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AESPANNA ENGS' O estrangeiro pode amarnos ox odiar-nos: no pode ser- -nos indiferente. A Espanha provocou entusiasmos ou ranco- res: jamais foi encarada com desprezo ow ironia. Oliveira Martins, Historia da Civilicagdo Thérica £ provavel que os futuros cronistas do nosso século de desastres, utopias € metamorfoses, retenham a ascensio da Espanha ao primeiro plano das ages europeias, como um dos grandes milagres deste fim de século. Em 1992 0 que é hoje uma hip6tese quase confirmada adquirira entao plena ressonancia universal. Com a pr6xima festa de Colombo, trés séculos de marginalizagdo (e auto-marginalizagao) historica, politica e até cultural de Espanha deixardo de vez ée ser aquele espinho da consciéncia espanhola que ainda no tempo da Geragio de 98 s6 the deixava como saida a oscilagio agénica entre o orgulho ¢ o ressentimento. As famosas «duas Espanhas» de ‘Machado diluir-se-Zo numas6, capaz de conviver pacificamente com as suas préprias diferencas e com essa Europa para quem sempre olhou com uma mistura estranha de desdém ¢ fascinio, Em menos de cem anos as visdes, na aparéncia inconciliaveis, de Unamuno e Ortega, hiperespanholista e antieu- ropeia a do primeiro, espanhola ¢ europeista a do segundo, deixaram de ser irmas-inimigas para serem apenas expressao hist6rica de uma Espanha que, praticamente, jé nao existe, Todavia, na éptica desse antagonismo arcaico, em diltima andlise, é a visio nao ressentida do “grande europeu”, que foi o autor da Rebelido das Massas que acabou por triunfat. A nova Espanha é, finalmente, democratica, sobre o plano formal, mas capital, da politica, e optimista, no plano mais decisivo do seu confronto com todos os desafios cculturais, técnicos ¢ cientificos do nosso fim de século, Seria ingénuo supor que os antigos “deménios” da sociedade espanhola desapareceram como por magia. O que é novo é que todos os “desejos” G0, Blusto, “A Bpaahs © Nee, Nés @ A Furopa ow Ae Duss Raster, Lisbos, Ingres ‘Nacional: Casa da Moeds, 1988: 79-85, @ TT desse povo, de uma violencia ¢ de uma vitalidade miticas, esto hoje na pra- sa publica, coabitam, confrontam-se, alimentam-se das suas pr6prias con- tradigbes, sem que 0 resultado seja 0 do “sangue e sol” do seu especticulo favorito, Por esta nova “pax hispanica” poucos povos terZo pago um pre¢o to alto. O drama basco nao é senao o iiltimo sobressalto de uma histéria convulsiva que parece ter encontrado o seu ritmo de cruzeito. A maneira como a Espanha democratica tem vivido esse drama, a dominar tentagées para ndo as deixar degenerar em tragédia, é apenas um dos indices da me- tamorfose profunda da sociedade espanhola ¢ a expresso de uma nova consciéneia reconciliada consigo mesma, Margem da Europa depois de ter sido senhora e responsavel pelo seu centro convulso e castico, espago de uma “verdade” que Pascal suspeitava ser apenas a da ilusao ou do crro, Espanha, mesmo na sua fantasmal e re- alissima decadéncia dourada, teve sempre 0 condio de fascinar o restante mundo. Um pouco como a Rissia, de Pedro e de Catarina, até aos dias de hoje. Mas esse fascinio era um pouco mérbido, quase sempre o fascinio do diferente, quando nao do exético, em que se talham os icons, aliés admi- veis, das “Carmen” das “Maria”, de Merimée a Hemingway. f certo que Espanha nunca deixou de exprimir essa “diferenga” em termos ostentat6- trios. A esse titulo se unem umas as outras figuras tio distintas como Rodrigo Calderon, Inacio de Loyola, ‘Teresa de Jesus, El Greco, Goya, Buiiuel ou | Picasso, incorporagdes sucessivas do seu evidente agonismo, do seu gosto ¢ da sua paixao pelo que é extremo. Nos seus grandes individuos, que 0 si0 ino o sendo a maneira curopeia, 0 povo espanhol & um dos raros povos da terra, se no 0 tinico ~ que 6 sujeito da sua propria Histéria. Este traco cultural, que ninguém exemplificou e “teorizou” melhor do que Unamuno, no desapareceu da cena espanhola. vocagio para 0 “incomparavel”, ti eria uma tristeza sem nome que essa na Europa, essa nota individualista, mesmo no dominio que menos a consente, como o religioso, sogobrasse no caos resplandecente de uma “novidade” suscitada por atrasado mime- tismo de culturas que no possuem a espessura da que criou D. Quixote. Porventura custa sempre caro, para uma sociedade no seu conjunto, estar como que condenada a suscitar “génios” que, além da excepgao que consti- tuem, exprimem mais a sua “doenga” colectiva do que uma certa mediania existencial. Tudo se passou sempre com a cultura espanhola como se ela cstivesse disposta a pagar esse prego. E, quando o nao esta, desaparece do horizonte, ou conhece misteriosos eclipses. De qualquer modo, foi sempre 0 que nela houve ~ ou ha ~de excessivo que a instituit, mesmo aos olhos de outras culturas dispostas a escandalizar-se ou a ironizar acerca desse exces- so, como uma das poncas culturas miticas do Ocidente, Cultura agonicamente diferente ~ mais do que cultura da diferenga, como outras -, a cultura espanhola foi sempre vivida pelo resto da Europa como um fenémeno incontornével, de permanente ambiguidade. Por sua vez, a Espanha especializou-se ~ 20 menos em certas épocas - em viver a sua relagio com o “outro” como uma espécie de “mal necessério”, ou de remédio, nfo menos necessério, para se salvar dos seus préprios fantasmas. £ por isso que o didlogo dessa Europa com a nova Espanha importa tanto 4 definigao cultural da sociedade espanhola, como ao destino da cultura europeia no seu conjunto, Pela primeira vez, desde o século XVI (e ainda parte do XVII) existem as condigdes de um didlogo intenso intra-europeu € como componente capital dele, a novidade de um convivio partilhado € partilhavel entre a patria de Cervantes ¢ de Goya e a outra Europa. Estranhamente, 0 peqzeno pais seu vizinho, 0 nosso, de portugueses, pensa-se ou vive-se por dentro, como fazendo mais parte dessa “outra” Buropa do que do'todo peninsular, marginalmente europen, que a Peninsu- la tem sido, Seria excessivo dizer que somos “Europa oittra” mas na nossa relaco com a Espanha algo disso aflora. Mas chegou o tempo de repensar a mitologia e © discurso onirico das nossas relagdes de estranheza, pois talvez os actores dela estejam sofrendo neste momento uma metamorfose radical. Talvez ninguém possa medir melhor do que nés, portugueses, 0 téria cultural da Buropa, esta emergéncia espectacular da Espanha como nagao de referéncia em todos os planos e, em particular, no da Cultura, onde, até hé pouco, a viamos, também, como “subculeura” em relagdo

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