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associacao foruns do campo lacaniano A Vo (a mue)il Ob (ere) eEeNe ANIC associacao foruns do campo lacaniano stylus revista de psicanalise e as Ra? ans ® as qa Stylus Rio de Janeiro [n.10 | p.1-160 | abr. 2005] © 2005, Associagao Féruns do Campo Lacaniano (AFCL) Todos os direitos reservados, nenhuma parte desta revista poder ser reproduzida ou smitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissio por escrito. Stylus Revista de Psicanilise uma publicagio semestral da Associncko FORUNS 00 CAMPO LACANTAN Rua Humberto de Campos, 144 — Centro Médico do Vale sala 901 40.150-180 — Graca ~ Salvador ~ BA — Brasil Tel: [71] 8245-5681 Fax [71] 8247-4585 hittp://www.campolacaniano.com.br tra Comissho De Gestho pa AFCL Conseito Enrrontat Divetor: Ida Freitas ‘Ana Laura Prates (AFCL) Secretério: José Antonio Pereira da Sitoa ‘Andréa Femandes (AFCL/UFBA) Tesoureira: Amélia Almeida Angela Diniz Costa (AFCL) Angela Mucida (AFCL/Newton Paiva) Bese Ee Pinna Se SVE ‘Angélia Teixeira (EPCL/ UFBA) Angela Mucida (coordenadora) Clavie Gatto (AFCL/Fiocru2) Angela Diniz Costa Christian Ingo Lens Duenker Dominique Fingennann Daniela Scheinkinan-Chaielard (AFCL/UnB) Eliane Z. Sohermann Edson Segevse (1PUB/UER]) ik RK Eliane Z. Schermann (AFCL/CES-Juiz de Fora) Elisabete Thamer (doutoranda da Sorbone ~ Paris) Eugenia Correia Kruten (Psicanalista / Natal ~ RN) Gabriel Lombardi (U. Buenos Aires) Gilberto G. Gobbato (AFCL/U. Tuiuti) Helena Bicatho (AFCL/USP) Henry Krutzen (Psicanalista / Natal ~ RN) Clarice Gato Propeto Grarico Paulo de Andrade ¢ Sérgio Anténio Silva Revisko & Eprroracho EustwOntca y Contra Capa Kedtia Botetho (AFCL/PUC-Minas) Luiz Andrade (AFCL/UFPB) Ince Da Cara ‘Marie Jean Sauret (U. Toulouse le Mirail) si init Nina Avaiijo Leite (UNICAMP) Enfeite indigena brasileno, de pena de arara i ‘ Resul Albino Pacheco Fitho (PUC-SP) Sonia Alberti (AFCL/UERJ) Forouos. Vera Pollo (AFCL/CES-Juizde Fora) Huguenccotor tireata 500 amples Gnéfica Edit ” resucataooinea STYLUS : revista de psicanilise, n. 10, abril de 2005. Rio de Janeiro: Associa¢io Féruns do Campo Lacaniano. 17 x 4 em. Resumos em portugués e em inglés em todos os artigos. Periodicidade semestral ISSN 1676-157X 1, Pricansilise. 2. Psicanalistas ~ Formacio. 8. Psiquiatria social, 4. Psicanslise lacaniana. Paicanilise ¢ arte. Psicanilise ¢ literatura, Psicanalise © politica DD : 50.195 sumario 7 Editoriat Angela Mucida ensalos 13 Colette Soler: Angiistia, afeto de excegao 24 Daniela Scheinkman Chatelard: Sobre o troumatisme 31 Eliane Z, Schermann: A angiistia e a fantasia: transborda- ‘mento do real no imaginério 42 Maria Gélia Delgado de Carvalho: A fungiio da angistia na anéilise trabalho critico com os conceitos 51 Berard Nominé: A fantasia ¢ sua relagdo com o trauma 60 Christian Demoulin: Fazer ficedo ~ a fixdo do trauma 69 Clicia Magalhaes Pereira: Consideragées freudianas sobre 0 alcoolismo direcdo do tratamento 83 Carmen Gallano: O enigma da cura, através da transferén- ia, de algumas doencas do corpo 96 Célia Virginia da Silva do Amar encobridora 103 Maria Helena Martinho: Um aborto da natureza: a transferéncia na implicagdo do sujeito na fantasia 115 Frangois Morel: Histeria e anorexia: dois discursos? : Trauma ea lembranga entrevista 129 Angela Mucida entrevista Sérgio Fingerman: O fazer ar- listico ¢ sua relagéo com o imposstuel Stylus Ride janeiro, 10 abr. 2005 resenhas 139 Oscar Cirino: O sujeito ndo envelhece — Psicandlise e velhice, de Angela Mucida 142 Jairo Gerbase: O sujeito da Psicandlise, organizado por Sénia Campos Magalhaes 147 Arlindo Pimenta: Em torno do cartel, organizado por Bar- bara Guatimosin ‘Sabet-fazer com 0 real da clinica contents 7° Editoriak Angela Mucida ensalos 13 Colette Soler: Anguish, affection of exception 24 Daniela Scheinkman Chatelard: On troumatisme 31 Eliane Z. Schermann: The anguish and the phantom: over- (flowing the real into the imaginary 42 Maria Célia Delgado de Carvalho: The anguishes function in analysis trabalho critico com os conceitos 51 Berard Nominé: The phantom and its relation to the trauma 60 Christian Demoulin: Doing fiction — fixation of the trauma 69 — Clicia Magalhaes Pereira: Freud's considerations about alcoholism. direcdo do tratamento 83 Carmen Gallano: The enigma of cure, through the transference, of some diseases of the body 96 Célia Virginia da Silva do Amaral: Trauma and the sereen ‘memory Maria Helena Martinho: An abortion of the nature: the trans- ference in the implication of the subject in the fantasy 115 Francois Morel: Hysteria and anorexia: two speeches? entrevista 129 Angela Mucida interviews Sérgio Fingerman: The artist doing ant its relation with the impossible Stylus Riode Janeiro n. 10 abr. 2005 resenhas 139 Oscar Cirino: O sujeito ndo envethece ~ Psicandlise e velhice, by Angela Mucida 142 Jairo Gerbase: O sujeito da Psicandilise, edited by Sénia ‘Campos Magalhaes 147 Arlindo Pimenta: Em torno do cartel, edited by Barbara Guatimosin Saber-fazer com o real da clinica editorial EM As PERSPECTIVAS FUTURAS DA TERAPIA ANALITICA, de 1910, Freud acentua a importancia do desenvolvimento da psicanili se em pelo menos trés vias: processo interno, aumento da auto- ridade ¢ eficiéncia geral de nosso trabalho.' Tudo isso nos re- mete a um ponto essencial: a psicanallise deve se debrucar so- bre os problemas decorrentes do makestar na cultura de cada época, buscando um “saber-fazer” que trate o real ai concemido © atualize sua clinica Nessa direcdo, 0 que dizer da funcio da transferéncia, da angiistia, do fantasma e do objeto ana condugao de uma analise? Quais os destinos da angtistia, do trauma e do sintoma no fim de anilise? Como a psicandlise se posiciona hoje diante do tratamento do real de algumas enfermidades organicas, das atualizacdes do sintoma histérico, da anorexia, da toxicoma- nia, da relacio do sujeito com os objetos oferecidos pelo mer- cado? Transitando pelo que a clinica nos interroga, esse niime- ro de Styius aborda predominantemente alguns pontos do sa- ber-fazer com o real da clinica. Na conferéncia de Colette Soler sobre a angiistia, o lei- tor encontrar indicacées fundamentais concernentes ao con- ceito de angtistia e sua importancia clinica. Ao contrario dos demais afetos, a angiistia, por ser “o afeto de excecao”, ja que esta “amarrada” ao real que Ihe concerne, tanto remete ao real quanto é por ele produzida, Nesse sentido, como um indi ce, é, na anilise, “o tinico afeto aliado da interpretagao”, uma subjetivacao do real Dois textos enfocam a incidéncia da angiistia na direcao do tratamento, Maria Célia Delgado interroga © destino da an- giistia no fim de andlise e sua relaco com o desejo do analista. Eliane Z. Schermann, ao abordar os pontos de junc € disjungio. entre trauma, angistia ¢ fantasia, sinaliza que a angristia baliza a direcio do tratamento psicanalitico; expde os pontos em que vacilam as identificacées sustentadas pela fantasia. Outros trés textos se reportam 4 questio do trauma. Bernard Nominé o problematiza em sua relagao com 0 fantas- ma. Se, de um lado, ambos se apresentam como efeito de ce- nas pelas quais 0 sujeito é fisgado — no trauma, ele é reduzido a objeto -, de outro, a fungao do olhar os distingue. A cena s6 Stylus Riode Janeiro. n. 10 abr. 2005 “Freud. As perspectvsfutuas dateapiaanattes (1910, 9 1) € traumitica porque ha o olhar para fazé-la como tal. No fan- tasma, ha uma dimensao voyeurista, mas 0 sujeito nao sabe por que esta la. Daniela Scheinkman Chatelard aborda o con- ceito considerando duas perdas: a incidéncia da linguagem no corpo, a “corpsification”, traumatismo inicial, e a perda advinda pelo corte da estrutura ¢ suas incidéncias no corpo fantasmatico, sintomatico e pulsional. Christin Demoulin, por sua vez, apre- senta © trauma como estrutura tripartida em “sentido”, “gozo do Outro” € “goz0 filico”. O enlace borromeano se refere 4 construcao da fantasia a partir do trauma, forma neurética de limitar 0 gozo € promover uma fiecao/fixacao do twauma. Na direcdo do tratamento, Carmen Gallano traz ques- tes atuais ¢ importantes sobre a incidéncia da psicandlise em sujeitos que padecem de enfermidades definidas pela medici- na como “psicossomaticas”, bem como interroga a questo do diagndstico, os efeitos da transferéncia € da fala, € 0 papel da angistia na direcao do tratamento. Maria Helena Martinho, tendo como suporte a questo do diagnéstico em um caso cli nico de histeria, expde a funcao da transferéncia na condugao da anilise ¢ na relag4o com 0 gozo ¢ com o fantasma. Francois Morel, valendo-se também de um caso clinico de histeria, in- terroga a articulagao entre discurso da histeria e discurso capi- talista com base na nogao de anorexia, assim como problematiza 05 efeitos de gozo dos discursos sobre o sujeito. Ainda no cam- po clinico da histeria, Célia Amaral aborda a relacio entre trauma, lembranca encobridora ¢ atualizacao dos tracos mnémicos na transferéncia, a0 passo que Clicia Magalhaes problematiza a relacao entre essa estrutura clinica, 0 alcoolis- mo, a repetigao € 0 delirio de citime. Na entrevista com Sérgio Fingermann, o leitor pode vis- lumbrar o fazer-artistico € sua relagao com alguns dos concei- tos abordados por Lacan em relagio 4 funcao do olhar como objeto ae A fungio do quadro e€ sua relacdo com o gesto, 0 toque, o olhar, o tempo ¢ o impossivel de dizer. Por fim, trés resenhas trazem publicacdes que abordam © conceito de sujeito no discurso analitico. O sujeto nda envethece Psicandlise e velhice, de Angela Mucida, partindo da concepcio analitica de que © sujeito nao envelhece, trata diversas ques tes relativasao envelhecimento/velhice sobas perspectivas sim- bélica—a velhice como efeito do discurso -, imaginaria ¢ real, © perpassa interrogacdes concementes A dire¢io do tratamen- to na clinica com idosos. O sujeito da psicandlise, organizado por Sénia Magalhaes, é uma coletinea distribuida em quatro sec6es: “Topologia do sujeito”, “Sujeito e discurso”, “Clinica Saber-fazer com 0 real da clinica do sujeito” e “Sujeito e gozo”. Em torno do cartel, outra coleti- nea de textos, organizado por Barbara Guatimosim, aborda a estrutura do cartel ¢ sua relagdo com o saber, a transmissao, a repeticao, a producao do cartel e outros temas importantes que permeiam o seu funcionamento. AvceLa Mvcina referéncia bibliogrética FREUD, Sigmund. (1910). As perspectivas futuras da terapia anali- tica. In: Fdi¢do Standard Brasileira das Obras completas psicolégicas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1994. Vol. IL. Stylus Riode Janeiro. n. 10 abr. 2005 ensaios ~ Angustia, afeto de exce¢ao Couerte Souer SE DIGO QUE A ANGUISTIA £ UM afeto de excecdo, & preciso que eu diga o que constitui sua excepcionalidade, sua diferen- ¢a em relagao a todos os outros afetos. Lacan deu a formula dessa diferenga: é o tinico que nao engana. E preciso ainda dar a esse termo “excecdo” seu sentido rigoroso, légico. Tanto mais sabendo que Lacan utiliza o ter- mo exce¢ao nao s6 para o pai como para o sintoma. Portanto, nao por acaso, eu 0 introduzo aqui, € posso voltar a utilizar para a anguistia, uma escrita que propus para o sintoma ha alguns anos. Ea escrita que Lacan emprega para situar 0 lado homem das formulas de sexuacao ¢ que faz uso da referéncia conjuntista. Ela se presta, com efeito, a varios usos conforme a definigdo que se di a funcio. Se dizemos: os afetos sio engana- dores, podemos escrever essa assercao utilizando a fungi proposicional de Frege e escrever a funcio T: ser enganador, tal como Lacan escreve a funcio ®. Se x, que constitui argu- mento para a fungao, é o afeto, escreveremos: Para todo x. Tx mas existe um x para o qual nao T de x: Vx.Tx, mas 3x. nao Tx. Naquela época, para o sintoma, eu escrevera a fungao A de pertinéncia ao Outro, ser um elemento do Outro, x sendo significante, tinhamos: para todo Vx. Ax, mas existe um x, 3x nao Ax para o qual a funcao de pertinéncia nio se verifica, é a letra do sintoma como excecao. Entretanto, com 0 afeto, coloca-se a questao de saber quem é 0 afetado ¢ quem é 0 afetante. Lacan desenvolveu toda uma teoria do afeto que se encontra condensada em Télévision nas paginas 37 a 41, em Televisdo, nas paginas 41 a 47!. O afeto € 0 corpo. *O afeto vem ao corpo” sob a forma de uma “pertur- bacdo de suas funcdes”, como se vé em uma descarga de adrenalina. Quanto ao afetante, nao é a alma, mas 0 pensa- mento: “E pensamento que isso descarrega”. Mais precisamen- te, 0 corpo “nao é afetado a nao ser pela estrutura”, bem en- tendido, ada linguagem, do inconsciente linguagem. Sera ne- cessario, pois, sitar a excecao da angiistia nessa tese. Stylus Rio de janeiro. 10 p.13-23 abr. 2005 Lacan Taéion (1974) Langots Le Séminare ive X (19684, 0.18 Como a excegao légica se traduz clinicamente? Partamos dos outros afetos, por que dizer que eles enga- nam? A tese é freudiana, solidaria sua doutrina do recalque que distingue explicitamente os significantes recalcados (Vorstellung) dos afetos migrantes, deslocados, diz ele, ao sabor das representacdes, metonimicas, afirma Lacan. Dizer “enga- nadores” nao significa que sejam imaginarios, mas que nio tém valor epistémico, uma vez que esto desligados de seu refe- rente de origem. O “senti-mente”. A tese pode parecer paradoxal, pois a provacao do afe- to, 0 vivido, como se diz, suscita a conviccao imediata, produz uma adesio que parece a evidéncia mesma. Evidéncia engana- dora, contudo, pois desligada do que a causa. Acrescento que para julgar o deslocamento, um ponte fixo nao pode ser neces- sariamente a cadeia na qual eles deslizam, mas o significante primeiro do trauma: é pela metafora primeira que se julga o deslocamento do afeto. Na seqiiéncia, o que serve na andlise é a decifracao do sintoma, e nao os afetos que dele derivam. Os afetos no sio os aliados da interpretac4o. Que o sujeito afeta- do se engane com eles, va la, vé-se a razio para isso, mas € melhor nessa pratica freudiana que 0 enganado nao seja o ana- lista. O vivido do afeto é falsa evidéncia, que caminha junto da dhivida ¢ da incerteza quanto ao saber. Ele se poe a prova, e até mesmo pée A prova o sujeito que dele padece, mas nao prova nada, nao é amigo da prova. De fato, 0 verdadeiro enganador é 0 préprio significante. A tese é ainda freudiana. Pensem no Proton pseudos que a garo- la fobica das lojas ilustra. Ea substitui¢ao dos signos que leva a perder o rastro, que recalca o acontecimento real insuporti- vel. No fundo, Lacan retoma essa tese justamente no seminario sobre a angiistia, ao insistir no fato de que o significante nao é © rastro, a pegada, a marca, © estigma, mas, ao contrario, a tentativa de apagamento que engana sobre 0 real. Volto a clinica da angiistia. Como todo afeto, a angtistia se experimenta, se sente, ela pertence ae que Lacan chamava, em A diregao do tratamento, “o sentir”. E, contudo, um sentir especial, que nao se deve confundir com 0 medo. No medo, “a caracteristica da angtistia falta, nesse sentido de que o sujeito nio é nem abarcado, nem implicado, nem interessado no mais intimo de si mesmo”. Esse pungente da angtistia, entetanto, nao é inimigo da prova. E falar de prova é ainda dizer demasi- ado pouco, pois é de certeza que se trata. Atroz certeza, afirma Lacan. A certeza nao é da ordem dedutivel. E um fora de diwvida Saberfazer com o teal da clinica que ndo passa pelo trabalho do pensamento, do significante, que nao conhece a dialética, Paréntese: como nao lembrar aqui que © termo esta em uso paraa psicose? Um desenvolvimento deve- ria ser feito sobre a angtistia ¢ a foraclusio, nao para falar da angiistia do psicético, mas talvez para renovar a definicio da foraclusao. Fecho 0 paréntese. A certeza clinica da angiistia indica que ela remete nao ao significante enganador, mas a um real (ndo estou dizendo 0 real) que se trata de cercar. Ela é amarrada a esse real de forma dupla: a ele se remete e por ele € produzida. Ela é seu indice. © termo freudiano mais conhecido é 0 termo sinal que tem outras conotacées diferentes de “indice”, 0 qual evoca mais 0 traco de iminéncia, do género “atencao perigo”, pois a angtis- tia nao é © afeto do acabado, mas o da ocorréncia iminente. Dai por que Freud the atribui uma fungao positiva de alerta, de cuidado, Participando da obsessio, ela desempenha © pa- pel do para-surpresa. Mas se eu digo “indice” mais que “sinal”, € para insistir sobre o fato de que a angiistia, afeto da iminéncia de um real, tem também por isso valor epistémico. Digamos que é 0 tinico afeto aliado da interpretacao. A certeza da angtistia indica que cla nao se refere ao significante enganador, mas sim Aquilo que poderiamos cha- mar um real. Atencao! Nao estou dizendo o real, mas um real {artigo indefinido), porque primeiramente existem varias defi- nigées do real e depois, talvez, varios acessos Em outras palavras, a angiistia est4 amarrada, contraria- mente aos outros afetos passeadores. Toda a questdo esta em saber a que real ela est4 amarrada, que real Ihe diz respeito. Creio que é preciso tomar essa remissio ao real de forma du- pla, Qual é 0 real que engendra a angtistia? Mas, ao mesmo tempo, se ela é engendrada por um real, ela se torna um indi- ce do real. © termo freudiano é “sinal”, como se sabe, mas a palavra “sinal” tem conotagdes diferentes da palavra “indice”, O termo “sinal” conota a iminéncia. Com efeito, a angiistia nao 0 afeto de algo acabado, mas o de alguma coisa que vai, que vem, que vamos encontrar Entao, 0 termo freudiano “sinal” é bom, bem oportuno, do tipo “Cuidado, perigo!”, que se vé nas estradas para indicar que, dando mais um passo, algo ruim pode nos acontecer. Por isso Freud tem razao em atribuir 4 angtistia, sentimento da iminéncia de um real, uma fungao positiva de alerta, de defesa Aangiistia é um afeto que participa do temorde algo obsedante, que vai acontecer; nesse sentido, a angiistia é um para-surpresa. Stylus Riode Janeiro. 10 p.13-23 abr. 2005 Freud pode dizer que ela é um para-traumatismo, pois 0 traumatismo pressupde nao s6 0 encontro, mas 0 encontro de surpresa. Entretanto, digo “indice” em vez de “sinal” para insistir no valor epistémico da anguistia e posso entao, invertendo mi- nha formula anterior, dizer que na anilise a angiistia € 0 nico afeto aliado a interpretacao. Alias, sabemos que Lacan pode representar a mira da interpretacdo através do dedo indica- dor levantado de Sao Jodo de Leonardo, um dedo apentado numa determinada direcao para assinalar que ali existe algu- ma coisa que nao pode ser clevada ao significante. Em outras palavras, se pode dizer que a angtistia como interpretacao é 0 colofao do real €, portanto, insisto sobre a funco que chamo, de epistémica. Seria demasiado pouco dizer que é um afeto revelador e, quanto a isso, gostaria de citar uma passagem no fim do seminario sobre a angiistia’, que se poderia intitular “Kierkegaard contra Hegel”. Evidentemente Lacan se coloca do lado do primeiro © evoca 0 conceito da angiistia em Kierkegaard. O que quer dizer essa expressao “conceito da an- giistia”, sendo que é no verdadeiro poder sobre o real onde se abre uma alternativa ou entao a funcao do conceito segundo Hegel, isto é, 0 poder simbélico, ou entéo a que nos daa angtis- tia; em outras palavras, entre a dialética do conceit € 0 acesso através da angiistia. Ora, Lacan termina dizendo: “é preciso es- colher”, Nao é um e outro, é um ou outro. E, portanto, situar verdadciramente a angiistia como a tinica subjetivagao possivel de certo real que 0 significante nao pode captar Entao, qual é 0 real em causa? Temos a resposta, uma vez que lemos 0 texto de Lacan: € © do objeto a. E aqui é preciso apreender por qué. E que se a angiistia é um afeto de excegao, é porque ela o referencia a um objeto de excecio. Dai, alis, a razio pela qual Lacan se serve da angustia para elaborar sua concepcao de objeto « ¢ ele se serve dela como um tipo de via de acesso, como um indice precisamente. Ao menos no texto do seminario sobre a angiistia é esse objeto que cle faz equivaler a0 real. Evidentemente, pode-se discutir em que sentido esse objeto é real, até onde se pode sustenti-lo, ji que a posicao de Lacan variou muito sobre essa questio nos anos seguintes. Ficaria tentada a dizer, e vou tentar essa formula, que © objeto a, por mais real que seja, nao existe sem 0 Outro. O objeto nao participa da facticidade da existéncia, a primeira caracte- ristica desse objeto (nao sei se a primeira, mas, enfim, € uma das caracteristicas, Lacan insiste quanto a isso), é que ele é um Saber fazer com o real da clinica objeto “fora do conhecimento”: “a angiistia é o desconhecido como experimentado” (a expressio é de Lacan). Nesse aspec- to, a angiistia nao é © pavor, pois este nao se refere ao desco- nhecido, © desconhecido quer dizer que 0 objeto aé objeto de excecdo no campo de todos 0s objetos do conhecimento, todos esses objetos que sio objetivaveis, nas coordenadas do tempo € do espaco € entre os quais existem os objetos visados pelo desejo. Todos esses objetos podem se alojar na estética trans- cendental de Kant, tanto quanto no seu analitico transcendental, pois estio no tempo e no espaco e sao pensaveis. Evoco Kant porque Lacan faz numerosas referéncias a cle. Entao, seria necessirio distinguir, creio, e Lacan o observa em algum lu- gar, 0 que chamamos 0 campo da objetividade, ou seja, 0 cam- po de todos os objetos a serem conhecidos, quer se trate do conhecimento comum ou do conhecimento cientifico (sao a mesma coisa) € 0 campo da objetalidade. O objeto a nao s6 esta fora do conhecimento, como pertence ao campo da objeta- lidade, ¢, nesse sentido, é um objeto de excecao. Ele nao pode ser exibido, a angiistia © indexa, o marca, mas ela nao 0 mostra, tampouco o designa, ela nao Ihe da um nome, um significante, E muito estranho, pois, esse objeto. Toda a questao € saber como esse objeto de excecio € engendrado. Poder-se-ia aplicar novamente a ele o tipo de escrita que apli- quei aos afetos © aos sintomas, mas nao me deterei nisso. Vocés conhecem bem a tese de Lacan se tiverem lido 0 seminirio sobre a angiistia. Esse objeto nao é engendrado sem ‘© Outro, mas antes surge entre o Outro € 0 sujeito. Nao disse que ele surgia entre 0 Outro barrado € 0 sujeito barrado. Ele surge entre o Outro real nao barrado e aquilo que Lacan es- creve com um S$ € que, nesse seminario, chama 0 sujeito do gozo e de alguma forma é 0 individuo confrontado com o cam- po da linguagem. Ele utiliza varias vezes esse S nao barrado em seu ensino. FE muito itil localiza-lo, pois isso permite compre- ender que cle utiliza em seu texto De wna questao preliminar no esquema R, no qual designa 0 que isso escreve: a inefavel © estiipida existéncia daquele que ainda nao é um sujeito barrado. Depois cle o reutiliza no texto Kant com Sade, que é contempo- rineo do seminario sobre a angtistia. Com esse S ele escreve, digamos, 0 sujeito da sensibilidade corporal, aquele que pode experimentar dor e prazer, e que tampouco € 0 sujeito barrado Finalmente, Lacan apresenta esse objeto a como um dos efei- tos da linguagem sobre o sujeito, sobre 0 individuo com seu corpo vivo Stylus Rio de Janeiro n. 10 p.13-23 abr. 2005 (od, 0.135. Lacan, O Seninino, tre 11 os quatrocancatos fundamen. iaschpsicardse 1964,» 900-1) Lacan escreve varios esquemas da divisio no seminario sobre angiistia, € 0 que esses esquemas escrevem é a transfor magao que faz passar do S, sujeito do gozo do vivente, ao S barrado, dividido pelo significante. Essa é uma tese muito co- nhecida de Lacan, muito assimilada, eu diria. © que o seminé rio sobre a anguistia introduz e Lacan desenvolve em seguida é que nesse poder da linguagem sobre 0 S natural, se posso chama- lo assim, produz-se um sujeito dividido porque representado pelo significante, mas como ele afirma, ha um resto, ¢ 0 objeto aé esse resto. E 0 que um dos esquemas da dit Als SIA alo Acho que devemos conseguir precisar como Lacan ¢ como nds mesmos poderemos entender esse resto, uma vez que ele escreven o resto como efeito do Outro. Ele escreve S barrado, © que quer dizer, no fundo, que isso escreve a estrutura de excecao de ano Outro, Eu dizia ha pouco que esse resto nao existe sem o Outro, ele é engendrado pela operacio do significante, certamente “cle é até mesmo seu efcito maior", como afirma Lacan, mas ele nao é um significante, ele é rebel- de significantizacao, a nunca é um significante. Vocés véem que até aqui lhe sao dadas caracteristicas negativas: nao sem 0 Outro, diz-se que cle nao existe sem o Outro, diz-se 0 que ele nao é. Eu deveria ter acrescentado: nunca um significante, tampouco uma imagem, um irrepresentavel, portanto. Entio, como aborda-lo? A resposta de Lacan é bastante complexa, mas hé um lado simples. Hé a abordagem topologica ¢ légica, ele indica a “consisténcia légica” do objeto a, ele a desenvolve novamente no seminario Os quatro conceitos fundamentais da psicandlise e depois a retoma no resumo do Seminario O ato analitico, ¢ & dai que vem a expresso “consisténcia légica” com referénda aos quantificadores. Se eu mantiver o que ele afirma em 1964, ele se serve da distincao entre pertinéncia € inclusio. Se reto- marmos Posigio do inconsciente, veremos que ele afirma a parti- cao do ser para dizer que tanto o sujeito quanto 0 Outro se constituem em duas partes. Ele representa isso com os circulos de Euler (Figuras 1 ¢ 2)*. Saber-fazer com o real da clinica Figura 1 Figura2 Aalienacio Podemos dizer, entao, que no lugar do Outro sé existem significantes como elementos, todos os significantes pertencem ao lugar do Outro, porém ha uma parte que esta incluida, mas que nao é um elemento do Outro e que pode ser escrita. Exis- tem varias formas de escrever a pertinéncia, anao pertence ao Outro no sentido de ser elemento do Outro, ele nao é um significante do Outro, mas aé incluido pelo Outro. > escreve a pertinéncia, ¢ Ca inchisio. Podemos, por- tanto, dizer: a nao 3 A, mas ac A Assim é a estrutura légica que se poderia reformularcom os quantificadores, mas essa estrutura légica nao nos diz qual a fungao do objeto a, Ela nos informa que ele nao é um signi ficante, que nao é a imagem desejada, que ela aparece no cam- po dos objetos como um logro do desejo. Evoquei ha pouco 14 na Universidade’, esse par do logro e da causa. No fundo, no nivel légico capta-se a excecao, mas a s6 tem uma estrutura légica, cle opera no nivel do que Freud nomeia de libido, no fundo cle é © elemento que anima a estrutura ¢ que da ao sujeito mortificado pelo significante algo como um ar de vida. Toda a questao do que Lacan introduz de novo nesse semina- rio € que, ao lado dessa negativacdo do significante, ao lado do efeito falta-para-ser da linguagem, ha um efeito que ele qualifi- ca freqiientemente utilizando o termo “perda”, uma perda ge- radora do desejo. Acho que na leitura que podemos fazer de Lacan, ha uma ambigitidade que se assemelha um pouco as ressonancias de falta e de perda. $6 que aquilo que Lacan introduz a partir desse seminario sobre a angtistia é que a perda é algo que opera, direi, no nivel do gozo, poderia dizer também do viven- te, mas, em todo caso, em um nivel real. Gostaria de enfatizar esse lado que no semindrio sobre a angiistia, pelo fato de Lacan retomar sempre express6es antigas, nao aparece completamente Stylus Riode Janeiro nm. 10 p1323 abr. 2005 ON. doT Referénciad conferéncia que aautora ronunciarana USP natarde de 11 denovenbro de 9004, 20 na primeira leitura. Ele introduz aqui uma nova definic¢ao do corte, Até entao, era bem conhecido o corte entre os signifi- cantes, também 0 corte entre significante e significado, enquanto, aqui € 0 corte sobre as fungSes do organismo, 0 corpo afetado em suas funcdes. O termo “corte” o indica afetado sob a forma de uma perda de gozo, representado por um pedaco de corpo separado, caido do organismo. Como se faz essa operacao? Ha varias passagens. Lacan perguntava como 0 sujeito entra nesse negocio do significante. Resposta: através de uma demanda que incide sobre 0 corpo e que isola, separa do organismo um pedaco de corpo. Na verdade, essa tese nao é nova quando ele a aborda no seminario sobre a angiistia. Havia muito tempo ele afirmara que a demanda é 0 que transforma a necessidade, para fazer dela pulsdo, mas ele o formulara de forma diferente em Observagdo sobre 0 relatério de Daniel Lagache, ao acentuar, cito de meméria, “é preciso que a necessidade acrescente-se a demanda, para que © sujeito faca sua entrada no real”. Creio que na época ningném leu essa frase pelo que ela queria dizer Por qué? Porque © tema da falta-para-ser do sujeito era tio cativante que se péde ler “o sujeito faz sua entrada no real” como a falta-para-ser que surgia. A entrada do sujeito no real, lida retrospectivamente, queria dizer que isso passava pelo cor po. No fundo, para formular com outras palavras, é 0 semina- rio sobre a angtistia que faz se juntarem o tema da falta do sujeito, que se encontra em Lacan desde 0 inicio, o tema da falta-para-ser, da falta do desejo, ¢ as claboragées sobre a pulsio. 140, © esquema é bastante simples: € que no lugar da preciso primeiro a falta — uma falta que é irredutivel, cle insiste repetidamente, essencialmente simbolizada pelo falo, © que esse lugar da falta ndo & nem vazio nem inerte; ao contra rio, € aqui retomo a palavra “assediado”, assediado precisa- mente por esse objeto cortado do corpo, objeto perdido, afi mava Freud. Lacan acentua mais de um corte de subtracao com essa formula tao simples: “O objeto «é 0 que se tem mais para se designar a subtracao que nao é uma subtracao subjeti- va, que é uma subtracao real no corpo”. O tema atravessa todo. seu seminario, E é a partir dai que Lacan precisa esse corte realmente subtrativo que condiciona ao mesmo tempo a fanta~ sia e as buscas da pulsao. Nao é a mesma coisa, absolutamente! E a partir dai que Lacan é levado a redefinir a castracao freu- diana e a contestar a definicao de castracio por Freud. A cas- tracao é a subtracao real, mas ao mesmo tempo essa subtragao real consiste na reserva libidinal operat6ria, o que faz com que haja um impulso, uma busea, uma saida do autismo libidinal falta — Saber-fazer com 0 real da clinica Estou indo rapido, pois s4o coisas muito amplas, temos pou- co tempo. A partir de 1962, 1963, Lacan tenta elaborar o que ele chama de “consisténcia corporal Voltemos a anguistia, pois toda essa construcao € feita para dar conta da certeza da angiistia. O objeto, a angiistia nao sem ‘objeto, qual a relacio? Retomo com outros termos. Qual a rela- ao entre a angristia e esse objeto? Esse objeto que Lacan formula como causa do desejo, do desejo que é sempre desejo do Outro, tanto quanto se trata do Outro como parceiro, como do sujeito que deseja como Outro, causa do desejo, mas como causa do desejo sempre mascarado, Nao se sabe, sujeito algum sabe a pars tir de que “objeto causa” ele deseja. Lacan tem uma expresso muito simpatica: ele afirma que o objeto produ, as vezes, uma corcova sob o véu fenomenal, mais uma alusdo a Kante aos obje- tos-fendmenos. Que relacao a angtistia mantém com esse objeto? Temos formulas que sio muito elogiientes. A angtistia esta em ligacio com o Outro barrado, prioritariamente ligada a0 desejo do Outro como desconhecido, ¢ que me visa, pois se ele nao me visa, o desejo do Outro nao me incomoda muito. Nesse sentido, a angtistia é o sentimento de iminéncia de um perigo real que consiste em se reduzir ao objeto. Lacan acen- tua, alids, que a angiistia é 0 sentimento de se reduzir ao seu corpo. Seria preciso dizer antes a um pedaco de corpo no en- contro com 0 enigmitico desejo do Outro. Ha os dois exem- plos que sao muito elogitentes: © primeiro exemplo é 0 do louva-a-leus. Se eu estiver diante de um louva-a-dens que devo- ra.a cabeca de seu parceiro ¢ se eu tiver uma mascara sobre 0 rosto € nao souber qual, eu terei motivo para ficar angustiado, porque eu poderia estar com a mascara do macho que ela vai devorar. Esse € 0 exemplo da angistia diante do desejo do Outro, o Outro como parceiro. Mas hi um outro exemplo: é 0 angustiado pela pagina em branco, como afirma Lacan: “Inter- rogue-o, questione-o, € ele vai dizer que € © excremento de sua fantasia”, 0 excremento confrontado ao enigma daquilo que pode produzir a ‘nica resposta para ele. Vé-se que o esquema escreve, no fundo, que 0 ix da angiistia esta prioritariamente entre 0 Outro barrado € 0 sujeito barrado, e que 0 objeto cai dele como resultado. Lacan usa um termo muito preciso, 0 ter mo “cessio do objeto”. Cessio do objeto para dele se separar: E com isso repensa de outra forma o perigo real assinalado por Freud no adendo de Inibigdo, sintoma e angiistia. O perigo real, indica Lacan, é precisamente a cessio do objeto. E isso coloca para nés a angtistia como desempenhando um papel nessa separacao do objeto, no corte que faz cair 0 objeto, © entao Stylus Rio de Janeiro n. 10 p.13-23 abr. 2008 a1 pode-se falar de um momento constitutivo do objeto, correlato ao afeto primordial da angtistia na relacio com 0 Outro. Isso poderia levara muitos desenvolvimentos, mas vou me deter aqui. ‘Termino retomando uma tese que desenvolvi¢ que consi- dero legitima, Ao acompanhar tudo o que desenvolvi hoje, pos- so dizer que 0 momento de anguistia é um momento de imi- néncia de destitni¢ao subjetiva, destituicao selvagem, claro, na qual fico sob a ameaga de ser apenas o objeto que caira. A des- tituicio de fim de anilise é de uma outra ordem, por conchiir-se como resultado de um trabalho, mas isso se poderia escrever com © mesmo matema: $ = 4, a equivaléncia do que sou como cu, eu libidinal, claro, com 0 objeto-causa, Nesse sentido, ¢ vou terminar nesse ponto, Lacan se juntaria muito bem a todos os fil6sofos que insistiram sobre o alcance ontolégico da angiistia, e que comega na realidade com Pascal, antes de Kierkegaard, € vai até Heidegger. E uma dimensio que escapou a Freud, dema- siadamente ligado 4 questio do ter. Ele havia reduzido demasia- do a castragao ao regime do ter, ¢ se pode notar~ esta é minha {altima observacio — que no seminario sobre a angiistia, Lacan primeiro refuta a castracao definida por Freud, ele nao a joga fora, mas a reformula. Em contrapartida, quando quer se refe- rir a Freud pela angiistia, o que ele escolhe? De forma alguma aquilo que Freud afirmou sobre a castracao, mas o que ele afir~ ma sobre 0 Unheimlicle, o sentimento de estranheza ¢ também 0 que ele assinala sobre o Hilflasigkeit, o sentimento de desampa- ro. Isso quer dizer que Lacan percebeu esse alcance ontol6gico que levon Freud a pegar o que é lateral sobre a questo € nao 0 que est4 no seu Amago, ou seja, o complexo de castragio ‘TRADU Silmia Sobreira REVISAO Angela Mucidla Dominique Fingermann referéncias bibliogréficas Lacan, Jacques. Le Séminaire, Livre X: L’Angoisse (1963-1964). Paris: Seuil, 2004. Lacan, Jacques. O Semindrio—livro 11: as quatro conceitos fundamentais da psicandlise (1964) . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. Lacan, Jacques. Tdévision. Paris: Seuil, 1973. Saber-fazer com o teal da clinica resumo Essa conferéncia, proferida em Sao Paulo em 11 de novembro de 2004, a0 abordar atese de que a angiistia é um afeto de excecio, desenvolve também a relagio entre angiistia e objeto a. Ao contrario de todosos outros afetos, ela nao engana, sendo, portanto, aliada a interpretacao, pois no remete ao significante enga- nador. A angiistia remete a nm real ¢ liga ao objeto de exeecio, objeto a, objeto fora do conhecimento. Fla se liga ainda a0 Outro barrado; ao dese jo do Outro como desconhecido. abstract This conference, given in Sao Paulo in 11/11/ 2004, focuses on the theses that the anguish is an afection of excepion. It also develops a relation between an- guish and object (a). Diferently of all the othersafects, it does not misleads being, therefore, conected to the interpretation once it does not recall the significant that mileads. The anghish recalls a real that conects itself to the object of exception, object (a), object outside of knowledge. Italo conectsitself to the Other blocked; tothe desire for the Otherasan unknown. palavras-chave Angtistia, afeto, sinal, objeto a, real, falta Outro keywords anguish, afection, sign, object «, real, miss- ing and Other. recebido 15/03/2005, aprovado 15/04/2005 Stylus Riode Janeiro n. 10 p.1323.— abr. 2005, 23 "Lacan Radiophoie( 1970, p 78) * ptematica sobre otempo ra cliica com o ifansfoi objeto de tebaho de cuto ago de rmnhaautoa,acresentado no ‘ond sobre bebe Ct Chatelra (8008) Laci Raciorhorie( 1970, p 0), lbd,p 79. Santo Agosinho. As confssées (1970, U0 19) 2 Sobre o troumatisme Dawieta ScueinkMan CHATELARD a) do tempo Tempo: é preciso. “E preciso tempo para fazer-se ser”. Se é preciso tempo, é porque uma psicanilise acontece por uma suposicao, Ela consegue “desfazer pela palavra 0 que se fez pela palavra”: eis a transmissao de Jacques Lacan em seu semi nario O momento de concluir. O tempo interroga a psicanilise, 0 tempo ¢ interrogado pelos psicanalisandos, o tempo questiona © ser falante, o ser do tempo, o ser-para-morte (Heidegger)*. “Mi- nha experiéncia nio toca o ser a nao ser para fazé-lo nascer da falha que produz o ente ao se dizer’ |...] € assim que 0 incons- ciente se articula do que do ser vem ao dizer". © trauma se encontra ainda nos primérdios da teoria psicanalitica e sofrera certos deslocamentos: do trauma facticio, de sedugao, Freud dara cada vez mais lugar privilegiado a fan- tasia, esta vindo, com efcito, entrelacada ao trauma. Assim, da ferida primeira, do corte inaugural, do wauma vivido num tem- po ainda originario no ser, uma re-significacao é construida no sé-depois. A fantasia fusionada ao sintoma é oriunda dessa feri- da no ser faltante, no des-ser (desétre). A fantasia surge no falsus do sintoma ¢ é a “causa de que a anilise se sustenta no proces- so de verificagao que faz seu ser™, Em As Confissdes*, Santo Agostinho se refere a experiéncia vivida, manifestando-se no en- trelacamento da temporalidade entre o passado, o presente ¢ © futuro. Ao interrogar sobre o ser, é no tempo que Heidegger busca respostas sobre o Dasein, 0 “ser-ai". O ser-at é situado numa trama temporal: no passado sob a forma do “ser-sido”, isto é, a maneira como Dasein volta a0 passado; © “por vir” ow devir, isto é, uma antecipagao no presente num tempo ainda a advir; ¢, enfim, 0 “estar em situacao" se refere ao presente. O primeiro tempo do sintoma fora fundido a fantasia. Vindo, de fato, como resposta ao traumatismo sexual € aos primeiros rotciros fantasmaticos, o sintoma se estabelece como uma coalescéncia 4s cenas primitivase fantasmaiticas de acordo com as quais © sujeito modelou € fixou seu modo de gozo € enqua- drou sua fantasia. E 0 resultado que vai do traumatismo sexual Saber fazer com 0 real da clinica 4 fantasia que veste 0 sujeito que Ihe da seu estofo € se meta- morfoseia em sintoma. Com Lacan, chegamosa nogao de que o que é traumatico no ser falanteé a linguagem. Por um lado, temos a linguagem, furo feito pela linguagem no texto do sujeito. Ou seja, a lingna- gem faz uma fissura do que até entao era puro gozo pulsional, criando assim wm lugar vazio a ser encontrado incessantemente no movimento desejante do sujeito. Por outro, temos © que foi extraido desse texto para sempre perdido: 0 objeto, 0 ser do sujeito. Se tomarmos a tradicao filos6fica relativa ao discurso e & linguagem, verificaremos que Aristteles foi “o primeiro a rom- per o vinculo entre a palavra e a coisa e a elaborar uma teoria —‘Abergue Leprottinedt da significado, isto 6, a um s6 tempo da separagao ¢ da relagio __(éreotez Hite entre a linguagem como signo € 0 ser como significado”. No 1) campo da psicandlise, 0 cogila: “Penso, logo existo” significa que © “pensamento s6 funda o ser ao se ligar na fala, quando toda scan Lascenceetlaviné operacao toca a esséncia da linguagem”. (1966p. 865) ‘A perda de gozo em razao da incidéncia da linguagem no corpo é 6 que, com Lacan, chamamos castragao. O corpo como produto da linguagem; a linguagem que opera sobre 0 {aco aciopherte( 7p 61) organismo ¢ que faz um corpo: Corpsification® diz respeito A incidéncia da incorporacao da linguagem sobre a libido © 0 gozo. O corpo é marcado pelo simbélico. Tempo € preciso para que a elaboragio do traumatico se constitua numa psicandlise. Tempo que marca ima ruptura no ser temporal ¢ histérico no a-temporal do sujeito do inconsci- ente, Marca uma ferida ¢ fimda o tempo do taumitico na falé- ciado ser. O Dasein, como o ser-ai, se faz presente em si. O traba- Iho do tempo do traumatico é vivido na experiéncia, esta presen- teno tempo analitico é atualizado na transferéncia. A atualiza- cdo desse tempo de outrora, tempo em que a mae nao mais atende de imediato 4 demanda do bebé; ha ai um tempo de espera. Os intervalos comparecem e, com eles, surgem as pri- meiras frustragdes marcando, escandindo o tempo subjet em sua existéncia com o Outro. vo Em termos temporais, sabemos o quanto é precioso para a psicanilise a referéncia ao futuro anterior, no sé-depois da ela- boracio simbélica. “Esse futuro anterior € percebido no instan- te do presente, como tendo sido antecipado™, como aquilo "80% Galt terogrdoos qnne foi criado no anterior, euja marca ficara registrada, mas ja [orp deosetbe( 0 transformada pelo ser do tempo. O tempo do sédepoistraz para ” © sujeito a oportunidade de se libertar de uma fixaedo de senti- do antecipadamente colocada em sua historia como tendo sido objeto do desejo do Outro. O tempo para compreender impli- Stylus Rio de Jancito nm. 10p.24-30 abr. 2005 25 acin Fungéo e campo ds palawa edalinguagem ra paicanalse(1986, p. 257) Lacan Osemini: Aang (1962-1963 indo, aa ce 5 ie deer de 1962) * Lacan. Oseminstio livo: Araacsodeobjeto( 1956-51 (1994, p.954) cao tempo para a passagem ao simbélico. Os diversos desvios © contomos sucessivos permitem ao sujeito progredir em dire- 40 ao registro simbélico. Assim sendo, essa assuncao falada de sua historia Ihe permite “reordenar as contingéncias passadas dando-lhes o sentido das necessidades por vir". E preciso tem- po! Lacan ja nos dizia: € preciso tempo para se chegar ao mo- mento de conchuir! Estamos falando do surgimento de uma subjetividade que vai acontecendo segundo os tempos firturo anterior a posteriori — tempos que retornam na prépria pratica psicanalitica. No surgimento desses dois tempos inscreve-se a fundagao de uma constituicao subjetiva a partir do investimento de um Outro num duplo movimento pulsional. O Um nao se constitui sem a presenga do Outro; 0 Outro nao existe sem o Um. O hetero advém do homo ao introduzir a diferenga, a separtigéio. A anato- mia é 0 destino, lembrando a etimologia do termo ana-tomia, em sua funcao de corte do corpo. E essa primitiva separticdo, “ndo separacao, mas particao no interior”, que desde a ori- gem esti no nivel da pulsio oral como demanda mas que es- trutura o desejo. b) do mito a estrutura Até esse ponto articulamos a nocao do ser como tempo, sendo esse entrelacamento © principio de uma constituicao subjetiva que vem em conseqiiéncia de uma ferida inaugural no ente. Agora, entramos na segunda parte de nossa elabora- cao com a passagem do mito A estrutura, do mito como neces- sidade a fundacao de um funcionamento estrutural. Os mitos infantis desembocam numa necessidade estru- tural que traz. consigo a expresso de uma verdade que se tor- nara, com a operagao do recalque, uma meia-verdade sob for- ma de fic¢ao. Relembrando Heidegger acerca dos temas da vida € da morte, esse movimento faz perceber, diz Lacan, a relacao com a existéncia e a ndo-existéncia, isto é, 0 aparecimento da- quilo que ainda nao existe", mas que, mesmo assim, so temas jdligados existéncia do sujeito ¢ aos horizontes que sua expe- riéncia Ihe traz quanto as questdes da origem, do sexo € da morte. Aqui se encontra a atividade mitica empregada pela crianca que, num tempo posterior e num movimento retroati- vo, participara de sua estrutura. A criagio mitica da crianca a prepara para seu funcionamento estrutural. Dessa ligacao mitica primaria em relagao ao objeto de amor, a crianga funda um, primeiro logro intersubjetivo, Saber-fazer com o real da clinica Nessa passagem estrutura, faz-se necessaria a passagem pela fase do espelho, que tem papel fundamental na imagem do sujeito na dialética com 0 Outro. Esse espelho é oferecido pelo Outro. Ao rodar a cabeca, o bebé encontra nesse movi- mento o suporte do olhar do outro semelhante ¢ também en- contra, através dessa imagem, seu reflexo, reflexo no entanto falacioso. Pois esse Outro est num “lugar que se situa em rela- do a uma imagem que se caracteriza por uma falta (...) © que 0 desejo esti ali, ndo s6 velado, mas essencialmente colocado em relacdo com uma auséncia”, O objeto como objeto «vem pre- encher na fantasia o higar marcado por uma auséncia, e nesse [scan OSemtioX 93> lugar algo pode aparecer sob a forma de ~9, que é “a angiistia, esis (1962-1963) (rea, a angiistia de castracao em sua relagio com 0 Outro”. tempo Wades cedezenbvooe marcado por uma inquietante estranheza entra em cena justa- mente quando algo em concordancia com a castragao ameaga 0 sujeito enquanto angiistia de castracao. O que se encontra ai é a dialética entre © -@ ¢ 0 objeto a, 0 primero como representan- te de uma perda ¢ o segundo tendo a consisténcia dessa perda em que ha mais-le-gozar, pois 0 -@ vem simbolizar 0 que falta a imagem. A angiistia surge onde a falta comparece, isto 6, quan- do algo deve permanecer na sombra ¢ dela sai. No tempo marcado pela percepcao e pela subjetivacio da falta, de uma perda de gozo, da castracao, 0 traumatic que fere 0 ser é a percepcao do outro sexo, é 0 que a experiéncia da perda introduz ¢ engendra como conseqiiéncia na alteridade do homo, do mesmo. A incidéncia da alteridade introduz a sin- gularidade, a diferenga, o desejo para além da imagem especu- lar. Questoes clinicas relativas ao temor da perda de amor ou & devastacao do ser feminino como conseqiténcia de um abando- no on decepedo do parceiro de amor sio demandas que po- dem levar o sujeito a buscar uma psicanilise. E se uma experi- éncia psicanalitica se instituir como tal, ela podera conduzir 0 sujeito a um ponto de basta quanto as suas compulsdes de repe- ticdo. Ponto de basta que incide na repeticao de um antigo amor, de uma antiga forma de amar e de receber o amor que é atua- lizado sob transferéncia. Uma nova forma de amor é prometi- dano horizonte de uma experiéncia psicanalitica, uma promes- sa Ihe oferecida. Seria a promessa de um novo amor mas, dessa vez, de wm amor enderecado ao saber € que seja da or- dem de uma transmissio que transcenda o sentido. Eis a tinica promessa que uma psicandlise pode oferecer, a de um novo amor, € ndo ade uma felicidade. Assim, amédio, seja pela devas- tacdo, vertente do tragico, seja pelo riso, vertente do cémico, o que ai estd em jogo € a posigdo do ser ante a existéncia, suia Stylus Rio de Janeiro nm. 10 p.24-30 abr. 2005, 27 ‘Shatespeae Sontodeuns rote a vrdo( 004, 30-31) perspectiva e percepcao que ordenam € norteiam suas escolhas, relacdes¢ interagdes, A estrutura que ordenao desencadeamento de uma histéria do vivido, seja de uma tragédia ou de uma co- média, obedece ao desencadeamento das estruturas miticas, da ordenagao de uma estrutura ainda mitica. No surgimento da estrutura, 0 que comanda é 0 ordenamento do mito que é reto- mado na estrutura psiquica Ora, essa estrutura do mito se apresenta ainda sob a for~ ma ciclica da ordem cosmolégica: 0 nascimento, a morte € 0 renascimento. Uma estrutura que parte do cass em direcao a0 kosmos, em outras palavras, que vai da desordem a ordem. Na estrutura literaria, justamente, essa seqiiéncia se reproduz sob a forma de ordem, desordem ¢ ordem. Com a segunda ordem nao sendo mera reproducao da primeira, o sujeito ja taz em. seuretomo a inscric4o de um traco novo. Eiscomo Shakespeare, em Sonho de uma noite de verdo, descreve esse ciclo cosmoldgico: Os mortais hamanos ficaram sem seus festejos de inverno, e agora nenhuma noite recebe as béncaos de um hino ou de um cantico. Por isso, palida de raiva, a lua, governante das marés, molhao ar que se respira e faz aflorar em gran- de ntimero ascorizase as doencas reumaticas. E ao longo desse tempo destemperado vemos as estagdes altcrando-se: grisalhas ¢ gélidas gea- das caem no colo ainda quente da rosa mais ver- melha; nos cabelos ralos € poucos nevados da- quele velho senho:, o Inverno, assenta-se uma coroa perfunmada das doces florzinhas de verao, ccomose fosse zombaria; a primavera, o verao, 0 outono fecundo, 0 fitrioso inverno, mudam seus trajoscostumeiros,¢ omundo, desnorteado.com © que produz cada estacao, sequer sabe qual € qual. E uma igual proliferacao de males nasce de nossas brigas, de nossas desavencas. Somos pais © origem desses males.!! Da physis, sendo aquilo que brota, é que surge o logos—a expressio do pensamento € da linguagem do ser Em conclusao, o que posicionao ser numa estrutura mais tragica ou mais cémica € 0 seu posicionamento perante a exis- téncia. Na psicanalise, nao ha como separar © tragicémico de cada existéncia, ou seja, a escolha de reordenar certos momen- tos existenciais pode ser feita partindo da morte para 0 renascimento, ou do renascimento em direcao A morte. Eis 0 Dasein do tagicdmico do género dramatico humano, que con Saber-fazer com o real da clinica duz o ser em seu movimento como des-sera “desfazer pela pala- vra o que foi feito pela palavra”*e a ir em direcao a uma re- construcao nao de sentido, mas de um nove amor, ou seja, ter vivido na transferéncia a existéncia de um novo amor Lacan Lesémnarelemonert referéncias bibliograficas Avwenque, Pierre, Le problimede Vétre cher Avistote. PUF: Paris, 1994. Booxs-Graté, Marie Claire. Interrogando os tempos da psican: Conferéncia transcrita na Revista da Escola da LetraFreudiana. Rio deJanciro, n°25, 2001 CuateL arp, Daniela Scheinkman. O desejo do psicanalista em ante- cipacio? In: Cario, Ines et al. (org.). O bebé, 0 corpoe a linguagem. Sio Paulo: Casa do Psicélogo, 2004. In: Ecrits, Paris: Seuil, 1966. Lacan, Jacques. O Seminario X: A angiistia (1962-1963). Inédito. Lacan, Jacques. O Semindrio ~ livro 4:A relagéo de objeto (1956-57). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Fditor, 1994. 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This mo- ment of castration offers a starting point for the psychoanalytical examinination of the traumatic and its incidence in the phantasmatic and symptomatic bodies and, accordingly, the driving body. The body can be seen as a product of lan: guage; when language acts on the orgar ism, a body comes into being. palavras-chave trauma, tempo, linguagem ¢ gozo. keywords trauma, time, language and enjoyment recebido 20/02/2005, aprovado 15/04/2005 Saber-fazer com 0 real da clinica A angustia ¢ a fantasia: transbordamento do real no imaginario! ELiane Z, ScrieRMaNn O TRAUMA E A ANGLISTIA NAO SAO sem relagao com a fanta- sia. “A angiistia ¢ esse corte sem o qual a presenga do significante, seu funcionamento, sua entrada, seu sulco no real é impensivel” Segundo as tiltimas abordagens freudianas sobre a angiistia, nao podemos aleangéla sem definir 6 trauma. Enquanto 0 trauma & irrup¢ao angustiante do impensével, a fantasia é uma possivel resposta do sujeito em face do desamparo, sempre desamparo do Outro. A fantasia apazigua e estabiliza por ser balizamento do sujeito no Ambito do principio do prazer. Os avancos de Lacan sobre a angtistia nos incitam a aproximar © trauma da nocao de gozo ¢ a fantasia da resposta da neurose a irrupcao do gozo que é sempre traumitico para o sujeito da fala. E necessario um breve inventario de algumas definigoes de Freud ¢ Lacan a respeito do trauma e da fantasia para che- garmos a conceber em que aspectos ambas se articulam, Para tanto, também devemos desenvolver uma breve reflexio sobre arelacao entre 0 conceito de objeto em psicanilise e © de gozo em Lacan, Desde 0 Projeto, Freud aborda a nocao de trauma’ como uma tendéncia a repetir as marcas deixadas por uma primeira “experiéncia de satisfagio ou dor”, nao importando se esta é real ou imaginada. O trauma seria correlato & incapacidade de “ligar” excitagdes excedentes resultantes da ruptura de “barrei- ras de defesa” decorentes da impossibilidade, por exemplo, da articulacao da pulsao aos seus representantes, 0 que deixa- ria o sujeito no desamparo. O trauma se encontraria no ambi- to do impensivel, equivalendo ao hiato repetitive no qual se modularia, segundo Freud, a “dissociagao entre idéia ¢ afeto”, Por ser correlato 4 irrupcao intempestiva de um excedente pulsional, o traumatico teria intima relagao com o que afeta o sujeito: a angtistia. Entretanto, enquanto o trauma é transbor- damento de prazer nas vias do mais além do simbélico, a fanta- sia é homeostase. A fantasia concentra o excesso de excitacao em um cena- rio que fixa o Amago do ser dentro dos limites do principio do prazer. Sua funcao € apaziguadora por estruturar uma sutura Styis Riode Janeiro. m1 p.3I-4l abr. 2005 Vastomodiiada dotraho apresetado no Encanto GL Brad reazadoem Sio Pao, em noverero de 2004, sobre otems Trauma efanasis’. "Lacan, Osemnério XA angisia(1962-3,aula de 19 ce deze de 1962) Em 1938, lacan faz un inven costasnatsmos considerendo-0s como eaidaces fundades em complexes: tum dorascimerto,tauma do desman, vauma da intusdo fratems, trauma edpico etc Ao dscut oHomem dos Lobos, de retoms oterae acentua a eperséoimagnsiavefemdo-a rocéo feutrs Paging responsivd pelo eteto oe acres cayp Treas ce tages mmagriiasinasmives pelo sinbéico. En 1957, ee vanes “osigiticante engnétco do vauma sens" A cenaprmiiaé bord como um sgitcarte fim 1960, o eum éreteido “opsadade do deseo do Out’, ce dexa osueta sem recursos (ifo.gt Em 1964, 30 intoduziopar'gclee sutometor, consider auma como um real nasiivel ue busca transfor ahomecstase signficante. Esse real se estende clo trauma fantail, uravez que consieraa fata tela recobridora do trauma Esse parcusolacanano pate do tramacoma reslicade (Gesmane), pasa peotaums 31 come magnitio( guns) depos, como sinbdtico (signfcarte enigmatic) e ert, coma taumareal(oté), faz sie dosce o mal-encento, estagpacidade da desea do Outo(che wo?) caspecto copula da semua ando rebgiosewacomo tv mats, en atéabordo ‘uronoreal €, desse mado, 0 pereuso de Lacan ns ncaa bord olrauma come gaz Nessecortadto,a fantasia sera respesta da neurcse ao $020 do trauma *Oercentopauiticocomo red dose ince sotre 0 rauticosenaueelenass antecoboourodich. Nese sere segndo ac, 0 ‘ramico naveterte deme roc de doe centaptese ‘aestabiizacao da fantasia vel ingblacronade reacoro ‘agi geste retaraaomesroluat,‘oredé ‘ochomue’, ‘o red 20 que anda mal (Lacan, 1988, p. 81). Esse lugar sempre omesmo" noe culo serio ofvosmodicoe ted abertono Outro, Seo eemeral de 320, apensrocopoquesaza.o dbetoem aa gyha coreténca rages Lemremos a cefricdo lacanana ce gozo apresentada em Osemnd, iro 17-0 avessodapscandise “0 gor é exdanerte coreltve forms primera de entra em acio do auechamoamarca,otraco unit, qe éamacapaaa mote Observem que nads tomasertido sé quea motte ente najogads' (1069-70, p 16) Aisi sefurta fazendo comaveaque’eque encanao simbélico-imagindria com 0 intuito de evitar o choque do real contra aquilo que “sempre retorna ao mesmo lugar”. O Outro nada garante ¢ sempre remete ao lugar em que falta o signi- jcante para representar 0 Amago do ser que, no curso do dese- jo, a ele se furta, Tentando identificar € se representar na ca- deia significante, 0 sujeito se depara com o que 0 abole € a cle se furta, que nada mais é do que a cifra da repeticdo de uma inscricao primordial, o memorial de seu gozo*. O sujeito pode minimamente reconhecer-se como um “eu” apenas no instante em que encontra uma fixidez, uma impressdo na qual identifi- ca, enfim, uma modalidade de gozo. Essa marca nada mais é que 0 real do sexo — Prigung. Falar em gozo*implica abordar um mais além. O gozo esta ligado a propria acao do significante sobre © corpo. O sujeito afetado pelo significante é por ele abolido. O significante que designa e institui o sujeito também 0 mortifica. A incidén- cia significante exclui o gozo’ pulsional do corpo, o que signifi- a mortificé-lo. Por um lado, 0 significante trilha as comportas para 0 goz0. Por outro, o que dele resta si apenas os rastros do goz0 sentido no corpo. O sujeito — definido por Lacan como aquele que se representa no “entre” do encadeamento de um significante com outro ~ se eclipsa no significante conotado por Lacan como “significante no real”. Podemos recorrer ao jogo homofénico utilizado por Lacan ¢ permitido pela lingua fran- cesa entre tu es/tuer, que ora designa 0 ser na expressao “Voce 6", ora o anula no significante “matar ou mortificar” Embora o gozo se furte a0 corpo ~ 0 gozo é proibido € interdito ao ser falante -, paradoxalmente, quando no corpo se manifesta, imperativo ¢ repetitive, pode permitir ao sujeito identificar sua singularidade ¢ sua modalidade de gozar. Con- tudo, no instante fugaz em que ha uma irrupcio de gozo no Corpo, © que no sujcito se manifesta é a angiistia. Contrariamente a Freud, que destaca na angiistia a ame- aca de perda, seja do objeto, seja do amor, Lacan mostra que a angiistia ocorre quando ha proximidade com a “falta que vai faltar”, ou seja, quando 0 objeto a *se manifesta no corpo do vivente como substancia gozante, efeito da operacio da lingua- gem no real. Uma das maiores fontes de angiistia do neurdtico € ser re- duzido ao seu corpo, a substancia gozante, ao real do gozo. Se este, por um lado, 6 encamado no corpo para fazer do sujeito um corpo sexual, por outro, do corpo deve ser exilade como “wipa causal” para que este seja crotizado ¢ passivel de ser erigido em um Eu e também conotado como um corpo sexuado. Em Lacan, Saber fazer com o real da clinica a nocao de “tripa causal” antecede a nogao de objeto causa de desejo e de mais-de-gozar”, Nessa rapida introducao ao conceito de gozo no corpo ja se delineiam duas vertentes do objeto para responder a questo do ser no desejo inconsciente. Em uma delas, o objeto fixa o goz0 pulsional nos pontos de impasse do curso do desejo. A deriva da pulsio tende repetidamente a retornar a esses pontos em busca de um saber. Na outra vertente, 0 objeto traduz o furo do simbélico" por onde a pulsdo wansborda e extravasa. Se, de um lado, © objeto fixa o ser nas balizas da fantasia, do outro, convoca o sujeito a se manifestar como gozo, ao instigar suas demandas ¢ orienté-las pelo desejo. Em outras palavras, ao se manifestar no real do corpo como gozo pulsional, 0 objeto é correlato a um vazio da ca- deia associativa, a um furo do simbélico, Ou melhor, o objeto € a @presentacio de um oco em torno do qual se realiza 0 circuito pulsional em busca de satisfac4o. O sujeito sempre retorna ao objeto do qual o corpo é exilado e que se furta ao desejo. Ao se indagar sobre o amago de seu ser— compulsio & repeticao (Widerholungeswang) —, provocado pelo vazio de signi- ficacdo, o sujeito é orientado pelo circuito pulsional a tropecar na repeticdo dos pontos de impasse do desejo, Nesse percurso da pulsao, uma fenda é aberta no saber inconsciente. O traco de repeticao se desvela no gozo que insiste € busca satisfacio no cireuito da demanda. E ele que convoca o sujeito a percorer as vias € trilhas do desejo. Esses pontos balizam e instituem o sujeito nas malhas do significante, conduzindo-o da demanda A estrutura da fantasia, ¢ desta a deriva da pulsio. Ao se mani festar como pulsio, 0 objeto relanga a apeténcia do desejo a0 novo. A partir desse desenvolvimento, constatamos que 0 obje- to é correlato 4 marca de gozo que © tragado da pulsio deixa no corpo. Assim também o objeto é correlato ao traco da repe- ligdo da falta de significante. Enfim, 0 objeto visa ao real ex- sistente'e 4 repeti¢ao. Nos rastros € nos tracos deixados por esse objeto que se furta ao desejo, 0 sujeito pode encontrar o que Ihe é 0 mais intimo e, a0 mesmo tempo, mais estranho: 0 Amago de seu ser de gozo. Podemos dizer de outra forma: no campo do Outro falta o significante que poderia representar para o sujeito sua modalidade de gozo, contudo, ao se ofere- cer as demandas do Outro, ao oferecer suas demandas ao Ou- tro, o sujeito dividido constitui um Eu em que tenta substituir a falta de significante por uma imagem para representi-lo. Assim também tenta condensar sua dispersao pulsional. Stylus Rio de Janeiro n. 10 p.3I-41 abr. 2005 uto dese evitndo oseu gover, O obsesswo faz com que outro demande. Contudo eta coloca'sen ger do demandsdo pos cenfundea demand com odeseja O obsesswoacredtater ue siendet ademanda oleecendo- se, 451 mesmo e a0seucorpo, ‘como substinciagozante, ro lugardo objeto demendsdo pelo Ow. *O chptoa canano é um obj tologeanertecorsdo pera conaterumgozoasenl for dpse10, objeto nonsense mas Imprescndivel paraconctar 02x cedertede goza qe podefin- ‘conar no luge de casa de gozo, * Tero usado por Lacan em OsernninoX A angisia962- 3), para desir objeto 8 Anogio de mas-ce-gozs serddesenvohidsporlacanem Oseranéro 17: Oavesso ds pscandise( 1964) *Esseftrosimbeicose vaduz nafsta desgifcatepra representa o seta. ste spent seapresentaem sia mrodticbde degoz0 "Ogozo exsiteaosinbdicoe rafencbinsite 33 *O deseo semnfstaserpre coma desejde tr" objeto cue selesetta, cuse é destin de “te fo’ ete sigfeante do dese “elerinesafata-sterao alo camo cbgta dedesgorocual ogozosearicua efaz.0 g0z0 cconssir em um corpo, felermsafata-sseraotalo oo sigfcarte do dese, sempre deseo d0 Outro 4 Na imagem de Eu, 0 neurético acredita que pode evitar deparar-se com sua divisio subjetiva. Essa imagem, no entanto, € crigida justamente nas fendas abertas no corpo por onde €coam, escoam, percorrem € se manifestam os tracos € as mar- cas de sua modalidade de gozo. Assim, a imagem de Eu porta as marcas do objeto cujos tragos de repetigao sio correlatos a irrupgao inesperada e traumatica de gozo que embaraca c trans- toma o Eu. A interrogacao do sujeito sobre seu ser e sobre seu desejo", a experiéncia de anilise visa permitir 0 reconheci- mento do objeto que o préprio sujeito é para o Outro. A pri- meira demanda do sujeito é uma identificacao. A pulsio é 0 que esta a deriva jogando com o sujeito na flutuacao da demanda. No curso do desejo, © objeto é 0 mais varidvel e indiferente por ser o mais passivel de ser substituido no movimento de pulsacdo do desejo inconsciente em busca da satisfagao. Por equivaler ao furo aberto no simbélico, por equi- valer ao que ex-siste ao imaginario do corpo, 0 objeto insiste © convoca a pulsio a satisfagao. A satisfagao da pulsio nao esta no encontro com © objeto, como © neurdtico quer crer, mas no préprio circuito da pulsao trilhado pela demanda. E esse movimento pulsional que define 0 descjo como falta-a-ter", como falta-a-ser ¢ falta-a-gozar. No encontro fugaz da pulsacio da demanda com os pontos enigmaticos do desejo, © objeto, nomeado por Lacan objeto a, nao se escreve, vaza para permi- tir as metaforas e aos significantes novos se manifestarem no discurso do desejo encadeado pelas demandas, Nos anos 1962 €1963, Lacan aborda a ang tistiainicialmente na vertente do desejo do Outro, mostrando que a experiéncia analitica visa conduzir 0 sujeito a se reconhecer como objeto do Outro. Paradoxalmente, isso é da ordem do impossivel. 0 gozo do Outro é uma fantasia do neurético para que ele possa, onde © Outvo falta ou vacila, localizar seu gozo. Ao se indagar sobre seu ser de goz0, 0 sujeito se depara com o peso do enigma do desejo do Outro. Nesse instante fortuito, 0 sujeito se verifica sendlo nada mais que tripa e dejeto do Outro. Esse momento é traumatico porque o sujeito se constata em puro desamparo. O Outro nada garante € © Eu vacila. Sob a forma de pulsao, esta “tripa causal”, que ndo é outa seno o proprio sujeito em sua “insustentavel leveza” de objeto que ali pulsava visando convo- car © desejo do Outro a se manifestar. Esperando localizar 0 Amago de seu ser nessa fenda vibratéria, 0 sujeito se constata sendo nada mais que gozo ¢ pulsio que hao de vir ao lugar de causa para relancar a apeténcia do desejo ao nove. Um a-me- nos no simbélico corresponde a um a-mais de goz0. Saber fazer com 0 real da clinica O desejo enigmatico é conotado por uma suspensio ¢ pela deriva da pulsio que excede como mais-de-gozar. Essa suspensao — que nomeamos de castragio do Outro, ou ao Ou- wo falta -, visa convocar © amago do ser, a que se reduz o sujeito, a se manifestar uma vez mais como desejo. Enfim, para reconhecer o seu ser de gozo, as tinicas respostas possiveis do sujeito a0 buraco aberto no saber inconsciente sio, por um lado, erigir o Eu e, por outro, balizar-se pela fantasia O objeto desprendido dos momentos de impasse do desejo, balizado pelas amarras da fantasia, vela ¢ desvela 0 Amago do ser de gozo. Correlato a um vazio do qual apenas restam, em termos freudianos, os “escombros do ouvido e do visto”, © objeto, que também é falta ¢ fugacidade, desperta a pulsio instiga o trilhamento do desejo em direcdo ao novo. Assim, ousamos considerar o sujeito sem consisténcia simbéli- ¢a ou imaginaria no nivel do gozo pulsional. Sua tinica subs- tancia é a de gozo. No entanto, pela fantasia, essa substancia gozante tende a consistir, por exemplo, nos objetos orale anal, objetos da demanda, Pela demanda, os objetos adquirem con- sisténcia imaginaria. Entre cles destacamos 0 proprio Eu ao qual 6 neurético se identifica embora tema ter de se oferecer como objeto para satisfazer os caprichos do Outro. Eo que nos ensina Freud sobre o narcisismo'’. O obsessivo é quem melhor exemplifica a substituigao do desejo pela demanda. Ele desliza sua gramatica pulsional pelos significantes da demanda até reduzir 0 Amago de seu ser a0 objeto suposto ter sido demandado pelo Outro que supde ser ele préprio. Ele confunde desejo, que se produz para além da demanda, com a propria demanda. Nesse percurso, cle se aprisiona na armadilha imaginaria em que ele proprio se faz ‘equivaler aos seus objetos de demanda. Entre os distintos obje- tos da demanda, ele préprio se faz ser um deles. Entao, oscila entre se oferecer € retera si mesmo por se ter constituido como, objeto fantasmatico em seu valor de troca para 0 Outro. Devi- do as equivaléncias simbélicas c libidinais, devido ao narcisismo, © proprio corpo se toma um dos objetos do Outro. Sabemos, no entanto, que a demanda é intransitiva e “o desejo é metoni- mia de falta-a-ser”", objeto furtive ao campo do Outro é edificado em um Eu para mascarar a fenda aberta da divisio subjetiva. Contudo ali também 0 gozo instiga, incendeia o corpo e vocifera exigen- te pela satisfacao. A angiistia se manifesta no instante em que, por exemplo, balizado pelas amarvas da fantasia, 0 sujeito se torna equivalente ao objeto que demandou ao Outro ou supe Stylus Rio de Janeiro n. 10 p.3I-4l abr. 2005 Sheudescreve “temo ragdisama fl escoico..| pare denctaraattude de uns pessoa queraa seupréptocopoda mmesraforapeh aud ocorpo deumcbyetosenalé comuente trtado” Sobre o narcssno: uma introdkéo(1914, p 89) "Lacan Adegio do tvolamento( 1998, p. 646) ” Tema utitzado per Licanpa sereferrac objeto queé, a0 mesmotempo,faiiare descorhecid par oso 36 ter sido demandado pelo Outro. O sujeito utiliza a estratégia de substitnir 0 objeto da fantasia pelo uso falacioso do objeto na demanda. A angiistia apenas desvela que ele proprio ée ha de vir ao objeto demandado pelo Outro e para o Outro. Ademanda mais antiga é a identificacdo primaria. O que provoca a angiistia ndo é a demanda ~ o neurético quer que Ihe supliquem, que Ihe pecam, ensina Lacan. O que nele causa angiistia é ter de pagar o preco de sua castracdo, € ter de pagar © preco de sua “ex-sisténcia’” com a falta-a-ser que, no neuréti- co, é estrutural. Enfim, essa falta, seu “pecado”, nada mais é que 0 desvelamento do amago de seu ser de gozo. Identificado com 0 objeto imaginario para atender ao capricho do Outro, ameacado pela insisténcia do gozo, por um instante fugaz, 0 sujeito vacila sob a ameaca da proximidade do gozo que ameaca destitui-lo da imagem de “eu ideal” em que se crigiu para evitar se deparar com a castragao. Assim, 0 objeto antes referido ao edipico (que barra, interdita, mas tam- bém permite simbolizar 0 gozo inter-dito), agora ameaca re- duzir a demanda 4 pulsio. O neurdtico faz consistir seu eu na imagem do eu ideal edificado no significante do desejo, no significante falico, calcado nos tracos extraidos do ideal do eu. Por se angustiar em face da castracao do Outro, ele utiliza a identificagao primaria como resposta a demanda do Outro que cle faz encarnar nos personagens de sua histria ¢ aos quais deve atender, Pela libido que facilita as trocas simbélicas, ele préprio se torna equivalente ao objeto que supe ser deman- dado pelo Outro. Lembremos que, para Freud, a angiistia aparece como um sinal no eu, Lacan nao se distancia dessa perspectiva, mas acrescenta que a angiistia é transbordamento do real no imagi- nario. Ele lembra os instantes fugazes e traumaticos em que o sujeito é atravessado pela angiistia. Ao ser tocado pelo vazio do objeto, o sujeito vacila deixando emergir sua tinica consistén- cia que é a de gozo. Nesses instantes em que © gozo pulsional se manifesta para © sujeito, pode Ihe parecer que “a falta vai faltar”. De que objeto se trata na angiistia senao daquele que porta a marca indelével do ser de gozo? A expresso “a falta ameaca faltar” nada mais € que a manifestagao da presenca maciga da proximidade do gozo pulsional a que © eu é amea- ¢ado de sucumbir. O que o neurdtico mais teme é ser reduzido ao seu corpo real e pulsional, ou seja, teme ser destituido das identificacoes imaginarias e simbélicas que 0 constituiram como corpo sexuado ¢ como um Eu, Sabet-fazer com 0 real da clinica Contrariamente a Freud, Lacan mostra que a angiistia nao é apenas ameaca de perda. Para Lacan, a angiistia adverte 0 eu acerca da proximidade ao objeto que evoca 6 gozo pulsional. A angiistia adverte 0 Eu acerca da ameaca de que a “falta vai faltar"*, Embora nao deixe de considerar a fimcao de ameaca de perda de amor ¢ de falta do objeto abordada por Freud, Lacan positiva 0 objeto ao localizé-lo na vertente da economia de gozo. Ele chega a dizer “a angiistia nao € sem objeto”. Para Lacan, portanto, a angtistia é “o tinico afeto que nao engana”. Essa expresso lacaniana, “a angtistia nao é sem objeto”, leva-nos a considerar o objeto “amarrando” a angiistia, Em res- posta a questdo “o que o Outro quer de mim?”, ou a pergunta “o que o Outro me quer, quer em mim?", o sujeito é fisgado pelo gozo no qual deposita o amago de seu ser. O objeto que se furta ao desejo nao é outro senao a marca de gozo que afeta ¢ instiga o mago do ser novamente a seguir as trilhas e com- portas do desejo. Consideramos com Colette Soler que a angtistia é uma. possivel manifestagao de instantes fortuitos de destituigao sub- jetiva, mesmo que destituicao selvagem. Os instantes fugidios em que 0 sujeito, suspenso ao Outro, manifesta-se pela anguis- tia sio equivalentes a momentos de destituicao subjetiva. Sao instantes em que o Amago do ser do sujeito é afetado pelo vazio de representacao. As identificagdes tendem a vacilar € 0 ser, a se a-presentar no objeto furtivo € insensato do desejo — “esse obscuro objeto do desejo”, conforme o titulo do filme de Buiiuel. Nos instantes de destitui¢ao subjetiva, os cortes da de- manda pela pulsao fazem a fantasia oscilar, ¢ 0 sujeito se mani- festa afetado pela angtistia. O que vacila é o lugar de objeto que 0 sujeito ocupou ao se “ofertar ao Outro” para ali encon- trar 0 Amago de seu ser de gozo. Pela destituigao subjetiva, o neurético alcanga sua redu- cdo ao traco significante que ora dele se furta, ora o fixa enqua- drando-o na janela da fantasia. Os instantes fugazes em que 0 desejo esta suspenso € fazem com que 0 sujeito se manifeste pela angiistia sio equivalentes a momentos de destituicao. Nes- ses instantes fugazes de destituicao, o sujeito se manifesta como “falta-a-ser”. Se, de um lado, 0 objeto sustenta a demanda no cixo do “ter” o falo, de outro, esse objeto falacioso da deman- da convoca o “seujeito/sujeito” a se manifestar em sua inefavel, c estiipida ex-sisténcia® até alcancar 0 furo do simbélico, como trowméatico® ou ainda trop-matico® , assim concebido por Lacan por ser excedente pulsional nao balizado pelo simbélico. Stylus Rio de Janeiro. 10 p.31-81 abr. 2008, * Lacan (19623) * idem, A pimeraleta adapaara presenta destacx prs equvocat com ocbetoe iscarano ema dstias manfestacbes de $020: por um lad, goz0 emperds menor degoz0,¢,porouto, rags0 de gozono enauacte dajenela dafaiasia Destacaros rovameteo ado tera presen cue, endo referdo a0 ojo 3 é defn porlacan de iterentes formas Ente eas, como sca “pa casa ou ainda’ aqulo quese supe oe \atil. denéosenso, dendo senile ouirsensaez {.stuando epee metorina, (leortud, vata se do obeto quesatstring gzo" (aca Semniio 20, Mas aid, 198, 171), Tanoém podemostazé lo eauialer&resevapukiona freudara contac porlacanro Ge)queedt consistence corpo * Aberdmosanogiobeanans deexsstncspascorotsa vidsfoadosmbsicoge iste comopusio, *Recoremos eo emivoco Sigfeantetoomstcoufilzado porlaanepemiiopeaingss fences para serettr ao tray quetad.zoburcored m0 simblco, 0000 de siicacto ppovocscopeo taura * Fopmiteasgnifcao exces pusoralquee trambico eins, portival porno te Sco todoapsiguco peo sinbaco. 37 * Lacan, Felensio( 1993, p.81) ® Lacan Adteciodo tatanento (1998, 616) Lacan O Senin, lwo 7 (1959-40, p.149) 38 A destituicdo subjetiva é correlata ao instante fugaz em que se manifesta, pela angiistia, o objeto furtivo ao desejo. O objeto, contudo, traduz para o sujeito o que ele épara © Outro: é“poténcia de pura perda”, expressio equivalente aquela wtili- zada por Lacan em Direcdo do tratamento para exprimir 0 aspecto de “ser instigado pela forga da libido”. Ou ainda, trata-se dos instantes contingentes em que 0 Amago do ser € a fantasia sio tocacos pela angiistia. O sujeito é despertado, tomando-se equi- valente ao objeto. Podemos dizer que cle é“a Coisa real = das Ding fora-le-significado — que padece do significante™. Aangtistia como “transbordamento do real no imagina- tio” visa desvelar os momentos de destituicao subjetiva para que 0 Amago do ser se @presente e possa se manifestar fortuita- mente na contingéncia do real do sexo. Nesses momentos de destitui¢ao das demandas ¢ das identificacdes, o objeto aé core lato a um vazio da cadeia associativa. Nos buracos abertos do corpo —zonas crégenas- 0 objeto é pura manifestagao de gozo E fogo € fumaca porque o gozo incendeia o corpo instigado pelo oco simbélico por onde extravasa a pulsio. Ora o objeto €coa insistentemente retornando, contornando © oo simbéli- co trowe tropmatico, ora fixa o Amago do ser em instantes bali- zados pela fantasia, ora escoa pelas frestas por onde percorre a deriva da pulsao, ora fixa o ser de gozo nos impasses do desejo no percurso da pulsio. A experiéncia analitica, todavia, visa A falta-a-gozar para relancar a apeténcia do desejo ao novo. O novo evoca e convoca a falta de significante para representar 0 goz0. uma vez mais, Mais uma vez. E assim por diante porque o dese- jo nao se esgota, exceto na morte verdadeira. A vida significa que, no Outro, Outro que falta, Outro da castracao, no real, falta o significante para estancar 0 Amago do sujeito que, desti- tuido das demandas ¢ das identificagdes, pode, entdo, reencon- trar seu leito no desejo. Saber-fazer com 0 teal da clinica referéncias bibliogréticas Cazorre, Jacques. O diabo enamorado. Rio de Janeiro: Imago, 1982 Freup, Sigmund. (1895). Projeto para uma psicologia cientifica. In Eddigéio Standard Brasileira das Obras Completas deS. Freud. Rio de Janciro: Imago, 1974. Vol. I Frrun, Sigmund. (1911). Formulacdes sobre os dois principios do funcionamento mental. In: Edigdo Standard Brasileira das Obras Completas de S, Freud. Rio de Janciro: Imago, 1974. Vol. XI. Faeun, Sigmund. (1907). Delirios e sonhos na Gradiva de Jensen. In: Edigiio Standard Brasileira das Obras Gompletas de 8. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. Vol VIL. FRev'o, Sigmund. Totem ¢ tabu (1912). In: Edigéo Standard Brasileira das Obras Completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. Vol XIX. Fatup, Sigmund. O estranho. (1919). In: Edigtio Standard Brasileira das Obras Completas de 8. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. Vol. XVI. Feeup, Sigmund. (1920). Além do principio do prazer. 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The anguish can be an orien- tation to the psychoanalytic treatment direction because it organizes the ana- lytic experience and the analitic act precisely at the moment when it happens the destitutions of identifica- tions supported by the phantom. palavras-chave angiistia, trauma, fantasia ¢ destituiga0 de identificacées. keywords anguish, trauma, phantom and destitu- tion of identifications. recebido 14/02/2005 aprovado 20/03/2005, Stylus Rio de Janeiro n. 10 p.31-41 abr 2005; a1 Lacan. O Semin X A an _gistia(1962-), (ied, aula de ‘6 demaga de 1963) A fungéo da angistia na anilise ‘Maria Cé1ia DeLcano ne Carvatno “E sobre o gume da angistia que temos que nos sustentan, e € sobre esse gume que espero conduszi-los mais linge. Jacques Lacan (Com sets PACIENTES, FREUD FOI TEVADO A RFCONHECER que, no Amago do ser, ha um vazio, uma coisa irrepresentavel, das Ding, uma coisa ao mesmo tempo estranha € familiar, Unheinliche, um umbigo do sonho, em tomo do qual gravitam as representacdes € se deslocam os significantes na busca de um rastro, de uma pegada apagada que o sujeito tenta incessante- mente recuperar. Nessa experiéncia de ter que se estruturar a partir de um vazio, a angiistia se mostra presente e determinante na estruturacao do sujeito, levando-o a constituir identificagdes, entre as quais 0 eu, que nao é mais que um sujeito identificado, produzir sintomas e criar uma fantasia, A definicao de Freud para a angiistia foi a de um sinal de perigo para o ev. Com Lacan, a clinica confirma que se aan- giistia é um sinal, é 0 sinal de que ha um real incémodo, inevi- tavel e diante do qual 0 snjeito busca encontrar uma resposta simbélica, langando mao de recursos imaginarios para apar cer como sujeito em uma operagio que deixa um resto que incessantemente o divide, o objeto a, causa de desejo. A angi tia nao sé € o sinal desse real “necessdrio™ que se apresenta na experiéncia, mas também, e em especial, um sinal que nao engana. A angtistia se manifesta vinculada ao dese jo do Outro, Ti- gada ao fato de que esse desejo é para o sujeito um enigma por meio do qual ele se pergunta que objeto ele é para esse dese- jo. A fungao f(x) indica que ha uma incégnita, a qual, na consti tuicao do sujeito em sua relacao com o Outro, é fundamental mente 0 desconhecimento essencial do que é, na economia do desejo, 0 objeto a, Na anilise, a angiistia € 0 sinal de que nos Saber-fazer com o real da clinica aproximamos do desejo do Outro, esse mesmo Outro em que © sujeito institui o objeto a maixgozar como causa de desejo. Definir a angtistia como um sinal ji é Ihe dar uma fiungao clinica, uma vez que ela emerge em um ponto privilegiado, sinal de que 0 objeto 4, causa de desejo, esta em jogo, ¢ que nos aproximamos do que Lacan descreven no Seminario IXcomo “o mais intimo de nés mesmos no qual tentamos fazer 0 anco- radouro, a raiz, o fndamento do que somos como sujcito”’, € que repousa no vazio de ser, em face do qual o sujeito é toma- do pelo afeto por exceléncia, a angtistia. Este ponto de angiis- tia é “aquele onde o sujeito tem relacao com sua falta, com aquilo a que esta suspenso”. Ea partir do vazio que o sujeito se constitni, ¢ apesar de passar a vida a buscar significantes que © representem numa tentativa incessante de explicar sua exis- téncia ¢ dar a ela um sentido, esse vazio sempre insiste como um lugar que nada que o sujeito alcance em suas buscas pode- ri preencher, Na anilise, a angiistia tem a funcdo de apontar para esse lugar fundante do sujeito, indicando que f(x)=¢. Ao vivenciar essa angiistia em toda sua intensidade, 0 sujeito se torna capaz de aproximar-se de seus pontos de gozo © assumir uma nova posicao em relagio a sua estrutura. A articulagdo da angiistia como um sinal de aproxima- Gao ao desejo do Outro se liga ao conceit de cesxdo como uma operacao que se dé na constituigéo tanto do sujeito quanto do objeto ano Outro. No Semindrio X, Lacan introduz. a caracte- ristica de cessdo presente no desmame, que possibilita a queda do objeto seio como causa ¢ a emergéncia do sujeito ne Outro, cedendo a ele, instituindo seu desejo como desejo do Outro. No desmame, nao éa mac o agente, e sim o bebé, que se separa do seio deixando que ele caia como objeto a, causa de desejo. O que aparece na estrutura como demanda do Outro instituinte do sujeito é uma demanda prépria do sujeito; este no é de- mandado, mas se demanda impulsionado pela angiistia. O mo- mento imediatamente anterior 4 constituigao do objeto é defi- nido por Lacan como um momento légico de fungaoda angiis- como separagao que da lugar a emergéncia do sujeito como dividido a0 mesmo tempo do objeto acomo causa de desejo, momento de cessdoanilogo ao experimentado na sessdode anali- se. A angiistia se manifesta ligada a incégnita f(x), que, na cons- tituigao do sujeito em sua relacao com © Outro, representa © desconhecimento do que é, na economia do desejo, 0 objeto a “Tenho interrogado muitas vezes sobre 0 que convém que seja o desejo do analista para que ali onde tentamos levar Stylus Rio de Janeiro n 10 p.42-48 abr. 2005 Sacan Seniniro Xa dent fao( 1961-2) (réck,aua ce 98 denoventyo de 1981) >Lacan, O Semin: aan _sisia( 962-3), (Iedto, aula de ‘Scdemac de 1963) 43 “Pd, aula de 90 de Fevereiro e968, bid, lade 97 de fevereio 1963, (bid, aula de 18 demaio de 1968, Sok: Artgosclincos( 1991, p.64) bio as coisas, além do limite da angiistia, 0 trabalho seja possivel™: Na conducao de uma anilise, o desejo do analista também se apresenta como um vazio que permite ao sujeito instalar ai o desejo do Outro ao qual se sujeitou, fazendo aparecer assim os significantes dessa dependéncia e, para além deles, seus pontos de gozo ¢ os objetos aa eles associados. A anilise interroga o sujeito na raiz de seu desejo, li onde ele s6 esta como causa de desejo, em um momento de antecedéncia logica a instauracao do objeto a como causa de desea: “Essa dimensao temporal é a angiistia ¢ é dessa dimensao temporal que se trata na andlise. E porque o desejo do analista suscita em mim essa dimensao da espera que sou tomado por algo que é da ordem da eficacia da anilise”®, Em razao das identifieacdes, da fantasia e dos sintomas serem abalados pelo trabalho da andlise, a angtistia velada emer- gee indica que a andlise esta no caminho do desejo, permitin- do “esclarecer a funcao do objeto em relagao ao desejo"”. No manejo da transferéncia, o desejo do analista esta na contramao de tudo 0 que se institui como anteparo a anguistia, sendo, dessa forma, o principal causador da angtistia na anéli- se. Colette Soler chega a dizer que “o analista tem a seu cargo a tarefa de angustiar o paciente””¢ que a transferéncia, em sua vertente da separacio, € 0 “empuxo-A-angtistia’®, A transferén- cia “tenta fazer com que o sinal de angiistia surja como respos- ta, pois ela indica o registro da relacao com 0 objeto do desejo do Outro, desejo que a fantasia, como cendrio imaginario, en- cobre. A finalidade, evidentemente, nao é a angitstia; é, preci- samente, extrair da angiistia sua certeza”®. Situa¢ao paradoxal se pensarmos que muitos sujeitos buscam a andlise para encon- tar a solucao para sua angtistia ¢, no decorrer do proceso analitico, e mesmo no fim de andlise, deparam-se com ela, As- sim como nao ha como mudar de posicao subjetiva sem reco- nhecer seus pontos de gozo ¢ os objetos ai envolvidos, nao é possivel chegar ao fim de uma anélise sem passar pela angits- tia, Certamente nao se trata de trabalhar no sentido de criar angiistia, e sim de reconhecé-la onde ela sempre esteve € per- mitir surgimento do objeto @ como falta que causa desejo. Recordemos Freud com sua precisa articulagao de que 0 afeto nunca é recalcado, apenas deslocado para outra representa- do, outro significante, nao se tratando, portanto, de criar an- guistia, sim de localizéla onde ela se encontra desviada ou velada. O manejo que esta a cargo do analista implica divigir 0 tratamento no sentido de nao inviabiliza-lo pelo surgimento da angiistia, ¢ isso s6 € possivel porque o analista passou por uma Saber-fazer com 0 real da clinica anilise e adquirin a capacidade de suportar sua prépria angiis- ia: “sentir 0 que o sujeito pode suportar da angiistia é © que nos poe A prova a todo instante”. Se 0 descjo do analista € uma manifestacao que se faz possivel a partir de uma virada discursiva na anilise desse ana- lista, podemos dizer que esta diretamente ligado e condiciona- do A passagem desse analista pela angtistia em sua andlise em intensao ¢ extensao, tendo como consequéncia uma virada na abordagem que dara a essa angtistia na experiéncia, Nessa pas- sagem, o lugar que a angiistia ocupa para o sujeito passa de lugar do insuportavel a ser evitado para o Ingar de um afeto suportavel, quase bem-vindo por trazer consigo a possibilidade de elucidacao, de perlaboracdo. A angiistia, portanto, estabele- ce-se dessa forma na base disso que permitira a emergéncia do desejo do analista. As articulagdes de Lacan, em que © desejo do analista aparece como consequéncia do fim de andlise, nio deixam diwvidas. Vejamos. A ultrapassagem do plano das identificacdes para chegar a um fim de anélise foi postulada por Lacan desde 0 inicio de seu ensino, quando se posicionou contra o fim de anilise defi nido pela IPA com base na identificacdo com o analista. F. pre- ciso nao sé ir além da identificacdo com o analista, como tam- bém além do eu que se constitui em obstéculo a um possivel fim da anilise, pois este se define como uma identificacao regida pela alienacao ao Outro. Para que a anilise chegue a seu fim, deve vigorar a separacao em relacao a essa instituicio de Ou- tro, havendo lugar para que 0 objeto a possa emergir do lado do sujeito, causando-0. O ato analitico que pde em marcha o trabalho do inconsciente possibilita o aparecimento do desfila- deiro de identificagdes que estio em jogo para cada sujeito © leva 4 elaboracao passo a passo do equivoco em que estas se basciam pela confrontacao do sujeito com sua falta de ser, com a falta de um significante que diga o que ele é, desvelando a angiistia até entdo encoberta pelo eve pelo narcisismo. Se, por um lado, 0 esvaziamento das identificacées imaginarias no inicio da analise pode provocar algum apaziguamento no su- jeito, por outro, o enfrentamento da identificacao primordial no fim de andlise nao poupa o sujeito de se confrontar com a angiistia. A proposta mais polémica de Lacan para o fim de anili- se, a identificacdo com o sintoma, mostra 0 mesmo caminho no desvelamento da angiistia ¢ também evidencia o paradoxo da anilise. Se © analisando chega a anlise porque seu sintoma Stylus Riode Janeiro n. 10 p.42-48 abr. 2005 "Lacan, O Seminio X: aan. gia 1962-3), (Inedto aula de Ade overrode 1962) Soler Vaniveisdotimde anilse(1995) * Sole Varantes da desitugio subetva suas manifestagdes ¢ causas (2009) esta Ihe causando sofrimento, ou mesmo por um sofrimento ignorado apresentando-se como um sem saida, um impedimento, leva-se algum tempo para quebrar essa estrutura e identifiear 0 gozo que esta implicado ai. O sintoma como um s(A) que di significado ao Outro vela a falta no Outro, 0 S(X), 0 significante que falta a0 Outro. Na conclusio da anilise, a identificagao com o sintoma nao tem nada a ver com a resignacio, nao é um, deixa assim mesmo, mas antes consiste em identifiear-se ai, em reconhecer © gozo que nao permite ao suijeito se deslocar des- se lugar do sintoma, em saber fazer com ele, em saber lidar com ele ¢ assumir a verdade do gozo, confrontando-se com a falta no Outro que mais uma vez deixa a angiistia emergir Colette Soler lembra que essa posicao nada tem a ver com a posicao dos cinicos modemos, que também reconhecem e ad mitem sua singularidade de gozo, s6 que nao a verdade do gozo. Os cinicos nao vivenciam a angtistia porque acreditam na satisfacao plena das pulsdes, ao passo que, no fim de anali- se, a0 contrario, o sujcito identificado com seu sintoma é capaz de admitir e se sustentar na anguistia da insatisfacao pulsional. A travessia da fantasia como mais uma versio do fim de anilise tem o mesmo aspecto de desvelar a angtistia, uma vez que a fantasia se apresenta como um recurso do sujeito ao go70, uma forma de fazer frente ao desejo do Outro e gozar. Como vimos, 0 desejo do Outro angustia ¢ a fantasia se coloca como 0 que cobre essa angiistia € define uma posigao de gozo do sujei- to, “A fantasia é uma interpretacao do desejo do Outro[...] con- siste em atribuir a0 Outro uma vontade de gozo que implica um efeito de castragio”"'. Ao atravessar o enquadre que a fanta- sia di ao desejo do Outro através do reconhecimento de sua particularidade de gozo, é a castragao que se desvelara como impossivel de evitar, evidenciando mais uma vez a angiistia. No fim de uma andlise, ha uma postura adquirida na qual 6 sujeito “sabe alguma coisa do destino que Ihe faz 0 in- consciente e consente nisso, cede a isso”, E.a queda da defesa subjetiva que permitira ao sujeito admitir sua equivaléncia com © objeto. A isso Lacan chamon destituigdo subjetiva, A anguistia € © afcto ligado a essa destituicao, € 0 afeto do real, sendo ela prépria um momento de destituicao subjetiva, como descreve Colette Soler: “a anguistia é um momento de destituigao. Desti tuicdo que vamos chamar de selvagem, por oposi¢ao a destitui- ao programada dos discursos”"’. Para Lacan, o passe na anilise se constitui em um ato que permitira ao sujeito passar de analisantea anatista, Uma virada Saber fazer com o real da clinica que engendrara 0 desejo do analista e que é possibilitada pela queda das identificacées, pela travessia da fantasia, pela identi- ficacdo com 0 sintoma e sua conseqitente destituigao subjetiva. Essas operacées do fim de andlise s6 sio possiveis por intermé: dio de uma passagem pela angiistia. A reconstituicgao dos obje: tos na anillise ha de passar pelo ponto de partida, esse tempo logico anterior & instituicao do sujeito © A queda do objeto, esse tempo de cessio, o lugar vazio para o qual a angtistia tem a fungao de apontar, em que f(x) = ¢. Ao fim dessas operacSes que caracterizam 0 enfrentamento com a castragao, © sujeito estard apto a abracar uma causa € saber fazer nao s6 com seu sintoma, mas também com sua an- gtistia, experimentando-a em um aspecto suportavel em que houve uma mudanga de abordagem desse afeto, passando de ‘uma angustia ligada ao Outro (A) para uma angistia ligada ao objeto a, causa de desejo, fundadora de toda ¢ qualquer apari- cao subjetiva. referéncias bibliogréticas Lacan, Jacques. O Semindrio IX: A identificagdo. (1961-1962). Inédito. Lacan, Jacques. O Semindrio X: A angiistia (1962-1963). Inédito. Lacan, Jacques. O Semindrio XVI: De win Outro ao outro. (1968-1969). Inédito, Quiner, Antonio. A descoberta do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. Souer, Colette. Varidveis do fim da andlise. Campinas: Papirus, 1995. Soter, Colette. Artigos clinicos. Salvador: Fator, 1991. SoieR, Colette. Variantes da destitwicdo subjetiva: suas manifestagdes ¢ can- sas. Stylus. Belo Horizonte, n. 5, 2002. Rasinovicn:, Diana. O deseja do psicanalista—liberdade e determinagéo em psicandlise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2002 Stylus Riode Janeiro n. 10 42-48 abr. 2005, resumo objetivo deste trabalho € analisar a fungaoda angiistia no percurso da andlise qque leva & passagem de analisante a ana- lista. O que queremos enfatizar é essa funcio como ima passagem necessaria para que a analise chegue a um fim € possa dar lugar a0 desejo do analista. Nesse proceso, a experiéncia que © sujeito tem da angtistia sofrera uma mudanga significativa, abstract ‘The aim of this paper is to analyze the anguish function on the course of the analysis leading to the passage from analysant to analyst. What we want to em- phasize is this function asa necessary pas- sage for the analysis to get to. an end and permit the establishment of the analyst's desire, In this process, the subject's ex- perience of the anguish will suffer a sig- nificant change. palavras-chave fancio da angiistia, percurso da anilise, dese jo do analista, objeto keywords anguish function, analysis course, analyst’s desire, object a. recebido 22/02/2005 aprovado. 16/04/2005 Saber-fazer com 0 teal da clinica trabalho critico com os conceitos ~ A fantasia e sua relagdéo com o trauma Bernarp Nomint UM Dos MOMENTOS FUNDADORES DA PSICANALISE £ © abando- no por parte de Freud da teoria por ele construida juntamente com Fliess sobre a origem traumitica das neuroses. Sabemos que cle deslocou o acento sobre a causa da neurose do trauma’ para a fantasia. Desde entao, a histéria do movimento psicanalitico se apresenta salpicada por querelas referentes a esse ponto crucial, Ortodoxia impiedosa de alguns, revisionismo de outros, estamos sempre ao redor desse ponto, € basta que a imprensa anuncie em primeira pagina que abrira esse dossié sulfuroso para sa- bermos que as vendas aumentarao. Se esse deslocamento do trauma para a fantasia desencadeia ainda hoje tantas paixdes é porque ele representa uma questo de peso. Para além das querelas sociolégicas infindaveis sobre a origem do mal-estar em nossas culturas, retenhamos isto: para nds, psicanalistas, todo recuo com relacao a esse salto, a essa ultrapassagem do Rubicdo que Freud realizou, arriscaria nos levar a perder de vista a esséncia da psicandlise. no comeco era o trauma Nao € por isso que os psicanalistas devem negar toda a importancia de um acontecimento traumatico. O trauma exis- te, mas ele nao cessa de nos dividir, em todos os sentidos do termo. O préprio Frend, muito cedo, mostrou-se dividido pela questdo, Ele apresenta duas concepcdes que parecem se opor. Na primeira concepgao, explica que aquilo que é trau- matico para um sujeito é uma excitacao demasiado forte, de- masiado precoce para poder ser metabolizada no psiquismo, seja como angiistia, seja como libido. Resumindo, wm instante traumdtico é algo que permanece fora do sentido. Na segunda, Freud demonstra que um acontecimento que permaneceu fora de sentido na vida de um sujeito s6 se tornara traumitico pela via de uma significacao recebida posteriormente na sua rela- Go significante com um segundo acontecimento do qual o su- jeito nao pode negar seu alcance libidinal. Assim, pode-se de- duzirdai que a significacao recebida posteriormente que é trau- mitica. Stylus Rio de Janeiro n. 10 p.51-89 abr. 2008 N dol. Embora, no orginal, aor ulize“taumatsme’, resoveros usr ovocdbulo trauma’, segindo 0 dcionstio deere Kaimarn, que estabelece a segunte dstncio, traumatismoseaplica 8 ‘ocomérciaextema que ange o suite trauma, ap efeto prcdutido por essa ocorréndia no sito, e mas espect ccamerteno dominio psiquco. 52 Essa concepcao é essencial para a psicanilise, pois é © pré- prio principio da causalidade psiquica que repousa sobre a lagica do significante. Mas, enfim, apesar de tudo, acabamos ficando com nossas duas hipéteses: sem-sentido de um lado, excesso de sentido do outro. Como se pode observar em diferentes niveis de sua obra, Freud, ao passar de uma teoria a outa, jamais, renega completamente seu ponto de partida, e todos nés fomos beneficiados pelo fato de que areleitura de Lacan tenha se inte- ressado de forma especial pelo devir desses pequenos restos de teoria que outros, muito apressadamente, tinham tendéncia a abandonar. Guardemos, pois, essas duas concepedes do trauma, mesmo que elas se entrechoquem, ¢ passemos a abordar o que € 0 tema deste trabalho: o trauma e a fantasia. trauma e fantasia Freud deslocou 0 acento do trauma para a fantasia, ¢ 6 interessante ver 0 que tornou possivel tal deslocamento. Por gue se pode confundir uma cena traumatica com uma fantasia? E bastante provavel que haja um parentesco de estrutura entre essas duas experiéncias subjetivas. Ambas, com efeito, apresentam-se como cenas diante das, quais 0 sujeito fica imobilizado e ausente, nao participando delas como sujeito. No trauma, 0 sujeito nao esta implicado como sujeito, permanecendo reduzido ao estado de objeto. Mas, apesar de tudo, esti implicado nele. Isso Ihe diz respeito, © € nisso que a cena é waumatizante. Vou lhes dar como exem- plo uma vinheta clinica bem curta o pesadelo do soldado ‘Trata-se de um paciente que vem me ver por causa de uma insénia e de recorrentes pesadelos atribuidos, com razao, uma neurose traumatica. Esse militar de carreira havia vivido de forma impotente os massacres de Ruanda. Ele se havia apre- sentado como voluntirio para a miss4o militar de vigiar as po- pulagdes ruandenses ¢ nada péde fazer exceto a triagem dos cadaveres. Ele, entretanto, assumiu essa tarefa insustentavel. De volta A Franga, comeca a ter pesacelos nos quais vé os cadlaveres decepados de forma atroz. Quando lhe peco deta- Ihes, ele esclarece que eram principalmente corpos de crian- ¢as. Mas quando nos encontramos pela primeira vez, 0 genocidio ocorrera havia oito anos. Alguma coisa atual teria, portanto, acentuado a freqiiéncia dos pesadelos. O fato é que Saber fazer com o real da clinica cle havia tomado conhecimento de uma comissio que investi- gava uma possivel responsabilidade da Franca nos genocidios. Hoje esses fatos ja estdo bastante esclarecidos: de fato, houve cumplicidade militar, financeira ¢ diplomatica, do que nés nada temos para nos orgulhar O que havia sustentado a carreira militar desse sujeito, um certo ideal de justica e de assisténcia as vitivas € aos 6rfaos, desmoronava entao para cle, fazendo-o sentir-se enganado por aqueles que o haviam enviado para li Acreditei compreender que era diante da contemplacio horrorizada de seu proprio corpo despedacado que seu olhar se abismava em seu pesadelo repetitive. Essa cena o olhava fixamente tanto mais, devo precisar, pelo fato de sua pele ser da mesma cor da pele dos cadaveres que cle devia amontoar nos caminhées, Nesse sujeito sustentado por uma imagem nar- cisica importante, a revelacao da impostura do significante ide- alo remetia a essa imagem de corpo despedacado. Eu nao 0 atendi durante um longo periodo de tempo, pois ele apenas demandava poder dormir e nao queria saber de nada mais. Os detalhes que the pedira me permitiram dizer a ele que a ima- gem de pesadelo que © obcecava tinha algo a ver com a sua propria imagem, e que isso Ihe retornava sobremaneira pelo fato de sua imagem ideal ter sido agredida. Isso Ihe bastou. Nao é uma fantasia a cena que o encara de forma atroz € diante da qual ele é abolido como sujeito para ser apenas esse fantoche desconjuntado. Sua participacio subjetiva é minima, € apenas o despertar necessario para se desgrudar desse olhar cativo, entretanto a repeticao desse pesadelo sugere, sem ciivi- da, um gozo que no the deve ser totalmente estranho € que se poderia atribuir a um supereu feroz, outra face da imagem ideal subitamente denunciada. Um supereu na medida desse imperativo totalitario que impde que o corpo de uma crianca seja despedacado em nome de uma légica significante medo- nha ¢ impiedosa que quer que alguém se coloque sob um significante Tutsi?quando nao se diz Hutu’. Afirmo que esse sonho traumatico nao é uma fantasia, ja que esse sujeito viu essas coisas na realidade. E possivel, entre- tanto, que isso no seja suficiente para dizer que nio se trata mesmo de uma fantasia, pois, em suma, uma fantasia poderia retomar, por sua prépria conta, um acontecimento real. Isso se observa correntemente na vida, cada um de nés nao vé sua realidade a nio ser pela janela de sua propria fantasia. Apesar de tudo isso, creio que se poderia dizer que © trauma assinala © fracasso da fantasia. Stylus Rio de Janeiro 10 p.S1-89. abr. 2005, EN. do TT, indviduo cos tits, povo de estoaveniégico, gueriétae cadar de ged, que Imvac res datas Replicas doBind ede fuenda N.doT:"Hulv, povo agario bantu ve tomou dos pigmieus wa, creas ds aa heptbicas cleRuanda e Surin) as quas posteninmente (Secs. XIVeXV) foram imacidas pelo pova tts Aquele que nao viveu a cena mas para quem ela é conta- da fabricara uma imagem que bem poderia ter esse valor de figuracao fantasistica, uma espécie de véu 4 maneira de Carpaccio que representa Sao Jorge vencendo 0 dragio sobre as paredes da Scuola di San Giorgio, em Veneza. 0 Sao Jorge de Carpaccio O visitante que observa essa lenda de Sao Jorge que deco- ra as paredes da pequena Scuola degli Schiavoni e se debruca sobre os detalhes do combate entre Sao Jorge ¢ 0 dragio nao pode deixar de ter um encontro com o horror. O solo esta juncado de restos humanos espalhados. Aqui estamos nao na fantasia, mas no mito. As estruturas de ambos, entretanto, sao proximas. Gonhego ha muito tempo esse quadro de Carpaccio. Lacan faz referéncia a ele em um de seus seminarios, ao sublinhar o deta- Ihe dos corpos despedacados, Sem diivida foi isso que capturou minha atengao, mas eu nao havia, até esse momento, me feito a questao do sentido dessa pintura. Qual nao foi minha surpresa ao descobrir que ela ilustra um mito muito recorrente! A Lenda dourada de Sao Jorgeconta que os habitantes da cida- de de Selena, na Lybia, eram perseguidos por um dragio que exigia ser nutrido pelos jovens da cidade. Os habitantes consent am no sacrificio a fim de ter paz, até o dia em que chegou a vez da filha do rei. Foi, entao, que Sao Jorge colocow um fim a calamida- de e salvou a princesa matando o dragao. E isso que justifica a presenca, na margem do quadro, de uma jovem cuja beleza cor trasta com o horror da fera e dos restos de sua refeigao. Se minhas associagées de idéias me levaram em dire¢ao. a essa figuracao mitica, isso aconteceu, sem diivida, por algo mais que parentesco da imagem, ou seja, foi por causa da identidade de estrutura com o que constitui a trama do pesade- lo de meu paciente. ‘Nossos mitos repisam essa histéria de um poder que re- clama que © corpo de uma crianga seja sacrificado para sua satisfagao. Esse poder feroz, esse deus obscuro com o qual Sao Jorge se defronta é igualmente 0 Eloim, a quem Abraao cé dever responder levando seu filho para a montanha, ou mes- mo, os deuses astecas que se alimentavam de coracées huma- nos, Em resumo, a lista é longa. Para nés, essa figura mitica responde 4 exigéncia estru- tural que faz com que nosso corpo sustente sua unidade, primi- tivamente, apenas pela sua alicnagao a linguagem, via o desejo do Outro que a encarna. Nés nos orgulhamos desse dom da Saber-fazer com o real da clinica linguagem que nos foi concedido, mas dele nao é menos verda- de que, em certas circunstancias, essa instancia civilizadora pode se voltar contra nés ¢, ento, massacrar-nos em nome do signi- ficante, matar-nos em nome de um mandamento cego. Para retomar a alegoria pintada por Carpaccio, Sio Jor ge € a figura do soldado ideal, o anjo civilizador que nos per- mite triunfar sobre © corpo despedacado © nos ver através de uma imagem narcisista conveniente. Mas atras desse ideal ha sempre © dragao, a fera primitiva agitada pela besteira do significante € por seu poder mortifero. O pesadelo do meu paciente assinala o fracasso de Sao Jorge. A integridade do sol- dado foi agredida, Sao Jorge desertou da cena onde ficaram apenas os membros esparsos das vitimas devoradas pela fera. No fundo, a estrutura desse pesadelo, bastante paradigmatica, €amesma daquela presente no quadro de Carpaccio que esco- Thi para ilustrar a cena da fantasia, s6 que esse pesadelo é 0 quadro de Carpaccio sem Sao Jorge. Na fantasia, Sao Jorge, ou qualquer figura equivalente erigida como filha do rei, porexem- plo, é subentendida senao representada. co espetéculo da crianga espanceda ‘Tomemos a figura paradigmatica que Freud nos legou: Uma crianga é espancada, Notem, de passagem, que se trata da representacao de uma cena traumitica para 0 outro, o semelhante. O préprio Freud observa que essa criacao fantasistica se apéia sobre a lembranga de uma cena de fustigagao real que jamais foi vivenciada conscientemente como agradavel, mas antes como insuportavel, até mesmo taumatizante, enquanto a cena fanta- siada bate-se nwma crianga se torna o suporte de uma satisfacao auto-crética. Se essa cena é 0 suporte de uma satisfagao, é por que ela exalta 0 narcisismo do espectador. “Meu pai bate no meu rival, portanto € a mim que ele ama”. Freud nao hesita em considerar essa fantasia como a ex- pressio de um taco de perversao. Salto os desenvolvimentos sutis que ele faz nas trés fases da fantasia para me deter na sua conclusao: trata-se dle uma satisfacio masoquista. Na sua repre- sentagao final, bate-se numa crianga, “a crianga, autora da fanta- sia, rigorosamente nao intervém a nao ser como espectadora”, Algumas linhas antes, Freud ressaltara, a propésito dessa ter- ceira fase, o desaparecimento da prépria pessoa da crianca, autora da fantasia, acrescentando: “Pressionados por questdes, 0 pacientes respondem: provavelmente eu olho” Stylus Rio de Janeito 10 p.SI-S8 abr. 2005 “Lacan, © Semining, hiro 6 odes esusinterpretario (1958-9), (indo, aia ce 7 dejanero de 1959) Assim, portanto, no nivel do traco de perversio, mesmo se Freud nao o diz explicitamente, além da dimensio maso- quista, nao podemos eliminar a fim¢ao do olhar. A fantasia freudiana se desenvolve como uma cena que aparece sobre uma tela e que olha no mais alto ponto 0 autor da fantasia que i esta presente apenas como espectador. Além disso, é justa- mente essa posicio do sujeito na fantasia, como voyeur, a mais desconhecida pelo préprio sujeito. Entio, 0 que é que olha o sujeito dessa forma? Lacan sugere uma resposta: “o sujeito viu 0 outro rebai xado na sua dignidade de sujeito erigido, de pequeno rival; algo se abriu nele que o faz perceber que é nesta possibilidade de anulacao subjetiva que reside todo seu ser, que é 14, rocan- do o mais perto possivel desta abolicao, que ele mede a pré- pria dimensao na qual ele subsiste enquanto ser-sujeito™ O sujeito, portanto, fascina-se pelo que se abre diante dele, por meio daquele com quem pode se identificar, a queda do objeto idealizado que foi a crianca querida, quando ela é repreendida, quando ela sofre a lei do pai. A crianca nao é mais que um objeto espancado, rebaixado, um puro objeto, até mesmo um dejeto. Mas essa destituicdo que se retém tio seguramente de seu olhar nio © conduz & vertigem, pois um efeito de sentido vem salvé-lo, em decorréncia da solugao edipiana: “Meu pai, tratando dessa forma este objeto, mostra para mim que me ama”. Adimensio edipiana, portanto, reside na posicio tercei- ra do sujeito voyeur: nao apenas essa cena o olha, como cle imagina que ela é feita para cle. E isso que sustenta sua posicao narcisista. Ela sera reforcada na seqiiéncia pela segunda fase da fantasia que é uma expressio do desejo de ser 0 objeto do pai. Mas isso de forma alguma é representivel. Até se poderia dizer que a cena que se representa como bate-se numa crianca tem como ponto de partida esse irrepresentavel. Para além da significacdo do interdito edipiano, Lacan entrevé que é outra coisa que esta relacionada com a inscricao do ser do sujeito na linguagem. Essa inscrig4o sob o significante faz com que todo ser falante seja forgado a aceitar a submissao a lei regida pela fungao do Nome-do-Pai, O que 0 faz sujeito do desejo é 0 sacri- ficio que faz de sua posicdo primitiva de crianca ou, dito de outra forma, de sua posicio de objeto de gozo do Outro. Sabe-se que esse sacrificio s6 é suportivel com a condi ao de que um resto fique fora do cutelo sacrificador do significante, o famoso objeto ade Lacan. Saber-fazer com 0 real da clinica Definitivamente, a fantasia é um arranjo significante. Tra- tase de uma formula que atrela o sujeito barrado saido do sacrificio com o objeto aque dele escapou. E. por esse motive que Lacan nos diz: “ina erianga 6 espancada nada mais é que Sacan. 0 Seninit, leo 12 uma articulagao significante: uma crianca é espancada, s6 que alégea dae, 1986 sobre isso vagueia, paira, este impossivel de ser eliminado que —__{lhédto,aulede cepa se chama o olhar”®, de 1967) a funcéo do olhar Penso que é essa dimensao do olhar que nos permite dis- tinguir a cena da fantasia da cena traumitica. A cena da fantasia sempre supde uma dimensio voyeurista. Dessa forma, o sujeito da fantasia fica em uma posicio terceira com relacao Aquele que olha, mesmo, e principalmente, que nao saiba por que esta ali. Besse 0 ponto em que a posicao voyeurista se conjuga sutilmente com a posicao masoquista. Na posicio mais comum de seu ato, 0 voyeur esta submetido a esse objeto que o olha e o paralisa em uma posicao puramente passiva. “O olhar deve ser procurado naquilo que o voyeur quer ver, mas onde ele desconhece que se trata daquilo que o olha da forma mais intima, daquilo que o paralisa na sua fascinacao de voyeur a “idem, aula de 95 de nero ponto de torné-lo tao inerte como uma pintura”™ 2 1967 Aquilo que o voyeur quer ver é 0 impossivel de ser visto, ¢ isso se condensa muito naturalmente sobre a tela da fantasia, em tudo aquilo que se queresconder a respeito do sexo e da morte. Falo da fantasia como tela, mas sta estrutura é mais com- plexa. A fantasia é, antes de tudo, um enquadre, uma janela que regula 0 ponto de vista de um sujeito sobre seu mundo Mas sobre essa janela se estende uma tela que a torna opaca, ¢ € sobre essa tela que se forma uma imagem atraente do tipo wna crianca é espancada, Dito de outra forma, 0 sujeito fica fas- cinado pelo que aparece sobre a tela, mas nao sabe por qué, pois o que o paralisa diante dessa imagem esta além da tela ¢ Ihe permanece opaco. Uma figuracao de cena que tenha sido traumatica para o sujeito pode funcionar como tela, residindo ai a funcao da lem- branca encobridora. Essa figuracio, todavia, é sempre parcial, sempre incide sobre um detalhe pouco relevante. O trauma, a0 contrario, supée a tela furada e o para além da tela. O modelo escolhido por Freud para a fantasia sugere que, de forma mais geral, sea cena fantasiada tem ares de trauma, aquilo que dele se representa é a infelicidade que se abate sobre o outro. Stylus Rio de Janeiro n. 10 p.SI-S9 abr 2005 57 Dai por que, ao se interessar demais pela cena traumati- ca, a bela alma,nao somente renega a afirmacao, 0 enunciado freudiano, como desconhece a parte de goz0 que subtrai do trauma do outro, fazendo-o funcionar, sem que o saiba, como fantasia. E esse escolho que é preciso saber desmanchar, prin- cipalmente quando escutamos pessoas ligadas a uma infincia marcada por maus-tratos. Quando a justica as induz 4 dentin- cia, diante da menor diivida © psicanalista tende ir contra a corrente € pedir para que se reflita bem e se desconfie dessa paixao pelas dentincias ¢ exibigSes midiaticas com que nos inun- dam. A midia nos serve uma racio cotidiana de horror por saber que isso é, para ela, um valor seguro, uma vez que ali- menta nosso goz0. Ao renunciar A teoria do trauma, depois de haver desco- berto a funcio da fantasia, Freud sabia que remava conta a corrente da sociedade de seu tempo € que anunciar isso nao agradaria a todo mundo. Nossa cultura, entretanto, muito mais permissiva, nao deixa de ser demasiado puritana a esse respeito. TRADUCAO Silmia Sobreita REVISIO Angela Mucida referéncias bibliograficas Lacan, Jacques. O Semindrio XIV: A logica da fantasia (1966-1967) Lacan, Jacques. Le Séminaire: Ledésiret son interprétation (1970). Inédito. Saber-fazer com 0 real da clinica resumo O artigo aborda o parentesco estrutural entre trauma e fantasia, Deduz-se que, no modelo proposto por Freud para a fantasia, “bate-se em uma crianga”, 0 olhar do sujeito é capturado pela cena que poderia ser considerada traumatica para outro. Assim, retornar 4 teoria trau- matica que Freud abandonou é nao apenas uma regressio, mas também uma promocao despercebida do gozo sus- tentado pela fantasia. abstract The aim of this paper is to discuss the relationship in the structure between traumatism and fantasy. We must notice thatin the model proposed byFreud for the fantasy, “a child is beaten”, the subject's eye is captivated by ascene that we could say traumatic for the other. So, going back on the theory of the trauma- tism that Freud had given up and laps- ing into the victimologywould be not only aregression but also the unnoticed pro- motion of a pleasure gotten out of the fantasy. palavras-chave fungao da anguistia, percurso da analise, desejo do analista, objeto «. keywords anguish function, analysis course, analyst's desire, object a. recebido 01/03/2005 aprovado 28/03/2005, Stylus Rio de Janeiro nm. 10 p.51-89 abr. 2005 Tadugdo de “von, realogimo feqado porlacin (196, , 483) que produz um eqivoco enteficgioetiayio, "Trebaho apresentadonas Jomadesda AG Tuna fantasia, 1997; Bruweas, Basia Bloch BVonWatbug. Dicvonnare ethymotogiquedela Langue fangaiset 1975) Lithé Dtionnae del langue frenese(1883) * Charcot lecanssuriés maladies du systéme nerveux (1890) *Freud Pour ine théorie do attaque ystque (1892) Freud, Nassancedele Prychandyse(1969) ba "Freud, Nowell remarques surles psychoneoses de Bferse (1896, nota de 1924) " Feua. Suriés souvenirs ect (1899) 60 Fazer ficgao — fixao' do trauma’ (Curistian DemouLin A PALAVRA TRAUMATISMO APARECE EM 1855, um ano antes do nascimento de Freud’. Trata-se de um vocibulo ligado ao con- texto da revolucio industrial, das estradas de ferro ¢ dos aci- dentes de trabalho. No inicio, traumatismoé um termo crirgi- co que remete as idéias de lesio ¢ ferida’. Dai, passa-se a idéia de um traumatismo interno ¢, em neurologia, de traumatismo craniano, Charcot defendia a idéia de uma histeria traumatica masculina, causada pelas emocoes suscitadas pelo traumatismo (terror) mais que por um traumatismo propriamente dito®. Para Charcot, tratava-se de um grande e tinico pavor, como, por exemplo, aquele causado por um acidente em uma estra- da de ferro. Freud ¢ Breuer estendem 0 conceito a histeria feminina comum, ressaltando que nela nao se trata mais de um trauma inico, € sim de uma série de traumas menores: pavor, vexame, decepcao. Dessa forma, nasce, em 1892, a teoria do traumatismo psiquicoque até hoje faz sucesso®, Freud, entretanto, seguiu outra pista sem Breuer. Desde Manuscrito A, também de 1892", evoca como fator etiolégico das neuroses “os traumatismos sexuais sofridos antes da idade da compreensio”. Com efeito, Freud se empenhou em dar ouvido ao dis- curso das histéricas. Ele buscou a causa em um acontecimento € teve a intuicio de que essa causa era sexual. Conclui inicial- mente em termos de um trauma sexual que incrimina o pai: a um pai perverso corresponderia uma filha histérica. Conclu- sio precipitada, que confessa a Fliess na Carta 69, de 21 de agos- to de 1897: “Eu nao confio mais na minha neurética”®, A teoria da sedugao pelo pai ter a mesma sorte do célebre caldeirao: “Nao € 0 pai, entao é a baba. Nao é 0 pai, entao é a crianca perversa polimorfa. Nao é a realidade, é uma fantasia. Nao é © acontecimento em si, mas sua recordacio, num sé-depois (Nachtriiglich)”. Pava fazer certa média, Freud acrescentaria em 1924 que a teoria da seducao conserva certo valor etiolégico. Ao buscar a verdade, Freud descobre um caleidoseépio: tudo se complica ¢ € necessario tirar dai uma li¢ao: no nivel incons- ciente, nada permite fazer a distingao entre uma fantasia e um acontecimento vivido; existem lembraneas encobridoras”. Saber-fazer com 0 teal da clinica Certos posfreudianos deduziram dai, em um gesto pla- tnico, que 0 acontecimento nao existia e que as histéricas nada mais cram que fabuladoras, Com essa deducao, reconciliaram a teoria com a tradicao psiquidtrica pré-freudiana, por exem- plo, a de Laségue. Este, um excelente clinico, publicou em 1881 um artigo intitulado As histéricas, suas perversidades, suas mentiras'', O mérito de Freud foi aceitar 0 que outros poderi- "asbgue Les Hytéricues, leur am considerar ingénuo: entrar no discurso da histérica. Lacan 0 peers leusmersonges confirma no seminario O avesso da psicandlise. nao da para fazer (1880) uma anilise sem passar pelo discurso histérico. A ingenuidade de certa confianga no discurso é a condigao da anilise™ Freud nao permanece ai. A andlise de O Homem dos Lobos © leva a buscar, apesar de tudo, 0 acontecimento sexual vivido por tras do sonho-fantasia repetitive que parece ter papel cen- tral na sua sexualidade e na sua neurose infantil’®. O desafio é polémico: trata-se de calar Jung ¢ Adler, que negavam a impor- lancia da sexualidade infantil. Talvez esse seja seu texto mais extraordinario, porém, nos termos do préprio Freud, a demons- tragio nao é nada convincente: hesitacao quanto a data da “cena primitiva”, quanto a sua natureza (os pais? os cies?) etc. A isso se acrescentam as criticas externas. Antes de tudo, a “neurose” do homem dos lobos desemboca em um epis6dio de parandia com tema hipocondriaco. Em seguida, sera que é mesmo justificada a inversao de Freud com relacao 4 imobilidade do sonho dos lobos transformada nos movimentos do coito? Nao teria ele desconhecido a referéncia 4 morte onipresente na his- toria do paciente? Enfim, em 1973", 0 proprio “Homem dos ‘Gti, Enitineawne Lobos” poe em divida a construcao de Freud. homme aus 1981) Com relacao a0 “Homem dos Lobos”, Lacan é mais pru- dente do que Freud. Ele enfatiza a alucinacao do dedo cortado da foraclusao da castracio", bem como reconduz a cena primiti- Lacan téporse auconmen va aum “fato facticio”: a estranheza da desaparigao e da aparicao tare de lean Hyppolte 1) do pénis, Para ele, o sonho-fantasia é mais importante que 0 acon- tecimento reconstruido: a apari¢ao dos lobos representa a perda can leséinae, fre Xt do sujeito eo sen olhar fascinado é o préprio sujeito™. Lesqutre concerts ord Voltemos a Freud ¢ 40 trauma. Em 1919, as neuroses de guerra abalam a teoria sexual. Eo retorno da neurose do pa- vor, segundo 0 modelo de Charcot. Freud a integra a sua teo- > Freud, Etat oe Hstore une néwose infantile (1918) "Freud tocuetion la ria gracas ao conceito de libido narcisica”. Disso decorre a rjchinsysedesréows de ampliacao do conceito de trauma feita em 1920 em Além do suete(1986), principio do prazer. “chammamos de traumiticas as excitagdes exter nas suficientemente fortes para produzir um rombo na para- excitacao""*, Nesse sentido, todos nés somos poli-traumatizados em diferentes graus, servindo o menor sonho para ligar a "Freud, Adela dupincipe de plas (1990} Stylus Rio de Janeiro n. 10 p.60-68 abr. 2005 6 * Freud Inhibition, symotéme et angosse(1996) Freud, Nowelles Conférences sur lsP5ychanayse (1932). Freud, Un enfant estattu 919) Rank le ramatsmedela rasan 1924), 62 excitagao do acontecimento da véspera, para tom4-lo compa- vel com o desejo de dormir, segundo o principio do prazer. E nesse sentido que o sonho é um “pesadelo mitigado”, confor- me a expressio de Lacan. Para Freud, 0 sonho repetitive que segue o trauma é 0 testemunho de um real, o da pulsio de morte. Qual é, entao, a especificidade do trauma sexual? Em 1920, Freud imagina que a pulsio é um arrombamento, que ela é um traumatismo inter- no. Ele abandona esse ponto de vista em 1926 em /nibigéo, sin- toma e angistia'®, a0 dizer que é a angiistia ¢ nao a pulsio o agente perturbador, anguistia que remete & angiistia de castra- ao no homem e & angiistia de perda de amor na mulher." O percurso de Freud vai do acontecimento traumitico 4 fantasia e, em seguida, § pulsio e 4 anguistia, Hé, todavia, um percurso que vai da fantasia ao acontecimento traumitico. E isso que tenta com o Homem dos Lobos, e é isso que faz, com sucesso maior, em Bate-se nwma criancd'. Nos dois casos, 0 evento trau- miatico construido com base na fantasia nao é um evento em que ©’ sujeito é vitima na realidade. Ele é testemunha da cena: rela- cdo sexual dos pais more{erarum, num caso; violéncia do pai para com um rival, no outro. Neste, a cena nem é sexual; ela se toma sexual posteriormente (Nachtrdglich), na fantasia inconsciente. Freud nao apresenta um caso que permita estudar as conseqit- éncias no plano da fantasia de uma violéncia grave, sexual ow nio, na realidad. Antes de nos referirmos a posigao de Lacan sobre 0 as- sunto, evoquemos o trabalho de Otto Rank, de 1924, 0 trauma do nascimenté®, Apesar de seu carater redutor, esse é um livro importante que testemunha a pesquisa sobre o que Rank cha- ma “o substrato real” por tras da fantasia. Tornar o traumatismo do nascimento 0 real derradeiro nao é convincente. Serve mais, para ser tomado como © mito pelo qual Rank introduz a ques- tio do desejo da mae que Freud desconhece: Rank revisita Totem ¢ tabu 4 luz dos trabalhos de Bachofen sobre o matriarcado. No Ambito clinico, Rank estima que, ao se desligar do objeto libidinal representado pelo psicanalista, o paciente reproduz, sua separa- ao de sen primeiro objeto libidinal, ou seja, da mae. O fim do tratamento repete o trauma primitivo. Mas esse desligamento s6 é possivel se, desde 0 inicio do tratamento, a técnica analitica o ponha em ato: “Nao apenas o paciente sabe a cada instante que © tratamento deve ter um fim um dia ou outro, mas que cada momento do tratamento exige dele, de forma minimizada, a repeticao da fixagao € da separagao, até o momento em que poder4 finalmente enfrenté-la de forma definitiva”. A posigao de Saber fazer com 0 real da clinica Rank antecipa a de Lacan, mas Rank confunde a mae com 0 ‘objeto a Lacan enfatiza que o nascimento é a separagao nao da mie, ¢ sim do objeto aque é a placenta”. Acrescentemos que Rank coloca como epigrafe uma frase de Nietzsche em que esta posta a questao do famoso melhor fora ndo ter nascido dos antigos! O trauma do nascimento se junta A maldicao da palavra. Em 1938, Lacan traca um inventario dos traumatismos genéricos como realidades que fundam os complexes: trauma do nascimento e do desmame; trauma da intrusio fraterna; trauma edipiano. A partir do desmame, esses traumas cedem lugar a uma solugao dialética em que o simbélico intervém™. Em 1953, ao se referir 4 nogao etol6gica de “impressio” (Préigung) responsavel pelo efeito de sédepois (Nachtrdglich), ele retoma a questao do trauma no caso do Homem dos Lobos e enfatiza 0 rombo imaginario®. Trata-se de fixagdes imaginarias que nao foram assimiladas pelo desenvolvimento simbélico. Em 1957, ele faz valer o significante enigmatico do trauma sexual." A cena primitiva é considerada como um significante. Em 1960, 0 trau- ma é referido 4 opacidade do desejo do Outro, deixando o sujeito sem recurso (Hilflosigheit)"*. Em 1964, ele introduz © par Tyché ¢ Automaton, fazendo do trauma um real inassimilavel que procura transformar a homeostase significante®. Esse real vai do trauma 4 fantasia porque esta é uma espécie de tela que recobre o trauma, Esse percurso de Lacan, portanto, parte do trauma como realidade (desmame), passa pelo trauma como imaginario (Prégung) ¢ depois como simbélico (significante enigmitico), ¢, enfim, desemboca no trauma como real ( Tycké). O mal encontro é 0 encontro, é a opacidade do desejo do Ou- tro (Che vuoi?), 0 fato copulatério da sexualidade, a ndo-rela- Gao sexual como troumatisme®, buraco no real’), A seqiiéncia do ensino de Lacan nos incita a abordar o trauma como gozo. Em 1974, ele situa o sentido, o gozo falico © 0 goz0 do Outro em relagao ao n6 borromeano que enlaca Real, Imaginario e Simbélico™. O gozo do Outro esta na inter- secao do Real com 0 Imaginario, i onde 0 Imaginario passa por cima do Real com a ajuda do Simbélico ¢ completa o enla~ ce. Da mesma forma, 0 gozo falico esta li onde o Real passa por cima do Simbélico com a ajuda do Imaginario. Enfim, o sentido surge onde o Simbélico passa por cima do Imaginario, tendo o Real como terceiro. Isso me levou 4 idéia de propor uma tiparticao do trauma, Tal tentativa me parece justificével uma vez que Lacan nao retomou a questio do trauma nesse periodo de seu ensino. Fica, assim, para nés a tarefa de inven- tar o saber que cont Stylus Rode Janeiro nm. 10 p.60-68 abr. 2005 Postion de inconscent (1968) Lacan les compleres failaux(1938) © Lacan, le Séminave livres éontstechnques de Freud (1983-4) Lacan Linstance de aletre dns inconscent (1957) Lacan le Sémnave, livre V les formations de Incenscient 1987-8) * Lacan. (e Séminate, lire Vi Jedésr et sn intercréttion (1988.9) Lacan le Sémnare,ivre X! oat » Frumatisme neclogimo {otado porlacanaparrde fraxcujosignticado tu. ™ Lacan le Séminate lire XX lesNon-dypes enart(1973-4) Lacan le Séminaire tire A, aai974-5) 63 Lacan le Sérinate ie XG), le Sithome( 1918-6) Balzac. lous Lambert (1832). Latou: Petites réflexion le cute mademe dés caw faictes(1996) 64 Para introduvir a triparticio do trauma em sentido/ gozo do Outro/ gozo falico, pode-se retomar os trés tempos da fan- tasia do artigo Bate-se numa crianca. O primeiro tempo, “meu pai bate no meu rival” faz valer o amor como preferéncia do pai: “ele bate no meu rival, portanto é a mim que ele ama’. Trata-se do sentido como sentido gozado, em que podemos nos interrogar, caso a caso, sobre a carga traumatica. O segun- do tempo “meu pai me bate” poe em cena © go70 do Outro, genitivo subjetivo, como gozo sidico suposto ao pai e que vem em lugar da ndo-relacdo sexual e do nao-gozo do Outro, genitivo objetivo. O terceiro tempo, “uma crianga é batida”, é um fane tasma erético masturbatério que remete ao go70 falico. Esses trés tempos gravitam ao redor do objeto acomo maisdegozar Talvez possamos considerar o enlace borromeano como a construcio da fantasia decorrente do trauma: o enlace limita 0 gozo ao fazer ficcio/ fixdo do trauma tomado em sua triparti¢io Real, Imagindrio e Simbélico. Edessa maneira que pode operar o traba- Iho de ligagto descrito por Freud, trabalho por meio do qual trauma se toma assimilavel, mesmo que ao prego de um sintoma. A fantasia complementada pelo sintoma é a resposta do neurético ao gozo do trauma. Joyce, por outra via, reage aos gol- pes de bastdo por um deixar cair a relacao com o proprio corpo: sua imagem do corpo se desprende como uma pele™. O mesmo acontece com Louis Lambert, © heréi de Balzac™. A resposta psicética ao trauma nao passa pela fantasia, O gozo do Outro, ao se tomar por demais real, passa sob o imaginario ¢ nao permite a amarragio. Outras respostas ao trauma produzem esse curto-c cuito da fantasia. Por exemplo, © acting-out ou a resposta psicossomiatica. Ao fazer um diagnéstico de estrutura neurética, sustenta~ mos a hipétese de que a fantasia ja responden ao trauma. Mas, a0 mesmo tempo, a fantasia é aquilo que o tratamento cons- tréi, Realismo e construtivismo nao se opdem*®. Logo, o trata- mento é uma aposta no que diz respeito 4 possibilidade de Saber-fazer com o teal da clinica construcao da fantasia ¢ de sna travessia. Fazer ou nao essa aposta remete 4 responsabilidade do analista. Aquestio do trauma ocupa lugar cada vez maior no mal- estar da civilizacao. O pai sedutor denunciado por Catarina a Freud, no fim do século XIX, inscrevia a perversio no quadro da economia familiar. As redes criminosas de pedofilia do fim do século XX tém a ver com o mercado generalizado. Se nao existem outras leis além daquelas caracteristicas de um mercado desregulado, se 0 Outro garante nao existe”, como evitar que a crianca nao seja reduzida a um mais-de-gozar? Na clinica de hoje, muitas vezes sto as criangas que devem tomar para sia tarefa de introduzir a lei para limitar 0 gozo a deriva dos adultos. Entio, de duas coisas uma: on a amarra- cao do né permancce possivel, conforme o modelo de Bate-se nuana erianca, ou © go70 do Outro se encontra fora da cadeia, isto é, nao é fixavel pelo né da fantasia. TRADUCA Elisabeth Saporiti RFVISAO Dominique Fingermann Silmia Sobreira ~ referéncias bibliogréficas Baizac, Henri de. (1832). Louis Lambert. Paris: Gallimard, 1980. Bi.ocit O.€ Von Wartsurc, W. Dictionnaire ethymologique dela Langue Francaise. Paris: PUF, 1975. Cuaacor, Jean-Martin, Lecons sur les maladies du systéme nervei Progrés Médical, 1890. Tome IIL Frevo, Sigmund. (1892). Pour une théorie do attaque In: Résultats, idées, problimes. Paris: PUF, 1984 Frevp, Sigmund. (1896). Nouvelles remarques sur les psychonévi0- ses de défense. In: Névrases, psychoses et perversions, Paris: PUF, 1973 ox Paris; tévique Feeup, Sigmund. (1899). 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Saber fazer com o teal da clinica resumo O texto realiza um inventirio do uso do termo “traumatismo”, desde sua origem pré-psicanalitica, demonstrando como ele se torna um conceito para a nenrologia do fim do século XIX, sendo apropriado por Frend ji em suas primeiras form lagdes sobre a etiologia da histeria. Com isso, analisa, nos varios momentos da obra freudiana,aimportanciae as modificacées, operadas nesse conceito. O autor acom- panhaaretomada do conceito por Lacan, bem como faz uma proposta onsada de articular 0 né borromeano (RST) com a respectiva localizacao dos trés tipos de goz0 (do sentido, do falico € do Outro) € os trés tempos da construgao da fantasia, tal como apresentado em “Bate-se numa crianca” palavras-chave Traumatismo, trauma, fantasia, goz0, real, simbélico, imaginario, né borromeano. Stylus Rio de Janeiro in. 10 p.60-68 abr 2005 oe abstract The text makes a retrospective for the utilization of the word traumatism, from its psychoanalytical birth, demonstration howit became a concept for neurology of the end of the 19" Century, being appro- priated by Frend in his firsts formulations about the etiology of hysteria. Tt demons- trates, in many moments of Freudian work, the importance and the changes that happened to this concept. The author follows the rebirth of the con- cept by Lacan making a daring proposal for articulating the borromean knot (RSI) with the respective localization of the three types of "jonissance” (of the sense, pha lic and the Other's) with the three con struction times for the fantasyas it appears in “Hits a child” keywords Traumatism, fantasy, “jonissance”, real, symbolic, imaginary, borromean knot. recebido 20/02/2005 aprovado 28/03/2005, Saber-fazer com 0 teal da clinica Consideragées freudianas sobre o alcoolismo CLIcla. MacaLHags PEREIRA Est ARTIGO For ESCRITO COM nASE em um Tevantamento das referéncias freudianas sobre o alcoolismo. As referéncias encontradas serdo vistas em conjunto com outros autores, Frend, nao se debrucou propriamente sobre 6 tema, mas fomecen pon- tnacdes notaveis, algumas delas muito conhecidas; existem ou- tras menos debatidas, tais como as que vinculam alcoolismo € steria, como se vers a seguir. 1, alcoolismo e histeria As primeiras pontnacées de Freud sobre o alcoolismo se encontam em um texto de 1888 sobre histeria que € uma contri- buicao para uma enciclopédia’. Trata-se de um texto em que ele faz algumas observacdes que relacionam 0 alcoolismo & histeria, em geral, € a histeria masculina, em particular. Sao elas: +a intoxicacao pelo leool é uma d: da hist s causas de irrupcao ia aguda; + citando Charcot, Freud diz que muitas das anestesias alcodlicas nao passam de um sintoma histérico; + homens em idade juvenil sto particularmente propen- sos 4 histeria em virtude do alcool Se a neurose de base é a histeria, um sintoma histérico pode aparecer subitamente e, as vezes, cle forma violenta com o Alcool. O alcool suspende a barreira do recalcamento, permitin- do a irrupgao do ataque. Na clinica, constatase, com freqién- cia, a associacao entre a embriagnez € a eclosao de sintomas agudos de histeria, tais como, crises de choro, fugas, histero- epilepsia, blackouts, desmaios, stibita agressividade, paralisias, tremores generalizados ¢ crises nervosas de forma geral. Abraham também contribui com observacées sobre 0 ileool como fator de desencadeamento de uma histeria aguda® Em 1908, em sua andlise das relacées da sexualidade com o alcoolismo, diz que a resisténcia de certos histéricos a se sub- meter a prescrigdes médicas de morfina on épio levaram-nno a concluir que esses medicamentos provocam excitacio sexual Stslus Riode laneiron. 10 9.69-80 abr. 2005 reud Hstera( 1688) * Abraham, Asrelacées psicologicas ene asemslchce e0.acooksmo( 1908) 69 nesses pacientes, os quais, em decorréncia de sua estrutura, con- vertem a excitacio em sintomas ou angtistia. Por conseguinte, conclui que a intolerancia ao alcool de certos neuréticos deve ter origem semelhante. No que diz respeito A classificacio das anestesias alco6li- cas como histéricas, deve-se lembrar que a anestesia é um quei- xa freqitente nos alcoolistas. Em 1888, Freud ainda aceita a explicagio médica corrente de que a conversio histérica é pro duto da complacéncia somatica. Segundo essa concepcao, uma parcela do corpo se torna receptiva 4 irrupcao de uma conver- sao por ter se enfraquecido em virtude de alguma ocorréncia, fies Asusponsspusy — €2%0, Porexeanplo, um traumatismo fisico. Aquele ponto pode, cacncoreasnocymnins 888i, tornar-se sede de histeria local. Mas ja em 1893, em AL rrotowscrgireasehstencs «UNS pontos para um estudo comparativo das paralisias motoras or- 1893) ganicas ¢ histéricas’, Freud avanca em suas consideracées ao ela- borar © conceito de paralisia funcional simbética, que estabelece a distingio entre paralisias organicas e histéricas, bem como situa a paralisia histérica como um modelo de constituicao do sinto- ma corporal na histeria. Freud diz, entao, que um brago se para- lisa porque a concepeao do braco, a idéia do braco € incapaz de ter acesso as associacées do eu consciente. E essa modificacao, puramente funcional, é causada pela fixagio da idéia do braco numa associacao inconsciente, com a lembranga de um trauma psiquico investido de afeto. Assim, a concepcao do braco nao ficara disponivel A consciéncia, enquanto a carga de afeto do trauma nao tiver sido eliminada pela ab-reacao. ‘Freud e Breuer Estudos sobre a Freud analisa mais detalhadamente esse aspecto simboli- hastena (1893-5) co do sintoma em Estudos sobre a histeria’, No Caso Elisabeth von R, da varios exemplos do simbolismo no sintoma corporal, na conversio, assim entendendo as dores nas pernas de Elisabeth Em virtude das dores, sua dificuldade de deambular € se levan- tar constituiam uma lesdo funcional simbélica relativa ao significante Alleinstehen (Allein = sozinho e stehen = ficar de pé). Ela nao consegue ficar de pé em razao de um complexo de emo- Ges recalcadas. Essas emogoes estao em intima conexao com 0 grande interesse que desenvolvera por seu cunhado, marido de sua irma. Elisabeth, que tivera que cuidar do pai enfermo até seu falecimento, nao tinha namorado e se sentira ainda mais s6. com a morte do pai. Um dia, ao realizar uma caminhada ao lado do cunhado, pensa na felicidade de sua irma com seu marido € em como sua solidao contrastava com a vida da irma. Quando esta falece precocemente, ocorre a Flisabeth 0 pensa- mento de que 0 cunhado ficaria disponivel para ela. Todos esses pensamentos produzem grande conilito em Elisabeth, sen- 70 Saber-fazer com o teal da clinica do imediatamente recaleados e produzindo a eclosio das dores nas pemas. Ela fica impedida de andare ficar de pé. Esses acon- tecimentos conflituosos descritos tornaram dificil para Elisabeth © fato de ficar sozinha apés a morte do pai, bem como the deixaram 0 sentimento de nao poder dar um passo 4 frente, ou. seja, os pensamentos recalcados encontraram expressio simbé- lica no significante Alzinstehen, que vincula a “solidao” com o “ficar de pé” Segundo Freud, os melhores exemplos de simbolizacio sio encontrados em Frau Cacilie, também descritos no texto do caso Elisabeth. Frau Gicilie apresentou, durante anos se- guidos, uma neuralgia facial. Ela se recupera ao recordar um epis6dio em que o marido Ihe dirigira um Aspero insulto, ¢ que féra “como uma bofetada no resto”. Em outro episédio, aos 15 anos, Frau Cacelie estava deitada sob o olhar vigilante e desconfiado da av6. De repente grita, pois sentira uma dor penetrante na testa, que dura semanas. Na anilise, conclui que a avé the dirigira um olhar tao penetrante, que fora até seu cére- bro. Ao dizé-lo, a dor desaparece. Freud conclui que a lingua gem esta incluida no sintoma corporal ou, como se refere, as pernas de Elisabeth comecam a participar da conversa. Ele diz, ademais, que a conversio, pela simbolizacio, parece exigir a presenca de um grau mais elevado de modificacdes histéricas. Em Trés ensaios sobre a teoria da sexualidadé’, em uma nota de rodapé incluida em 1915 na seco em que conceitua as 20 nas erdgenas, Freud diz que qualquer parte do corpo, interna ou externa, pode ser erogeneizada, e que a erogeneizacao do corpo é um dos fatores envolvidos na conyersio. Para ocorrer uma anestesia histérica, portanto, nao é necessiria a presenca de uma complacéncia somatica, pois qualquer parte do corpo pode ser sede de histeria. No texto sobre o narcisismo, Freud diz que as partes do corpo podem atuar como uma zona genital, contando-se com uma elevagao ou reducao da erogenicidade em qualquer parte do organismo humano. A partir das contribuicdes da teoria lacaniana, pode-se esclarecer melhor a equivaléncia simbélica entre inconsciente € corpo. O inconsciente engata no corpo, que é feito de signifi- cantes¢ nao apenas de came € osso. Na histeria, os significantes recaleados se expressam pela convers4o somatica, quando 0 su- jeito nao consegue falar através das palavras, pois o saber é des- conhecido por ele. Segundo Quinet’, o mecanismo é 0 mesmo do sonho: um deslocamento, via metonimia, do que foi traum: tico para © sintoma corporal, como no caso Dora: a pressio do pénis do Sr. K sobre 0 peito de Dora = lembranca recalcada StlusRinde laneita on 10m 69-80 abr 2005, Freud Tésensaiossobrea tears dasewslese (1908) * Quint. Tanscngées aaReoe dle Pesqusa de Pcase (9004) Freud Rascurho H (1895) traumatica, em virtude do encontro com o sexo ~ produz um. sintoma de pressio no peito. Para completar, no texto de 1888, Freud também faz notavel consideracio sobre a histeria em adolescentes. Ele diz que homens em idade juvenil sio particularmente pro- pensos & histeria, em virtude do uso de alcool. Alberti enten- de essa pontuacao freudiana como decorrente de uma inci- déncia do discurso histérico na pélis. Assim, 0 adolescente esta- ia utilizando 0 Alcool como forma de evitar se situar em una posicao masculina na adolescéncia. Isso pode explicar 0 fato de que, hoje, os adolescentes bebem cada vez mais, e mais cedo. Trata-se de uma dlificuldade do sujeito de se posicionar na parti- Iha dos sexos. Freud diz ainda que a histeria masculina tem a aparén- cia de uma doenga grave, pois seus sintomas quase sempre si0 rebeldes ao tratamento ¢ tém maior importancia pratica por implicarem uma interrupgao do trabalho. Fssa pontuacao de Frend se relaciona 4 clinica, pois os alcoolistas apresentam muitos problemas nesse setor. Pode-se também concluir que, nos homens, a histeria é mais grave que a histeria nas mulhe- res, uma vez que € mais complexo para o homem ter de escla- recer para si a sua bissexnalidade, questionai-se sobre ser ho- mem ou ser mulher. 2. alcoolismo e delirio de ciumes Em trés momentos de sua obra, Freud emite indicagdes relativas ao delirio de citines alcodlico. Em Rascunho H (Paranéia), diz que o alcoolista nao ad- mite que sua impoténcia sexual decorra do uso abusivo de al cool. Por nao aceitar essa fragio de conhecimento, passa a cul- par a mulher, apresentando delirios de citimes. A segunda pontuacao de Freud se encontya na parte H de A interpretacdo dos sonhos (As relacdes entre os sonhos © as doengas mentais), na qual enriquece com descrigdes clinicas sua pesquisa, em varios autores, sobre as relagdes causais que podem ser estabelecidas entre a vida onirica e as desordens psi quicas, Ele descreve basicamente tvés aspectos: questdes clinieas (um sonho equivale a uma desordem mental, ou a introduz, ou permanece como uma seqiiela da mesma); alteracées dos so- nhos em virtude de un estado psicético; intimas analogias entre vida onirica e psicose. Nesse contexto, cita um sonho de wn paciente alcoolista em que vozes acusavam sua esposa de infide- lidade, considerando-o equivalente a uma paranoia. Saber-fazer com 0 real da clinica Por fim, em 1911, no caso Schreber, Freud analisa a gra- miatica da parandia, ¢ delirio de citimes é visto como uma das wés modalidades descritas na gramatica que transforma 0 “eu o amo” em “ela o ama’®, Segundo Freud, 0 delirio de citimes alco- élico se refere a um desejo homossexual projetado na mulher. Nao € raro que 0 desapontamento com uma parceira leve um homem para o bar, masisso significa que ele encontra na tavema a satisfagio emocional que perden em casa. Assim, se esses ho- mens passam a ser objeto de forte investimento libidinal em seu inconsciente, defende-se dizendo que nao é ele que os deseja € sim ela. O fendmeno dos citimes pode ocorrer tanto na neurose quanto na psicose. Na psicose, o delitio de citime: zes alcodlico, € uma modalidade de paranéia, descrita pela psiquiatria no capitulo dos delirios passionais. O ciitime tam- bém é freqiiente no alcoolista neurético € toma mnitas vezes a feicao de um delirio. Necessirio se faz, primeiramente, proce- der ao diagnéstico estrutural, para entao coneluir se 0 delirio . muitas ve- de cities apresentado pelo sujeito é uma tentativa de cura, como no caso da psicose, ou a expressao da fantasia, como no delivio histérico. Na gramatica da paranéia, Freud estabelece a homosse- xualidade como o fator causal da parandia © outros autores, contemporaneos seus, como Ferenczi ¢ Abraham, também as sim 0 compreendem, Ferenczi publica um artigo que contém a descrigao de um caso de delirio de citimes em um alcoolista parandico em que vincula a homossexualidade 4 patogénese da parandia, Segundo Freud, a homossexualidade estaria na base do delirio de citimes, sendo esse tipo de delirio uma mo- dalidade de paranéia. No caso do presidente Schreber, Freud diz que © conflito basico do paciente decorre de desejos homos- sexnais relativos ao dr, Flechsig, seu médico. Esses desejos fo- ram reavivados pelo fato de Schreber nao ter conseguido ter filhos, episédio que lhe teria permitido sublimar a homossext alidade, cuja origem residiria em fixagdes no pai € no irmao, sendo o temor da castracdo pela submissio sexual a um ho- mem o responsavel pelo delirio de Schreber. Ida Macalpine, todavia, faz uma interpretacao distinta. Segundo Lacan, Macalpine, ao fazer a traducao para o inglés das memérias de Schreber, questiona que a causa da sua para- ndia tenha decorrido da homossexnalidade, Fla diz que todas as intervencées dos analistas sobre a homossexualidade em ca- sos de psicose sempre foram catastroficas, enquanto aquelas que consideraram a nao inclusao do psicético na partilha dos sexos Stulus Riode laneitn on 10-69-89 aby 7005, Freud Notaspricsnlticas sobreum lato autcbogréico deumcaso deparanaa( 1911) Quiet Paranda: 3 auto referénca mérbida (9001) Correa, De Freud lacan, ef Presiderte Sciveber (2003) "feud A perda dotealdede na neutose ene psicose (1994) Alacan, O Semnitio, 0 3-as ricoses(1955-6) tiveram resultados benéficos para os pacientes. Na psicose, a foraclusio do Nome-do-Pai impede a entrada do sujeito na dife- rena sexual. O psicético continna como o falo que completa a mie, tornando-se, posteriormente, falo que completa os ho- mens, que constitui o empuxo 4 mulher na psicose. Entao, nao € de homossexualidade que se trata no delirio de citimes psicético. No delirio de citimes, segundo Quinet’, o paranéico localiza © gozo em um Outro que © sacaneia, no caso, a mulher que o tai. Ja Correa” entende que o delirio na psicose € “uma alteragio profunda de todo o sistema do outro, pela qual 0 psiedtico recebe sua prépria mensagem do outro”. Quanto ao aspecto da projecao na paranéia, on seja, 0 fato de o sujeito projetar na mulher seus desejos ¢, por isso, apresentar delirio de citimes, nao se trata propriamente de projecao, mas de algo que, foracluido no simbélico, retorna no real. O paranéico, ao contrario do obsessivo, nao cré na auto- recriminacao, ¢ ela retomna no real. Nao se trata de uma perda da realidade, mas do que vern como um substituto para a mes- ma e é uma tentativa de cura'!. Na psicose, o homossexualismo é da ordem do fendmeno, de um sintoma que pode ocorrer no processo psicético, que nao é determinante, causal ou estrutu- ral. O que é causal, estrutural e simbélico é a presenga ou nao do complexo de Edipo e seu principal avatar: a foraclusio do Nome-do-Pai, que produz, por conseqiténcia, a impossibilida- de de o sujeito se situar na partilha dos sexes. Na paranéia, 0 delitio é uma pega que se solda onde alguma coisa falta. Na histeria, de outro modo, © delirio é, como sugere Quinet, uma encenacao da fantasia imaginaria € uma defesa contra desejos eréticos. Assim se pode entender, por exemplo, o delirio de possessio demoniaca de Christoph Haizmann como uma defesa contra sua posicao feminina dian- te do pai. Na psicose, portanto, nao se trata de uma defesa contra © erotismo, ou contra desejos homossexuais que, proje- tados na mulher, produziriam delirios de citimes. Em O semindrio, livro 3: As psicoses!®, Lacan comenta 0 delirio de cities, segundo ele, provavelmente psicdtico. Com- parando-o com a neurose, diz que nesta os citimes de um ho- mem por sua mulher sio uma proje¢do de seus préprios pecadilhos, de suas préprias infidelidades. Na psicose, sobre a transformacao gramatical de “eu o amo” para “ela o ama”, ha, em primeiro plano, um outro mecanismo, uma identificacio com 0 outro semelhante, mas de acordo com uma alienagao invertida. O sujeito faz um aller ego levar a sua mensagem ¢, nesse proceso, altera-se o sexo. O paciente torna a prépria Saher-fazer com a real da clinica mulher mensageira de seus sentimentos, os quais sio dirigidos aum ntimero indefinido de homens. O delirio de citimes para- néico se repete de maneira sem fim, influenciando todos os aspectos da vivéncia ¢ podendo envolver quase todos os sujei- tos que surjam na perspectiva. Segundo Freud, a repeticao infindavel de objetos na parandia ocorre porque esta decom- poe, assim como a histeria condensa, 0 objeto que um dia foi amado na infancia; por isso, 0 grande mimero de objetos pre: sentes no citime paranéico. 3. alcoolismo e repetigéo Em Rascunho K, Freud investiga a causa diferencial das neuroses de defesa. Quando se refere A neurose obsessiva, for~ nece 0 exemplo da compulsio a beber como um sintoma obses- sivo secundario de defesa. Na neurose obsessiva, ocorveria uma experiéncia sexual prazerosa na infancia, que, posteriormente lembrada, provocaria desprazer e autocensura conscientes. Mais tarde, haveria um recalcamento da lembranca ¢ da autocensura, com a formacao do sintoma primario da escrupulosidade. As- sim, no retorno do reealcado, as idéias obsessivas se formariam da seguinte forma: a autocensura retornaria sem modificagao mas de maneira a nao atrair atencao para si; esta se ligaria a. um conteticlo distorcido em duas modalidades, no tempo € no con- tevido; no tempo, porque se liga a algo atual mas, na verdade, refere-se a algo muito anterior; no contetido, porque se vincula a alguma coisa da mesma categoria, andlogo mas distinto. A autocensura, ent4o, pode ser transformada em ansiedade, hipocondria, delirios de perseguicdo ou vergonha. A partir dai, comeca a haver uma Iuta do eu contra os sintomas obsessivos, que sdo vistos como estranhos ao eu. Por si s6, essa luta pode provocar 0s sintomas secundarios de defesa, que s40 uma intensificagao da scrupulosidade. Estes sintomas secundaries ocorrem se a com- pulsao se transfere para a esfera motora. Para exemplificar, Freud inclui a compulsao a beber (dipsomania) ao lado da compulsao a ficar cismatico, dos rituais protetores e da loucura da diwvida. Na compulsio a beber, pode-se ver um dos aspectos mais importantes clo alcoolismo, a compulsio 4 repeticao (Wieder- holungszwang). O alcoolismo como repeticao esta presente em dois outros textos de Freud em que ele aborda a repeticao pela macao — algo que se soma, que se adiciona'*. Nestes textos Freud discute a importancia de fatores atuais da sexualidade como potenciais predisponentes a crises de angtistia através da somacao como, por exemplo, a submissao durante muito tem- “eu. ascunhoK (1866) “Freud, Sobre os citéios para destacar da nerastenia uma sinorome patil rttuada reurose de angista (1894) ¢ Uns replica scteas do meu anigoscbreneurose de gusta (1895) wayne Baha Notas de reunio clinica sobreum casodeakcoosmons BBFCL-Ferum B4 ($004) “Freud, Dostoieisii eo parcio( 1997) hone pruzes aun cous ue po ao coito interrompido. Aparentemente, os individuos su- portariam sem distirbios o coito interrompido, mas ficariam predispostos a uma neurose de anguistia, que pode irromper espontaneamente ou a partir de um trauma fortuito que nor malmente no seria suficiente para isso. E utiliza 0 uso crénico do alcool como um exemplo dessa somagav que pode provecar uma cirrose ou alguna outra doenga, on, por influéncia de uma febre, levar o paciente a cair vitima de um delitio. Dito de outro modo, um fator pode se apresentar durante um certo periodo sem produzir efeitos, mas apenas uma predisposicao. Nao basta que a perturbacao exista, é preciso que ela atinja uma certa intensidade. Por somacao, pode deflagrar o distiir- bio, se ha a adicao de mais uma quota da perturbacao especifi @ ou se ocore a perturbagao banal, que se soma a um certo nivel da perturbacdo especifica. Vale frisar que, nesses textos, Freud esta tratando da causa dos ataques de ansiedade, ¢ a exemplifica com os efeitos do alcool, que sio um exemplo pa- drdo de causalidade por somacao, ou seja, por repeticao Sabe-se que a compulsio a repeticao é prépria da pulsio de morte, e que a pulsao é do corpo, do real, e marca o corpo. como impossivel, como pulsional. Nao busca prender 0 obje~ to, satisfazendo-se no movimento de repeticao. Dito de outra forma, a repeticao é 0 movimento, a pulsacdo que busca atin- gir um objeto, uma coisa (das Ding) impossivel de ser atingida, a busca de uma satisfacao para sempre perdida. Porque a repe- ligdo, 0 goz0, est no movimento de busca, talvez por isso se diga hoje, segundo Bahia'’, que © gozo esta na fissura pelo Alcool e nao em sua prépria ingestio, ou seja, 0 goz0 esta no intervalo em que se fica sem ingeri-lo, mas se quer usi-lo. Um outro exemplo de compulsio a repeticao articulada ao alcoolismo pode ser vista na Carta 79, de 22 de dezembro de 1897, em que Freud entende a masturbacao como 0 grande vicio primario, dos quais todos os outros vicios, como o alcool, a morfina € o tabaco, so apenas um sucedaneo. Por que a masturbacio é 0 grande vicio primario? Ele fornece a resposta em uma referéncia 4 mania de jogo, no fim de Dostoiéviski ¢ o parricidio!®. Dostoiéviski foi viciado em jogo durante uma parte de sua vida, perdendo varias vezes todos os seus bens durante esse periodo. A esse respeito, Freud diz que o vicio da masturbacio surge na infancia como um desejo do menino de manter relagdes sexuais com a mae, desejo proibido sobre o qual ele se sente culpacto, e que o interditor desse desejo é sem- pre o pai, dai a questao do parricidio. O jogo, em Dostoiévski, € um sintoma no qual cle realiza 0 dese jo © também atinge a Saher-farer com a real da clinira autopunicdo. Freud fomece outro exemplo da mania de jogo ao se referir & literatura de Stefan Zweig. Na vida adulta, a mania do jogo seria um sucedaneo da masturbacao do adoles- cente, que se acompanhon de fantasias de ser iniciado na vida sexual pela mae. Essas fantasias sempre se seguiram de uma forte culpa e a conseqiiente necessidade de punicao. No caso do alcoolismo, pode-se relacionar essa compulsio. também a uma manifestacao de desejos proibidos, vividos por via oral. Freud aborda o alcool em relacio a oralidade na Carta 55, na qual descreve um caso de dipsomania em um homem de cingiiemta anos que havia seduzido um de seus pacientes histé- ticos. Esse homem comecara a ter ataques cle grave dipsomania que se iniciavam com diarréia ou com catarro © rouquidao. Freud relaciona os iiltimos ao sistema sexual oral, como uma reproducao de suas experiéncias passivas. O impulso da dipsomania seria, portanto, uma intensificacao e um substituto de um impulso sexual correlate. Para coneluir, evoquemos uma curiosa reagao do organis- mo A compulsio a repeticao caracteristica do alcoolismo. As com- plicagdes elinicas, tao freqiientes no alcoolismo crénico, sio uma forma de barrar o gozo, a compulsio 4 repetic¢ao, que leva A morte pelo consumo do corpo. Muitos autores dizem que 0 alcoolista para de beber quando atinge 0 fundo do poco: Ademais, quando a pessoa se embriaga excessivamente, em vir tude do efeito depressor do alcool sobre o sistema nervoso, a tendéncia é que todos os érgaos parem de funcionar, levando a0 bito. Antes que isso ocorra, ha o apagamento, o desmaio na embriaguez, como uma defesa organica contra a morte, contra a parada de funcionamento @e todos os drgios vitais. 78 syns ue janeny IU poyoy apr. ZuUD “ referencias bibliogréficas Asratiams, Karl. (1908). As relacées psicolégicas entre asextialidade co alcoolismo. In: A diregdo da cura nas toxicomanias. Associacio Psicanalitica de Porto Alegre. ALaenti, Sonia. O adolescente € 0 Outro. 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Three basic themes are discussed, con- cerning to the alcoholism: the hysteria (including the male hysteria), the j ousy delirious and the repetition palavras-chave alcoolismo, histeria, delirio de citimes, repeticao keywords alcoholism, hysteria, jealousy delirious, repetition recebido 20/02/2005 aprovado 11/03/2005 Ro Sahersfazer cam a real da clinica diregio do tratamento o~7~ O enigma da cura, através da transferéncia, de algumas doengas do corpo’ Canscen GatLano HA ALGUM TEMPO MIE PERGUNTO SOBRE a incidéncia da psica- nalise em sujeitos que padecem de doengas biologicamente definidas pela medicina atual. Essa diivida nao paira sobre hi- poteses tedricas, mas decorre do que alguns desses sujeitos sen- tem intimamente: que suas enfermidades sofreram uma remis- sao, verificavel em termos médicos, devida a transformacao sub- jetiva ocorrida sob transferéncia psicanalitica. Nao me refiro a doengas sobre as quais ji existe um certo consenso, por parte tanto de psicanalistas de diversas orientagées quanto de médi- cos, ¢ também dos préprios sujeitos, que as considera psicosso- miticas. Minha pergunta foi suscitada especialmente pelos ca- sos em que a destruic¢ao das funcdes do organismo se deve a alteracées celulares, seja por neoplasia de tumores, seja por perdas de tecidlo, de etiologia complexa para a medicina atual, ainda que a biologia molecular nesse campo seja muito avan- cada. A esse respeito posso dizer, de passagem, porque soube ha pouco tempo, por meio da leitura de trabalhos cientificos, que 0s dois processos ~ a proliferacao de células neoplisicas € a destruicao de células necrosadas — tém a ver com fatores que impedem o que a biologia molecular define como “apoptose” ‘ou “morte celular fisiolgica”, que é programada geneticamente € é essencial para a renovagao de tecidos ¢ para a regulacdo do sistema imunolégico, Apoptose é o processo de eliminacao de células defeituo- sas, tum proceso ativo com sintese protéica que, em equilibrio com a mitose, divisio celular que gera milhées de células no- vas, mantém a homeostase cehular. Varios pesquisadores ressal- tam como essa morte “suicida” de metade das céhulas do orga- nismo é essencial para a vida. Em contrapartida, a proliferacao neoplisica, ao alterar os tecides vizinhos, é altamente patogénica. E.a necrose, a morte celular patolégica, é um pro- cesso passivo, sem sintese protéica e com dano das membranas celulares, 0 que nao acontece com a apoptose. Por que me interessei por essa descoberta da ciéncia? Porque, da mesma maneira que nos surpreende que a vida, no real, estruture-se em um né, 0 né do DNA, nao é menos curioso que a vida, para Excero de um rabaho agresetadonas acs da AssocagoEspanhola de Dscerise doCanpolacano em Sartigo de Compost, emmago de 2004 Duylus Kio ge janewo. on. 1Y psy ar. 2009 3 "Lacan Posigio db inconsciente (1966, p 848) * a, . 846-7 ¥Zom(1979).Tocksas ctagées deZom foram retradasdesta edigio tances ¢, por serem rumerosas etraduzidas por mim, nio indico as pagnas Exsteuns ecigio esparhole recentecom otule Baio ef sgno de Marte feta pela ‘Anageara manter-se no real, exija uma perda ¢ resida na impossibilidade de conservacio de todos os sens Componentes. Mas, embora a idéia seja tentadora, nao tomarei o que acontece no real da vida do organismo como metifora desse outro real que nos concerne na psicanalise como condigao do ser falante, ¢ que Frend batizou de “libido”. Lacan, baseando-se em Freud, concebe a libido como “o ser do organismo”, que nao é igual a0 organismo como objeto da ciéncia. “A libido é esta pequena lamina que leva 0 ser do organismo até seu verdadeiro limite, que vai mais longe que 0 limite do corpo [...] esta pequena lamina é érgao por ser ins- trumento do organismo. As vezes é perceptivel, como no caso da histérica que brinea de experimentar sua elasticidade até o extremo. O sujeito falante tem o privilégio de revelar o sentido mortifero deste drgao ¢, através dele, sua relacao com a sexua- lidade”! Nesse mesmo trabalho, anterior a0 Semindrio, livro 11, Lacan propde a imagem ¢ 0 mito da pequena lamina para representar a libido “como puro instinto de vida” e, partindo do ditado “nao se faz uma omelete sem quebrar os ovos”, in- venta 0 termo jocoso “homelete” para defini-la. Sem brincadeira ‘ou jogo de palavras, ele define, com base no conceito freudiano, esse Srgio irreal que é a libido, que precede o subjetivo, irreal “por estar ligado diretamente ao real”: “Nossa pequena lami- na representa aqui a parte do vivente que se perde ao se pro- duzir através do sexo”. Assim, se na psicanalise queremos estar & altura da cién- cia, nao nos cabe querer competir com ela ou nos amalgamar- mos em ecletismos baseados na clucubracao sobre © que os médicos ¢ psiquiatras chamam ho je de “etiologia psico-imuno- logica das doengas psicossomaticas”, ¢ que muitos deles pro- poem atualmente para o cancer. Nosso assunto, a psicanilise, sdo as marcas do encontro com o real do sexual no sujeito falante, bem como a resposta deste a isso, estejam estas cifradas ‘ou nao pelo recalque no inconsciente. Pois bem, ha sujeitos que revelam na andlise que nao foram eles que responderam como sujeitos em um sintoma, sim seu corpo que respondeu “deixe-se escrever” — tomo em- prestada a expressio de Lacan ( Conferéncia de Genebra, 1975) — ao horror de um gozo mortifero ligado a um legado real, ilegi- vel, do Outro familiar. Hi testemunhos escritos disso, como, por exemplo, o de Fritz Zorn em Marie! Esse livro sacudiu a opinido piiblica suica € francesa pela interpretacao que o autor faz de seu cancer como on ‘saver-jazer com 9 real aa cunica resposta revolucionaria “passiva” ao legado de seus pais e da rica burguesia suica, ao qual se submeteu em plena adesao psi- quica, sem nenhum conflito subjetivo. Ele termina com a afir= mao: “Sou o carcinoma de Deus”, apés formular que o linfoma maligno que apareceu em seu pescoco eram “lagrimas contidas”, Antes, durante todos os anos de sua vida solitéria, anos fundidos numa Uisteza petrificada, sentia que carregava no pescoco um corvo morto, sob o olhar das mulheres, sendo que ele nao po- dia velo. “Deus” é uma parte do nome de seu pai, de seu avd paterno e de seu avd matemo. Os trés se chamavam “Gottfried”, quer dizer, “a paz ow a trangitilidade de Deus”. Seu sobrenome cra “Angst” (angtistia), que ele substituin, em seu pseudénimo literario, por “Zorn” (raiva). Para alguns sujeitos, ¢ nao somente para Zom, no en- contro com 0 real do tumor neoplasico ou com o real da perda de tecidos vem a descoberta de algo que havia sido totalmente ignorado nao no sentido da repressio, de um saber nao sabi- do, mas do excluido deles como sujeitos, por ter sido rechagado radicalmente do lugar do Outro, do simbélico. A propésito desses casos me veio A lembranga a afirma- cao de Lacan de que existe algo pior que a destituigao subjetiva que a anilise inscreve no bilhete de entrada. Algo muito pior, pois “proibir aquilo que se impée de nosso ser é nos oferecer- mos a uma volta do destino que é maldita”. Recordemos o veredito lacaniano “o que é recusado no simbélico reaparece no real, Por uma questao de prudéncia, como analista, e nao por preconceitos médicos, nao considerei essas doencas cita- das, cancerosas ou outras, inseridas no campo psicossomatico. Descobri, no entanto, que alguns sujeitos davam a sua doenga © status “psicossomatica”, apostando que esse mal ancorado em seu corpo poderia deixar de destruir seu organismo se a anilise lancasse luz sobre sua vida psiquica. Outros sujeitos, sem considerar sua doenca psicossomatica, ¢ sem fazer qual- quer elaboracio sobre a doenga na andlise, apostavam na cura resultante de uma mudanga de disposi¢do subjetiva por meio dos recursos ofereciclos pela medicina e pela cirurgia para com- bater a doenca ‘Temos, portanto, duas posig6es: uma situa o enigma da cura em uma mudanga na economia libidinal do sujeito, € ou- tra, na mudanga em sua relac¢io com o Outro que age no cor- po com suas intervencdes médicas, e que passa pelo consenti- mento da entrega do corpo e a reniincia ao dominio sobre ele. De fato, esses casos me ensinaram que, do mesmo modo que um sintoma neurético sé adquire o status de sintoma anali- “Lacan Proposiglo de9 de Outubro de 1967 (1967, p, 93) Stylus Rio de Janeiro n 10 p.83-95 abr. 2005 85 tico quando o sujeito que padece se implica nele ¢ 0 introduzna tansferéncia como sintoma a decifrar, nao devemos dar a uma doenga que resulta de uma lesio do organismo o status de psicossomatica sem a participacao do sujeito, independentemen- tedo que médicos terapeutas de outras formacées, que prolife- ram a cada dia, julguem sobre ela. Na clinica psicanalitica, nao existe diagndéstico sem a participacao do sujeito, € este, em sua definigao psicanalitica, nao se confunde com o eu, Ele se mani festa em sua divisto, que pode tomar diversas formas, e no que de seu dizer se clescola em sua fala, a partir da dor que o leva a0 analista. Mesmo quando encontramos a “bela indiferenga” da histérica, tanto para um sintoma de conversio quanto para wma doenga organica, existe uma diferenca, pois o sintoma de con- versio o mostra a0 Outro ¢ interpela o Outro comele, enquanto te adoenca organica nao € dirigida ao Outro, nem 0 sujeito a se em relacio ao Outro que faz parte de sua vida. ‘obre uma doenca que o sujeito sofre passivamente, como uma lesio da vida do organismo, sem que nela se sinta implicado em seu dizer, em sua causa ou no tratamento, a psicanilise, em meu entender, nada tem a dizer, e qualquer coisa que se diga a sujeito ser sugestao. F.o sujeito que, na transferéncia, introduz 0 xsobre sua doenga. Encontrar um analista ou um psicoterapenta = coisa que 0 sujeito nao sabe a prion — tera conseqiténcias impla- caveis no terreno da fantasia, quebrado pelo encontro com 0 real que irrompe no corpo. Quando, no quadro da terapia “psi” que solicita, 0 ato analitico nao apresenta respostas, o aparecimento da fantasia que envolve a figura do terapeuta redunda no estrago j sofiido, como tenho comprovado em casos de sujeitos que havi am feito psicoterapia antes de chegar A andlise. Mas ha sujeitos que se agarram ao inferno da fantasia. Fritz Zom obteve uma melhora da melancolia em sua primeira psicoterapia, € foi ai que irrompeu o linfoma malig- no em seu pescoco. Na segunda psicoterapia, simultinea ao tratamento médico das metastases, encontrou forcas para seu testemunho ¢ elaboracao, a fim de compreender por que con- tain o cancer. Nao ha qualquer testemunho de um trabalho psicanalitico, nem de um trabalho do inconsciente, tudo esta polarizado sobre o cancer. Lembro-me que, ainda jovem psi- quiatra, quando li pela primeira vez esse livro, senti repulsa € me pareceu delirante, ainda que tenha me deixado uma pro- funda impressio. Agora, tantos anos depois, entendi minha repulsa: foi pela maneira como o autor bloqueia a angtistia com 0 6dio, ¢ se libera, como diz no fim do livre, no “satanico do seu infemo”, como o hugar onde desejava estar “para estar a6 Saber-fazer com 0 real da clinica em outra parte fora do mundo depressive em que vivia antes” Dizque ‘vale a pena estar nele, da mesma maneira que em O mito de Sisifo, de Camus", As tiltimas palavias de seu livro sto para mim, 0 inferno nao é sendo um higar inter- mediario, pois se foi possivel entrar nele deve ser possivel sair dele... Mas para mim a coisa nao esti resolvida, e enquanto nao esta, acho bom que Satands esteja solto. Ainda nao venci o que combato, mas ainda nao fui vencido. E © mais importante é que no tenha ainda capitulado: declaro-me em total estado de guerra Nesse estado de guerra total, ele morre ponco tempo depois, sem que os tratamentos médicos tivessem conseguido frear a evolucao de seu cancer. No final, como no mito, Marte chega para liberar a Morte a quem Sisifo tinha conseguido atrair e prender em sua torre. “A destituicao subjetiva ou 0 édio” sio duas opcées para © ser, certamente bem diferentes, O édio irrompe em sujeitos que, ao se confrontarem com o real, veem nele uma obra ma- ligna do Outro de quem nunca puderam se desligar, ¢ se afir= mam na recusa do ser do Outro como ser de gozo, sem chegar A castracio do Outro, quer dizer, a revelar que 0 Outro esta na mesma falha que 0 sujeito. A clinica nos ensina também que & “o ddio, ou a angiistia’, pois a angtistia é a presenga de algo real no corpo diante da falta no Outro. A angiistia abre o cami nho para a separacao das marcas do Outro € a assimgao de algo da singularidade de um ser, nao instituido por essas mar cas como significantes mestre. O édio barra a hidncia do in- consciente com essa paixao aziaga de ser ¢ da peso real ao outro imaginario, sem deixar emergir a falta no Outro como lugar de desejo. Essa oposicao, em alguns casos em alternancia “ou édio ona angtistia” ~ tem me ajudado a situar na estrus tra o que Lacan, em sua palestra no Congresso de Roma, de 1974, intitulada A terceira, desenvolve ¢ localiza no n6 borro- meano. Se a angiistia assinala a intrusio do real no imaginario do corpo, podemos, de nossa parte ¢ A luz da clinica, situar 0 Sdio como o cruzamento do imaginario com 0 real. Lacan assinalou também que © psicossomitico esta pro- fundamente enraizado no imaginario. Mas isso € um fato que atenta contra o real da vida, nao deixando para o sujeito um Outro além daquele de seu corpo. Sua eclosio, fora dos maus momentos que © sujeito encontva na vida, obturara a borda em que podcria surgir a angiistia em sua fricgao com 0 gozo do Stylus Rio de janeito nm. 10 p. 83-95 abr. 2005 37 Outro, que esti fora do simbélico e, por essa razao, é radical- mente ignorado pelo sujeito. O fendmeno psicossomatico viria a nomear no ser do organismo, fazendo-o presente no corpo, um gozo especifico nas marcas deixadas pelo Outro a que 0 corpo respondeu passivamente. Eu nao diria, com Miller, que se trata de uma libido corporificada, pois assim mal poderiamos diferencidlo da conversio histérica. Diria que é uma libido organificada, encerrada dentro do corpo, que nao passa pelo lugar do Outro simbélico e que se instala entre o imaginario e © real, no lugar do gozo do Outro tomado no préprio corpo. Certamente, é uma economia de gozo eficaz por ser assubjetiva, mas & custa de lesionar o real da vida e que, ao nao se conectar com 0 inconsciente, deixa um “corpo estranho” em uma subjetivie dade desejante. O psicossomatico é um retorno do gozo que se faz auto-erético ao se fixar em uma parte do organismo. Sera significante da marca do Outro reduzido a um significante mestre, do ser de gozo afim a essa marca, ¢ que, como objeto nao alojado na falta do Outro, tomara forma no ser do orga- nismo do sujeito que ultrapassa 0 limite do corpo. Mas nao ha limite que separe 0 corpo € © ser libidinal do organismo sem a castragio que, no Simbdlico, inscreve-o como separacio entre 0 corpo ¢ 0 goz0 perdido fora do corpo. Isso nao €56 teoria, pois quem o descobre, e com horror, sio os analisantes afetaclos por uma doenga psicossomatica. Uma paciente que sofre de ataques freqiientes de colite ulcerosa e que também sofreu de retinopatia hemorragica disse em stia analise: “a vontade que de- fine minha familia de nao admitiras perdas e a verdade dos acon- tecimentos realmente ocorridos € que nunca foram nomeados talvez tenham me induzido a manifestar em meu corpo a quanti- dade de came que dele se desprende em tantos lugares. O lencol sangrento ¢ ulcerado, visivel na realidade de algumas partes do meu corpo, é 0 que eu nao conseguia ver no olhar do Outro”. Essa mesma paciente concorda com Zom ao conectar sua doenga somatica diretamente a heranga familiar. Diz textualmen- te: “apresentavasse como uma heranga que tinha a ver com 0 pro- tetor, o trangiiilo, 0 pacificador, ¢ eu pensava que me acalmava. Mas € 0 contririo, é 0 horror. Eu acreditava que estava protegida, era um cameirinho. Mas estava cada vez mais arrasada. E uma heranga maldita. Lembro-me de um sonho no qual havia aranhas nos ovos, outro em que se viam cameiros mortos”. Ela diz ainda que o lema de quem cumpriu © papel de patriarca protetor na sua familia era: “eu jogo com dois baralhos, um para ganhar e outro para ndo perder”. Zom percebe algo parecido no modo como sua mie nao verbalizava qualquer desejo, tendendo a dizer 88 Saber fazer com o real da clinica sempre: “ou este ou aquele”. Por exemplo, estarei em tal lugar ou talvez em outro. E conclui: “quando se repete muito ‘ou isto ou aquilo’, as palavras perdem todo o peso ¢ todo sentido, a lingua se decompée numa massa amorfa de particulas privadas de senti- do; nada é sélido € tudo fica irreal” Como nao posso relatar os casos clinicos em seus porme- nores, vejo-me obrigada a resumir em termos tedricos alguma coisa do que descobri nesses casos. Falei, no inicio, de dois pos de posi¢do com relacao 4 doenca somitica € aos tratamen- tos médicos. Em ambas, o que abriua porta para que esses sujei- tos pudessem dizer alguma coisa na anilise que se relacionasse com sua implicacao na doenga ou no tratamento ~e € 0 que tem em comum foi uma aproximacio pela angtistia, uma angtistia macica que transbordou neles ¢ os paralisou. Em nenhum dos casos, a angtistia foi suscitada pelo encontro com o real do can- cer ou pelo diagnéstico fatal comunicado pelo médico. A angiistia surgiu em outras situacdes, em que se con frontaram com a falta de garantia do Outro, com o fracasso da fachada egdica defensiva. No caso de um sujeito curado de um, cancer abdominal, eram ataques de panico permanentes, quan do ja se entregara vida ativa depois da “baixa” causada pela cirurgia e pela quimioterapia de dtimos resultados Outra paciente me disse, em relacao ao aparecimento de sua angiistia: “descubro que © que me aterroriza é viver € nao morter; é diante do que a vida implica que desmonto, me para- liso”. Ela mesma diz que sua maneira de funcionar na vida é somente a repeticdo de como aprendeu a andar, Nunca engatinhou, nunca deu passos titubeantes agarrando-se ao Ou- tro, como fazem os bebés. Passou de estar imével € passiva no chao a sair correndo. A fala dessa paciente pode muito bem, metaforizar © que todos os casos referidos aqui “fazem com a pulsio”, conforme suas fantasias. Nao passam pelo Outro, por um caminho significante, mas antes se jogam no campo do Ou- tro com o corpo, mais do que com uma intengdo subjetiva, que € que “passa recibo rapidamente com a doenga”, nos termos de uma paciente. Nao querem rodeios lentos pela cadeia significante ¢ suscitam o imediato da incidéncia do Outro no sentir do corpo Durante © trabalho analitico, esses sujeitos foram, pou- co a pouco, consentindo em compreender sua histéria desde as descobertas traumaticas de cenas infantis ¢ atuais, subjeti- vando sua castrac4o como falta no sujeito ¢ deixando de fazer coisas que antes os mantinham em tensao permanente. Por esse camninho, deixaram para tras irrupgoes macicas de angiistia O que se mostra muito mais dificil na analise — nao do mesmo Stylus Rode Janeiro. n. 10 p.83-95 abr. 2005 modo que nos sujeitos neuréticos, que carregam em seus sinto- mas “seu ser de verdade” como um modo de gozar do incons- ciente — é nao subjetivar a minima castrac¢io no Outro como falta que se abre no Simbélico. Uma paciente, que nao ha mais recidivas neoplasicas, diz: “Sofremos por nossas projecdes men- lais sobre © outro € nao pelo que ha no encontro com 0 outro. A dor cura, fugir da dor realmente me adoeceu”. Mas s6 vé no Outro aquilo de que goza secretamente, em um desejo que exclui qualquer vinculo. Nao pode separar desejo © goz0, © ndo se entretém — um trago comum a muitos desses sujeitos — em coniflitos entre desejo e demanda, como 0 neurético que passa a vida enrolado nisso. Sao sujeitos que tanto podem ter 0 ego esmagador como podem ser esmagados pelas palavras do Outro. Sejam histéricos ou obsessivos, ponco titubeiam no fa- zer, pouco balbuciam no falar. E como se no houvessem pas- sado por desfalecimentos subjetives. E é como se nao vissem nos outros mais do que vontades, explicitas ou implicitas, que excluem absolutamente o seu proprio ser. Zom diz sobre ele ¢ seus pais: “Eu nos compararia a caran- guejos ermitaos, pela frente lindamente encouracados e resis- tentes, mas em conchas vazias que abrigam a parte traseira desnuda, deixando de fora somente a parte anterior”. Outra paciente, obsessiva, na qual apareceu um tumor no cérebro, diz que atras da sua fachada fria, distante — que para os outros parecia esmagadora— ha apenas o sofrimento de estar esmagada pela submissao exigida para manter a presenga do Outro fami- liar. Em todos esses sujeitos, a mascara imaginaria da autono- mia do eu, dura e sem fissuras, foi um meio de se manter res- guardado do Outro, materno ou paterno, para nao se sentir em meio a uma tempestade 4 mereé de suas vontades. Uma protegao ilus6ria, que esconde apenas seu ser de objeto alheio ao desejo do Outro. Nos casos que atendo, naqueles em que o trabalho do inconsciente revelou uma estrutura neurética, os sujeitos per ceberam que houve remissio do proceso cancerigeno ou da perda de tecido, mostrando-se eficazes os tratamentos quimio- terapicos, cirtirgicos ou outros. Alguns, nao todos, esti ha mui- tos anos sem recidivas, ainda que ji houvesse metastase. Apre- sentado dessa forma, pode-se entender, equivecadamente, que a psicanalise cura os tumores € as destruigdes celulares. Mas nao, a experiéncia cesses pacientes me ensinou justamente 0 oposto. As lesGes somaticas, uma vez declaradas no organismo, foram curadas pelos tratamentes que a ciéncia proporcionou aos oncologistas. 89 90 Saber fazer com 0 real da clinica Como analista, sustento a aposta de que os tratamentos, que deram resultados ~ inchusive em casos em que se tenham esgotado outros meios € os que ainda estao em fase de experi- éncia ~ Ihes podiam oferecer a cura, ¢ acompanhei pacientes no hespital, com minha presenca ¢ com palavras, quando isso me pareceu imprescindivel ao vinculo analitico. Nao para fa- zer “maternagem”, como outros terapeutas, nao analistas, fa- zem. Sustentei seu desejo de viver, de nao se fecharem na doen- ¢a organica, ¢ de ndo desistirem, nao deixando que se abando- nassem passivamente 4 morte. Quando falo do enigma da cura desses pacientes, refiro- me A cura no sentido de que as revises médicas periddicas, que sigo de perto com o paciente, indicam que nao houve re- produgao de células neoplisicas ou que outras células nao fo- ram destruidas. E sio os préprios sujeitos que tém a conviccao. intima de que a anilise, pelo que modificou em sua posicao € pelo que trouxe a hz dos determinantes de sua histéria e de suas experiéncias traumaticas, tomou desnecessario que o “mal”, de que agora sabem alguma coisa, se produzisse em seu corpo. Direi que, antes da anilise, nao podiam se desligar de a libido impossivel do Outro” (mais na histeria) ou de “ser uma libido sem © Outro”, ancorada em seu eu (mais na obses- sio). Sempre no seu corpo em ambos os casos, essa libido, em uma torcao em curto-circuito, é um “eros tanatico”, ou seja, nela esses dois principios estao suturados, sem dualismo que 0s oponha. E como se nao houvesse uma ida e volta da pulsio em seu circuito, passando pelo Outro. Mas, a diferenca dos neuréticos, que fizeram sintoma com suas Fantasias, esses ou- tos manifestam tanto sua adesio a fantasia do Outro quanto seu imediato descolamento. E sem a divisio que se expressa nas neuroses em conflito subjetive. Colocam no imediato do Outro simultaneamente os estragos sobre seu corpo, a aboli- ao de seu proprio ser e um gozo no que fazem, descobrindo assim 0 decalque mimético deste Outro. Mostram o psicossomatico como uma realizacio do imagi- nario: o que esta impresso diretamente em seu corpo seria 0 encontro traumatico com o Outro. “Inscrigdes no corpo para tomar inesquecivel © que nao foi registrado”, disse uma das minhas pacientes que descobriu, pasma ¢ alvorocada, “o tesou ro da enunciacdo, antes coagulada pelo esmagador no corpo dos enunciados do Ouro”. A identificagao com 0 parente, mae ou pai traumatico, ¢ a relacao direta do sujeito com um objeto sem alteridade sio uma identidade por decalque, que nao é especular, pois nao ha inversio simétrica. Os pacientes cance- Stylus Rio de Janeiro n. 10 p.83-95 abr. 2005 ross que atendi encontram nisso uma presentificagao da cas tracao realizando-se no imaginario. Até surgir um limite para © seu imaginado poder falico fantasistico, mental, que os exau- ria, até surgir corte, ¢ a significacdo de serem vulneraveis ¢ de poderem receber algo dos outros, Com o Outro matemo, so situam 0 imediatismo opaco do gozo no corpo ouo édio. Nun- cao amor. Nunca o enigma do desejo, s6 sta vontade esmaga- dora. Zom comeca seu livro com esta afirmagao: “E uma sorte que o cancer tenha por fim se declarado, Com o que recebi da minha familia em pouco alegre existéncia, a coisa mais inteli- gente foi contmair o cdncer. Desde que estou doente, estou mui- to melhor do que antes de adoccer”. Em sua vida, ha um antes cum depois. Antes, a petrificada identificagao com o falo morto em um estado de permanente melancolia, em que passava 0 tempo 56, ilhado, escrevendo em um papel “tristeza” © “soli- dao", ¢ revendo em seu pensamento vez por outra os versos de Martin Codax: Ai, Deus, se sabe ora meu amigo / Como eu senheira estou em Vigo? Depois o cAncer, “as lagrimas fechadas”, mas que nio sairao nele, pois em seu livro testemunha a torrente de ddio e nao de rios de dor orientados pelo crime que descobriu ser seu A medida que seu linfoma crescia: 0 de ndo ter amado nunca uma mulher, Zorn, que, sentindo-se heterosexual, nunca tinha tido um encontro sexual com uma mulher, coisa com que sonhava sem conseguir aproximar-se de mulher alguma ~ ou- tros obsessivos cheios do édio que os liga 4 mac também nao, mas nem por isso contraem "un cancer — declara que © cancer “€ uma doenca moral”, o mesmo que Lacan diz da depressio. Outra paciente, obsessiva, diz que seu cancer é a doenca que the deu enfim “moral” para nao continuar a exchuir o que é acentelha da vida no mundo, 0 erético no encontro com 0 ou- tro, Nesses pacientes, € como se o ser nao houvesse encontrado outro nome que nao o de um gozo, através da equivaléncia ima- ginada entre 0 experimentado eroticamente em seu corpo ¢ 0 seu ser como objeto absoluto do Outro. Zom celebra © cancer como © que por fim deu nome ao mal contido no “Gott” de seu pai, ¢ dos pais de sua mae e de seu pai. Depois de ter passado pelo mé fiunai (quer dizer, mais valeria ndo ter nascido, de Edipo antes de arran- car seus préprios olhos), afirma-se em seu ser um: “Melhor 0 cancer do que a harmonia”, ou: Viva a morte! = Terrivel, nao? Nos casos de sujeitos histéricos que temiam mais os trata- mentos da doenca organica que a propria doenca, manifesta-se uma forma especial de reagdo terapéutica negativa. Pareciam prefe- rir manter a doenca, sem querer saber nada de suas conseqiién- 91 92 Saber-fazer com 0 real da clinica cias destrutivas na vida real, coisa a que resistem valendo-se de sua fantasia de um corpo intocavel, integro, no qual chegam inclusive a imaginar 0 tumor canceroso como algo em uma capsula, controlado, que nao altera as zonas vizinhas de seu organismo. E a belle indifférence levada ao extremo. Prevalecem a vontade do sujeito de reinar como Mestre sobre 0 Outro € sua rejeicao a que 0 corpo obedeca ao significante-mestre. A atitu- de que esses sujeitos tomam quando se encontram com 0 real de um tumor canceroso no corpo é resistir ao efeito benéfico dos tratamentos, seja por evit-los, seja por manifestarem efei- tos secundarios 4 quimioterapia, a radioterapia ou a cirurgia que demonstram que “o remédio é pior que a doenga”. Nesses sujeitos ancorados na forma da fantasia histériea, encontrei uma “imaginarizacio do real”, ou seja, esses sujeitos véem nesse tumor, parasita do seu organismo, seu ser pulsional de objeto aem sua fantasia do Outro. Uma paciente com varias recidivas de cancer e metastases jé declaradas ouvin 0 médico dizer “Fizemos ela sofrer bastante”, ao Ihe comunicar o sucesso do resultado biolégico das investigagdes praticadas depois de uma quimioterapia. Ela sentiu um horror que Ihe confirmava por que tinha recebido esse tratamento de ma vontade, defen- dendo-se em seu corpo, € 0 quanto tinha pago em complica- des inesperadas e macicas reacées adversas a essa quimio. Res- pondendo a indagacdes minhas, disse: “Nao podia ouvir 0 que © médico falava do tumor, pois é como se falasse de mim”. Ha algum tempo, propus que alguns casos de histéricas com doengas organicas demonstram, no real, “a repulsa do corpo”® do sujei- to histérico em “seguir o efeito do significante-mestre”, ¢ que, para dissolver a reacao terapéutica negativa, a intervencao ana- litica foi muito saudavel, pois deslocou sua fantasia para a vida psiquica, descolando-a do objeto real que o tumor era na vida do organismo. Para concluir, se bem que o exposto nao oferece conch sio alguma sobre o enigma da cura sob transferéncia de algu- mas doencas organicas, direi que esses casos me ensinam que o assunto da cura é bastante alheio a um “saber fazer com 0 gozo”. “Saber fazer com 0 gozo” nao poderia ser o enganador lema do capitalismo em seu empuxo para o uso perverso da fantasia, ou para o uso auto-crético dos objetos? O que se trans- formou nesses pacientes se deve mais a um “desfazer-se” do go70, a um consentir em “nao fazer” com 0 curto-cirenito da pulsio o reduto fechado de um gozo na torre da fantasia, como Sisifo, para desmentir a castracao, a falta radical que habita o styjeito € o Outro. Como diz. Lacan no fim de 0 Seminario, livro 11, > Galano, Uhysterique tle refus de corps danses malades sgaves (1996) Lacan. Seminén, hoe Xi (1964, p.98-9) Stylus Rio de janeiro nm. 10 p.83-95 abr. 2005, 93 algo da “corrente (chainon) do desejo ainda conservado sem a afanase do sujeito” como © que caracteriza © psicossomatico tem sido sem diivida o anel, a corrente, o desejo que os man- tém em andlise. Uma paciente, ja tratada de seu tumor cerebral, diz: “Querer viver é querer o viver proprio, e nao como fiz até agora, um viver mortal para a existéncia de meus pais ou um, viver proprio congelado em uma mascara imperturbavel”. Esse desejo de vida prépria, nao cifrado nos significantes do Outro, nem latente em uma determinagao inconsciente do sujeito, deu a varios desses analisantes asas a um desejo que nao esta se- qiiestrado no corpo, nem colado a um gozo mortifero. Esse desejo, quando decidiram fazer mudangas em sua vida, den- Ihes vitalidade: na emocio de algumas realizacoes inéditas, embora nao sem hesitacées, no vislumbre, nao sem gozo, de sinais luminosos de algumas realidades atraentes. TRADUCAO Angela Lobo de Andrade REVISAO Angela Mucida Maria Célia Delgado de Carvalho referéncias bibliograficas Gattano, Carmen, Lihystérique et le refs de corpsdans les maladies graves. Quarto. Bruxelas, n. 59, 193. Lacan, Jacques. ElSemindirio, libro XVIL Elreverso del psicoandlisis (1964). Buenos Aires: Paidés, 1992. Lacan, Jacques. (1966). Position de l'inconscient. In: Ecnits. Paris: Seuil, 1966, Lacan, Jacques. (1967). Proposition de 9 de octobre. Slicet. Paris, n.1, 1993. Zorn, Fritz. Mars, Paris: Gallimard, 1979. o Saber-fazer com 0 real da clinica tesumo O trabalho interrogaa incidénciada cura analitiea em sujeitos afetados pelo cancer os que interrogam o enigma de sua enfermidade como psicos- somatica; € os que, sem abordar em sua anilise o real organico de sua enfermi- dade, esperam da analise uma mudanga de posicao subjetiva diante dos dolorosos tratamentos oncol6gicos. emdu s vertente abstract This paper questions the incidence of the analytical cure in subjects affected by cancer in two ways, the ones that ques tion the enigma and their infirmities as psychosomatic, and the ones that, with- out questioning on their analyses the real organic of their infirmity, hope that the analyses will lead them to a change of subjective position as they go through the painfull oncological treatments. palavras-chave cancer, corpo, organismo, psicossoma € libido, keywords cancer, body, organism, psychosomatic, libido, recebido 20/02/2005 aprovado 31/03/2005 Stylus Rio de Janeiro. 10 p.83-95 abr. 2005, 95 Trauma e a lembranga encobridora Cé1ia Vercinta pa Siva Do AMARAL. Quanno M. RuscA ANALISE, tem 41 anos de idade. Dois fatores determinam sua busca: esta angustiada, tomada por um estado depressivo, ¢ com idéias de suicidio. Pensava em proje- tar-se de algum lugar bem alto, sem que nada pudesse impedir a passagem de seu corpo. Ao mesmo tempo, estava prestes a iniciar um estégio na area de satide € se perguntava como, assolada por esse sentimento, poderia tratar de alguém. Des- creve um sentimento de culpa que a invade, € nao sabe se a culpa é relativa ao desejo de suicidio ou se esse desejo resulta do insuportavel da propria culpa. Tentara se matar trés vezes, tendo provocado acidentes antomobilisticos, mas nao se recor- da de detalhes. Tinha ins6nia, dor nos pulsos, dor de cabega, dor ¢ herpes na regido lombar, todos sintomas para os quais os médicos nao encontravam raz4o, Mas era aturdida sobretdo por “lembrancas em flashes” © por uma historia pessoal com “imensas lacumas”, que ela mesma entendia como um sintoma Flashes Ihe ver ao pensamento. Flashes de lembrangas que a inquietam. Sao imtimeros flashes, dos quais dois se desta~ cam pela insisténcia e, em sua anilise, articulardo seus sinto- mas ¢ sua “histéria com imensas lacunas”. Uma dessas lembrancas é de roupas estendidas no varal, com lengéis maltorcidos “respingando” Agua em seu rosto € um pedaco de tecido lavado “respingando” agua no nariz de seu irmaozinho. A outra, a imagem de uma boneca de louga toda quebrada que nao sabia se era dela ou de sua irma. Fica~ va intrigada, incomodada, porque nao se tratava de estar sem uma ou outra parte do corpo, mas de estar toda quebrada Também se interrogava pelo fato de pertencer a uma geracio que conheceu bonecas de material plastico © sua lembranca ser de uma boneca de louca. Questionava a mac sobre boneca quebrada, porém ela dizia nada saber a respeito. Segundo Freud, em Rascunho Ki essa Ahiisteria come¢a com a subjugacao do cu [... Aprodugao de tensao, na experiéncia primaria de desprazer, é tao grande que 0 eu nao resiste a cla ¢ ndo forma nenhum sintoma psiquico, 96 Saber-fazer com o teal da clinica mas € obrigado a permitir uma manifestagao de descarga — [...] uma expressio exagerada de excitagao [qualificada] como “histeria do sus- to"; seu sintoma primério é a manifestagio do sus- to, acompanhada por wma lacuna psiquica. Ain- da nao se sabe até que idade pode ocorrer essa primeira subjugacao histérica docu. Ora, sabemos que, no percurso de uma anilise, 0 sujeito se depara com 0 efeito do recaleamento ¢ a formacao de sinto- mas, em um trabalho de defesa em que a lembranga demons- tra conexao entre ambos. Fruto do recalcamento, a lembranca encobridora decorre da intensificagao de uma idéia limitrofe, a qual pertence ao eu e Ihe é acessivel e, a0 mesmo tempo, “forma uma parte nio-distorcida da lembranca traumatica”. Nao hA supressao do que foi inscrito no inconsciente, mas sim lacu- na psiquica do que resta a ser recordado. No caso Dora, Freud chama a atencao para o efeito encobridor da amnésia infantil, as lacunas que, a favor do recalque, retiram da meméria a cena que, a posteriori, revelara sua forga de trauma. Em Recordar, repetir ¢ elaborar , texto que pde em jogo a transferéncia como o fator que move 6 trabalho analitico, ele ressalta que a amnésia infantil é inteiramente contrabalancada pelas lembrancas encobridoras que retém, em sua totalidade, o que é essencial da infancia E sob transferéncia, entao, que M. caminhard, no desfi ladeiro de seus significantes, até o encontro com o real em que © sintoma congela o trauma em lembraneas encobridoras. Sua historia se torna singela. Hi historia. Muito pobre, comecou a trabalhar aos cinco anos de ida- de, Apenas ela ajudava 0 pai, feirante, compartilhando com ele uma intimidade que excluia a mac ¢ os irmaos. Ficava responsa- vel pelo “caixa”. Recebia o dinheiro das pessoas que compra- vam. O pai se vangloriava de que a filha sabia “dar o troco direi- tinho”. Lembra que, no inicio da puberdade, ficou sabendo que seu pai tinha uma amante. Nessa época, sua mie tentou o suicidio pela terceira vez, sempre da mesma maneira. Na pri- meira delas, foi M., ainda era bem pequena, quem a encontrou com 0s pulsos cortados. Nao se lembra do que fez para socorré- la. Recorda © cheiro da casa dos avés que moravam na roca, onde passava as férias. Seu tinico espaco de lazer, em que brin- cava com as outras criangas da familia, Recorda também o chei- ro de seu velho edredom, 0 cheiro de mijo © cocé da rua da feira, seu nojo, ¢ a lembranga de que seu pai a deixava sozinha, Freud RascunhoK(18%6,0.949) * Freud Recotdat pete ddaberar1914) Stylus Rio de janeiro n. 10p.96-102 abr. 2005 07 justamente para ir urinar e defecar em um canto dessa rua. Estranha lembrar-se de um tanque grande existente na casa de sna infancia, Retorna aos lugares para ver se consegue lembrar algo mais. As lembrancas, no entanto, as mesmas que Ihe pare- ciam nao fazer histéria, ndo cessam de retornar em flashes, pe- sando sobre o sujeito, fazendo sintoma M. estaya em seu segundo casamento, do qual tinha um filho. Ficou vitiva muito jovem. Seu primeiro namorado foi seu primeiro marido. Conhecew-o ainda menina. Ele sofre um aci- dente de carro um ano apés © casamento, permanecendo in- ternado na UTI durante quarenta e cinco dias. Levantam a hipétese de que ele provocara o acidente. M. nao quis saber disso. Para ela, a lembranca mais forte é receber as roupas do marido todas sujas de sangue, cujos cheiro ¢ cor se tomam marcas. Morto, cuidou de limpar seu corpo, barbeou, vestiu, escolhen o tipo de funeral, enfeitou 0 caixao... porém nao lem- bra do enterro em si. O sangue, 0 cheiro, os flashes. Os flashes insistem, ausentes de razao; espantam o sujeito, remetem a um saber ignorado. Asrelacées familiares, em especial com a mie, sao hostis. Em uma sessao, relata que, ao recusar o convite para um jantar familiar, ‘Jantar para resgatar 0 passado da familia”, instruira sua mae para justificar sua auséncia aos familiares com a seguin- te expressio: “Diga que ndo fui encontrada”. Uma pergunta da analista ganha forca de interpretacao, abrindo o inconsciente para além da lembranca e desvelando uma outra cena: “Afinal, de que auséncia vocé esti falando?”. Como se uma cortina se abrisse, M., perplexa, rememora: estava com aproximadamente cinco anos de idade, em férias na roga, na casa de seus avés. Era amiga de uma menina porta- dora de sindrome de Down, com mais ou menos sua idade, com quem brincava muito. Na casa de seusav6s, existia “uma engenhoca” que funciona- va precariamente como um gerador de energia elétrica. “A engenhoca” consistia “em um buraco fundo em forma de poco que captava a agua vinda de um pequeno cérrego. No meio do poco, havia uma peca centrifuga, cheia de laminas de metal, sobre a qual caia a agua, que, em seguida, escoava pelo fundo desse poco, pasando por uma fenda lateral e indo desaguar em um riacho. No fundo do poco, havia também um mecanis- mo por onde passava a energia produzida, que era distribuida para umas poucas limpadas existentes na casa”. M. e sua coleguinha tinham o habito de brincar as mar- gens dese poco. A brincadeira consistia em projetar um pouco sa Saber fazer com o real da clinica © corpo para frente e deixar que o vento produzido pelas hélices da centrifuga fizesse esvoacar sens cabelos €, a0 mesmo tempo, respingar agua em seus rostos. Certa vez, a amiga perde 0 equi- ibrio e cai no poco sobre a centrifuga. A menina grita desespe- radamente, enquanto seu corpo é despedacado pelas hélices em um movimento de subida € descida contra as paredes do poco, sendo tanto os pedacos do corpo quanto o sangue leva- dos pela correnteza riacho abaixo. Ha auséncia de um corpo. Um corpo nao foi encontra- do, “Diga que nao fui encontrada". Surge o significant inter- rogado no inicio da sessio, rompendo-se a relacao de concilia- cao entre o trauma, o recalcamento € as lembrancas encobri- doras. O processo de defesa nao sustenta mais o insuportavel da angtistia contida no sintoma das lembrangas em flashes. Seus componentes despedacados, fragmentados, lacunares, formam agora um todo nesse encontro com o real. Um trauma, um buraco, no pogo da “engenhoca”. Onde M. diz nao ter sido encontrada é exatamente onde ela existe, onde encontrao real. Em Lembrangas encobridoras, Freud assinala que na memo- rizagao, “em vez da imagem mnémica que seria justificada pelo evento original, produz-se uma outra, que foi até certo ponto associativamente deslocada da primeira”, Segue-se, assim, da boneca quebrada ao corpo despedacado da colega, dos respin- gos dos lengéis no varal aos respingos d’agua das hélices da engenhoca - vento frio, vento de morte. Imediatamente apés essa sesso, M., tragada por esse en- contro com sua verdade, telefona A mae para saber 0 que acon- tecera de fato. M., portanto, acreclitava que sua mae possuia a chave do saber sobre seu trauma. Mas nao ha esse Outro do saber que alivie o sujeito. A mae the responde: “Sé vocé sabe”. Momento de desamparo, de perplexidade. No encontro com 0 real, 0 sujeito esta largado & sua total solidao. Desde Estudos sobre histeria’, Freud persegue as causas que Jevama formacao dos sintomas histéricos, 0 sofrimento de remi- niscéncias com seu corolario de lacunas de memoria, lembran- cas encobridoras além de indiferenca afetiva € conversées so- miticas. Mas o que traumatiza? O que faz efeito de trauma? Mui- to cedo, Freud aponta a natureza sexual da experiéncia ocorri- da em tenra infancia. O trauma é sexual, mas “nao sio as expe- riéneias em si que agem de modo traumatico, mas antes sua revivescéncia como lembranca depois que o sujeito ingressa na maturidade sexual”®. E na logica a posteriori com que o incons- ciente funciona e na andlise com 0 rastreamento do significante SFreud Lembrangas excobsdoras (1899, 9.918) “Freude Breuer Estudos sobrea Fister (1893-5) $id, 1556 stylus Rio de Janeiro. 10 p.96-102 abr, 2005 99 em regressdo na cadeia associativa que o sujeito tera acesso a0 encontro fundante de seu desejo que Ihe fez trauma. O Edipo, em sua complexa natureza na experiéncia infantil, ordenara estruturalmente 0 sujeito desejante, ¢ © que encontraremos em sua fala ser aquilo que, na historia familiar, tornou-o um, pequeno amante, funcionando © sentimento inconsciente de culpa como propulsor de recalcamento € sintoma. M. se atormenta, emerge fortemente a hostilidade & mae sua propria divisdo: “Sera que minha me pensa que eu empurrei a menina no buraco? Eu nao empurrei. En me lem- ea bro muito bem que nao empurrei. E muito triste minha mae pensar isso de mim. Eu nao tenho nem coragem de perguntar se ela pensa isso de mim, mas tenho certeza de que ela pensa”. E ela propria, 0 que pensava? “Eu tenho certeza que nao em- purrei, mas sera que ela vai acreditar em mim?”. O significante fisga o sujeito denotando sua divisio. A lem- branga, agora viva, da cena mortifera da menina-boneea despedacada dirige as elaboracées ¢ seu desejo de saber mais. Afinal, 0 saber esta do lado do sujeito, 96 ele sabe. Vai ao velho sitio dos avés revisitar a engenhoca, lugar de tanto prazer & destrocamento. Relembra a cena, sabe que a menina cain aci- dentalmente, relembra o siléncio imposto pela familia sobre o acontecimento, relembra que por muito tempo ouviu gritos de uma crianga, sem encontrar para eles razio que nao fosse 0 dito matemo: “Sao coisas de sua cabeca”, Concomitantemente, a ira contida, 0 ressentimento e um sentimento de culpa em relagdo 4 mae pontuam uma nova lembranga. Recorda ter recebido de presente do pai, ainda peque- na, sua tinica boneca, Susie, esta sim de plastico, indice de sua condicio de favorita por acompanhar o pai nas madrugadas das feiras, onde compartilhava o cheiro de sua urina e fazia o caixa direitinho. Rearticula o que falara ha muito tempo na anilise, agora com édio: seu pai tivera uma amante, ela 0 sou- be aos onze anos, seu pai deixara faltar 0 basico em casa € imagina que a amante devia receber de seu pai o que seria para a sua familia. A enorme decepcio sustenta o sujeito na sua histeria. © trauma, edipico, associa a crianga despedagada, a amiguinha ¢ o presente do pai; a boneca Susie. O lugar de preferida realiza algo de seu desejo incestuoso na histéria fa- miliar, condensado pelo significante “boneca”. Boneca quebra- da é 0 significante que metaforiza tanto a experiéncia de hor- ror quanto 0 desejo edipiano, favorecendo o deslocamento do sentimento de culpa dirigido A mae para 0 episédio da morte 100 Saber fazer com 0 real da clinica OVUM Go Vag Lica wi 00 rau Fu = $P da amiga. Boneca quebrada ~ de louca, de plistico, de carne que sangra ~ é 0 significante da estranheza. Um ato falho dribla o recalque, enlaga o sujeito — verda- de do desejo, verdade do sintoma. M. precisou fazer uma prova do tipo “preencha as lacu- nas”. “Me faltou lacuna na resposta”, diz sob transferéncia. Per- cebe a falha significante: “Me faltou a palavra para preencher a lacuna”. Interrogada sobre qual palavra Ihe faltara, explica-se. Tratava-se de uma prova sobre antigas formas de cuidar da loucura. A palavra que faltara para preencher a lacuna do tex- to articula no inconsciente, desejo, sexo e morte. “Trepanacao”, cis a palavra recalcada. Trepanagao é uma técnica cirtirgica em que o trépano, um instrumento metalico, perfura os ossos, especialmente os do cranio. Um segundo sentido nao Ihe é anédino. Trepanagao: técnica de construgao que utiliza um instrumento provide de gumes muito cortantes com que se fazem furos de sondagem nos solos. Trepanacao: trepa-na-acao. referéncias bibliograficas Fret, Sigmund. (1896). Rascunho K: As neuroses de defesa (Um conto de fadas para o Natal). In: Ediedo Standard Brasileira das Obras Psicolagicas de. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987. Vol. 1 Frevp, Sigmund. (1896). A etiologia da histeria. In: Edigdo Standard Brasileira das Obras Psicolégicas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987. Vol. III. Feeup, Sigmund, (1899). Lembrangas encobridoras. In: Edigdo Standard Brasileira das Obras Psicologicas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987. Vol. TIT. Feeun, Sigmund. (1914). Recordar, repetir € elaborar (novas reco mendacdes sobre a técnica da psicandlise II). In: Edigdo Standard Brasileira das Obras Psicolégicas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987. Vol. XIL Freup, Sigmund e Breuer, Joseph (1893-1895). Estudos sobre a his- teria, In: Edicio Standard Brasileira das Obras Psicoldgicas de S, Preud. Rio de Janeiro: Imago, 1987. Vol. IT Stylus Rio de Janeiro 10 p.96-102 abr. 2005 resumo O artigo aborda uma experiéncia vivida em tenra infancia e que se constituiu como trauma organizador de sintomas onde os significantes se articulam e se ampliam no campo da fantasia. Sob tansferéncia, © equivoco significante condwz acena traumitica, desvelando a légica do desejo. abstract This article discusses the case of an ex- perience which occured at tender child- hood and which was constituted as symp- tom organi sig- nificants become linked and amplify themselves in the fantasy field. Under transference, the significant mistake con- ducts to the traumatic scene revealing the desire logic er trauma where the polavras-chave Histeria, trauma, lacuna, lembrangas encobridoras, sintoma keywords Hysteria, trauma, get, screen memories, symptom recebido 22/02/2005 aprovado 16/04/2005 101 102 Saber-fazer com o real da clinica Um aborto da natureza: a transferéncia na implicagao do sujeito na fantasia Mania HELeNa Martino © TRYETO DE UMA ANALISE VAIO ENCONTRO traumatico com © Outro a construcao da fantasia, operacao que exige a respon- sabilidade do sujeito. Na clinica, verificamos que, no inicio do tratamento, deparamo-nos com alguém que s6 quer nos falar sobre seu sintoma para melhor manter sua fantasia resguarda- da, justamente por nao ser possivel dizé-la. O trauma é como. se 0 paciente dissesse: “Eu sofro, mas a falta vem do Outro que me seduziu”, Assim, no tempo do trauma, o sujeito pode se interrogar: o que me fizeram? E no tempo da construgao da fantasia, questionar: © que acontece comigo? Em uma anilise, © sujeito devera entao passar do trauma, do mau encontro com o Outro, a fantasia, e, no fim, 4 assungao da divisio subjetiva. E curioso notar que percurso feito pelo sujeito em uma ana- lise € 0 mesmo que Freud realizou na construgao da teoria psicanalitica: ele vai da teoria do trauma ou da seducao (1896) A elaboracao da teoria sobre a fantasia, que tem seu cume em 1919, com Uma crianca é espancada, e termina em A divisao do eu no processo de defesa (1938) No infcio da elaboracio da teoria psicanalitica, Freud buscava encontrar o ponto traumatico do sujeito em uma cena que cle tivesse vivido na realidade © que seria, assim, a base do sintoma. Logo, porém, concluiu que s6 era possivel supor esse trauma, o que o levou a elaborar a teoria da fantasia, na qual esta se encontra na base do sintoma. A partir de entio, as cenas traumticas nao precisariam mais ser comprovadas no dia-a- dia do sujeito. Todavia, por pertencerem ao plano da fantasia, no deixaram de ser traumiticas, uma vez que fazem parte da realidade psiquica do sujeito. Assim, podemos afirmar que Freud abandonou a busca de uma realidade histérica que mostrasse a origem do sintoma, mas nao recuou diante do real traumatico que é a castragio para ambos os sexos. Diante do insuportiyel do real do sexo 0 sujeito respon- de com a fantasia, que esta na base da realidade psiquica. Ela é constituida por significantes do Outro. Todos os relacionamen- tos do sujeito com seu semelhante € com o mundo externo sio mediatizados pela tela da fantasia, a qual, ao mesmo tempo em Stylus Rio de Janeiro n. 10 p.t03-114 jun. 2005 que protege o sujeito do real traumitico, produz sintomas que tém 0 valor de real para o sujeito. A fantasia da simultanea- mente ailusio de uma relacao de completude do sujeito com 0 objeto € a ilusie de completude do Outro. Se a tela da fantasia € 0 que enquadra a realidade do sujeito, se esta no fundamen- to da posicao do sujeito nas situagdes de sua vida € nas relagoes com 0s outros, ditando-Ihe um modelo de comportamento de gozo, é primordial qe o analista verifique qual a posicio do sujeito na fantasia. Como a base da estratégia do analista na direcao da anilise se refere A transferéncia, uma vez que é convocado a ocupar o lugar do Outro a quem o sujeito dirige as suas demandas, é fundamental que ele detecte a modalidade da relacao do sujeito com 0 Outro. Aconstrucio de fragmentos de um caso elinico pretende ilustrar nao s6 0 modo de relacionamento de um sujeito histé- rico com 0 Outro, mas também a maneira pela qual, na trans- feréncia, convoca a analista a ocupar © lugar do Outro. A clini- ca demonstra como esse sujeito separa fantasia e sintoma gra~ cas ao recalque, que é um dos nomes da paixao da ignorancia. Desde as entrevistas preliminares, notam-se as relacées desse sujeito com 0 gozo: tanto na queixa do sintoma que o faz sofrer quanto em sua fantasia, da qual nao se queixa porque esta recaleada. Em outros termos, 0 recorte do caso clinico a ser abordado demonstra que a fantasia inconsciente é construida para responder a tudo que é enigmatico para esse sujeito, a tudo que © angustia em sua historia proveniente do Outro, a uum gozo fantasmatico que preenche a idéia que faz do que conviria ao Outro. A anilise, entéo, opera como uma tentativa de implicé-lo em seu gozo, de fazer com que, ao falar sobre 0 seu sintoma, desvele algo sobre a sua fantasia. O pedido de analise em dois tempos e a entrada em andli- se em trés tempos ilustram a forma particular de gozo desta mu- Iher de 88 anos, a quem chamarei Marcia. Angustiada e descren- te, fala, na primeira entrevista, sobre suas desconfiangas ¢ aban- donos. Conta que abandonou sete terapias em um intervalo de 17 anos. Ja na segunda entrevista, anuncia que tera de abando- nar sua oitava tentativa de tratamento. Diz que procurara al- guém que a atenda pelo convénio a que tem direito. Pede a indicacao de uma psicéloga credenciada pelo seu convénio € se vai. Cinco meses depois, volta a me procurar, mas diz que, desta ver, tratava-se nao de um pedido para ela, mas para seu filho de cinco anos de idade. Relata que procurara a terapeuta conve- niada indicada por mim, fora a quinze entrevistas ¢ abandona- ra, mesmo antes de iniciar, a nona tentativa de se tratar. 103, 104 Saber fazer com 0 real da clinica Marcia vem a algumas entrevistas para falar sobre o fic Iho, queixa-se que o menino se comporta como um bebé costuma roer as unhas. Suas queixas sobre o menino pratica- mente se esgotam nessa frase. Ela comeca, entao, a falar livre- mente sobre “abortos” ¢ “rejei¢es” — em sua primeira entre- vista, cinco meses antes, ji me prevenira sobre os “abandonos”, sobre o fato de estar sempre pronta a abandonar suas ativida- des, cursos € terapias. Marcia conta que comecou a rejeitar a sua primeira gravidez no terceiro més de gestacdo, momento em que se deu conta de que nao mais seria possivel abortar 0 bebé, anunciando, assim, seu desejo de abortar seu primogénito. Confessa também, sem o menor constrangimento, que nao gosta do seu filho mais velho, por considera-lo “um bobo”. Diz. ainda que a gravidez do segundo filho, o que traz para ser atendido por mim, s6 aconteceu por insisténcia de seu marido, 0 pai do menino, pois cla também nao desejou que esse filho nascesse. Durante essa gravidez, teve um principio de aborto. Apés algumas entrevistas com Marcia, decido agendar uma entrevista com 0 pai do menino. Ele demonstra extrema preo- cupagao com a satide do filho. Gonta que © menino, com um ano de idade, sofreu varias convulses, sendo submetido a uma série de exames, nos quais se detectou um cisto no cérebro. Os médicos, entretanto, nio atribuiram ao cisto a causa das convul- ses, e consideraram que essas teriam decorrido de febres altas Apesar de os médicos terem reafirmado que 0 cisto encontrado no cérebro nao deveria ser motivo de grandes preocupacdes, © pai diz que nao consegue deixar de tratar esse filho como um. bebé doente. Nas entrevistas com o menino, evidencia-se que sua fala é praticamente incompreensivel. Além disso, suas atitudes nao condizem com a sua idade: ele se comporta como uma crianca bem mais nova. Um “bebé doente” respondendo as expectativas dos pais? Em suas historias, matancas, gueras ¢ cocés emergem como apelos. Em determinada entrevista, dirige uma questao & analista: quer saber se a analista sera capaz de limpar © cocé que tem na lagoa poluida em frente a sua casa e na piscina pequena do clube que freqiienta. O menino, logo nas primeiras entrevistas, endereca uma questdo a analista suposta saber sobre assuntos de cocé. E, assim, entra em andlise. Decido manter a mae em entrevistas, € retomo aqui o que, para mim, é uma questdo findamental: quem demanda anilise? No caso do menino, o enderecamento & analista foi claro, mas nio eliminava uma questao que permanecia em aber- to sobre © desejo de anélise da mae. Afinal, ela me procurara Stylus Rio de Janeiro n, 10p.103-114 jun, 2005 uma primeira vez como sua analista, tendo em seguida aberto mio do atendimento por precisar pagar menos. Podia, entre- tanto, pagar © meu prego para o filho. O que isso queria dizer na sua historia de “abortos’, “abandonos”, “mentiras” ¢ “menos- valia"? Verificamos, na clinica, diferentes formas de demandar uma anilise: uma demanda de supervisio, um convite para uma conferéncia, um pedido de andlise para um filho. Uma pessoa pode vir falar em seu préprio nome, em nome do casal, em nome da familia, de um filho. A quem atribui o dizer de que seus sintomas ndo sio mais suportaveis? Ha também diferentes tempos em que um pedido de anilise pode ser feito. Uma mae pode conduzir seu filho a uma andlise e pedir um contato com 0 analista, mas passado algum tempo revelar que a demanda era sua, ou seja, a crianga pode ser © substitute de uma demanda que © sujeito nao podia assumir. Marcia afirma que trouxe o seu filho 4 anilise e que acha- va que seria ela, € nao ele, quem ficaria. Encadeia uma série de questées ¢, numa fala inconformada, pergunta se esta fazen- do anilise, se esta ali por causa de seu filho ¢ se 0 filho esta assim por causa dela; questiona também por que é convocada para as entrevistas regularmente € seu marido nao. Marcia de- nuncia a raiva dirigida 4 analista por nao ter sido a escolhida como paciente. Durante suas entrevistas, queixa-se incessante- mente que nunca est4 bem. Mal-humorada e agressiva, depoe contra tudo ¢ todos a seu redor: sua histéria, seu passado, sua familia, seu marido, seus filhos, seus amigos, seus antigos terapeutas. Nada serve, nada presta, nada pode modificar sua vida diante de sua dramética historia, Historia que, em um mo- mento de extrema angtistia, decide revelar, praticamente entre os dentes, & analista: “Eu fui adotada, Minha histéria é complica- da, ndo quiseram que eu nascesse. Eu sou um aborto da nature- za. Vivo na minha familia, mas nao consigo adotar essa familia Nao consigo me aproximar dos meus filhos, Tenho medo que eles virem uns merdas como eu!”. Essa mulher paga um alto preco pela seguranca que ob- tém na fantasia: 0 preco de estar presa em uma posicio fixa: “sou um aborto da natureza”, “sou uma merda”, “sou adotada”. Ela responde de maneira estereotipada, do mesmo lugar ¢ com aS mesmas respostas a0 Outro que a sua neurose faz existir. Se o sintoma, que é a mensagem que © sujeito recebe do Outro de forma invertida, tem valor de resposta ao desejo do Outro, ha, pois, uma conjugacio do sintoma com o desejo do Outro, que € sempre desejo de saber, Che vuo® O que queres? 105 106 Saber fazer com 0 teal da clinica Pouco a pouco, Marcia revela os segredos que fazem parte de sua histéria. Fala com muita magoa ¢ raiva sobre o que The havia sido revelado sobre a sua origem: trés histérias, wés ver- ses escabrosas € confusas que a deixavam sem saber se ao menos uma delas era verdadeira. A primeira verso Ihe foi contada por sua mae quando ainda era uma crianga, Embora 0s vizinhos dissessem que ela era adotada, sua mae Ihe garantia ser sua mae verdadeira; havia, entretanto, decidido confessar- Ihe que ela nao era filha biolégica do homem que considerava ser seu pai, marido de sua mae. Sua mae insistiu que essa revela- do deveria ser mantida em segredo, pois seu marido no pode- ria sequer desconfiar que Marcia nao era sua filha. Contudo, mesmo acreditando que Marcia fosse sua filha, esse homem nunca mais a procurou apés a separagao do casal e, além disso, deserdou-a. Nessa versio contada por sua mae, Marcia seria fru- to de uma paixio proibida com um homem que costumava fre qiientar sua casa, a quem ela nao podia chamar de pai, pois sua mie exigia que ela guardasse s6 para si o segredo que Ihe reve- lara. A segunda versio sobre a sua origem Ihe foi contada por sua irma adotiva, quando sua mae ainda era viva. Nessa ver~ sio, a irma revela a histéria que a sua mie costumava contar- Ihe em segredo: Marcia era fruto de uma paixio proibida ¢ por esse motivo precisara esconder a gravidez de todos. A mae dizia que sua gravidez fora facilmente disfargada porque ela era muito gorda. Na hora do parto, sumira por alguns dias, tendo tido bebé escondido de todos. A terceira versio sobre a sua origem Ihe foi contada por essa mesma irma apés a morte de sua mae. Nessa versio, a ma Ihe revela que ela tinha sido adotada. A irma conta que sua mae verdadeira era noiva de um rapaz que viajou a traba- Iho e que, durante essa viagem, teve um romance com outro homem ¢ engravidou, Sua mae verdadeira a teria escondido do noivo viajante ¢ a teria dado em seguida para garantir que © almejado casamento com seu noivo se realizasse. Durante muito tempo de sua vida, Marcia tentou desven- dar © confuso mistério de sua origem; misao fracassada. To dos que poderiam té-la ajudado nessa missio foram morrendo 6, com eles, as esperangas de suas descobertas. Na fala de Marcia, desvela-se gradativamente um novelo de culpa, vergonha, amor, 6dio, migoa, desconfianca € raiva. Pouco a pouco, conta sua sofrida histéria de abandono e, as- sim, revela o lugar que ocupa no desejo do Outro: uma erianca ndesejada, rejeitada, abandonada, um nada no desejo da mac, Stylus Rio de Janeiro n. 10 p.103-114 jun. 2005 uma merda, fruto proibido de uma paixao. Em quaisquer das trés vers6es um tinico lugar: filha de uma puta traidora que a abortou viva. Marcia demanda amor, ajuda, acolhimento. Ao mesmo tempo em que teme ser rejeitada e abandonada, rejeita e aban- dona. Ela supée um saber da analista sobre criangas abortadas ¢ abandonadas; traz.o filho rejeitado para ser tratado por ela e se queixa de nao ter sido a tinica escolhida. Pensa que a analista nao a quer. A analista procura sustentar a transferéncia, ou seja, considerar que a transferéncia é um amor verdadeiro. Nao fica ausente quando ocorre a demanda de amor, mas, ao mesmo tempo, nao a aceita, porque aceiti-la equivaleria a se fundir com ela, Entre essa recusa em aceité-la e ausentar-se, a analista nao responde com seu ser, mas com sua presenga. Sessio apés sesso, Marcia se lamenta, gura, uma porcaria, uma merda, um aborto da natureza. Nao vé solucao possivel para tamanho horror e desespero. Inverto esse movimento na tentativa de descoléla desse significante mestre, dizendo que cla nao é um aborto. Sua mae nao a abor- tou, a0 contrario, ela a teve. Em uma explosio de raiva, contes- tao dizendo: “Antes ter sido abortada do que dada”. Marcia considera que as pessoas que fazem parte da sua historia a fizeram assim, e conclui que diante disso é impossivel mudar Questiona como uma pessoa pode ser diferente do que a fize- ram ser. Ocorre-me um tinico caminho, o da retificagao subje- liva, visando A implicacao desse sujeito histérico em sua reivin- dicagao raivosa dirigida ao Ovaro, na tentativa de fazé-lo passar da posicéo de vitima sacrificada para a de agente da intriga da qual se queixa e que sustenta seu desejo na insatisfacao. Pon- tuo que ela nao se responsabiliza, nao se implica em sua pr6- pria vida, Também aponto que, para cla, 0 outro é sempre culpado: a culpa é sempre da mae que Ihe deu, da mie que a crion, do pai que Ihe deu um nome, mas a deserdou, do pai biolégico, do marido que insiste, dos filhos, de alguém. Em uma das sessdes do filho, atrasa-se novamente para pegélo. Decido deixi-lo aguardando por ela do lado de fora. Na sessio seguinte, traz 0 menino sem nada mencionar sobre © fato, Na sua primeira entrevista apés 0 ocorrido, fala com raiva de seu desagrado de ter encontrado o filho do lado de fora. Auibui duas vertentes a essa situacao. A primeira, diz ela, reflete 0 lado bom: “o lado bom foi que consegui pela primei- ra vez segurar minha agressividade”, relacionando-o ao fato de que a analista apontava freqiientemente sua nao implicagio nas situacdes que vivia ¢ a atribuicdo ao outro da culpa acerca considera-se inse- 107 108 Saber-fazer com 0 teal da clinica do que Ihe ocorria. Quanto A vertente ruim, diz: “Nao gostei, senti meu filho como uma lata de lixo sendo colocado do lado de fora da porta, aguardando o lixeiro passar, Eu tenho um vinculo com voeé, um envolvimento, mas vocés analistas pare- cem que nao se envolvem, sio frios, priticos”. Apés ouvila, digo quetercolocado 6 menino do lado de fora realmente nao havia sido a melhor alternativa. Marcia fica visivelmente estarre- cida com a minha fala, ¢ comenta sua surpresa diante do que eu disse. A posteriori, foi possivel verificar que ter colocado seu filho do lado de fora da sala teve 0 efeito de um ato analitico, uma vez que a fez ver sua propria questao de estar sempre atuando sua fantasia: “abandona-se uma criun¢a”. A analista faz um “ato ana- litico promotor de escandalo, pois revela a falha do sujeito su- posto saber... O ato vem no lugar de um dizer pelo qual cle muda o sujeito”. A analista coloca o filho de Marcia do lado de fora da porta, € isso demarca para ela um momento de divisio. O ato analitico ratifica a exclusdo desse sujeito: “Nao gostei de ter encontrado meu filho do lado de fora”. O ato analitico apon- ta que Marcia, a abandonada, a excluida, a que foi abortada da familia, também abandona, rejeita, aborta: “Nao consigo ado- tar a minha familia, nao consigo me aproximar dos meus fi- Thos”. A fantasia é uma tela que dissimula algo do real ¢ 0 ato analitico indica o real que insiste, que retorna sempre ao mes- mo lugar. Em outras palavras, 0 ato analitico indica a repeticao traumatica, o que se repete em seu sintoma. Em vez de atender suas demandas ~ “cuide de mim”, “me afague”, “me compreenda”, “tenha picdade, me diga 0 que devo fazer”, a analista a responsabiliza, cria enigma, ques- tiona. Com seu ato, faz emergir a angtistia, o furo, o desejo. Marcia chega demandando uma resposta sobre seu desejo e a analista, com sua nao-resposta 4 demanda, sustenta o lugar de falta; isso implica uma falha no saber, que faz com que as res- postas de Marcia vacilem ¢ a dimensio do encontro falhado se instaure. As respostas de Marcia sustentadas pelas identifica- Ges imaginarias dao lugar a divisao. A partir dai, esboca-se 0 desacordo entre © sujeito € seu ideal. A clinica da demanda e do desejo requer, na entrada em andlise, o manejo da transfe- réncia, Depois que a analista da seu consentimento ao amor da transferéncia, busca sustentar a posicao subjetiva de interroga- 40, tinico modo possivel de conduzir a analisante pelo cami- nho da castracao. O amor transferencial possibilita a manobra, constituindo uma estratégia que diferencia essa anilise das ou- tras oito terapias anteriores. Lacan, Oatoanalitco(1967-8, als 6299 denover-rode 1967) Stylus Rio de Janeiro n.10p.t03-114 jun. 2005 109 O filho colocado do lado de fora faz twansbordar em Marcia uma incessante insatisfacao dirigida aos tais profissio- nais que nao se envolvem e dos quais desconfia. Marcia passa, nesse momento, a questionar o meu trabalho com o filho. Quer saber objetivamente o que ele tem, quer garantias, tem pressa, cobra resultados, querque ele rapidamente deixe de falar como um bebé. Faz ameacas de interromper o tratamento, determi- nando prazos para os resultados desejados. Digo que a decisio de deixar a crianga em tratamento é da familia, Em um movi- mento de intensa raiva diante de minha fala, sai atuando. No dia seguinte, troca o menino de fonoaudidloga, pede uma en- trevista com a escola, ameaca tiri-lo da anilise. Na sesso seguinte, lamenta mais uma vez que seu “envol- vimento” nao seja retribuido pela analista. Questiona como é possivel manter tal distancia, ¢ suspeita que isso se deva a algu- ma técnica do tratamento. Proponho uma sessio extra para o dia seguinte. Ela comparece ¢ questiona o motivo dessa sesso extra, Acha que eu poderia “estar querendo consertar as coi- sas”, jd que “mexi tanto” com ela. Fala sobre a “rejei¢ao” que sentin, Indignada, queixa-se que essa nao é a sua andlise; recla- ma que se realmente fosse, ela nao viria somente uma vez por semana. Proponho o aumento do ntimero de sess6es. Ela acei- ta de imediato, mas se da conta de que precisara trabalhar para sustentar esse desejo Evidencia-se, assim, que a transferéneia é © ponto pelo qual se passa da demanda ao desejo. O tempo das entrevistas preliminares introduz a decisio desse sujeito de analisar-se, decisao sob transferéncia. Pode-se observar um pedido de ani- lise em dois tempos. No primeiro, Marcia vem ¢ nao sustenta 0 pedido em seu nome. No segundo, escamoteia sen pedido em um pedido de anilise para o filho, mas se queixa de nao ter sido a unica escolhida. Pode-se verificar ainda que Marcia faz trés movimentos de virada que marcam sua entrada em anilise. No primeiro, cla se apresenta colada no significante mestre “aborto da natu- reza’, significante da transferéncia dirigido a analista. Ao apon- tar que ela nao é um aborto, pois esta viva, a analista tenta descolila desse significante mestre. Ha uma mudanga: pela pri- meira vez, inicia uma busca de empregos ¢ cursos anteriormen- te abandonados. O segundo movimento ocorre quando 0 fato de o filho ter sido colocado pela analista do lado de fora da sala, a “lata de lixo colocada do lado de fora", faz despertar raiva e migoa diante da suposta rejei¢ao da analista, sobre a qual pensa que ho Saber-fazer com o teal da clinica nio Ihe quer. A partir dai, passa a se responsabilizar um pouco mais pelo que the diz respeito, mas ainda responde com sur presa ao fato de a analista afirmar que ela tinha toda razio, que o menino nio deveria ter ficado do lado de fora. Ao apon- lar para a inconsisténcia do Outro, o comentario da analista a surpreende, fazendo enigma. Ha uma mudanga em sua atitude raivosa € reivindicativa: “Eu consegui segurar a minha agressi- vidade’ No terceiro movimento, verifica-se que a fala da analista “a decisio de interromper a analise do menino é da familia” a faz ameacar interromper também © seu tratamento. Ameaca abandonar a analista, antes que seja abandonada por ela, mas, diante do terror do abandono, aceita a proposta da sessio ex- tra, Emerge, entao, a questio do Outro sob a forma do Che vuoi? “Por que vocé me mandou vir aqui hoje?”, questio que a leva ao caminho de seu préprio desejo: “Se fosse minha anali- se, nao seria s6 uma vez por semana”. Aceita imediatamente a proposta de uma nova sess4o semanal, mesmo que para isso tivesse de trabalhar para arcar como novo gasto. Retomemos a questao inicial: em que o trabalho de trans- feréncia tem a ver com a implicacao da fantasia? Ao pedir que a paciente respeite a regra fundamental da psicandlise, a ana lista faz com que esse sujeito trabalhe. A analista tenta fazer com que esse sujeito deixe de ser trabalhado pelo inconsciente © passe a trabalhilo. Eis por que o discurso do analista é 0 avesso do discurso do mestre, do discurso do inconsciente. Aose referir ao ato fundador da psicanilise, Freud diz: A técnica que descrevo impée a tarefa de inter pretacao a prépria pessoa que sonha. Nao esta interessadacom 0 que ocorre ao intérprete em lacio aum elemento particular dosonho, mas com o que ocorre aquele que sonha? Para Freud, em ver de © sujeito ser trabalhado por uma significacao, ele proprio deve ser posto ao tabalho, para que seja interrogado pela causa. Sendo assim, 0 ato fundador da psi canilise se refere ao fato de que o sujeito demanda significacoes a0 Outro; a partir do momento em que se pede que ele trabalhe, ele nado mais pergunta o que significa seu sonho, ele sonha. Do mesmo modo, no recorte do caso apresentado, vert fica-se que, inicialmente, 0 sujeito pergunta 0 que significa 0 seu sintoma. A analista cala, retém um saber que nao pode dizer, porque, se © fizer, 0 trabalho da analisante para. O silén- Freud, A eretagio dos santos (1900, p.105). Stylus Rio de Janeiro n. 10 p.103-114 jun. 2005 m Go da analista introduz a questao do desejo do Outro ¢ 0 cum- primento da regra fundamental desencadeia a transferéncia. Mas em que esse trabalho da analisante que fala diante do si- lencio da analista tem aver com a implicacao na fantasia? Tem. aver com a implicacao na fantasia pela simples razdo de que. para a paciente, a analista passou ao lugar de a. O sujeito fala sobre o seu sintoma, faz oinventario de suas determinacées incons- cientes, pée a causa no Outro. A recusa da demanda de amor se transforma na causa daquilo que a paciente diz porque se torna um dos sintomas da paciente. A analista no lugar de a, de agente do discurso analitico, trata de se fazer de sintoma para a analisante. No dispositivo analitico, a analista se presta ao semblante de objeto causa de desejo para a analisante, expli- citando a transferéncia na implicacao da fantasia uz Saber-fazer com 0 teal da clinica referencias bibliogréticas Brever, Joseph e Faevp, Sigmund. (1893-5). Estudos sobre a histeria. In: Eddicdo standard brasileiva das obras completas psicol6gicas des. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. VoL. Freup, Sigmund. (1897). Carta 69. In: Edipéo standard brasileira das obras completas psicoligicas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. Vol.L Frevp, Sigmund. (1900). A interpretacao dos sonhos. 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The requestforanaly- sis in two stages and the entrance into analysis in three stages come to evidence the particular form of joy of this subject. The analysis, from the handling of the transference, operates there as an attem- ptto imply the subject with his oy, to cause this subject, when speaking about his symptom, tocome tokeep awake his fan- tay. palavras-chave Trauma; fantasia; transferéncia. keywords Trauma; fantasy; transference. recebido 27/02/2005 aprovado 16/04/2005 13 M4 Saber fazer com o real da clinica Histeria e anorexia: dois discursos?* Francois Moret, O PONTO DE PARTIDA DESTE TRABALHO se inscreve na teoria dos discursos de Lacan’, Ele parte do principio freudiano de equivaléncia de estruturas entre psicologia individual e coleti- va apresentada nos primeiros paragrafos de Psicologia das mas- sas e andilise do eu’, Com base nos principios de equivaléncia e de generalizacao, pode-se pensar, a luz de Lacan, € principal- mente de sua teoria dos discursos, que todos as discursos coletivos atravessam os sujeitos humanos e se inscrevem em suas palavras, em seus altos ¢ na clinica, Admitida essa hipétese, podemos perguntar que lugar a articulagao ou os efeitos de goz0 desse discurso ocupam na ¢li- nica analitica. Ao falar aqui da histeria e da anorexia mental, levanto a questio da articulacio entre os discursos histérico capitalista, tomando como guia o caso clinico de um sujeito que entra em anilise. histeria e anorexia A histeria, como assinala Therése Lampériére’, jamais teve uma defini¢ao muito precisa. Freud descobrin a natureza inconsciente dos problemas que a caracterizam ¢ formulou as teorias etiolégicas (trauma, sedugao) € os mecanismos funda- mentais do inconsciente que conduziram a descoberta da psi- canilise, em particular, a questao da sexualidade. Lacan deixou diversas indicagées sobre a clinica analiti- ca da histeria. A histeria se caracteriza, sucessivamente, pelo fato de ser uma questao simbélica: “o que é uma mulher?”, Depois — nao farei uma lista extensa -, ele da estrutura 4 ques- tao do desejo histérico no seminario sobre as formacdes do inconsciente, no qual indica as particularidades que a distin- guem da obsessio no grafo do desejo®.A histeria é abordada sob © angulo da fantasia no seminario sobre a transferéncia’, no qual, ao suportar o agalma por seu brilho falico imagina- rio, endereca-se a0 Outro em uma relacao de completude- descompletude, conforme © matema: 2 & Fo

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