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admitiam que um útero muito estreito desse origem a crianças


v. Monstros e maravilhas no Brasil
corcundas ou mancas, que a imaginação matem.1 ~ngcndrassc
crianças-macaco, ou que os monstros duplos pr<wie~semde dois colonial
germes colados um contra o outro. Mas taIs acidentes ~.
Jlão podiam
ser atribuídos ao acaso independente da vontade divina, que rei-
naria sozinh.l. !i\"fee absolut~ no mundo e !incomp ,endida dos
incapazes de julgar seus poderosos desígni -.Ainda em
hon1<.'I~s,
i
meados do século XVIII,em plena época das Luzes,a I atureza dos
monstros e os objetivos de Deus ou da natureza continua\'am a
ser discutidos. a flamengo JeanPalf)'n,em 1703,nãoihesita\'aem
dizer que tinha certeza de que existiam e sempre existiram
monstros hum<inos, citando inúmeras fontes da J\ntiguidade
para dar legitimidade a sua opinião. Seu lomgoinveQtárioinclui
uma imensa dh'ersidade, desde "os ,'ários monstros que foram
deixados para trás, quando os construtar~s'da tor;e,~HeBabei.se E SI'ql/crcis ()/II'ir das IIatrln'Zt1S c qllll/idades das alimárias que
dispersaram': até uma criada romana que "deu à lu~.um mons- l/ti 1111
terra IIlItural de cá, dai-me IItCl/çiioe pode ser 'lI/Cvos
tro que consistia unic~mente de uma mão':1I I faça arcar as sollrallcellrasde cspalltado.
De toda maneira, diretamente ou não, os monstros vêm de Ambrósio Fenrmrdes Bralldão,
Deus e de sua vontade una e simples. E tratar-se-i;J.realmente Diálogos das grandezas do Brasil
de monstros, ou seria o limitado entendimento hum~no que via
tais criaturas assim? Ao longo da Idade Moderna, as variaç~de combinações
possíveis, tiradas de diferentes r~inos da natureza, pareciam si-
multaneamente infinitas e safdasdo insólito, pois o monstro era
.. .considerado um ser composto de partes irracionalmentee antior-
J ganicamente ligadas entre sU~le era;como bem diz MareeI Brion, I
um 'lldlls lIatllrtlC,um .iogo da natureza. .. . .' ..
Presen!es em todo o Ocidente cristão, monstros e monstren-
r
1 gos fariam a roia'"de tantos navegadores em direção ao Oeste, che-
a'
gando Junto com os primeiros colonizadores à terra brasilis.E eles
..-
não \"Ínham sós. Acompanhavam-se do olhar que os europeus ti-
nham sobre a América. O Ocidente cristão ora achava que o No-
'I'
"0 ~Iundo era habitado. por seres que, de fato, descendiam de

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f\loisés, ora pellSi1\'aque o novo continente era o elll1efço lixo do Para a maior parte dos via.iantes, a terra era a mesma de um
demÔnio e, por isso mesmo, uma fábrica de monstrengos em per- lado e de outro do mundo; o Novo Mundo físico não podia ser
manente produção.: Razão, aliás, pela qual o magistrado bordelês mais do que um prolongamento do Antigo. Nele, deveriam en-
Pierre de I.ancre, encarregado de julgar processos de ffiitiçaria, re- contrar-se as mesmas pedras, árvores, climas, plantas... mas os
conhccera nas bruxas francesas resquícios dos diabos G\\Oi1<.los e homens! São eles o problema: conheceriam Ikus? A qlie espécie
expulsos do NO\;o f\lundo. As malignas criaturas teria9' voltado à pertenciam? Comem-se entre si? Haveria monstros entre eles?
Europa para vingar-se de seus perseguidores. Os primeiros "descobridores': quer se tratasse dos portu-
Para definir as características das novas terras, 1nultiplica- gueses na Africa ou nas índias, dos espanhÓis, franceses ou italia-
ram-se as obras de cartógrafos, cosmógrafos e corogr-afistas, au- nos na América, todos obedeciam a uma tendênci3 natural do
tores de mapas-mtíndi, de livros de viagem, de grossos tratados espírito humano, que consiste em trazer o desconhecido para o
ou simples monografias que dewriam representar a verdadeira e conhecido. Diante do novo, ele tende a apegar-se aos raros ele-
então nova imagem do orbe terrestre. T~lisimagens tiz~ram o ba- mentos que lhe permitem evocar realidades familiares. Faz-se,
lanço do conhecido e do desconhecido, permitindo analisar de então, referência ao que se conhece pessoalment~. ou indireta-
que forma noções geognificas, botânicas e etnográficas se inte- mente, pelos textos de outrem. Assim, as realidades raramente
graram ao patrimônio cultural da Europa. são descritas por si mesmas, mas em termos de semelhanças ou
Os primeiros "descobridores" mostravam-se, em seus rela- diferenças, quer dizer, comparação. Essa abordagem, como vere-
tos, menos impressionados pela grandeza, da natureza;americana mos adiante, aparece com freqüência nos cronistas sobre a Amé-
e muito atentos à originalidade de seus habitantes. Colombo, por rica portuguesa. Um deles, Gabriel Soares de Souza, destacava,
exemplo, utiliza sobre as Bahamas o mesmo \'ocabulário empre- por exemplo, a semelhança de climas que permitiu a precocida-
gado no célebre romance de cavalaria A"mdis de Gau/l! para pin- de genética de \'árias espécies importadas da Europa e aclimata-
tar ilhas imaginárias. Sua tendencia foi embelezar a realidade, das ao Brasil: vacas, cavalos, galinhas, o\'elha~ càna~de-açúcar,
mencionando apenas o que era positivo e'escondendo-'o resto: os laran.ieiras, arroz. Tudo da\'a mais abundante e rapidamente. Mas,
canibais, os répteis e os animais ferozes. iA natureza JImericana quanto aos homens, os resultados podiam surpreender e fugir à
foi reduzida pelo navegador genO\'es a alguns elemen~os de base semelhança. Descrevendo a presença de franceses na América
que pontilham seu texto com freqüêl'.da: a água, a brisa, as árvo- portuguesa, ele conta:
res e o canto dos pássaros. Mas se Colombo dá uma id$!iaimper- ..
f~it.. c às vezes irreal do espaço físico, ele soube, ao contrário, fa- Os qUilisse amancehiumn na :terril unde: nl\Orreram,sem querer
.." .
zer uma descrição bastante completa dos americano,,:. Chega a ,'ultilr pilril iI hança e ,'h'eram como os gentios, com muitas mu-
ponto de reconhecer que, diferentemente do que anun~iava o Li- lheres. Dos quais e dos que vinham todos os anos à Bahiaoeao rio
vro das mara,;illws de Marco Polo, ele não encontrara ali raças de Sergipe, em naus de França, se inchou a terra de mamelucos
que nasceram, viveram e morreram como gentios. dos quais há ho-
monstruosas'" ~mbora tivesse visto à distâ~lcia três serfias menos
belas do que imaginara que pudessem ser. ie muitos descendentes que são louros e alvos e sardos, e havidos

I
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por índios tlIpinambás e são mais bárbaros que eles. E n;io é de l'S- universo': de 15 de novembro de 1555 a 31 de janeiro de 1556.
pantar serem esses descendentes dos franceses alvos ~louros pois "lendo adoecido logo que pisou nas praias cariocas. acabou repa-
que saem a seus avÓs. ~las é de maravilhar trazerem do serhio, en- triado no mesmo barco que o trouxera ao Brasil.
tre outros tupinambás. um menino de idade de dez anos para Dessa breve estada nos trÓpicos. ele levou material para um
doze. no ano de ISRó, que era tão alvo que de o ser muito não po- segundo livro, mais cheio de novidades do que o preccdente e
dia olhar pata a claridade c tinha os cabelos da cabeça, pestanas e que o tornou uma celebridade. As Sillglllll,.it!,IIh'Sdll Fn/llçll AII-
sobrancelhas tão alvos quanto algodão. ttÍ,.,;m apareceram em fins de 1557, foram traduzidas em alemão
e inglês e suscitaram, a longo prazo, empréstimos e imitações
Filho de índios, considerados pelo autor luso "muito pre- polêmicas. A qualidade da documentação sobre a fauna, a flora e
tos': e sem nenhum antecedente francês. o garoto albino não os //Ioresdos índios meridionais somou-se à fantasiosa descrição
chegavaa ser considerado cxatamente um monstro. ~tas tratava- do autor sobre as amazonas, os antropófagos e o I/CI)'.
já mcncio-
se. com certeza.de um ser bizarro!
nados por sábios antigos e modernos, de Plínio a Gesner. As
Se alguns autores insistem nos aspectos familiares. outros, amazonas. é bom não esquecer, são citadas na carta apócrifa do
ao contnirio, sublinham o insólito, o mara\'ilhoso e o diferente,
Preste João e quando não são encontradas no Norte da África
Pauhnier de Gonnevillc, comerciante que \'em ao Brasilem 1503 deslizam para as Américas, Os ,antropófagos fazcm i,ensar nos
e leva o filho de um cacique carijó para a F~ança,fic~extasiado "comedores de carne humana", mencionados no Romance de
diante do que chama de "produções da natu~eza":o ~ís é fértil, Alexandre,presos e punidos pelo poderoso monarca. O fato de
dotado de animais, pássaros, árvores e out,ras coisas~~ingulares, nossos índios não serem cobertos "dos pés à cabeça" por pêlos os
desconhecidas da cristandade. ~ A noção de singularidade ou de afastava dos astomos, cabeludos moradores da India, O Ira)' lem-
prodígio aparece com muita insistência nos,
I textos dQ
" período. bra muito a famosa mantícora vista pelo mesmo Thevet nas cos-
Ao largo da foz do Amazonas, Vespúcioconsiderou-se diante de tas do mar Vermelho e representada em sua CdsTlfógrajiauniversal.
um prodígio dos grandes, pois a 25 léguas da costa ainda nave- Na rica ilustração que acompanha o novo livro, cenas decoradas
gava sobre as águas doces do gigantesco rio. ' ~: com artefatos indígenas acotovelam-se com pranchas botânicas
Outro caso emblemático
. do prestígio dasI.."singuI4ridades" é consagradas à mandioca, à bananeira e ao abacaxi, assegurando
o livro do nosso Já conhecido André Thctet. ~Depois~o périplo ao con,iunto da obra sucesso na corte francesa entre amadores de
ao levante entre 1549 e 1552, quando é sagrado ca4.'aleirodo
Santo Sepulcro,o franciscano volta à França. É então convidado
curiosidades e poetas:
A redução d.4>seres
.
considerados prodigiosos, como as ama-
para outra viagem, dessa \'ez ao Novo Mundo, na conwanhia de zonas, os antropófagos, o tucano e a preguiça, a ~m modelQco-
um cavaleiroda Ordem de l\lalta, ninguém menos do que Nico- nhecidõ, bem como sua inclusão em frisase gravurasdecorativas,
Ias Durand de Villegaignon. A aventura da França Austral, fun- não excluía a fascinação exercida sobre rh~v~t por uma estra-
dada numa ilhota da baía do Rio de Janeiro, reduziu-se
, a um nheza na qual o medonho e o admirável se misturavam. ~esse
curto verão passado, segundo ele, "entre os mais selvagens do' período, a singularidade era justamente reconheci<Japor essa

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tensão entre horror e esforço. Esforço para compreender o que portanto não tinham conhecimento de Deus. Seus corpos eram
era desconhecido. E horror pelo espetáculo que as criaturas exÓ- elegantes e harmoniosos. Eram grandes, robustos, corajosos e
ticas sempre suscitaram. Ügeis, mas dissimulados e sem palavra. Diferentemente da dos
Dentre os europeus capazes de detectar monstros no Brasil africanos, sua pele era considerada baça e suja, daí o emprego de
encontrou-se tamhém o renomado gra\'ador Theodor de I3ry.A tintas para ort1.Hnent;Í-la,
cokçoio denominada Gralldes \'illgcIISré\'ela quanto esse artista No final do terceiro li\'ro da coleção 11<1
uma importante
sabia que a imagem é necessária ao texto; que ela lhe é um com- granlra, denominada O i1~/lT"(J/lrasileiro,Ela reproduz outra gra-
plemento indispensável e uma espécie de luz vh'a proJetada so- \'ura, esta impressa por !ean de Léry, para acompanhar seu texto
bre a narrativa da história. Protestante e originário de Liege, na escrito enl 1585 e que explica: "Durante sua vida os pobres sel-
. Bélgica,ele bem compreendera o interesse da gra"ura, a talho- "agens são terri\'elmente afligidos pelo espírito maligno (o qual
doce ou em cobre, utilizada pelos editores flamengo~para a pro- clt.'s chamam kllClgcrrc)que, como vi, v;Írias vezes os ataca. (...1
paganda católica durante as Guerras de Religiãoque "arreram a eles dizem que ,'isi\'elmente os vêem em timna de besta ou ave,
ou eni outra forma estranha':-
França. A utilização desse recurso fezo sucessode sua empresa e
permitiu-lhe formar um conjunto quase enciclopédico com as <..)tema fant;Ístico da cena é uma transferência dos cÓdigos
primeiras narrativas de \'iagem que ele fez questão de ilustrar a europeus sobre a monstruosidade, que De Bry traduziu usando
fim de melhor colorir os textos. o filtro da leitura religiosa: A cena abre-se so~)re uma paisagem
De Bry era: de fato, um artista antes d~ ser um ~ditor; per- litorânea. na qual o mar faz a linha do horizonte com o céu. Uma
seguido e exilado em Strasburgo, ele aí adquiriu umé\técnica de sua\'e montanha dobra-se sobre a costa. Duas meias palmeiras
desenho e reprodução quase perfeita. Séu encontro em Londres fazem a borda da imagem, espécie de .janela para a espia nada in-
com Richard Hackluit, um misto de diplomata e espião,autor de fernal. Uma pirâmide humana amontoa corpos atormentados.
um livro sobre as navegações da nação inglesa, foi decisivo.Os Um deles in"dina-se sob os golpes desferidos per um monstruo-
fundos iniciais para suas Grandes ,'iagellsvieram. da coleção so e sarcástico demônio. l\listurando <>zoomorf~ ao antropo-
Hadduit. até então sem ilustrações. Vale'sublinhar ~e o objeti- morfo. ele possui todos os atributos hediondos de seus congêne-
vo de De Bry era ilustrar as viagensde protestantes, espectadores res. Soberbamente enfeitado com asas escamosas. chifres. garras.
das atrocidades cometidas pelos espanhóis em nome do papa. na cauda bifurcada, coxas peludas e sexo ornado com uma cabeça
América. A história da América, segundo De Bry, devia servir diabólica, parece cristalizar todos os vícios da-natureza humana.
para o 'prazer do leitor: este que durante o Renascimento é um Dois outros mo~tros rasgam os céus, de olho em suas vítimas:
curioso. ávido sobretudo por colecionar singularidades. Mas ser- um, meio pássaro, meio serpente, tem a pele coberta de escamas
via, também. para incitar a meditação sobre a bondade de Deus e um bico pontudo. Qutro, asas enormes abertas, escarra seu ve-
e sobre os ensinamentos que se podiam tirar do espetáculo de nem>. Lembra um dos monstros alados descritos nos bestiários
povos infelizese bárbaros. Eles teriam sido conduzidos ao Novo da Idade ~Iédia. Próximos aos barcos, ao largo,pululam peixes-
Continente por um dos filhos de Noé, aparentemente Chã. e ,oo,íclores que ganharam bicos, chifres e tamanho como se per-

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ten(essem a uma zoologia l;.mtÚstica,O I//Ir aparece no centro da ia, corpos ondulantes (omo o das serpl'ntes: empréstimos emble-
gravura com uma explicação extraída do livro de kan de Léry: l11<Íticosda bruxaria e das práticas daqueles que compactuavam
"O maior lanimall que os selvagens chamam 1111)'
é grande como com o maligno, por meio de quem atormentavam os homens,
um cão d'água com a face de um macaco, próxima daquela do fantástico e real continuavam a coexistir na cultura e na
homem; o ventre pendente como o de uma porca prenhe, o pêlo geografia dos séculos X\"Ie XVII,e seu banimento sÓ foi decreta-
(inza-esfumaç~\(.io como o da lã do carneiro negro, a cauda bem do no século X\'III, quando a cartografia já desvendara a maior
curta, as pernas peludas como as do urso e as garras muito lon- parte do planeta. Nesse momento, os monstros não têm muito
gas':" Dois novos monstros foram acrescentados por De Bry. mais onde esconder-se. HÚ,todavia, autores portugueses que an-
Uma das criaturas voando sobre um dos selvagens lembra. estra- tes disso demonstraram cetici~mo com a'leitura fantÚstica que se
nhamente, o demÔnio que fizera ha comer do fruto proibido: I;.\ziado mundo. Frei Gaspar da Cruz, escrevendo em 1569, cri ti-
ele é possuidor de corpo de serpente, seios pendentes e asas de «I\'a os que acredit,1\'am que os pigm~us fossem descendentes
morcego. Esses elementos pro\'ém de um fundo oriental apro- dos citas, acostumados a se bater, montados em gruas, por boca-
priado pelo Ocidente cristão no momento das ,iá mencionadas dos de ouro. O mesmo autor contradIz a existência dos ciápodes
viagens no século: XIII. A China exportou então, em imagens, e de outros seres fabulosos, concluindo: "Isso e outras tantas coi-
hordas de diabos com asas de morcego e seios de mulheres; ex- sas tidas por fabulosas desde que a índia foi descoberta por por-
portou, também, dragões com asas membranosas, gigantes com tugueses': A observação da realidade permitia que se rasgasse a
orelhas e chifre único na fronte Os monstrengos de De BI")'me- diáfana cortina da fantasia. Mas a verdade é que nem todos os via-
tamorfoseavam, portanto, part.e das formas que uniram o Orien- .iantes beberam da taça da razão com a mesma sede. E houve ou-
te e o Ocidente. Outro diabo barbudo fustiga, com um galho de tros tantos que "iam monstros e monstrengos em toda parte.
palmeira, um acuado selvagem reclinado sob os duros golpes. Pin- Garcia de Resende, por exemplo, persistia em acreditar em pro-
çado dos bestiários medievais, ele está aí para lemb.rar a figura dígios e maravilhas. Num memorial rimado. fei!9.em 1534, dizia:
animal do bode: acusado de fornicador, orgulhoso e debochado.
Os monstros zoomorfos pareciam ter saído dos. tratados de E sol're a terra \';",05 1IIollstros

Paré, Aldrovandi ou Gesner que circulavam na Europa, ensejan- (' 110céll. gralldes presságios

do discussões sobre o hibridismo. As várias espécies de demônios c CIIims soIJrellatllrtl;s."


não deixavam dúvidas: eram cruzamentos entre o diabo e certos ..
animais. Numa prancha, dessa vez emprestada de De Br}' e pu- Prova disso é que em pleno século XVI,auge das viagens ul-
blicada por seu genro, Matheus Mérian, em 1630, a horda de tramarinas portü'guesas, um certo João Afonso descreve, em sua
monstros assassinos aumenta. Aqui, temos um demônio com cor- cosmografia sobre a África, angolanos com a cabeça no peito
po de mulher, cabeça de batráquio e asas de libélula. Lá, um outro como as blêmias de Plínio, homens monóculos, cinocéfalos e sá-
com cabeça de ave de rapina e corpo de gente. As forças do mal tiros cuja presença podia ser constatada no cabo da Boa Espe-
estão representadas por asas de morcego. cabeças de sapo e coru- rança. Outro \'ia.iante, João Galvãb, capaz de observações muito

RS
criteriosas sobre gêiseres nas ilhas Molucas, anotara, com igual Pena que Gesner não tenha tido acesso às milagrosas costelas do
interesse, a presença de "uns homens a que chamam dará que da- IIglI[II-Il-IIIlIZIl,
que teriam sido fortes concorrentes do afamado
rá, que têm rabos como cam,eiros" e outros possuidores de espo- W1iCOrl/l/l11 \'crll/1/!

rÔes, nos artelhos, (amo os galos. A Dcsaiçiio [,islÓriCtldos IrÓ O fant,istico e o real seguiam coexistindo, mesmo entre os
rC;lIosde Omgo. Mlltll/1/ba e Angola, escrita e publicada entre habituados navegadores portugueses e mesmo que as viagens e
J645 e 1670 pelo padre João Antonio Cavazzi de !\lontecuccolo, os "descobrimentos" tenham ajudado a infundir um novo con-
reproduzia um tipo de monstro que Gabriel Soares de Souza ceito de natureza baseado nas semelhanças entre o Velho e o No-
também reconheceria nas costas brasileiras. Tidos por "falltas- \'0 !\lundo."
mas ou homens marinhos", tais medonhas criaturas afogavam No Brasil colonial e até o século XIX,segundo Luís da Câ-
pescadores e mariscadores, mordendo-Ihes a boca, os narizes e "a mara Cascudo,14dizia-se existir no alto rio Branco e na fronteira
natura': Na África, o monstro avistado era uma fêmea: da Venezuela e Guianas uma família de homens que não tinham
cabeça e com os olhos no tórax, descendente direta das blêmias
Em primeiro lugar um há que os europeus cnymam peixe-mulher descritas por PUnio e santo Agostinho. No século XVI,sir Walt~l
e os naturais IIglllll-II-IIIIIZd,
bonito de nome mas horrendo de Raleigh, navegador inglês que levou, em 1585, o tabaco para'a
forma. Tem o focinho escancarado,mas pequeno em compamçiio Europa, dizia tê-Ios ,\\'istado na Guiana, localizando-os (on;o
com um outro que parece ser o macho. Julgo ser esse o tritão afa- moradores de Caora. O livro de Raleigh, publicado em 1596 e di-
mado nas fábulas da mitologia, podendo a fêmea considerar-se \'ulgado dois anos depois pela coleção de Hackluit, obrigou o geó-
uma náiade dos antigos. Os dentes parecem-se com os de um cão; grafo holandês Hondiu, em 1599, a verter a famosa história, ilus-
as barbatanas à semelhança de braços chegam até a metade do trando-a com desenhos convencionais de homens com olhos,
corpo acabando com cinco dedos de matéria cartilaginosa e mal-
feitos.O rabo tem mais de três palmos e os seios, donde suponho
vir o nome, parecem-se com os de uma mulher (...] Tal peixe,
-
boca e nariz no peito. Von Martius, quase duzentos anos de-
pois," encontrou a tradição das blêmias americanas, e de outras
criaturas míticas, entre os indígenas da Amazônia: "As lendas das
como pude verificar,tem uma pele que desce da m~caaté o come- amazonas, de homens sem cabeça e com a cara no peito, de ou-
ço do rabo, cobrindo-o à maneira de manta. Julgo que ele se en- tros que têm o terceiro pé no peito ou possuem cauda do conú-
rola nela e também abriga suas crias para ~mamcntar. Com as bio das índias com os rnacaco~ çoatás etc. são idênticos produto~
costelasfabricam-se contas furadas e enfiadas como as de um ter- da fantasia sonhadora dessa raça de homen.f'~ A hibridez, ou
ço, ótimo remédio contra a corrupção do ar e contra as tluxões do confusão fisiológica, como diz Cascudo, entre os monstros euro-
sangue. Porém, para que tenham essa propriedade é preciso que o peus e o fabuláfío indígena resultou, segundo ele, num "novo
animal não tenha tido comércio com outro e que as contas sejam mosaico de pavores':'- Vejamos alguns: Hans Staden cita o Geup-
-feitascom as duas últimas costelas.Estas obseT\'açõessão fruto da paw)' e o Ingange; André Thevet, o Agnan e o Kaagerre; Jean de
experiência,como também a propriedade de dois pequenos ossos Lér)', o Kaagerre e o A)'gan; Anthony Knivet, o Coropio e o Avas-
, ".

próximos das orelhas, que são úteis contr~-numerosas doenças.l:

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saIr ou Ayas,'r. Yvesd'Ev,eux,o ouipolenle'eropari,o ,~pa-J
ri, o Curupari, o Taguaiba, o Temoti, o .Iiwlimana; e !ohannes de
Laet, anotando-o, incluiu o Curupira, a 1\Iacaxcra e o 1\larangi-
goana; Rolox Baro. o Houcha, o Curupira, o f"tacachera, o luru-
pari, o Anhanga, o .lilguari:Segundo Càmara Cascudo, tais mitos
viveriam na memÓri.l indígena e mestiça. "adaptados, assimila-
dos, confundidos':'. Segundo nosso etnÓlogo, Geuppaw)', luru-
pari, Gcopa-ry, leropar}'; Curupira, Curipira. Coropio, Curupari;
Agnan, A}'gnan, Ingange. Anganga, Anhanga são, evidentemente,
os conhecidos !urupari, Curupira e Anhanga. O primeiro, se-
nhor do culto mais vasto, comum a todas as tribos, filho e em-
baixador do Sol, nascido de mulher sem contato masculino, re-
generador, dono de rito exigente e precauções misteriosas, logo
foi identificado pelos jesuítas catequistas como o .~abo, contra
quem se construiu o erudito, europeu, branco e ~I'tificial Tupã,
mencionado entre outros por Nóbrega, Anchieta, Azpicuelta Na-
\
I varro, Abbeville, Thevet e D'Evreux:19"Quando o trovão ribom-
bava, a que chamavam Tupã, assustavam-se e nós aproveitávamos
I "
I1
o lance para dizer-Ihes que era Deus quem fazia assim tremer o
céu e a terra, a fim de mostrar sua grandeza e poder'::" Nos Did-
I:
I logosdasgrandezasdo Brasil, Juruparim aparece como sendo a
única identidade assombradora para os índios no remoto século
XVII.Gaspar Barléuso chama Urupari e, na senda de Marcgrave,
rotulou-o de diabo. Segundo Câmara Cascudo, em 1613, Juru-
pari assumira o posto satânico com toda a pompa e circunstân-
cia, fundindo "o mito ameríndio com os detalhes que cercam a
figura de Lusbel": - ~.~

Pensam que os diabos ~stão sob o domínio dc )cropar}',que era


criado por Deus e que, por suas maldades, Deus desprezou, não
querendo mais vê-Io,nem aos seus, Dizem também que 'eropary
e os seus [acólitos] têm certos animais que nunca sevê, que só an- 1. A.( tcnlllçõc.( Ilc Santo Antônio. Osfaulfores Ife monstros corno Bosch,
dam à noite, soltando gritos horríveis, que abalam todo o intcrior Bmeglatl c BallfuJlg se utilizll\'llllllfas forlllilS lIIais repulsivilS para desfigurar
as obras da critlfão de Deus, Ao espectador de sms quadros, lembravam
que a lIIonstruosidade e 11feilira eram IItáscarilS do Diabo.
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z. Gravuras que ilustram foll.etos de cordel do século Xl'lll, d.ama.fos em
Portugal de "papéis ,.-olantts". Ntlas. a flUlção decorativa é também alegórica:
os monstros designa'" u.na realidade que lIles é extmor, an.lllaalldo presságios,
..
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desastres naturais e lIIudanças de dinastia.


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Q.VEFor f/ISTO, E ~(rl{'TO .,~

lIas vifi/lhdJlfai de feruJãlem,


TRADUZIDO FIELMENTE DE HUMA, Q!1F ....
fc imprimia em Palerma no Rcyno de Sicilia, c fc reim-
primio em Genava, c em Tudn ; a que fc accrcfccn-
ta tluma carta, eferita de Alcpo Cobre cft~
rncfma matcria.

Com o rtlrllto 'Verdadeiro do dito Bicho.


Por J. F M. M,

" I - - . : ~~

" . I I" 'fr '111&'1'\"11"'" ," " "/u/llw i\' tiftl/t ~;fN.aif~
,i í!' "t:' fi i, " fi ( I dI' I,t 11\ I(\1Il r, ~.,(n~d~,...jt1
LISBOA OCCIDENTAL, . " , I,i!~. ['111: ..w (1I1r(f~ffitÕ'l

3.Folha de rosto Ife 11111


papel volante, sltblinllando a existênda e a lIIorte de um nlo/utro. 4. Cmt4lcros e outros mOlutros compósitos, meio homens, meio animais,
A imprensaajudou a multiplicar as históriassobrenlonstros,inaugurando st'JlIl're habitaram a imaginação da h.fnaanidade: eram manifestações
um mercadode consumo em torno dafasdnação pelo Ilorror. do l'olfrr dos druses e dos demônios.
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J. Embora esta gravura sobre a nlulhtr a.fiicana date do sécailo XVIII,


ao flUIdo v(ena-se representantes das raças monstmosas descritas durante a Idade Média.
Jeall .le Malldeville foi um dos cronistas que as localizou nttrr a Áftica e a Ásia.
te Lqf!()p'c.
De Poliph~R1e & dC5 Sic1opicns,
Foue mcntion poctCS anciCDS:
!1' 00 dit cocor que (C Hgn;1gedure)
11 6. Ao lado. O ciclopc é 11111 dos persollagelll dos bestiários lIIe.fievais Aucc Vl1oeil felon ccile figurt!e
I
inspim.fos ali Plinio c Solillos. O palSalllalto L-ristão,cOlltudo, lIão se contelltou
ali assilllilar ellaerclnçelgeográfica e etllográfica da alltigiii.fade pagã,
I
mas procurou revesti-Ia .Ia autoridade bíblica. Monstros como
I o cicl0I'e rmlll ti.fos COIIIO.fescahfaltes dos fillros de Noé.
----- 9. Antes.ta ",icsco/lerta" .to índio
americllllO, o h,'lIIem scl\'l!gem 011
silvestre vivia nas florestas ellrOl'tias
e cobria-se de folhas e reles.
"

10. As raças mOllStruosa,ç;


origillalmellte hlt!'italltes dos
eOltjlns lia Terra e m/li.! tanie
"transportactas" por Ctésias de Cnide
para a Índia. têm slla existência \;.
cOltjlrmalia, lia llialle Moderrt/l, , '"
""
por ellciclopàiias e cosmografillS.
'",
As viagens ultmmarinllS se
encarregam.te eSI'allllÍ-las pelo
IIlIlIIlio.Ao se lieparar com os restos
de 11111ballqllete alltrol'ofágico,
Cololllbo acredita ter c1legalio
J
à terra lios cilloâjãlos: 'IOIIIClIS ..
COIIIcabeça de cão.

11. Na cal'a da P'lisica Curiosa, .ir Gaspar Se/10ft. os sátiros convivem amigavelmente con
11IlImna sul-alllericana, nllllla mostra lie qlle a observação Clllpirica e a tradição
lIão eram cOlIsilicmlias eontm,iitõria.ç elltre si.
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Sirtnes Prg/irpuur comitt;'fn IWCS, .


12. As serei4S. lIIonstros marinhos qlte migraram da tradição grega para as descrições feitas
sobrea lIIonstmosa lpllpiara d4Scost4Sbr4Sileiras. . .

-,

13. Ao /ado. MlIlheres serpentes,


enti.lades ctônic4S
ligadas ao Mal desde
o jarcfjm do Éden.
,J. MulllCr afticalla.Ao fundo, imagens que caracterizavam a Aftica
COIIIOa terra de lIIonstros por excelência: blêmias e hermafroditas.
(o que ou\'i infinitas vczcs) com os quais convivcm, c por isso os
chamam Soo Joroparr, "animal dc Joropary': e crêcm quc esses
ani"mais ser\'em aos diabos ora de homcns, ora de mulheres, e por
isso nÚs os chamamos Succubes e Incubes, e os selvagens Kugnam
/cropary, a mulher do diabo, Aua Jeroparr, o homem do diabo. Há
também certos pássaros noturnos que não cantam, mas que têm
um piado queixoso, enfadonho c triste, que \'i\'em sempre escon-
didos, não saindo dos bosques. chamados pelos índios Urra Jero-
par)', pássaros do diabo, e dizem que os diabos com eles convivem,
que quando põem é um ovo em cada lugar, e assim por diante, que
são cohertos pelo diaho é que só comem terra,

contava assombrado Y\'es d'Evreux, minucioso .:~onista de cria-


turas fantásticas da Terra de Santa CruZ.'1
O Curupira, explica Câmara Cascudo, foi o primeiro duen-
de selvagem que a mão branca do europeu fixou em papel e co-
municou aos países distantes. Em carta de São Vicente, em 31 de
maio de 1560, cita\'a-o José de Anchieta.

I A maioria dos cronistas coloniais o inclui entre os entes mais te-


midos pelos indígenas; Os guerreiros, aliados aos portugueses no
i convívio dos acampamentos e nas longas mãfchas sertão adentro.
contavam-Ihes seus pavores. O nome de Curupira era menciona-
\ do entre sussurros de medo. Sob sua batuta curvavam-se as árvo-
, res e os animais. Obedeciam-no Anhanga, responsável pela caça
~
,
de porte, e Caapora, entidade protetora da caça miúda, além de
Mboitáta, senhor das relvas e arbustos. Cmupira ("o espírito dos
pensament,2;i': como o denominava padre Simão de Vasconcellos)
ficou chefiando, indiscuth'elmente, todos os assombros da flores-
ta tropical."

lndio pequeno, de cabelo vermelho ou ~e cabeça pelada.


J6. As observações do médico Anlbroise Paré lIão deixavam dúvidas:
poderoso senhor da caça e dono das matas cujos segredossabe e
no filial do século XVI, crianças eram engCII,fradas pelo
dt'lllônio e traziam as marcas do coito itift"rnal.
defende, o Curupira tem, contudo, uma característica física que outra, o qual nomeiam em sua língua Agnan e os persegue fre-
o aproxima de nossos velhos e conhecidos ciápodes: tem os pés qÜentemente dia e noite, não apenas a alma, mas também, o cor-
tornados ao avesso, dedos atrás e calcanhar para a frente lem- po'::' Alma scm repouso, espírito errante, significando diabrura,
brando os monstrengos habitantes da longínqua fndia, egressos malcfício, feitiçaria, ° Anhanga, Anga ou Agnan dcfine-se, se-
da cartografia e da crÔnica medieval pintados por Plínio, Agos- gundo Câmara Cas~udo, como a coisa m,\, o medo sem forma e
tinho ou Aulo.Gélio. Pois essa raça assombrosa cá vh'ia também: sem nome possível.
CristÓ,'ão de Acosta, o sacerdote que acompanhou ~edro Teixei- Pero de 1\lagalhães Gàndavo, no seu História da Prol'íllcia
ra, em 1639, em sua descida do rio A':1.1azonas,de Quito a Belém, Sallta Cr/lz/ publicado em 1576, refere-se a um medo bem pal-
ouviu dos tupinambás relatos estupefacientes. Viviam para o sul pável, lembrando em suas formas e curvas o IIgulu-a-maza, vis-
seus vizinhos, os Matuicés, com os calcanhares para diante, dei- to mais tarde nas costas africanas. O pavor provocado pelo apa-
xando rastros às avessas. O jesuíta missionário Simão de Vascon- recimento de um monstro marinho, a Ypupiara, numa praia em
cellos não esqueceu essa gente estranha em sua Crôllica da Com- São Vicente:
pallhia de Jesus lia Estado do Brasil e explicava, em 1663, que essa
"casta de gente nasce com os pés às avessas de maneira que quem Foi causa tão nova e tão desusada aos olhos humanos a seme-
houver de seguir seu caminho há de andar ao revés do que vão lhança daquele fero e espantoso monstro marinho que nesta
mostrando as pisadas; chama-se Matuiús': Sobre o Coropio ou província se matou no ano de 1564.que. ainda que por muitas
Curupira conclui Câmara Cascudo: partes do mundo se tenha notícia dele.não deixarei, todavia, de a
dar aqui outra vez de novo, relatando por extenso tudo o que
Vigiando árvores. dirigindo as manadas de porcos-do-mato. ar- acerca disto passou;porque na verdadea maior farte dos retratos
rancadas de veados e pacas. assobiando estridentemente. passa a ou quase todos em que querem mostrar a semelh.ançade seu hor-
figura esguia e torta do Curupira. o mais vh'o deus da floresta tro- rendo a.specto.andam errados. e além disso.Cõiita-seo sucesso de
pical. presente às histórias infantis. aos episódios de caça. aos aci- sua morte por diferentes maneiras, sendo a verdade uma só...
dentes de luta do homem (...) é o explicador dos mistérios. pas-
sando seus cabelos de fogo. seus pés virados como os Enotocetos o autor acompanha seu texto de uma imagem do monstro "tira-
de Megastenes. registrados em Estrabão. seus dentes azuis. seus da pelo natural": cabeça e fociriho de cão. seiosfemininos. mãos
assobios açoitantes. na memória de todas as recordações.:~ e braços humanos e patas de ave de rapina.~o meio do corpo,
uma cloaca. A lpupiara estaria longe de sugerir a beleza das se-
Já Anhanga. o espírito malfazejo, encontra-se nas cartas de reias capazesde seduzir incautos marinheiros. SeGândavose co-
Anchieta, Nóbrega e Fernão Cardim. Staden, por seu turno, cha- locavaapenas como narrado r de uma história que dizia estar"se-
i mava-o Ingange. Thevet observou em 1558 que o monstrengo pultada em silêncio'~Gabriel Soaresde Souza apresenta-secomo
i
I não tinha forma positiva. O certo era atormentar os vivos: alguém dotado de grande intimidade com o assunto e como tes-
I
,
i "Vêem muitas vezes um mau~spírito ora numa forma. oraem temunha "quase" direta da existência do monstro:

,,
i:! 90 Ql
~I
IL'spreferiam. ilStenras ext rcmidadcs. comer pernas e braços dos
Não hü dÚvida que se encontram na Bahia e nos reconcavos dela dcsa\'isados índios pescadores.
muitos homens marinhos a.que os índios chamam pda sua língua Para Anthony Kni\'et, marinheiro inglês i1caça de ouro e de
ipupiara. os quais andam pelo rio de Üguas doces pelo tempo do pau-brasil, ele era uma "imensa coisa". com "escamas no dorso,
verão, onde fazem muito dano aos índios pescadores c marisca- garras medonhas e cauda comprida" que a\'ançara em sua dire-
dores que <.!ndamcm .jangadas. onde os tomam. e aos quc andam ção, "lançando fora a língua longa como um arpão'::" Seu retra-
pela borda da água. mctidos nela. A uns c outros apanham, mc- to dá a familiar impressão de um dragão demoníaco tão vivo e
tem-nos dcbaixo da água. onde os afogam. os quais sacm à tcrra agressivo quanto aqueles pintados, alguns anos antes, por Hans
com a maré vazia, afogados c mordidos na boca, narizcs e na sua t\\emling.
natura [...1 os quais fantasmas ou homens marinhos mataram por Tal como ocorreu na Europa, à época de Fortunio Liceti, a
cinco \'C7.CS índios meus.'" ciência se defrontava com uma face da natureza na qual se escon-
dia a vontade de Deus. Essa vontade deveria ser decifrada a par-
o jesuíta Fernão Cardim, escrevendo em 1590, faz questão de tir da experiência e do "testemunho dos sentidos': este mesmo
dar maiores detalhes sobre os monstros: os homens teriam boa que tantas vezes era capaz de pregar peças nos sábios. Eis por que
estatura, embora olhos encovados.As"fêmeas':formosas de lon- a Ipupiara, já parte integrante da "tradição" sobre teratologia nas
gos cabelos,pareceriam mulheres. "O modo que tem em matar': terras brasileiras, quase cem anos depois, mereceu por parte de
explica, meticuloso, outro jesuíta, o padre Valentino Stancel, uma leitura mais "cien-
tífica":
é: abraçam-se com a pessoa, tão fortemente, beijando-a e apertan-
do-a consigo que a deixam feita toda em pedaços [u.) e como a No litoral próximo ao mar, num lugar dito Espírito Santo, onde
sentem morta dão alguns gemidos como de sentimento, e largan- nossos padres possuem uma residência,foi visttSum monstro ma-
do-a fogem;e se levam alguns comem-lhe somente 9s olhos, na- rinho, o qual creio nunca antes foi visto semelhante na terra. Iam
rizes, pontas do dedos dos pés e mãos, e as genitálias e assim os ao mar índios nossos para pescar quando de repente, jogado à ter-
acham de ordinário pelas praias com essas coisas menos.:- ra, perceberam um grande ser dormindo. Estavam persuadidos.
I
inicialmente de que se tratava de um animal terre:;tre,ou de um
Outro jesuíta, Francisco Soares, além de concebê-Ias como mons- homem dormindo profundamente. Certarrrente porque não ha-
trengos ruivos, reproduz algumas informações de seu colega, no ,'ia luz sufic$nte, eles se aproximaram e viram um monstruoso
livro De algumas cOllsasmais notáveis do Brasil, alertando que es- aborto da natureza pego pelo sono. Assim como o monstro dor-
ses haviam "de muitas maneiras; e se os naturais dizem que os mia de costas,eles tentaram capturá-lo. Mas um cachorrinho que
vêem, vêem assombrados e muitos morrem de pãsmo'::~ Frei Vi- cstava com eles latiu intempestivamente e acordou o monstro,
cente de Salvador repete a história que vem desde Gândavo, di- que então viu a armadilha preparada contra si e os indios arma-
ferenc'iando, todavia, os monstros marinhos de tubarões, pois es- dos, prontos para atacar. Ergueu-seo monstro em pé, naquele lu-

92 93
gar mcsmo como está mostrado na figura.como quem quer lutar. uma coisa tão diferente e exótica, não segundo o meu querer. como
Contudo. logo percebeu o perigo e precipitou-sc rapidamente se a idade a\'ançada lhe des\'iasse a atenção para outras coisas."
para o mar. Apcnas começou a fugir e um índio mais audaz atin-
giu-o pelas costas. na espátula. Assim ferido. o monstro ,iorwu o padre Stansel foi missionário no Brasil durante a segun-
sangue profusamente c, atingido diversasoutras \'ezes.entregou a da mctade do século ;<\'11.Era matem<itico. filÓsofo, formado em
alma naquela praia. Uma novidade tão extraordinária não pÔde Praga e no Colégio Romano da Companhia de Jesus. Desde sua
escapar por muito tempo à nossa cidade da Bahia. Não ha\'iam chegada ao Brasil, trabalhou no Colégio da Bahia e publicou na
passadodois dias e ela se espalhou pelo \'ulgo.e depois chegou até Europa alguns li\'ro:; escritos na Colônia. Dentre estes. o Merw-
nÓs.Escre\'irapidamente aos padres da missão para receber a no- rills Bmsilicmis. que não chegou a ser impresso mas ficou guarda-
tícia certa do acontecido. O que me foi contado só foi contro\'er- do na biblioteca de Athanasius Kircher, seu professor e correspon-
lido no que respeita a tamanho. porque os índios. mais rudes, não dente em Roma, já nosso conhecido por escrever sobre dragões
() mediram satisfatoriamente. dizendo que o monstro media de- c vulcÔcs no ccntro da 'lerra. O mais curioso é que Ambroise
zessetepalmos. No mais a descrição do monstro é a seguinte: a ca- Paré, ao reproduzir a imagem de um monstro marinho em seu
beça. quase como a dos outros semi-homens. era em forma de Tratado, opta por uma imagem muito semelhante à do lIa)',já re-
cachorro. com o nariz em forma de focinho; possui duas séries de produzida pelos viajantes franceses Thevet e Léry, só que ele lhe
dentes agudos. Era horrível. sem pêlos. e sem nada que respeitas- dá um rabo de leão e a pele de escamas de tartaruga, voltando ao
se a audição. sem orelhas. Os olhos tinham pálpebras e eram estoque de imagens que Ctésias deixara sobre a manticora.
oblongos. como os dos gatos ou felinos; o pescoço era circular. No século XVIIIa mesma história se transformara, em nm-
como o dos homens. um pouco mais longo. Os braços eram mais ção talvez da tradição de "quem conta um conto aumenta um
curtos. Não tinha mamas. ao contrário do que costuma ter a se- ponto". O terror perdurava, mas quem o inspirava era um mons-
reia. Os dois dedos eram de carne cartilaginosa, com uma pele trengo na forma de menino "de três ou quatro anos': da cor dos
unindo-os entre si. como os pés dos patos. Debaixo dos braços índios, de feições disformes e grosseiras, "a cabeça pouco povoa-
havia longos cabelos, como pode ser visto na figura. A pele do da de cabelos" e hábil na arte de escapar de tiros e perseguições
"
corpo até o umbigo era áspera e grossa; não era branca mas fos- que lhe eram movidas. Era tão horripilante que causava desmaios
ca, como a dos elefantes ou dos peixes que chamamos tubarões. A naqueles que cruzavam seu caminho, contava,... impressionado, o
partir da cintura ou do umbigo ele se faziaem peixe,com escamas frade Antônio de Santa Maria Jaboatão:'\
duras. Quanto ao apardho genital, ao contrário dos outros semi- Os monstros marinhos, que tanto impacto causaram entre
homens, que o têm abaixo do umbigo. ele tinha como que um tu- colonos na América portuguesa, constituíam a pedra de toque
binho ~assando pela cauda; parece que também se servia disso da autêntica experiência da viagem ou da estada no NoVo Mun-
para os excrementos.Soliciteiuma anatomia mais cuidadosa des- do. O encontro com a "coisa" inesperada era. na realidade, espe-
se monstro. mas não foi possívelpor ausência de habilidadedos ín- rado, pois vinha precedido, no espírito do viajante, da tradição
.,
dios. ou de curiosidade do padre que lá residia.que deixou de lado escrita ou oral. Não havia regras para o encontro com o mons-

94
tm; bastava encontrar um testemunho digno de fé que anuncias- A tradição, tão presente na longa e metamÓrficahistória da
se como fato seguro a presença de tal e tal monstruosidade. ,; A ipupiara, tinha, aliás, enorme importância na constituição do
erudição européia, por seu turno, tratava de dar respaldo à exis- maravilhoso, aparecendo, com rccorrência, nos textos dos cro-
tência de tais criaturas, confundindo muitas vezes o real e o ima- nistas que escrevem sobre o Brasil.A HistÓria/latl/ml, repositó-
ginário. Guilherme Rondelet (1507-66), por exemplo, foi capaz rio de f.ibulasfundadoras que séculos de reescrita remodelaram,
de descrever ,com a precisão de um taxionomista o peixe-boi; continuava a inspirar relatos, agora dotados de novas significa-
mas incluiu em sua HistÓria cOlI/pleta dos peixes, publicada em çÔes.Ao mencionar que se encontravam salamandras nas forna-
1588, tanto o monstro marinho com chapéu cardinalício como lhas dos engenhos brasileiros,por exemplo,Ambrósio Fernandes
as nereidas. Duzentos anos mais tarde. em pleno século das Lu- Brandão demonstra conhecer Plínio, que afirmava que essemis-
zes, caberia a Jean-Marie Robinet" continuar confirmando a terioso animal, frio como gelo, era o único capaz de apagar o
existência de homens marinhos, agora a partir de "obsen'ações': fogo. O amor conjugal do peixe camaropin à sua companheira
Um registro que amarra bem a h!stória da Ipupiara é o do teria se inspirado num dos capítulos escritos pelo almirante ro-
já mencionado viajante Von Martius. que, no início do século mano sobre a simpatia e a antipatia entre "animais da água': O
XIX,soma a observação natural com o julgamento crítico sobre choco do jacaré pelos olhos é, igualmente, apropriado das afir-
a ingenuidade dos índios brasileiros e a relação de seus medos maçõesde Plínio sobre o crocodilo africano, bem como as expli-
com o imponderável:'~ Os monstros que descreveu são entidades cações sobre o lagarto sinimbu - que só se alimentava de ven-
poderosas e invisíveis mas também ilógicas e antinaturais no to, como um Astome ou um Sallromata- são idênticas às que a
mundo selvagem:'" Históriel/latllmltraz sobre o camaleão africano.
Quanto ao âmbar, produto de árvores submarinas das quais
Além do curupira que infesta as matas. tornando-as pouco segu- se apascentavam as baleias, Brandônio, o personagem principal
ras. crêem os indígenas que as águas dos grandes rios são infesta- dos Diálogosdeigrandeza do Brasil,afasta-se tanto de Plínio co-
das por outros demônios, chamados ipupiaras. Esse termo. que mo de Eliano, o mais eloqüente dos cronistas da tradição ao ex-
significa "senhor das águas': é o mesmo que usam os habitantes plicar que este provinha das árvores marinhas das quais se ali-
do i"terla"d para um monstro de pés virados para trás ou tendo mentavam as baleias. O primeiro afirmava que o produto, vindo
uma terceira coxa a sair-lhe do peito. de quem a gente. tanto mais das terras do Norte, era extraído da "medula" dos pinheiros. O
se aproxima. quanto mais crê afastar-se dele.saciando seu ódio no segundo explicava tratar-se de excrement('Jsperfumadíssimos
viandante solitário. a quem arrocha com os braços até sufocá-Io. das baleias, cncWltmdos flutuando sobre o mar sob a forma de
Quando um índio adormece e desaparece na água. puxado por al- ceráseo conglomerado. No século XVI,o grande botànico André
I
gum jacaré, dizem eles que isso é obra do malvado ipupiara. Cesalpini. contemporâneo de Brandônio. diria que o âmbar era
uma pedra preciosa, espéciede enxofre natural. A idéia de que o
i'l
O monstro de marinho passa a fluvial. e seu corpo escamoso âmbar era um mineral, vomitado pelas fontes sub,.aquáticasou
passa a ter anomalias podais. expelido das entranhas da Terra, "ai prevalecer entre os meios

97
eruditos europeus dos séculos seguintes. É a ela que vai ligar-se Abarimon e ele, observador jesuíta, no interior do Brasil. Usa o
o jesuíta C;aspar Schott, no seu Plrisiw Cl/riostl,de 1667. Nem mesmo procedimento com as amazonas e os gigantes que chama
mesmo Buffon, em pleno século XVIII,saberia dizer se o âmbar de "gabaras", nome de um personagem estudado por Plínio. Os
era um "betume" de origem animal ou mineral.'" "goazis" ou anões, personagens constantes da História natural e
Os capuchinhos franceses Claude d'Abbeville e Ivo posteriormente das crônicas medievais de Ruisbrouck e Odorico
d'E\'reux den~onstram, igualmente, quanto o peso da tradição de Pordenone, pululavam igualmente em nossos matos.
estava arraigado. O primeiro menciona um pássaro, o ou)'ra-ou- Se os monstros já não são tão abundantes na América por-
assu, cujas características considera comparáveis às da ave-roca, tuguesa, a histÓria natural passa a ser espaço do maravilhoso, do
descrita por Marco 1'010.O segl,lndo vale-se das interpretações prodígio, para os cronistas e viajantes, fossem eles nacionais ou
que se davam, na Europa, aos fenômenos de panspermia - ou estrangeiros. No momento em que tais cronistas escrevem, o co-
capacidade dos germes de se desenvolverem sob condições favo- nhecimento consistia em reconstituir a rede de semelhanças e di-
níveis - para contar sobre peixes gerados espontaneamente por ferenças produzida pela natureza: é esse, por exemplo, o proce-
influência de determinados :lstros, insistindo na influência dos dimento de Gândavo. Uma e outras são constitutivas da ordem
signos celestes sobre o reino animal:'~ Plínio inspira-se no ato do mundo. No menor dos seres elas se entrelaçam e imbricam.
então insubstituível para contar que a fúria das águias amazôni- Compreende-se, pois, a razão pela qual os homens eram, nessa
cas era tão terrível que persistia em suas penas, capazes de des- época, tão atentos ao que chamavam de singularidade; quer di-
troçar passarinhos miúdos. Coreal, outro viajante estrangeiro, zer, a qualidade prÓpria a cada coisa que jamais é absolutamen-
retoma as lendas sobre o Ira)',acrescentando-lhe as característi- te a mesma e que entretém com o universo uma íntima relação.)'
cas do lagarto sinimbu, de Brandônio, que as emprestara do ca- Eis por que o título mesmo do livro de Thevet: As singularida-
ma leão africano de Plínio: o bicho passa a não comer nem beber, tles... Mas não imaginemos essa totalidade imóvel. O dinamismo
vivendo de ar, como alguns membros de raças fantásticas! Niu- da natureza e a plenitude da vida se comunicaJiiun a cada uma de
hof mistura as peças do quebra-cabeça, parecendo brincar com suas partes. Assim, cada coisa, pelo fato de sua diferença, seria um
o jogo da natureza: os monstros que avistara no Brasil são uma núcleo de forças próprias que, pelo jogo ~e semelhanças, captu-
mistura de raposa com tamanduá, queixada com tatu, lagarto e raria as energias do todo, que a seu turno fecundaria o conjunto.
libélula com face humana. O menor sintoma da natureza seria também o signo dos
O jesuíta português Simão de Vasconcellos ,'olta a Plínio. movimentos da natureza inteira. Um vento,D grito de um pássa-
Por quê? Porque o sábio romano considerava que tudo que exis- ro, a cor de um lagarto assinalariam, ao homem que conhecesse
tia devia ou servir ao homem ou servir-lhe como lição de moral. a linguagem d~ signos. transformações que ele poderia prever
Idéia que vai ao encontro do primeiro livro da Bíblia, o que tor- no mundo naturaL .

nara a obra de Plínio aceitável pela Igreja nos séculos seguintes. É isso que entende o homem do final do século XVIou XVII
11 Pois bem, Simão de Vascon~ellos volta a Plínio para denominar quando ele fala, por exemplo, em "máquina do mundo". Essa su-
"matuyuís" os homens de.pé virado que o romano localizara em posta mecânica nada tinha de mecanicista: A máquina do muo-

99
do era justamente essa íntima conspiração de todas as partes que I)'Abbeville; como se, dividida em contrários, a natureza se tives-
uma vida poderosa inspirava e animava; o agenciamento harmo- se tornado impotente. I)e todas as maneiras, a natureza parecia es-
nioso do grande animal ou d,o imenso ser vivente que era o glo- tar cntregue a uma violência estranha a scu curso regular, o que
bo. Por isso IJ'Abbeville podia mencionar, sem ferir a prÓpria in- exigia desses homens uma explicação,
teligência, a existência de um lagarto capaz de vi\'er simultanea- Essa vontade de reconhecer uma significação nos efeitos ex-
j
r mcnte na terra, no mar e no ar. traordin,írios, ou melhor, de medi-Ios segundo sua maior ou me-
Compreende-se, nessa perspectiva, o interesse que o perío- nor regularidade, tornou-se cada vez mais clara ao longo dos sé-
do tem pelos prodígios e monstros que eram assimilados, quer a culos X\"l e XVII.Essa prática constituiu a grande novidade dos
maravilhas, quer a presságios. Num e noutro caso o prodígio se- tempos. A noção de maravilhoso não perdia nada de sua sedu-
ria um signo da espécie particularmente digno de atenção. Mes- ção; mas ela se revestia de novo sentido, Para viajantes, cronistas
mo se as causas naturais de sua produção fossem verificáveis e ou homens de ciência, só havia mara\'ilha se seu espanto pudesse
sua produção, regular, ele continuava raro. 'làl qualificativo refe- converter-se em pesquisa, em crÔnica sobre a singularidade, O es-
ria-se, paralelamente, aos fenômenos pouco freqüentes Ol! con- panto relativizava-se, então: não era mais a natureza que espanta-
trastantes com os habituais. Nesse sentido, a passagem de um va os homens, mas estes que se espantavam com a natureza.
cometa ou um eclipse eram considerados prodígios, mas uma Assistiu-se, nesse contexto, a uma cisão: se por um lado ain-
tempestade fora das características normais também podia sê-Io. da era possível aos seguidores de santo Agostinho continuar a
Mas os que, entre os fenômenos já conhecidos, aconteciam mais admirar a natureza como obra de Deus, extraindo de seu mara-
raramente, eram vistos como "mais" prodigiosos. Era, por exem- vilhamento novas oportunidades de glorificar o Senhor, por ou-
plo, o caso de monstros e monstrengos, para quem o jogo das tro, os homens de ciência eram confrontados com um universo
diferenças e semelhanças que constituía a ordem da natureza de coisas. Não com um mundo feito apenas de signos e pressá-
parecia estar de ponta-cabeça. Eis por que havia monstros que pa- --
gios a ser decifrados. A meditação do piedoso era diferente da-
reciam reunir em si os traços animais de espécies diferentes, quela do cético. Ambos, contudo, ainda viam a natureza como
como o "a)' descrito por Coreal: cabeça antropomorfa, corpo de um grande enigma. Foi preciso esperar o século XIXpara que ela
cachorro, cauda de réptil, mamas pendentes e garras afiadas, fosse tratada como um problema.
como se a natureza, presa da vertigem da semelhança, não a con-
trolasse mais. Havia outros monstros que só pertenciam a uma
espécie, mas cujas partes estavam dispostas de tal maneira que a
natureza parecia ter esquecido a arte da composição: era o caso ...... .....
,"
dos homens marinhos. Outros, como o "macaxera': não se pare-
ciam com nada, fazendo pensar que uma obsessão pela diferença
se apossara da natureza. Outros, enfim, eram simplesmente in-
formes, como um peixe gelatinoso e transparente, citado por

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