a seu respeito é crescente ¢ temos uma boa amostra dela mesmo em lingua portuguesa.’ O que farei agora é tentar, ' Refiro-me aqui a Pierre Nora, Hans Ulrich Gumbrecht e Francois Hartog, mas essa percepcio parece ter sido um fenémeno/sintoma geracional, mais do que uma descoberta intelectual. *Ver Gumbrecht (1998, 1999, 2009, 2010a, 201 0b). 72 A.aula como desatio a experiéncia da historia muito provisoriamente, tirar algumas consequéncias e possibilidades dessa nova situa¢ao para a pratica em sala de aula. A aula como narrativa e evento; como sentido e presenca A produsao de sentido histérico por meio do recurso ao circulo hermenéu- tico em sua constante oscilago entre parte e todo responde a uma crescente consciéncia e mesmo, até certo ponto, uma vontade dos tempos modernos de se distanciar de seu passado. Essa perda do passado é resolvida pela ideia de formagao — o que realmente importa é conservado como uma identidade em formagao — arquetipicamente, a nado ou a subjetividade e individua- lidade burguesas. O que temos de pensar hoje é 0 sincronismo e anacronismo como pos- sibilidades legitimas de relacionamento com o passado. Os alunos na uni- versidade ou na escola vivem em um mundo em que a abundancia de re- feréncias histéricas em todos os campos da cultura exige novas formas de experiéncia. Reduzir essas referéncias a um plano meramente diacrénico ou como pretexto para busca de sentido pode significar uma limitagio brutal da riqueza experiencial desses objetos. As tecnologias de historicizagio por producio de sentido e orientagao devem conviver com outras formas de ex- periéncia histérica. Talvez, um sintoma desse fenémeno seja o modo como temos acesso hoje ao legado da histéria humana por meio da conjuncio entre a imensa capacidade de armazenamento de dados e os mecanismos de recu- peracio e selegao de informacao. Vivemos a possibilidade de despragmatiza- cao de parte significativa de nossa experiéncia do passado. A tarefa principal da historiografia como um ramo das humanidades, cuja relevancia parece ser atualmente maior que em qualquer outro tempo, continua sendo a desalienagao do homem. Desalienacio significa a escuta daquilo que compartilha conosco a conjuntura do mundo. Confrontar-se com essa integridade, do ponto de vista de nossa condicao temporal, signi- fica explorar as distintas possibilidades de escuta que esse estado permite: a circunstancia do sentido que integra em projeto e a entrega ao imediatismo das coisas, o intemporal que nos é oferecido como reverso de nossos esforgos para dar sentido ao mundo. Dito de outra forma, nao podemos apenas ensi- nar a nossos alunos como dar sentido ao mundo ou como desvelar os sentidos que o mundo comporta, mas também que eles devem estar preparados para 73, Valdei Lopes de Araujo enfrentar 0 reverso do sentido, a tragédia, a injustiga, o horror como partes integrantes de nossa condicao. Assim, nao bastam os apelos a lembranga, ao sentido, a identidade e a narrativa como forma de enfretamento da condicao traumatica de nosso tempo. Qualquer tentativa de excluir o trauma da his- toria humana é uma forma de alienagao e, como tal, contém um perigo —a iluséo de que podemos nos apropriar integralmente de nossa historia, talvez a maior forma de alienagdo, pois ignora justamente o que torna a histéria possivel, nossa incompletude e caréncia liberadora. Dar sentido, historicizar, destraumatizar sao formas de domesticar a his- toria. Certamente, necessitamos dessa tecnologia para fazer historia como su- jeitos, mas, como em toda tecnologia, hd o risco do congelamento, da ilusio € esquecimento do carter construido e insuficiente desses procedimentos Hoje, podemos ter contato com um presente repleto de experiéncia historica, podemos ter em nossos computadores e em nossas telas o legado humano da miisica, das artes plasticas, das literaturas em sentido amplo — é 0 que nos promete, por exemplo, o Google Books e todas as outras ferramentas que se multiplicam no universo digital e midiatico. A orientag&o como produto da experiéncia historica sempre significou uma rentincia, do tipo que produz a identidade e a direcao, que indica o carater necessariamente seletivo da his- toriografia de sentido. Ao lado dessa historiografia, também podemos imagi- nar novas formas de representagio do passado, que, sem negar as fungdes de orientagao do trabalho do historiador, apontem para outras formas de desa- lienag’o, de formagao. Nenhuma identidade pode nos redimir ou esgotar; a identidade e a orientagao sao necessidades do mundo da vida, mas nao esgo- tam nossas possibilidades de lidar com o passado. Em sala de aula, 0 que pode significar tudo isso? Que, ao lado das prati- cas de narrativizacao, significacao, orientac&o e formagao de subjetividade, devemos estar abertos para considerar formas de historicidade que sio hoje mais familiares a nossos alunos do que foram para nés e que, no cenério de nossa sociedade-arquivo, tornaram-se mais provaveis. Ao lado de uma abordagem diacrénica, pensar modos anacrénicos, ecolégicos ou simultane- os de experimentar o legado da historia humana. Entre essas duas tecnolo- gias, podemos situar formas hibridas de organizacao dessa experiéncia, nas quais as dimensdes de sentido e de presenga possam ser exploradas. Do ponto de vista da relac&o antropolégica com o tempo, Gumbrecht vem sempre se referindo ao desejo de eternidade que explicaria o esforgo por transcender 0 nascimento em diregao ao passado e a morte em direcio 74 A aula como desafio & experiéncia da historia ao futuro. Se, em seus primeiros ensaios, esses dois caminhos pareciam nao completamente singularizados, pode-se observar a tendéncia, em sua refle- xo mais recente de destacar a questo da transcendéncia do nascimento das andlises fenomenolégicas tradicionais. Os resultados concretos dessa esco- lha sdo profundamente distintos e capazes de operar a cisdo estrutural entre produgio de sentido e produgao de presenca. Heidegger formulou muito claramente a ligacao entre a antecipagao da morte e a possibilidade do ser humano (Dasein) langar-se em projeto. O sen- tido dado por esse prentincio permite a concentracio temporal de passado, presente e futuro, que constitui a condigao de possibilidade da aco e do sen- timento de aceleragio do tempo que caracteriza a modernidade. O que nao estava claro no Heidegger de Ser e tempo é a possibilidade do contato com o mundo se dar nao por uma decisdo pelo modo de vida auténtico, mas, como afirma Gumbrecht, pelo deixar-se levar, pela quietude e desaceleracéio que caracterizam a transcendéncia do nascimento em diregao ao passado. Trata- -se, em ambos os casos, de um proceso de historicizaciio? No caso das nar- rativas historiograficas, os objetos do passado sao, sem duvida, retirados de suas fungées pragmiticas, mas reinseridos na realidade como indices de dada época histérica. Remontar a essa época por meio desse objeto requer do leitor um esforgo interpretativo. Trabalho totalmente diverso exige a relaco com 0 objeto enquanto fragmento nao simbélico do passado: nesse caso, nao se trata de produzir um sentido de distancia, mas, justamente, sua dissolucio pela experiéncia da forca do objeto, evento ou fendmeno apresentado. Essa constata¢4o permitira pensar uma histdria dos processos de historicizagao que nao coincidem linear e triunfalmente no cronétopo consciéncia histérica. O que garantiu o cardter obrigatério @ modernidade foi a promessa de que a entrega ao projeto significaria a realizacao dos desejos de eternidade, seja pelas tecnologias produzidas pela ciéncia, seja pela identificagdo com um movimento da prépria realidade histérica, cujos limites coincidiam com a totalidade do real. Gumbrecht aponta, em Produgdo de presenga, que nao se trata somente de repudiar ou tentar superar a modernidade — gesto afinal tio moderno —, mas também que nio se pode tomar a autoconsciéncia mo- derna como uma descrigao acurada de nossa situago. Se, para os modernos, a histéria do ocidente foi a da desmaterializagéo do mundo e da perda pro- gressiva de resisténcia de suas substancias pela a¢do de um sujeito solar, 0 que o postulado da oscilacao estrutural entre presenca e sentido sugere é que essa linearidade nao passa de uma autoimagem parcial. A histéria moderna nao coincide com sua autoconsciéncia. Valdei Lopes de Araujo A contrapartida da democratizagao das tecnologias da subjetividade tem sido a redugao de nossa experiéncia, um novo tipo de alienagao. Para produzir sujeitos reduzimos o mundo a objetos e produtos — nem mesmo sabemos como garantir que o proprio sujeito nao se torne uma engrenagem de uma maquina social eficiente, confiante na sua capacidade de substituir o mundo de coisas e pessoas por formas sofisticadas de representagao e repro- dugo simbélicas e virtuais. Sem abdicar dessa tecnologia, nossa atuacao em sala de aula nao pode se reduzir a ela. E, em certo sentido, assustador e revelador verificarmos que grande parte do discurso sobre a escola e a universidade tenha se impreg- nado da légica da eficiéncia, da velocidade, dos modos absolutos de me- diatizagao da relacao com 0 mundo e com os seres humanos. A redugao do humano ao sujeito permite que se possa acreditar na sua completa redugiio a um sistema de informacdo, a uma identidade que possa ser armazenada e transmitida, da mesma forma que fazemos, sem nos questionar muito, com o mundo transformado em objetos de ciéncia e produtos de consumo. O que gostaria de deixar como contribuig&o ao debate é a proposta de Ppensarmos a aula enquanto momento de intensidade a contrapelo da norma- lizagio e das tecnologias do cotidiano. Em seu sentido latino, preservado em muitas linguas modernas, a palavra aula nado significava apenas ou principal- mente uma licdo dada a um pupilo, mas o lugar ou situag3o onde uma li¢do poderia acontecer. Assim, mesmo em portugués, a parte mais interior de um santurio ainda pode ser chamada de aula. Nao é apenas ou principalmente a dimensio fisica de um espaco para algo que esta em jogo, mas 0 acontecer de uma situagao, Nao é uma situagao do dia a dia, mas uma situacao interior, do plano do religioso em seu sentido etimoldgico, do refazer as ligagdes entre os humanos e o seu mundo. Por isso, acredito que hoje seja possivel investirmos menos nas dimensées informativas, tecnolégicas e pragmiticas da aula e mais em suas potencialidades — talvez uma das tltimas situagdes em nosso mundo em que se possa produzir um efeito, sempre provisorio, de reintegracao. Esses momentos de intensidade e reintegraco podem acontecer em sala de aula, mas nao podem ser produzidos pelo professor ou pelo estudante; 0 que ambos podemos fazer é multiplicar as condigdes para que a sala de aula se converta em aula, em evento formador no sentido pleno que a palavra alema Bildung (formacao) sugere. Uma das formas com que Gumbrecht nos convida a promover essa situacdo é apresentar, a nossos estudantes, obje- tos de grande complexidade, em um ambiente de baixa pressdo temporal. 76 Aaula como desafio & experiéncia da historia No lugar de transformar nossos cursos em simples continentes abarrotados de contetidos informativos e pragmaticos pré-formatados, converté-los em uma abertura, uma clareira no tecido carregado e congelado de significa- ges, sujeitos e objetos produzidos em nosso cotidiano. Esses objetos de alta complexidade, fendmenos, no vocabulario de Heidegger, podem ser um conceito, um evento histérico, um objeto de arte, um fendmeno da vida diaria. O mais fundamental é que esse foco apresente a complexidade capaz de produzir a situagao de deslocamento e quietude que vivenciamos mais frequentemente quando realizamos uma experiéncia estética. Por isso, € preciso tornar nosso conceito de tempo complexo, muda-lo de algo externo, que podemos mensurar, dividir e consumir, para algo que nos constitui de modo fundamental. Esses momentos de experiéncia vivida talvez possam apontar para aquém da subjetividade e da objetividade, con- tribuindo para a construgao nao apenas de um mundo liberal habitado por sujeitos produtores e consumidores, mas de novas éticas capazes de fazer jus a uma definicao do humano que nao tenha que se produzir na alienacdo e perda de si mesmo e do mundo. Referéncias bibliograficas GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernizagao dos sentidos. Sao Paulo: Editora 34, 1998. Em 1926: vivendo no limite do tempo. Rio de Janeiro: Record, 1999. _ A presenca realizada na linguagem: com atencio especial para a presenga do passado. Histéria da Historiografia, Ouro Preto, n. 3, p. 10-22, set. 2009. Lento presente: sintomatologia del nuevo tiempo histérico. Madri: Escolar y Mayo, 2010a. . Produgdo de presenca: 0 que o sentido nao consegue transmitir. Rio de Ja- neiro: Contraponto, Puc-Rio, 2010b. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petropolis: Vozes, 1996. Parte II. NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideraco intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da histéria para vida. In: . Escritos sobre historia. Rio de Janeiro: Educaga0 — Puc-Rio; Sao Paulo: Edigées Loyola, 2005. p. 30-31.

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