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O CONCEITO DE IDEOLOGIA EM PAUL RICOEUR

Pedro Lavoura Santos

Resumo: Este ensaio pretende clarificar o conceito de ideologia, enquanto noção


fundamental do pensamento ético-político, a partir de Paul Ricoeur. Não se pretende
tratar de modo definitivo a questão da ideologia no autor, mas simplesmente abrir
pistas para a reflexão. Iremos ver como o fenómeno ideológico não se reduz a exprimir
uma relação de dominação cultural, mas antes comporta várias dimensões e diferentes
funções: autorrepresentação, motivação, codificação, mediação e dissimulação.
Veremos como o enraizamento ideológico é uma condição necessária da reflexão
sobre a sociedade, e como o distanciamento necessário para a tematização desta não
rompe com a relação de pertença.

No capítulo “Ciência e ideologia” de Do texto à acção, Paul Ricoeur analisa o conceito


de ideologia, relacionando ideologia com verdade: a questão é saber qual o valor
epistemológico do saber ideológico, isto é, se é possível existir um conhecimento
objetivo quando há um compromisso com a prática nas condições sociais em que o
sujeito se insere, e por outro lado, se é possível um ponto de vista sobre a acção que
esteja liberto da “condição ideológica do conhecimento comprometido com a praxis” 1.

Por aqui já se vê que Ricoeur rejeita a concepção negativa da ideologia, que vê nesta
“uma representação falsa cuja função é dissimular a pertença dos indivíduos a um
grupo, a uma classe, a uma tradição, que estes têm interesse em não reconhecer”.
Afasta-se também de um modo particular da concepção negativa que é o marxismo,
que entende a ideologia como um sistema de representações do mundo através do
qual a classe dominante legitima a sua posição privilegiada face às classes dominadas.
Para Ricoeur a dominação é apenas uma das dimensões da função mais vasta de

1
Todas as citações dizem respeito ao capítulo “Ciência e ideologia”, in P. Ricoeur (1991). Do texto à
acção (pp. 300-327). Porto: Rés Editora.
integração social, que não se pode reduzir nem definir essencialmente pelas relações
de dominação.

Ricouer começa por ligar o fenómeno ideológico à “necessidade, para um grupo social,
de se dar uma imagem de si próprio, de se representar”. Esta necessidade de
autorrepresentação estabelece uma relação com o acto fundador da comunidade ou
regime: pense-se na frequente invocação pelos americanos da sua Declaração dos
Direitos (Bill of Rights), na invocação dos valores da Revolução Francesa ou dos
capitães de Abril… Uma comunidade histórica mantém uma relação com o seu evento
fundador, que através da invocação, celebração ou repetição ritual propaga a sua
energia até ao momento presente, ultrapassando o seu momento de efervescência
inicial - pode-se também pensar, para ilustrar esta ideia, num grupo de amigos que
invoque uma aventura que fortaleceu a sua amizade, ou num casal que recorda o
momento em que se apaixonaram. A recordação de um evento fundador traz o
consenso social e uma sensação de coesão e pertença, mas traz também o
convencionalismo nos valores. A este nível, a ideologia é justificadora do status quo.

A segunda caraterística assinalada à ideologia é a de motivação social: a ideologia “é


para a praxis social o que um motivo é para um projecto individual: (…) ao mesmo
tempo aquilo que justifica e aquilo que arrasta”. A ideologia tem pois um dinamismo;
para além de justificar a adesão a um sistema de valores, ela lança esse sistema na
acção, orientando-a. Perante a acção coletiva de grupos sociais, empresas, instituições,
etc., a ideologia fornece a crença na justeza das acções empreendidas.

A terceira caraterística é a de simplificação e esquematização, pela qual a ideologia dá


uma visão de conjunto não só do grupo que a sustenta mas também da história e do
mundo circundante. Esta visão esquematizada traz necessariamente um
empobrecimento do rigor do pensamento, por privilegiar a eficácia na transmissão de
ideias. Para Jacques Ellul, o fenómeno ideológico é “a mutação de um sistema de
pensamento em sistema de crença”. Assim, o valor epistemológico da ideologia está
ao nível da opinião ou doxa – o nível do provável, do raciocínio argumentativo que se
impõe não demonstrativamente, mas através da persuasão. A codificação da visão do
mundo fornecida pela ideologia é necessariamente uma simplificação, que não pode
ultrapassar o nível cultural médio do grupo. Desde o momento fundador de uma
comunidade surge um vocabulário específico e uma simplificação conceptual que
tendem à estereotipação da linguagem.

A quarta caraterística da ideologia é a implicação do sujeito dentro dos seus esquemas;


estes não são algo que temos diante de nós e que analisamos friamente, mas sim algo
como o lugar a partir do qual habitamos e pensamos, uma perspetiva na qual estamos
implicados à partida e que nos permite a inteligibilidade do mundo. Podemos não
pensar na ideologia como um tema, mas antes pensamos sempre a partir dela. Assim,
a ideologia desempenha também um papel de mediação entre o sujeito individual e a
realidade socialmente partilhada, sendo uma condição da possibilidade de acesso a
esta.

Por último, o quinto aspeto detetado na análise do fenómeno ideológico é a sua


temporalidade, que se traduz numa tendência para a inércia, para a receção do novo
num quadro de inteligibilidade previamente estabelecido, estruturando a experiência
social em camadas de sedimentos. A ideologia tende a permanecer a mesma enquanto
os factos e as situações mudam. Neste quadro, o que não é assimilável ao sistema de
ideias vigente é rejeitado, pois “todo o grupo apresenta traços de orto-doxia, de
intolerência à marginalidade”.

Recapitulando, as funções do fenómeno ideológico, para Ricoeur, são cinco:

1 - Justificação (auto representação)

2 – Motivação social (dinamismo)

3 - Codificação (simplificação e esquematização)

4 – Mediação (entre o sujeito e a realidade social – relação não crítica e não


transparente)

5 – Dissimulação (das realidades vividas pelo grupo que não assimiláveis ao esquema
diretor)
II

Como já foi dito, a ideologia desempenha uma função geral de integração, da qual
fazem parte as cinco funções ou aspetos analisados anteriormente. Já a ideia de
ideologia como dominação, típica do marxismo, corresponde a uma função particular
da ideologia, que ocorre sobretudo quando se conjugam os seus aspetos 4 e 5, de
mediação e dissimulação. Deve-se salientar que que a ideologia não se pode reduzir à
sua função de dominação, isto é, de legitimação da autoridade e da hierarquia social,
uma vez que ela desempenha outras funções que não se relacionam necessariamente
com a desigualdade social: integração do indivíduo na comunidade, fortalecimento dos
laços no interior desta, e fornecimento de um quadro de inteligibilidade, para o
indivíduo, do mundo que o rodeia.

Para Éric Weil, “uma comunidade histórica só se torna uma comunidade política
quando se torna capaz de decisão”. Deste modo, toda a constituição de um grupo
social estável e funcional é um ato político, só tornado possível pela capacidade de
representação pelo grupo de si mesmo, isto é, através da ideologia. A adesão a ideias
que são um património comum traz um fortalecimento do elo de ligação entre os
sujeitos, levando à vontade de preservação dos valores e da cultura tal como eles
estão. Deste modo, toda a comunidade tende ao fechamento do raciocínio à
consideração de ideias contrárias, como meio de autopreservação. Todavia, é sabido
como os valores de uma dada sociedade mudam de modo relativamente rápido, com a
sucessão das gerações. A reprodução da ideologia não se limita a uma reprodução
exata nem à sua esclerose e eventual substituição, antes exibindo uma notória
capacidade de adaptação e reformulação – pense-se nas diversas formas que
assumiram ao longo do tempo ideologia tão díspares como o socialismo, o liberalismo
ou o próprio capitalismo.2

Não é no entanto no texto de Ricouer que podemos encontrar uma descrição


detalhada do fenómeno da transmissão ideológica. O que daqui podemos tirar em
conclusão é a impossibilidade de falarmos de ideologia “a partir de um lugar não

2
A propósito da capacidade de transformação e adaptação do capitalismo, incorporando em si as
críticas dos seus opositores, veja-se a obra “O novo espírito do capitalismo” de Luc Boltanski e Ève
Chiapello.
ideológico chamado ciência”. A ideologia não desempenha somente um papel
mistificador, mas também um papel mediador do nosso acesso ao real. A política,
enquanto objeto do conhecimento, faz parte das ciências sociais ou humanas, nas
quais temos vindo a reconhecer a impossibilidade de tudo explicar através dos
métodos das ciências naturais e exatas, e a impossibilidade de aspirar a um
conhecimento objetivo, do qual o sujeito que investiga e produz conhecimento possa
retirar-se, com pinças, de modo a não interferir naquilo que conhece, e observá-lo a
partir de fora. A política é, como Aristóteles já o sabia, uma ciência que se ocupa das
coisas variáveis e instáveis:

“As coisas belas e as coisas justas que são objeto da política dão lugar a tais divergências, a tais
incertezas que se pode pensar que elas só existiam por convenção e não por natureza (…).
Devemos, portanto, contentar-nos, ao tratar semelhantes assuntos e partindo de semelhantes
princípios, em mostrar a verdade de uma forma grosseira e aproximada (…) É no mesmo
espírito que, a partir daí, deverão ser acolhidos os diversos pontos de vista que emitimos,
porque é próprio de um homem culto procurar o rigor para cada género de coisa apenas na
medida que a natureza do assunto o admite” (prólogo da Ética a Nicómaco).

Deste modo, o abandono dos critérios positivistas (capacidade explicativa, resistência à


prova de falsificação) nas ciências sociais tem como consequência “o abandono de
uma concepção puramente disjuntiva das relações entre ciência e ideologia”. A
ideologia não é só o modo como o poder e a ordem se justificam, é também uma parte
integrante e irrecusável da nossa experiência da pertença no mundo. A teoria social
não pode libertar-se inteiramente da condição ideológica, pois “ela não pode efetuar a
reflexão total nem aceder ao ponto de vista capaz de exprimir a totalidade que a
subtrairia à mediação ideológica a que estão submetidos os outros membros do grupo
social”.

III

Ricoeur menciona Karl Mannheim, referindo que em Ideologie und Utopie (1929) este
autor mostra como se dá a “invasão pela ideologia da posição própria de alguém que
tenta aplicar a outro a crítica ideológica”. Para Mannheim, embora o marxismo tenha
tido o mérito de descobrir que a ideologia não é um erro particular, localizado, mas
uma estrutura de pensamento própria de um grupo, classe ou nação, falhou ao não
aplicar a si mesma a crítica. Se o tivesse feito, a ciência marxista deixaria de ser ciência
combatente para passar a ser uma sociologia do conhecimento, que teria por objetivo
mostrar “o condicionamento social de todo o pensamento”. Neste contexto, o que se
exige, para Mannheim, “é uma disposição contínua para reconhecer que todo o ponto
de vista é particular a uma certa situação, e para investigar, pela análise, em que
consiste esta particularidade”. Deste modo, procurar ultrapassar o condicionamento
ideológico a partir do qual olhamos o mundo é uma questão de autocritica necessária
se quisermos, com honestidade intelectual, abordar a política do ponto de vista do
bem comum.

A vantagem que podemos tirar da consciência desta dimensão ideológica do saber é


que ela nos permite diminuir a distorção, aumentando a distância entre o sujeito que
conhece e a coletividade em que se integra, deste modo aumentando a objetividade
epistemológica. No entanto, nunca rompemos totalmente com a pertença a uma
cultura dentro da qual pensamos, e os seus valores dominantes, ainda que os
rejeitemos, não deixam de nos influenciar. Devemos ainda notar que o distanciamento
crítico não nos permite ver de modo transparente a relação de pertença, pois é dentro
dela que é feito o distanciamento crítico, isto é, o momento de distanciamento é parte
da relação de pertença. A crítica das ideologias não pode colocar-se “na vantajosa
posição do saber não ideológico”, e não deixa de ser guiada pelo interesse de interferir
na produção de ideias e valores, sua transmissão ou transformação, no interior de uma
cultura ou comunidade.

Sem podermos aceder a um ponto de vista totalmente imparcial, a nossa visão do


mundo é necessariamente mediada pela cultura em que crescemos e os seus valores,
pelos sistemas de crença em que nos fomos imergindo e nas opções que fomos
tomando ao longo da vida. Estes sistemas ideológicos podem não ser totalmente
conscientes para o indivíduo que os reproduz, mas temos interesse em torná-los
conscientes, para podermos zelar pela justeza e capacidade crítica do nosso
pensamento, e para evitar que um conjunto de interesses alojados numa determinada
franja social nos seja imposto como natural e resultado de uma suposta preocupação
com o bem comum.

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