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REGINA REYES NOVAES

A divina política.
Notas sobre as
relações delicadas
entre religião e
política
REGINA REYES
NOVAES é professora do
Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e
Antropologia do IFCS-UFRJ,
editora da revista Religião
e Sociedade e autora, entre
outros, de Os Escolhidos de
Deus. Pentecostais,
Trabalhadores e Cidadania
(Marco Zero) e De Corpo e
Alma. Catolicismo, Classes
Sociais e Conflitos no
Campo (Graphia).

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política&participação R
eligião e Política são dimensões dis-
tintas da vida social. Conformam es-
paços sociais diversos, com institui-
ções, finalidades e inserções tempo-
rais específicas. Porém, as fronteiras entre elas não são
estanques e impermeáveis.
Não há como compreender as instituições religiosas
sem localizá-las nas disputas históricas que conformaram
o campo político. A política não é feita apenas de razão
prática. Não há política sem símbolos. Vários recursos do
“fazer político” provêm do campo religioso. Os símbolos
religiosos têm sido inseridos em todas as questões huma-
nas e sempre aproveitados para fins políticos. Mas os
símbolos religiosos não esgotam seus significados quando
são usados de maneira instrumental. Enfim, o desafio ana-
lítico maior está em reconhecer tais especializações, histo-
ricamente construídas na modernidade, sem reificar a opo-
sição entre o político (locus da razão, da ordem pública) e
religioso (locus do simbólico, da ordem da vida privada).
Trata-se, antes, de apreender os efeitos da religião sobre a
política e vice-versa.
Em outras palavras, quando se considera uma religião
apenas como uma “força política” entre outras, sem levar
em conta o simbolismo verbal e ritual que encerra, não é
possível compreender o peso e o lugar da religião na po-
lítica. É da utopia, do mito, das crenças religiosas partilha-
das que as igrejas retiram tanto a legitimidade para estar
junto a grandes faixas da população quanto a sua própria
convicção de competência (1).
Por outro lado, em nome da “República dos nossos
sonhos”, “exorcizar”, ou mesmo deixar de considerar ana-
1 Sobre o assunto ver: Sanchis,
liticamente, a presença da religião na política é colocar 1985, p. 277.

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para debaixo do tapete variáveis constitu- res e amigos. Registra palavras, gestos,
tivas de processos políticos em curso. afagos de suas mães que – em doses dife-
São delicadas as relações entre religião rentes – exibem diante da câmera sentimen-
e política. Por isso mesmo o objetivo deste to de orgulho e de perda. Através do filme
artigo é modesto. Ancorada em resultados podemos ver vários aspectos do “catolicis-
de pesquisas e na literatura disponível, gos- mo vivido” no Brasil. Pode-se conferir a
taria apenas de explorar aqui alguns signi- existência de católicos com diferentes graus
ficados e certas repercussões do pertenci- de participação na Igreja; as clássicas com-
mento religioso – sobretudo na dimensão binações que permitem alguém se definir
da sociabilidade e nas formas de participa- como “católico e umbandista”, ou/e do
ção política – em determinados segmentos candomblé, ou/e espírita; gestos de solida-
católicos e pentecostais. riedade entre quem tem pouco, motivados
pela idéia de caridade cristã.
Contudo, apesar de tantos pontos co-
muns que aproximam esses vocacionados
UMA IGREJA E MUITAS POLÍTICAS jovens brasileiros dos estados de São Paulo
e Bahia, há algo que os distingue. Justifi-
“Eu estou hoje (fantasiado) de palhaço, cam sua escolha pela vida sacerdotal de
lembrando que nosso país não está legal. E forma muito diferente. Para uns: “Deus é
lembrando que o papel da Igreja é também que chama, mas é a realidade que convo-
olhar para a questão social do país. Não há ca”. Para outros: “não adianta a gente pen-
comunidade com a situação caótica em que sar na dimensão humana do sacerdote. O
está. A nossa questão social e a dimensão sacerdote vem do coração de Deus. É Deus
humana desse país está uma coisa trágica. que escolhe”… Voltando agora para os dois
O religioso tem que assumir este papel, o depoimentos do início, a identificação é
papel de agente transformador, né?” (se- quase imediata: de um lado, está a inspira-
minarista José Mario de Oliveira Brito, ção da Teologia da Libertação, de outro, da
Bahia, depoimento a José Joffily, diretor Renovação Carismática. Se é verdade que
do filme O Chamado de Deus, 2000) estas não são as únicas “correntes” que con-
vivem no seio da Igreja Católica no Brasil,
“A Igreja não deve, realmente, se meter em parece-me que são as que mais produzem
política, na situação econômica da nação. discussões sobre a relação religião e polí-
Mas ela deve também dar suas opiniões, o tica. Vejamos um pouco da história de cada
que seria muito importante. Mas minha uma dessas expressões do catolicismo
opinião é que a Igreja não deve tomar parte moderno no Brasil.
nisso porque já deu muito problema” (se-
minarista Luiz Carlos Vitorino, São Paulo,
depoimento a José Joffily).
A pastoral dos pequenos grupos:
Quem viu o filme O Chamado de Deus,
de José Joffily, um documentário de longa-
novas “elites populares”
metragem, que entrou em cartaz, no circui-
to cinematográfico comercial, em maio de Foi o “mundo moderno”, representado
2001, teve a chance de conhecer as razões pela facção vitoriosa da burguesia ociden-
e as emoções que levam, ainda hoje, certos tal, que solicitou às igrejas que “fossem ao
jovens a deixarem família, amigos, namo- povo, reconquistassem as massas, deslo-
radas, profissão para se fazerem padres. O cassem suas bases sociais das classes mé-
filme reconstrói trajetórias pessoais e per- dias para as classes subalternas” (Paiva,
cursos de decisão. Leva-nos aos bairros 1985, p. 57). Assim, no plano internacio-
populares, onde ficam as casa desses jo- nal, em uma conjuntura pós-guerra, a
vens, permite-nos conhecer seus familia- evangelização em massa apareceu como

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remédio, como forma de exorcizar o fas- horizontalizada: uma reunião de “comuni-
cismo e evitar o avanço em direção ao co- dades eclesiais de base”.
munismo. No Brasil, nos anos 60, a Igreja No mesmo período, certos bispos cató-
Católica, afinada com os princípios do na- licos, ligados ao projeto de Igreja/Povo de
cional-desenvolvimentismo, chegou a Deus, influenciaram politicamente a tran-
apostar na realização de certas reformas de sição democrática. Interpelavam os pode-
base, encarregou-se de fundar sindicatos res políticos do ponto de vista religioso,
entre trabalhadores do campo e agrupamen- sem usurpar o espaço propriamente políti-
tos de operários nas cidades. co. Através de um simbolismo verbal (ca-
Se é verdade que em 1964 a Igreja Ca- tegorias descritivas e não analíticas, como
tólica apoiou, através de documento ofici- “povo”, “pobres”, “comunidade”, grandes
al, o golpe militar que teria salvado o Brasil imagens motoras como a da “libertação do
do comunismo, a harmonia Igreja/Estado Egito” e a “terra prometida”, o reino de
durou pouco. Após ter nutrido esperanças Deus, a comunidade dos bens dos primei-
nos programas sociais propostos pelo go- ros cristãos) e do simbolismo do sacrifício
verno Castelo Branco, já sintonizada com e da comunhão (3) chamavam a atenção
as mudanças propostas pelo Concílio sobre as mazelas da nação. No maior país
Vaticano II, em 1968, os representantes da católico do mundo, não havia como
Igreja Católica passaram a interpelar mo- desconsiderar totalmente denúncias de in-
ralmente o regime que seguidamente vio- justiça social feitas através de linguagem
lava os mais elementares “direitos huma- com características proféticas. O que a
nos”. Após o Ato Institucional no 5, a Con- chamada Teologia da Libertação trouxe de
ferência Nacional dos Bispos do Brasil novo para os católicos das pastorais e co-
(CNBB) explicitou publicamente suas in- munidades? Anos antes, no início dos anos
compatibilidades com o regime militar. 60, quando tinha como pano de fundo ape-
Sentindo-se moralmente autorizada a falar nas a doutrina social expressa nas Encíclicas
em nome da “reprimida sociedade civil” de Leão XIII e João XXIII, a Igreja evocou
(Della Cava, 1986, p. 20), a Igreja definiu princípios cristãos e fundou sindicatos ru-
novos aliados e circunscreveu inimigos rais. Naquela ocasião não se colocava em
(Cardoso, 1982, p. 54). De fato, a “ação questão a necessidade de transformação do
direta” da Igreja junto às massas foi universo religioso propriamente dito. Foi
viabilizada pela sua “incompatibilidade sob os auspícios da religiosidade preexis-
com o regime e incapacidade deste de cor- tente, sobretudo através do poder legitima-
tar também à Igreja a possibilidade de do dos párocos locais, que a Igreja fez valer
contacto inter-classes” (Paiva, 1985, p. 65). sua posição de religião dominante e desem-
Em outras palavras, determinada coinci- penhou seu “papel supletivo”. Já nos anos
dência cronológica entre o panorama da 70, a Igreja/Povo-de-Deus não se satisfa- 2 As resoluções do Concílio
Vaticano II foram reafirmadas
Igreja transnacional (2) e a conjuntura po- zia mais em apenas desempenhar um “pa- durante a II Conferência de
lítica e econômica do país levou a chamada pel supletivo”. Trata-se agora de construir Bispos Latino-americanos, que
se realizara na Colômbia, em
“Igreja progressista” a apoiar reivindica- Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) Medelín, no mês de outubro
de 1968. Segundo Della Cava
ções por melhores condições de vida e de como espaços propícios para unir Fé e Vida.
(1986, p. 16), Medelín repre-
trabalho no campo e na cidade. Neste contexto a Bíblia ganha destaque. sentou “um esforço monumen-
tal para traduzir os ensinamen-
No âmbito interno da Igreja Católica, Através da Bíblia, fonte de inspiração para tos da Concílio Vaticano II em
pelo país afora, nos anos de 1970 até os a “reflexão e ação”, convidava-se o “povo termos da realidade desta par-
te do III Mundo”. Nos docu-
meados de 1980, configuravam-se inúme- de Deus” para participar da “caminhada em mentos dessa Conferência dos
Bispos Latino-americanos des-
ros grupos que se definiam através de sua direção de uma nova Igreja”. A nova pro- tacaram-se a noção de peca-
“opção preferencial pelos pobres”. Eram posta articulava mudanças no universo re- do social, a denúncia da vio-
lência institucionalizada (refe-
leigos, religiosos, parte do clero e católicos ligioso e na vida “aqui e agora”. Ou seja, rência direta às ditaduras mili-
tares do continente), o acento
engajados que se transformavam em “agen- “ser cristão” passa a significar participar
na questão da libertação e o
tes de pastoral”. Buscavam transformar a da transformação tanto da Igreja quanto da apoio às CEBs emergentes.
Igreja hierárquica e paroquial em uma Igreja sociedade… 3 Ver Sanchis, 1984, p. 276.

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Padres, freiras, leigos e demais agentes engajamento de seus quadros em partidos,
aprenderam e disseminaram uma lingua- associações e sindicatos. Embora a “parti-
gem, um gestual, um código de conduta cipação” fosse um objetivo a alcançar, sur-
sobre as possibilidades e os limites da união giram conflitos e tensões novas em torno
entre Fé e Política no espaço da Igreja da manutenção de laços entre aqueles que
Católica. A valorização de certas passagens assumiram responsabilidades políticas,
bíblicas soma-se à premissa de “dar voz a associativas e sindicais e suas “comunida-
quem não tem voz” (4). Mesmo que essa des” de origem. Para ilustrar lembro uma
premissa não possa ser nunca tomada ao pé frase que ouvi de uma jovem nos anos 80:
da letra, pois toda mediação resulta no “Os padres e assessores passaram anos fa-
mínimo em um híbrido entre o preexistente lando para a gente participar e agora dizem
e o que é trazido de fora, a convicção com o tempo todo ‘cuidado com este pessoal do
que ela foi anunciada produziu efeitos po- Partido’”. Em muitos lugares, as dificulda-
líticos. Nas reuniões para “estudar a Bíblia des de conciliar a lógica própria do perten-
à luz da realidade local” categorias e sím- cimento religioso e do fazer político pro-
bolos religiosos são colocados à disposi- duziram “autocríticas” sobre a “instrumen-
ção de grupos e – complementados com talização política da fé” e propostas de maior
informações sobre leis e direitos – produ- atenção ao lado espiritual. O que, aliás,
zem interpretação da realidade e sentimen- encontrava ressonância tanto no chamado
tos de pertencimento. Nos anos de 1970 e “movimento restaurador” de João Paulo II,
inícios dos anos de 1980, nesses espaços, quanto em uma onda difusa de “busca de
alimentaram-se resistências em conflitos espiritualidade” que marcou o final do sé-
sociais urbanos e rurais, formaram-se lide- culo (6).
ranças, construíram-se identidades políti- Por outro lado, nas eleições que aconte-
co-religiosas. ceram nos anos 90, constatou-se, também,
Contudo, as Comunidades Eclesiais de que o capital político acumulado nesses
Base não lograram transformar, como gos- espaços de minorias religiosas militantes
tariam, a Igreja. Embora se desejasse uma não era automaticamente somado ou trans-
Igreja horizontalizada, o poder dos bispos ferível para a política partidária. Pelo Bra-
foi, paradoxalmente, reafirmado. Justamente sil afora muitas expectativas eleitorais fo-
porque a ação pastoral se fazia em uma Igre- ram frustradas. É verdade que o Movimen-
ja e uma sociedade, ambas hierárquicas e to dos Trabalhadores Sem Terra (MST),
autoritárias, a importância da hierarquia foi criado em 1985, que teve seu berço na Co-
vital para a disseminação da Teologia da missão Pastoral da Terra (CPT), foi fazen-
Libertação. Os bispos, como autoridades do, aos poucos, seus deputados estaduais e
socialmente reconhecidas, atuaram no es- federais. Assim como é possível localizar
paço público e deram seu aval para forma- “quadros de Igreja” entre parlamentares do
ção das CEBs. Implantaram-se melhor as PT por todo o país. Mas, em cada caso
CEBs e Pastorais que estavam em territó- analisado, o sucesso da eleição foi resulta-
rios de bispos considerados progressistas. A do de uma conjugação de fatores que – se
importância do bispo ficou clara nos anos não prescindiu do apoio do “pessoal da
90: as CEBs se enfraqueceram quando o Igreja” – ultrapassou seus muros e sua von-
chamado “movimento restaurador” come- tade. Para o sucesso das candidaturas con-
4 Este foi um argumento convin-
cente também para a interlocu- çou a dividir diocese e a transferir bispos, taram também fatores que costumam in-
ção com outros setores da Igre-
ja. Apresentando-se apenas com o objetivo de diminuir o poder de influ- fluir no campo político, tais como: lealda-
como veículo (mero canal para ência da Teologia da Libertação. des locais, regionais, trocas de favores,
dar “voz do povo”) os agentes
de Pastoral dificultavam a ca- Além desse fator de “política” interna preconceitos arraigados, avaliações de per-
racterização de sua ação como
própria do campo da política.
da Igreja, a “crise” que foi reconhecida (5) fis de candidatos em disputa e hábitos de
5 Sobre os contornos dessa crise
nas CEBs e Pastorais, no final dos anos 80, classe. Passando por esses filtros, hoje mui-
ver: Boff et al., 1997. teve outro vetor: as mudanças na política e tos já foram eleitos prefeitos, outros estão
6 Ver Amaral, 2000. na sociedade. Isto é, deveu-se também ao no poder Legislativo municipal, estadual e

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federal. Pesam no debate político. Possuem espécie de “comunidade lingüística” cujas
um perfil específico identificável no espec- marcas de fé aparecem logo nos primeiros
tro geral das Câmaras, Assembléias, Con- momentos de conversa, como no caso do
gresso e Senado. depoimento do jovem seminarista baiano
Hoje, nos partidos políticos, particular- transcrito no início deste trabalho. Ainda
mente o PT, nos sindicatos, nas centrais no mesmo filme O Chamado de Deus, no
sindicais, nos movimentos populares urba- depoimento de uma jovem também apare-
nos, nas associações de moradores, nos cem palavras/sinais dessa comunidade:
movimento de mulheres, no movimento “Acho que a opção pela vida religiosa bro-
negro encontramos lideranças que vieram ta dentro de você. Se você acha que você
das CEBs. Em algumas situações isto sig- tem condições de ajudar ao próximo, le-
nifica pertencer, ou pelo menos estar vando junto a palavra do Evangelho, aí sim,
conectado, a uma corrente política que atua tem essa semente junto de você”. Ela, que
nesses vários espaços – a Articulação –, em vive lá no interior da Bahia, de onde nunca
outras significa apenas o reconhecimento saiu, pretende ser freira e se sente conecta-
de um ponto de partida comum. da com uma “Igreja” específica dentro da
Porém, de qualquer forma, pode-se Igreja. Ou seja, se é verdade que essa ver-
dizer que fazem parte de uma extensa rede tente do “catolicismo popular” não se apre-
(com presença por todo o país, das capitais senta em grandes números (7), não se pode
aos mais afastados rincões) que tem poder negar que ela é formadora de minorias ati-
de se autoconvocar e se apresentar publica- vas. Trata-se de uma fábrica de grupos de
mente em determinados momentos políti- “elites populares”. Certamente, estão lon-
cos através de encontros, abaixo-assinados ge da maior parte do “povo” que, por sua
e campanhas. Vez por outra, são organiza- vez, está distante da chamada “agenda ci-
dos encontros específicos para discutir Fé dadã” proposta pela rede da Pastoral So-
e Política. Por exemplo, em 2 e 3 de dezem- cial. Preocupam-se com isto. Querem am-
bro de 2000, “Mística e Militância” foi o pliar. Não por acaso, o último Encontro
tema que reuniu três mil participantes, en- Nacional das Comunidades Eclesiais de
tre os quais uma pequena parcela de “evan- Base, realizado no Maranhão, teve como
gélicos progressistas”. O encontro levou a tema a “cultura de massa”. Buscavam es-
Santo André, São Paulo, como palestrantes, tratégias para se relacionar com os meios
Luis Inácio Lula da Silva, presidente de de comunicação, para sair do “gueto” dos
honra do PT, o sindicalista Vicentinho, João “organizados”. Estão atentos à penetração
Pedro Stédile, da Coordenação do Movi- dos movimentos pentecostais e carismáti-
mento de Trabalhadores Sem Terra, o teó- cos nas bases da sociedade, particularmen-
logo Leonardo Boff, o bispo de Santo André te na base católica.
D. Décio Pereira, o bispo de Goiás e presi-
dente da Comissão Pastoral da Terra, D.
Tomás Balduíno, Frei Betto. Na ocasião, a
senadora do PT, do Acre, Marina da Silva Pentecostes entre católicos:
falou sobre “valores da mística na militância
política”. a aeróbica da fé
Ao mesmo tempo, nos dias de hoje, tan-
to na academia como na imprensa e na opi- Quase ao mesmo tempo das CEBs, e
nião pública, fala-se no desaparecimento aos poucos, uma onda carismática ganhou
das CEBs, Pastorais, Teologia da Liberta- espaços no interior da Igreja Católica no
ção. É verdade que não houve organicidade Brasil. Ao que se sabe, a Renovação Caris-
e o crescimento geométrico esperado por mática Católica começou em 1967, na ci- 7 Em documentos da CNBB, fala-
se em 15% dos católicos. No
seus idealizadores. Porém, esta vertente da dade norte-americana de Pittsburg, entre momento em que aguardamos
Igreja Católica ainda tem sua influência no professores e estudantes universitários que os resultados do Censo 2000,
todos os números estão sob
espaço público. Apresenta-se hoje uma se dedicavam a “buscar o batismo com o suspeita.

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Espírito Santo” e o desenvolvimento dos damente, chega a anunciar apoios a candi-
dons carismáticos. Logo em 1969, esse datos e partidos. Há iniciativas concomi-
movimento foi introduzido no Brasil. O tantes e, muitas vezes, independentes entre
núcleo central do movimento foi Campi- si. Não se trataria tanto de uma “comunida-
nas, no estado de São Paulo. Ali começa- de lingüística”, como no caso das Pastorais
ram as buscas do “batismo de fogo”, os acima descrito. Embora haja um vocabulá-
“grupos de oração”, “grupos de partilha”, rio comum, o foco está na partilha da “vi-
os “aconselhamentos”, uma maneira espe- vência” sempre descrita em termos de “in-
cial de devoção à Virgem Maria. timidade pessoal com Deus”, a alegria do
Nos inícios fizeram-se visíveis como contato emocional com o sagrado. Através
pequenos grupos “renovados com o Espí- de missas muito cantadas, com coreografi-
rito Santo” no espaço das paróquias de di- as animadas e, sobretudo, através de pa-
ferentes estados brasileiros, depois foram dres cantores, o catolicismo carismático
se apresentando publicamente enquanto chega às massas. E chega com todos os
Movimento da Renovação Carismática Ca- recursos tecnológicos de nosso tempo. O
tólica (RCC), com suas lideranças, consig- CD do padre Zeca, líder carioca do movi-
nas, símbolos e causas, fazendo aliados, mento “Deus é Dez” se chama Digo sim a
reticentes e críticos no interior do clero e Deus e está entre os mais vendidos no
dos fiéis (8). Segundo informações do Es- mercado. No filme O Chamado de Deus há
critório Nacional da Renovação Carismá- tomadas que revelam o tamanho e o entu-
tica, datadas de fevereiro de 2000, a Reno- siasmo do público da “Igreja de padre
vação Carismática está presente em 6.000 Marcelo Rossi” (10). Os grandes jornais
das 8.300 paróquias existentes no Brasil. noticiam as imensas concentrações em es-
Essa presença (9) se dá de maneira muito tádios e nas vias públicas, por exemplo no
heterogênea. Há uma espécie de continuum. Dia de Finados em São Paulo. E quem quiser
Em um extremo há situações em que o saber mais pode usar seu endereço eletrô-
“grupo da Renovação” é apenas um ao lado nico, escrever para padre Marcelo –
de muitos outros de irmandades, pastorais, pemarcelo@usa.net. Além de escrever e de
de crisma, etc., que se reúnem no espaço receber resposta, através da homepage
físico de uma igreja. Em outro extremo estão pode-se também adquirir um “terço
igrejas conhecidas pelo estilo Renovação bizantino”. Padre Marcelo adaptou-o “a
Carismática, que vivem cheias e atraem fiéis fim de torná-lo mais acessível ao modo
de outras paróquias para suas animadas ocidental de rezar e pensar”. Na página
missas e retiros. Nos anos 70 e 80, segundo tem mais lugares para navegar: testemu-
as informações disponíveis (Ribeiro, 1978), nhos/reze via internet/oração/livraria/pro-
os católicos que freqüentavam a Renova- gramação/entre em contato. Indo um pou-
8 Sobre a Renovação Carismáti-
ca no Brasil ver: Ribeiro et al., ção Carismática eram predominantemente co mais adiante, outra seção: testemunho/
1978; e Prandi, 1997. oriundos das “classes médias ou abastadas”, uma grande graça (clique aqui para escre-
9 Em uma pesquisa feita pelo a ênfase era na “libertação interior. Já nos ver). Depois, livraria: o ministério de pa-
Datafolha em 1994 estimou-se
que os carismáticos seriam 4 anos 90, observa-se uma expansão nas ca- dre Marcelo se dá através dos meios de
milhões de católicos, enquanto
as CEBs envolveriam a metade
madas populares. Amenização dos confli- comunicação. Estão disponíveis CDs, fi-
desse número. tos familiares e das dificuldades financei- tas cassete,VHS e livros que contêm men-
10 No mesmo filme, vale a pena ras passa também a fazer parte da pauta da sagens, orações e músicas.
prestar atenção no depoimen-
to de uma mulher que é entre- Renovação Carismática. Nos CDs, vendidos em grande escala,
vistada no pátio da Igreja de Compondo um conjunto de situações encontra-se o conteúdo e o ritmo para a
padre Marcelo: seu discurso
inflamado sobre o desempre- diversificadas, há hoje um fenômeno “aeróbica da fé”. Os títulos e refrões das
go poderia ser feito em um am-
biente de CEBs. Isto nos faz ver
carismático católico visível no Brasil. Sua músicas são significativos:“Enche-me Es-
que a “massa” contabilizada repercussão ultrapassa as fronteiras do pírito”; “Enche-me Espírito de Deus”;
como carismática não é com-
posta de indivíduos homogê- movimento estruturado que – via de regra “Basta Querer”; “Mãe, Mãe, Mãe”; “Reu-
neos e não necessariamente tem – externa posições consideradas conserva- nidos Aqui”; “Não sei se a Igreja subiu ou
as mesmas opiniões políticas
que suas lideranças religiosas. doras no campo político e, ainda que timi- se o céu desceu”; “Festinha para Jesus”;

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“Eu Tenho um Barco”; “O Nome de Jesus Certamente, padre Marcelo não é una-
É Doce”; “Dê um Sorriso Só” ; “Senhor me nimidade entre os católicos (11) . Quem fala
Queima”; “A Alegria (Aeróbica do Se- em nome dos chamados “progressistas” ou
nhor)”. Quem nunca ouviu: “O Senhor Tem é da “Libertação” se preocupa tanto com a
Muitos Filhos…”? A coreografia é fácil falta de conteúdo e com a “leveza” da men-
porque já foi muito vista pela televisão: sagem, quanto com sua submissão à lógica
“Erguei as mãos… e dai glória a Deus… comercial da mídia e do mercado fonográ-
A Rede Vida, inaugurada em 1995, é a fico. Outros menos engajados são mais
emissora católica onde há espaço para os ambíguos. Embora critiquem a romaria de
padres cantores. Mas não é esta a mídia de padre Marcelo pelos programas de auditó-
sua “opção preferencial”. Padre Marcelo já rio de TV e revistas de variedades, embora
esteve no programa da Hebe Camargo, no se preocupem com o comércio de terços
da Xuxa, do Faustão, do Gugu, etc. Parece bizantinos, CDs e outros fetiches por ele
haver uma afinidade entre o estilo e esté- produzidos, não condenam abertamente seu
tica entre os chamados “programas de au- astro popular. Padre Marcelo e o Movimen-
ditório” e padre Marcelo Rossi. À “alegria” to Carismático garantem igrejas cheias. À
das músicas e animação dos gestos, soma- boca pequena, fala-se que o padre cantor,
se o fato de se ter “um padre” na programa- coqueluche do momento, reunindo multi-
ção. Do ponto de vista dos meios de comu- dões em megaeventos, demonstra o poder
nicação, valoriza-se o fato de ter um padre de reação da Igreja Católica frente à expan-
– personagem de acesso escasso – na pro- são evangélica.
gramação. Para padre Marcelo, estar ali faz Certamente, em termos de hierarquia
parte de sua “missão”. católica, há tensões e negociações constan-
No mesmo filme de José Joffily, aqui tes. Em 1994, a CNBB edita o primeiro
tantas vezes mencionado, padre Marcelo é documento com orientações sobre o Movi-
entrevistado. Indagado sobre sua presença mento Carismático. A ênfase do documen-
na mídia, afirma: “Agora eu vou voltar para to é no sentido se evitar o “paralelismo
a mídia. Eu parei por um tempo porque quis. eclesial”. Na ocasião, o Movimento da
Conversando com meu bispo vi que che- Renovação Carismática Católica estava
gou a hora de parar. Eu acho que a televisão sendo acusado por outras correntes da Igreja
é uma bênção, mas ela também desgasta. de articular encontros que prejudicavam as
Eu adoro xadrez, senti que estavam me demais atividades paroquiais. Quanto ao
dando xeque-mate, chega, parei. Agora é padre Marcelo Rossi, fala-se em alertas,
hora de voltar e, querendo ou não… uma não em proibições ou punições.
coisa eu vou falar… não em política… mas Quando se mostra em público, aos 33
querendo ou não vai influenciar em tudo. O anos, Marcelo Rossi não se apresenta como
nosso Brasil só vai mudar a partir do mo- militante do Movimento Renovação Caris-
mento que eu amá-lo de verdade. Então eu mática Católica. Faz questão de anunciar
pensei comigo: ‘como eu estou tendo, gra- obediência ao “seu bispo”. Diz que conhe-
ças a Deus, uma influência muito forte com ceu a Renovação Carismática Católica, na
as crianças através do trabalho, e com ado- infância e adolescência, através de sua fa-
lescentes, por que não restaurar o Hino mília. Assim como diz que conheceu, no
Nacional?’” seminário, a Teologia da Libertação. Diz
Como se vê, padre Marcelo prefere não que se tornou padre sem nenhuma identifi-
usar a palavra “política” mas também quer cação especial com uma dessas duas ver-
11 Mas reações negativas indivi-
“influenciar” nos rumos do país. Lá na tentes. O marco para sua mudança pessoal duais, às vezes virtuais. Havia
uma homepage em que a cha-
Bahia, vendo padre Marcelo na fita da mis- foi, segundo ele, a morte de um primo. O mada era a seguinte: “Eu ain-
sa/show exibida pelo cineasta José Joffily, sofrimento produziu o desejo de “renovar da ODEIO o Padre Marcelo.
Você ainda odeia esse padre-
o aspirante a frade franciscano José Mario toda a Igreja”. co aeróbico dos diabos? En-
de Oliveira Brito comenta: “É tudo Enfim, nos últimos vinte anos, o catoli- tão saiba que você ainda tem
espaço para mostrar seu ódio”.
marketing!” cismo se renovou tanto através das Pasto- Foi tirada do ar.

REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 60-81, março/maio 2001 67


rais e Comunidades Eclesiais de Base, quan- tas ênfases doutrinárias. Para os protestan-
to através da linha da Renovação Carismá- tes históricos a referência geográfica é a
tica. Se é verdade que diminuem os que se Europa e a Reforma do século XVI. Para os
declaram católicos só porque foram batiza- pentecostais, de berço protestante, a refe-
dos na Igreja Católica, pode-se dizer que rência é os Estados Unidos e o início do
há indícios de que tem aumentado a parti- século XX. Foi no Novo Mundo que acon-
cipação religiosa de segmentos “católicos teceram múltiplas aproximações culturais
praticantes”. Contudo, não tenho notícias entre movimentos avivalistas – desencade-
de casos de católicos que passaram das ados por trabalhadores migrantes europeus
Comunidades de Base para a Renovação – e a religiosidade negra norte-americana.
Carismática, ou vice-versa. O pentecostalismo já nasceu transnacio-
Por outro lado, em uma pesquisa que nal. O Brasil foi, desde o início, parte inte-
realizei, há registros de pentecostais que grante do movimento pentecostal mundial.
voltaram para a Igreja Católica para “louvar A história das duas mais antigas denomi-
com padre Marcelo”. Em uma entrevista, nações pentecostais no Brasil é praticamen-
uma dona de casa de 40 anos, afirmou: “Eu te simultânea com a história norte-ameri-
era crente, voltei para a Católica. Com padre cana. Ela está relacionada a três persona-
Marcelo tem louvor e não precisa pagar o gens: dois migrantes suecos e outro italia-

CAT
dízimo”. Por outro lado, há registros de gen- no que aqui chegaram, na primeira década
te das Comunidades Eclesiais de Base que do século XX, via Estados Unidos. O itali-
se tornou “crente”, em busca de uma “igreja ano Luigi Francescon em Recife (estado de
mais forte no Espírito Santo”. Na verdade, Pernambuco) fundou a Congregação Cris-
para compreender certas dinâmicas no inte- tã do Brasil, em 1910. Os suecos Daniel
rior do catolicismo, é preciso considerar as

PENTEC
Berger e Gunnar Virgen, fundaram em
relações com outras religiões que disputam Belém (estado do Pará) a Assembléia de
a mesma população. Deus, em 1911 (12).
Passemos, pois, aos evangélicos pente- De maneira geral, os pentecostais parti-
costais. lham da espera de uma segunda vinda de
Cristo e acreditam ter acesso, no dia-a-dia,

CARI
aos dons e carismas do Espírito Santo. À
ação do Espírito Santo atribuem curas dos
OS EVANGÉLICOS E A REPÚBLICA males do corpo e da alma. Em suas igrejas,
se expressam religiosamente através das
DOS NOSSOS SONHOS: O QUE palmas, do falar em línguas estranhas

C
(glossolalia), dos rumorosos louvores e
NÃO ESTAVA NO PROGRAMA evocações, dos peculiares movimentos cor-
porais, dos exorcismos. Os “testemunhos”
O pentecostalismo no Brasil deve ser são muito importantes em seus cultos. Atra-
analisado como um produto histórico sin- vés deles os fiéis dão publicamente a co-
gular. É o resultado de um encontro cultu- nhecer os problemas e as soluções encon-

P
ral entre os elementos do cristianismo uni- tradas para questões pessoais e familiares,
versal – na Europa reformado e no Novo de ordem financeira, afetiva, de saúde. Fre-
Mundo reavivado – em um território nacio- qüentando assiduamente suas igrejas, os
12 Essa igreja posteriormente se nal historicamente construído como cató- “crentes” ou “evangélicos” – como se
ligou à denominação Assem- lico, com suas heranças indígenas e, religio- autodenominam – reafirmam seu pertenci-
bléia de Deus, que naquele

CATÓ
momento se formava internacio- samente, marcado pela presença de povos mento à “comunidade de irmãos” e se con-
nalmente. Segundo dados dis-
poníveis no Iser (Instituto de
africanos. sideram apartados das “coisas do mundo”,
Estudos da Religião, Rio de A literatura especializada costuma di- o que pode se traduzir em diferentes graus
Janeiro), a Assembléia de Deus
é a maior igreja pentecostal do ferenciar os pentecostais dos chamados pro- de sobriedade no vestir e em diferentes
mundo. As estatísticas variam testantes históricos considerando a época formas de condenação dos prazeres do mun-
de 5 milhões a 8,5 milhões de
fiéis. de origem, a procedência geográfica e cer- do. Mas, no geral, rejeitam o fumo, as dro-

68 REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 60-81, março/maio 2001


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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 gas e a bebida. O pentecostalismo faz de
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 cada “crente” um evangelizador, um mili-

CATÓLICOS
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 tante que deve propagar sua fé: este é, sem
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 dúvida, o denominador comum a diferen-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
tes denominações
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Os primeiros interessados em buscar
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 explicações sociológicas para a existência
123456789012345678901234567890121234567890123456789012

PENTECOSTAIS
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 de inúmeras pequenas igrejas, que come-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 çavam a ganhar a visibilidade pelo Brasil
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 afora, foram estudiosos pertencentes a ou-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 tras igrejas protestantes e católica. A Igreja
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Católica, já nos anos 50 e 60, em suas pu-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 blicações, alertava para os perigos das “he-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012

CARISMÁTICOS
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
resias modernas: o espiritismo, o pentecos-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 talismo e a maçonaria”. Na década de 70 a
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Igreja Católica encomenda várias pesqui-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 sas sobre as razões da conversão de católi-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 cos ao pentecostalismo.
123456789012345678901234567890121234567890123456789012

TÓLICOS
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Nos anos 60 e 70, as explicações – pro-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 duzidas na academia e/ou nos espaços de
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 igrejas – convergiram. Não escaparam aos
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 paradigmas desenvolvimentistas disponí-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 veis na época para caracterizar o “atraso”
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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COSTAIS
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 da América Latina. Ou seja, o êxodo rural,
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 o “inchamento” das cidades, a falta de ur-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 banização e a industrialização explicariam
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 tanto o crescimento pentecostal quanto o
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
conservadorismo de seus membros (13).
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
Nesse contexto, o migrante perdido na ci-

SMÁTICOS
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 dade grande se convertia para ter acesso à
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 “comunidade de irmãos na fé” reproduzin-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 do – em uma nova situação – os velhos
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 mecanismos de clientelismo e conformis-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 mo. Enfim, as “falhas” (na modernização
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012

CATÓLICOS
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 do país, na educação política e na formação
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 religiosa) é que explicaram o fundamenta-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
lismo e a função das denominações pente-
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 costais.
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Buscou-se também explicar o pentecos-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 talismo através de conceitos advindos do
123456789012345678901234567890121234567890123456789012

ENTECOSTAIS
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 campo teórico marxista. Situado no interi-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 or do “modo de produção capitalista” e,
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 particularmente, inserido na “formação
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 econômica e social brasileira”, o pentecos-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
talismo reforçaria a ideologia dominante
123456789012345678901234567890121234567890123456789012

ÓLICOS
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 impedindo a emergência de uma consciên-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 cia de classe (14). Com base nas ênfases
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 doutrinárias da “espera da segunda vinda
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 de Cristo” e do “afastamento das coisas do
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 13 Cf. o pioneiro livro de Souza,
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 mundo”, os pentecostais se negariam, sem- 1969.
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 pre e em quaisquer circunstâncias, a parti-
123456789012345678901234567890121234567890123456789012 14 Cf. Rolim, 1977.

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cipar da vida política. infelicita a menina. Já perdi e aí ela se pros-
Os dois diagnósticos convergiam em um titui, porque ele não se casa com ela. Vivo
só veredicto: o pentecostalismo é conser- na propriedade de D. Fulana de tal que é
vador porque produz indiferença em rela- católica e ela não permite que eu faça o
ção à vida política. O que não ficava claro, culto na minha casa. Então, ela tá empatan-
tanto na primeira quanto na segunda expli- do minha religião. Outra coisa: a gente plan-
cação, eram os termos da comparação. ta pé de café, a bananeira, a manga, faz uma
Conservador e alienado em relação a quem? casa, faz um barreiro, um dia vem o proprie-
Aos católicos? Aos espíritas, aos adeptos tário e diz que quer a terra, nos expulsa de lá
do candomblé ou da umbanda? Ou à parce- com 24 horas e não paga nada. Se a gente
la minoritária dos trabalhadores que naque- resiste manda matar ou põe a polícia em cima
les anos estava organizada em partidos ou da gente. Tá tomando o que fiz com meu
sindicatos? Pesquisas posteriores chama- trabalho. Então é comunismo. A Liga vem
ram a atenção para a necessidade de para acabar com essa lei e fazer justiça”.
explicitação sobre o que estava se enten-
dendo por “político” e a necessidade de Ao que tudo indica, romper com a reli-
situar o fator religião em configurações gião católica forneceu a João Evangelista a
sociais específicas. liberdade e os argumentos tanto para inter-
Nos anos 70, estudos sobre as Ligas pretar a realidade local quanto para justifi-
Camponesas (15) que se organizaram so- car sua participação política. Naquela situ-
bretudo no Nordeste, nos anos de 1960, ação de conflito social, a conversão
revelaram um interessante fenômeno. Vá- radicalizava disposições morais e éticas pree-
rios “crentes” foram verdadeiros dirigen- xistentes, permitia-lhe conectar entre
tes daquelas organizações. Em seu livro in- militância religiosa e política. Como sabe-
titulado O que São Ligas Camponesas?, o mos, o golpe militar interrompeu brusca-
ex-deputado Francisco Julião, principal ad- mente a experiência das Ligas Camponesas.
vogado das Ligas, registrou a presença e a Mais tarde, em plena vigência do regi-
importância dos evangélicos naquelas or- me militar, o estudo de Carlos Rodrigues
ganizações. É ele que relata uma interes- Brandão (1978), na cidade de Mont-Mor,
sante conversa com João Evangelista, líder estado de São Paulo, e a minha própria pes-
da Liga de Jaboatão, Pernambuco: quisa em Santa Maria, estado de Pernam-
buco (1985), descrevem a opção pentecostal
“A Liga era legal. Queríamos dar esse ca- inserida no processo de constituição e
ráter de absoluta legalidade, pondo placa, mudanças no interior do campo religioso
convidando as autoridades, mas muitos se brasileiro. Nos dois estudos acima citados,
negavam a ir ou não iam. O prefeito de o catolicismo se fazia presente no calendá-
Jaboatão disse a João Evangelista: ‘Não vou rio das festas das cidades, nas imagens das
neste negócio porque é comunismo’. João, praças, nos momentos rituais mais impor-
que era protestante, disse: ‘Olha, minha tantes, ainda que os católicos freqüentas-
religião é Jesus Cristo. Estou com Jesus’. sem, regular ou esporadicamente, centros
‘Não, você pensa que está com Jesus Cris- espíritas ou terreiros de religiões afro-bra-
to, mas está servindo o comunismo’. João sileiras, ainda que houvesse uma minoria
respondeu: ‘me explica o que é comunis- protestante com número estabilizado de
mo’. O prefeito disse: ‘Comunismo é to- adeptos. Em resumo: o catolicismo domi-
mar o que é dos outros, é fazer mal à filha nante convivia com outras opções religio-
dos outros, é empatar a religião dos ou- sas subordinadas. Mas a grande novidade
tros’. João Evangelista pensou um pouco e nos dois municípios era a penetração do
disse: ‘Pois então estamos nele, homem. pentecostalismo no seio das classes popu-
Você sabe que tenho uma filha bonita mas lares. Foi essa penetração que modificou o
vem o dono da terra, ou o capataz, ou o conjunto de relações no campo religioso: o
15 Ver Novaes, 1985. gerente da usina, ou o capanga e me pentecostalismo introduziu a concorrência

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religiosa explícita através do proselitismo alegra’ (Pv 29:2) […] ao optar pela fé, optei
e da exigência de exclusividade. pela vida. Foi assim que pude enveredar
Naquelas situações sociais, “ser cren- pela política […]. O crescimento espiritual
te” significava romper com a “religião de na fé cristã fez de mim um ser tranqüilo e
família”, abandonar devoções aos santos, preparado para agir diante do conflito. Tran-
interromper ciclos de promessas, romper qüila sim, mas não resignada. A indigna-
também com eventuais ou correntes idas ção faz parte da justiça […]. Vale dizer que
aos terreiros de umbanda e candomblé e se trata do prenúncio de uma resistência
aos centros espíritas. Como contrapartida, que, para milhões de cristãos como eu, soa
sentir-se “escolhido por Deus”. Ter acesso politicamente divina” (16).
à Bíblia. Poder adicionar mais uma rede de Mesmo vistos como “exceções”, os
sociabilidade e ajuda mútua: a “comunida- casos que se deram a conhecer contribuí-
de de irmãos”. Assim como buscar entre ram para questionar a existência de uma
compadres, vizinhos e familiares clientela espécie de “essência” que definiria as de-
para o proselitismo e evangelização. nominações pentecostais “naturalmente”
No caso que estudei, “ser crente” signi- conservadoras ou ausentes da política.
ficava também incluir a possibilidade de Até os anos 70 e 80, entretanto, ainda
transferir as certezas e determinações ad- eram poucos os estudos acadêmicos sobre
quiridas no espaço religioso, sobretudo atra- esta alternativa religiosa. O boom dos estu-
vés de determinadas passagens bíblicas, dos sobre pentecostalismo aconteceu nos
para a “busca de direitos” no Sindicato de anos 90 e passou ao largo dos pares clássi-
Trabalhadores Rurais que, naquela ocasião cos de oposição: alienante x conscientizador
– ali naquele município –, apresentava-se ou conservador x progressista. Os signifi-
como canal de reivindicação dos agriculto- cados políticos do crescimento pentecostal
res. Outros estudos, realizados no campo e vão ser buscados agora através de outros
nas cidades, também analisaram as igrejas nichos, a saber: violência urbana/favelas,
pentecostais como espaços de agregação manipulação/meios de comunicação e –
social onde, muitas vezes, se aprendia a ler invertendo a preocupação anterior de indi-
e, sempre, se perdia a inibição de usar a ferença política – excessiva presença na
palavra em público. política eleitoral.
Em resumo, e sem pretender qualquer
generalização, em determinadas circunstân-
cias sociais, nos anos 70 e 80 a participação
em Igrejas Evangélicas também produziu Os anos 90: os pentecostais se
certos efeitos políticos. Enquanto as CEBs
politizavam categorias religiosas, no mes- tornam visíveis na sociedade e na
mo período e muito mais localizadamente,
pentecostais religiogizavam categorias po- política
líticas e entravam em lutas sociais “em nome
de Jesus”. Muitos casos se tornaram conhe- A expansão pentecostal no Brasil, se-
cidos no processo de democratização do país gundo Freston (1994), pode ser pensada
quando apareceram crentes nos movimen- através de três momentos. Uma primeira
tos por “eleições diretas”, nos Congressos, onda compreende os anos 1910-50, época
para fundar Centrais Sindicais e em vários em que 80% da população brasileira vivia
sindicatos de base. no campo. Nesses anos a expansão se fez,
A trajetória da senadora Benedita da sobretudo, a partir das regiões Norte (atra-
Silva – mulher, negra, favelada e membro vés da denominação Assembléia de Deus) 16 Frases retiradas do artigo “Fé,
da Assembléia de Deus – tornou-se um e Nordeste (Congregação Cristã do Bra- Religião e Política”, assinado
por Benedita da Silva (Jornal
exemplo sempre citado. Segundo suas pró- sil). A segunda, que compreende os anos Soma, no 10, janeiro de 2001).
prias palavras: “Como na Bíblia está escri- 1950-70, tem o pólo irradiador em São Atualmente Benedita da Silva é
vice-governadora do estado do
to que ‘quando o justo governa, o povo se Paulo e coincide com a urbanização e a Rio de Janeiro.

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formação de uma sociedade de massas (por Uma pesquisa realizada em 1992 pelo
exemplo, as denominações Igreja Quadran- Núcleo de Pesquisa do Instituto de Estudos
gular e Brasil para Cristo, Deus é Amor). A da Religião (Iser), sob a coordenação do
última começou no final dos anos 70 e tem antropólogo Rubem César Fernandes, na
berço carioca, coincidindo com a moderni- área metropolitana do Rio de Janeiro, cons-
zação autoritária do país, principalmente tatou a existência de 4.000 instituições evan-
na área das comunicações e, também, com gélicas nessa área. Com o objetivo de ava-
a derrocada do milagre econômico (entre liar o ritmo desse crescimento, recorreu-se
elas se destacam a Igreja Universal do Reino a registros publicados pelo Diário Oficial
de Deus, fundada em1977, e a Igreja Inter- (17) nos três anos anteriores. Os resultados
nacional da Graça de Deus, fundada em desse levantamento foram surpreendentes:
1980). nesses anos, mais de cinco novas igrejas
Hoje, são muitas e contraditórias entre foram fundadas e registradas por semana,
si as imagens sobre os “evangélicos” que ou seja mais do que uma igreja por dia útil.
circulam na sociedade. Por um lado, o ba- E, entre as 710 igrejas fundadas, durante
rulho dos templos incomoda os vizinhos e três anos, e circunscritas à cidade do Rio de
o proselitismo constante é motivo de pia- Janeiro e sua periferia, nada menos do que
das. A exigência de contribuição financei- 91,26% são pentecostais e 80% delas se
ra – o dízimo – é alvo de crítica externa e localizam nas áreas mais carentes. Em ou-
também é um obstáculo que afasta potenci- tras palavras, na região metropolitana do
ais adeptos. Aos “pastores”, geralmente sem Rio de Janeiro, quanto mais pobre é a área,
formação escolar e teológica, reserva-se a menos católica ela continua sendo e mais
desconfiança de charlatanismo e de “mani- pentecostal ela se torna. Quanto à relação
pulação” da boa-fé popular. Aos seus se- com o local, outro dado da mesma pesquisa
guidores atribui-se ignorância ou certa in- chama atenção: entre 52 denominações ali
genuidade que – ao fim e ao cabo – desqua- descritas nada menos do que 30 foram cri-
lifica sua opção religiosa. adas no Rio de Janeiro, isto é, inauguravam
17 No Brasil as instituições religio- Mas, por outro lado, e ao mesmo tem- uma nova denominação nascida em solo
sas que querem se instituciona-
lizar devem se registrar em um po, há donas de casa católicas que buscam carioca.
organismo de estado; esse re-
gistro deve ser publicado no
agências especializadas em empregadas No caso do Rio de Janeiro, como se sabe,
Diário Oficial que, no caso do domésticas evangélicas. Há desemprega- o clima de insegurança e medo é produto de
Censo Institucional Evangélico,
tornou-se uma fonte de pesqui- dos que se valem de sua filiação religiosa uma conjugação de fatores. O narcotráfico
sa. como um atributo positivo a mais na dispu- internacional, os escusos interesses políti-
18 Já em 1985, em um artigo ta por postos de trabalho. Em igrejas evan- cos e econômicos, a corrupção no interior
publicado sobre a carreira dos
“bandidos”, no bairro periféri- gélicas funcionam escolas, cursos supleti- das instituições policiais somam-se ao de-
co carioca chamado Cidade
de Deus, Zaluar escreveu: “As vos, postos de atendimento de saúde. As semprego estrutural, e têm seus efeitos
poucas histórias de regenera- curas e exorcismos, muitas vezes, substitu- potencializados em espaços onde há ausên-
ção que ouvi contar passavam
por sessões de cura em igrejas em médicos e psiquiatras. cia de instituições escolares e políticas de
pentecostais ou uma conversão
radical e dramática à igreja
De fato, hoje, quando se fala sobre os saúde. É nesse cenário que a conversão re-
dos crentes, o que implicava o pentecostais, fala-se dos “pobres” nas ci- ligiosa se destaca. O expediente de “aceitar
abandono das coisas do dia-
bo (as festas, a bebida, o sam- dades. Fala-se de um Brasil que chegou ao Jesus” para deixar o mundo do crime, evi-
ba, a umbanda, os amigos as- final do século XX com menos de 30% da tando retaliações, ampliou-se significati-
saltantes, a arma de fogo,
etc.)”. Anos depois a imprensa população brasileira no campo e mais de vamente nos últimos quinze anos (18). As
passou a divulgar casos de con-
versão de chefes de áreas do 70% na cidade, principal locus de reprodu- conversões misturam sentimentos religio-
tráfico. O número 1 da Revista ção de desigualdades sociais. Se é verdade sos e senso de oportunidade de quem co-
Vinde, “A revista Gospel do
Brasil”, de novembro de 1995, que o pentecostalismo no Brasil não cresce nhece o mundo a seu redor. Com a conver-
por exemplo, destacou em sua
capa a seguinte matéria: “José
apenas nas camadas populares, existindo são, através da “graça de Deus, se renas-
Carlos Gregório, o Gordo, ex- entre seus adeptos grupos e pessoas defini- ce”. Começar nova vida é esquecer tudo
líder do Comando Vermelho,
conta como se converteu”. O das como de “classe média” e até como que se fez e, principalmente, tudo que o
papel dos evangélicos nos “empresários”, é nas áreas pobres que igre- convertido viu outros fazerem. Templos
presídios já tem sido bastante
anunciado pela imprensa. jas pentecostais se alastram. evangélicos têm funcionado como sinais

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sagrados em territórios minados. De certa que vieram nos anos de industrialização
forma eles ajudam a evitar que se homoge- usaram principalmente o rádio para trans-
neíze a visão desses espaços como “luga- mitir suas mensagens. Depois as igrejas
res que só têm bandidos”. Em uma grande acompanharam a dinâmica das concessões
e conhecida favela do Rio de Janeiro, logo de rádio e TV – sobretudo as feitas durante
na entrada há um novo monumento: uma a ditadura militar –, que desenharam a es-
grande e colorida Bíblia. trutura atual dos meios de comunicação no
Certamente, pode se tratar de um fenô- Brasil. As denominações fundadas no final
meno de mão dupla. Conhecendo essa pos- dos anos 70, desde o início, fizeram uso
sibilidade de “limpar o terreno” através da intensivo dos meios de comunicação de
religião, os próprios contraventores podem massa.
fazer uso de igrejas e submeter pastores. O Cultos, curas, testemunhos, pregações
que, sem dúvida, acaba fragilizando a to- podem hoje ser acompanhados ao vivo pelo
dos. Contudo, até agora, segundo informa- rádio, pela televisão. Transmite-se a dis-
ções de pesquisas, ainda predomina o efei- tância a palavra da Bíblia e a emoção de-
to de agregação social e ajuda mútua. Além correntes da “presença do Espírito Santo”.
de modificar o rumo de trajetórias e de Na TV, as imagens transmitidas mostram
aumentar o estoque de “auto-estima” dos pastores e fiéis que têm a cara do “povo
moradores, hoje também já são percebidas brasileiro”. São eles que falam da Bíblia e
presenças evangélicas na construção/re- a relacionam com questões da “vida real”:
construção do associativismo local. No Rio desemprego, falta de dinheiro, problemas
de Janeiro já há um número significativo afetivos, traições, alcoolismo, drogas. Nes-
de pastores e fiéis evangélicos na liderança se sentido, são mais fáceis de ser “produzi-
de organizações locais (associações de dos” pois dispensam requisitos do ritualis-
moradores e centros comunitários) em fa- mo, exigidos – por exemplo – na transmis-
velas (19). são da missa católica
Em síntese: os evangélicos são os que Também a segmentação e a autonomia
mais chegam às margens da sociedade. das denominações protestantes, históricas
Chegam a lugares onde nenhuma outra ins- e/ou pentecostais favorecem o uso ágil dos
tituição civil ou religiosa ousa se aproxi- meios de comunicação de massa. Para quem
mar. Essa presença, nas margens periféri- assiste nem sempre estão claras as diferen-
cas da sociedade, representa um expedien- ças entre as várias denominações indepen-
te de ordenação social. Mesmo sendo ex- dentes entre si. Através da televisão se faz
plicada por “falta” (de presença de estado, um involuntário ecumenismo interdenomi-
de educação cívica, de emprego, etc.), che- nacional. Mesmo sem intenção de coope-
ga a produzir alívio, sobretudo em autori- ração ou diálogo entre denominações, do
dades políticas responsáveis pela seguran- ponto de vista dos receptores, e no cômpu-
ça pública. Porém, como os pentecostais to geral, umas favorecem às outras, o con-
não estão apenas nas margens – estão tam- junto ganha em visibilidade. É verdade que
bém no centro, isto é, nos meios de comu- umas denominações também podem dene-
nicação e no Parlamento –, também cau- grir as imagens das outras. Anões do orça-
sam preocupação. mento ou os escândalos que envolvem os 19 Nas favelas de Nova Divinéia
e Formiga, na zona norte do
negócios do bispo Edir Macedo, da Igreja Rio de Janeiro, as duas princi-
pais lideranças são mulheres
Universal do Reino de Deus, acusados de evangélicas. Interessante notar
corrupção e enriquecimento ilícito, desgas- que quando o assunto é a “co-
Os evangélicos no rádio e na TV tam os “evangélicos” em geral. No entan-
munidade” (interesses coleti-
vos) ninguém fala sobre ser es-
pírita, da umbanda ou do can-
to, justamente porque – diferentemente do domblé. No entanto, para fa-
A história do pentecostalismo no Brasil que ocorre com a unidade sacramental e lar de “comunidade”, via de
regra, fazem-se referências ao
acompanha de perto a evolução de nossas hierárquica da Igreja Católica –, como as apoio da Igreja Católica ou
telecomunicações. As igrejas pentecostais denominações pentecostais são muitas, de padres católicos ou a pas-
tores ou líderes locais que são
que aqui chegaram no início do século e as autônomas e diversas, não há escândalos evangélicos.

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que possam atingir ao mesmo tempo e da
mesma forma todo o conjunto. Sempre é
Os templos como celeiros de votos
possível dizer: “Aqui é diferente”, “Isto é
perseguição dos poderosos contra os cren- A visibilidade dos evangélicos na políti-
tes”, “É uma perseguição do Papa”. Por ca veio junto com a reformulação da Cons-
outro lado, a despeito da TV, as pesquisas tituição Brasileira de 1988. Toda uma mobi-
mostram que a grande maioria das conver- lização foi feita diante da suspeita de que a
sões se fazem através de mediadores de nova Constituição poderia declarar o Brasil
carne e osso. Ou seja, parece valer mais o como um país oficialmente católico. Elege-
“testemunho” de pessoas já convertidas ram 32 deputados federais em 1986. Esse
pertencentes a redes de relações pessoais grupo, com exceção de seis deputados iden-
de vizinhança, de parentesco e de amizade. tificados como de esquerda ou de centro-
Em outras palavras, existem os dispositi- esquerda, compôs a conservadora “bancada
vos culturais preexistentes que são canais evangélica”, que funcionou, sobretudo, para
para levar “os que estão sofrendo”, “os votar questões consideradas de interesse das
aflitos”, aos cultos. A existência dessas várias denominações que a compunham.
redes de sociabilidade – que são freqüente- Contudo, embora as denominações conti-
mente acionadas nas conversões – permite nuassem crescendo, o êxito eleitoral na elei-
relativizar as preocupações com a “lava- ção seguinte não foi o mesmo. Para a
gem celebral” que estaria ocorrendo atra- legislatura de 1990 foram eleitos 23 deputa-
vés do rádio e da TV. dos. Já em 1994 o número subiu para 30
É verdade que a dobradinha “religião e congressistas (26 deputados e 4 senadores).
mídia” pode ser poderosa. Como fontes Entre as denominações dos eleitos em
doadoras de sentido para a vida, são dois 1994, destacou-se a Igreja Universal. Pes-
terrenos férteis para fabricações de signi- quisa realizada pelo Iser em 1994, entre
ficados. Mas o movimento nunca é de mão fiéis evangélicos, já indicava que os fiéis
única. A mídia não uniformiza a socieda- da Universal superam (78%) as outras de-
de, apagando as diferenças entre pessoas nominações evangélicas (56%) na opinião
com experiências e identidades diversas. a respeito da questão: “o político que traz
Ninguém ouve emissões de rádio, ou as- benefícios para minha Igreja merece meu
siste a programas de televisão, como se voto”. Esse mesmo padrão se repete quan-
fosse uma folha de papel em branco. A do a questão é se “o político evangélico é
idéia de uma mídia todo-poderosa, como mais confiável e honesto do que os políti-
sabemos, traz consigo a preconceituosa cos em geral”.
pressuposição de que os espaços popula- Entre as demais denominações, a Uni-
res são vazios de relações sociais e total- versal inaugurou um novo estilo de fazer
mente predispostos à manipulação. Os política nas igrejas. Trata-se de um “corpo-
receptores das mensagens fazem escolhas rativismo religioso” que, se explica as mu-
e interpretam o que vêem a partir de sua danças nos apoios dados/recebidos pela
própria posição de classe, trajetória de Igreja Universal do Reino de Deus, dificul-
vida, experiência religiosa e necessidades ta um enquadramento definitivo da igreja
do momento. no espectro ideológico do quadro partidá-
Portanto, mesmo sem descartar a rele- rio. Depois de apoiar Collor em 1989, nas
vância da mídia no crescimento pentecostal eleições nacionais de 1994, a Folha Univer-
(ou no sucesso de padre Marcelo com suas sal demonizou a candidatura Lula que, a seu
ofertas de alegria e emoção carismática), o ver, era, de uma só vez, comunista e ligada
resultado não é homogêneo, linear e cumu- à Igreja Católica. Na ocasião deu um apoio
lativo. Valores e sentimentos provenientes morno a Fernando Henrique. Já em 1998,
de outras agências socializadoras também após confrontos com o governo federal em
entram no jogo, na disputa por adesão reli- questões que atingiam a “liberdade” das
giosa e/ou política. Igrejas Evangélicas, a Folha Universal não

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fez campanha contra Fernando Henrique, federais, além de 26 deputados estaduais
mas o governo recebeu críticas nas questões em 17 estados e no Distrito Federal.
sociais como desemprego, educação e seca Essas inovações da Igreja Universal, por
no Nordeste. Na mesma ocasião, a Folha outro lado, produziram efeitos em outras
Universal entrevistou Enéas, Brizola e duas Igrejas Evangélicas e até mesmo entre can-
vezes Lula. Segundo Conrado (2000, p. 24), didatos católicos. Em 2000, nas últimas
a maior novidade nessa campanha foi a eleições para vereadores, vários candida-
veiculação de uma outra imagem de Lula. A tos declinaram suas religiões nos guias elei-
edição número 317 da Folha Universal des- torais. Isto é, a ofensiva da Universal na
creve Lula: política produziu efeitos no campo religio-
so, de certa forma está levando a modifica-
“Com uma bagagem política muito mais ções no padrão anterior através do qual se
farta e sem a radicalidade que o fez perder fazia política dentro das igrejas (mesmo
muitas oportunidades nas eleições passa- quando se afirmava o tempo todo que “na
das, o candidato do Partido dos Trabalha- igreja não se fala de política”). Contudo,
dores entra na briga pelas urnas este ano apesar de todo esse sucesso, os votos dos
com chances maiores de vencer […]. Com “evangélicos em geral” não são como “fa-
uma consciência de classe bem definida e vas contadas”. Para prever o peso do elei-
possuidor de uma franqueza e força pouco torado evangélico, deve-se levar em conta,
vistas em outros políticos, Lula se encaixa pelo menos, quatro aspectos:
no estereótipo que o partido e o povo dese-
jam […]. Ao contrário do que aconteceu 1) Segmentação constante, lealdades
nas eleições passadas, Lula mostra-se bem múltiplas. Vinte anos depois do início da
mais afinado com as questões religiosas e terceira onda pentecostal, o conjunto dos
até disposto a ouvir o povo evangélico”. evangélicos se apresenta hoje como um
complexo mosaico. Há disputas entre as
Lamentavelmente, não há dados sobre denominações. As tentativas de articulá-
como votaram nas últimas eleições para las em organismos têm esbarrado em vá-
presidente os fiéis da Igreja Universal. rias dificuldades. Além das denominações
Conrado (2000) chega a dizer que uma parte grandes e conhecidas há um imenso con-
dos fiéis da Universal no Rio de Janeiro – junto de microdenominações independen-
levando em conta a aliança PT-PDT que tes entre si. Em muitas situações se resu-
veio a unir dois evangélicos, Benedita da mem a “ponto de culto” localizado em ca-
Silva e Anthony Garotinho – votou em Lula. sas ou salas em uma favela ou bairro peri-
Mas, se isso aconteceu, nada garante que férico. É possível que esses fiéis evangéli-
aconteça de novo. Outra eleição será outra cos busquem por iniciativa própria e/ou do
história. pastor votar em candidatos evangélicos. No
No entanto, se a igreja não tem inves- entanto, nada garante que outros tipos de
tido seu poder de persuasão nas campanhas pertencimentos, lealdades e adesões fami-
majoritárias, as candidaturas proporcionais liares e/ou locais não influenciem os votos
têm sido muito bem-cuidadas. Programas dos membros da igreja. Em resumo, não há
de TV, matérias em seu jornal A Folha garantia de consensos entre denominações,
Universal (20), reuniões em igrejas para nem de que evangélicos votem necessaria-
discutir eleições, distribuição espacial de mente de acordo com a orientação do pas-
candidaturas para vereador, deputado esta- tor, nem podemos dizer que evangélicos
dual e federal em torno de templos são votam sempre em evangélicos.
exemplos de expedientes da Universal. Tais
investimentos surtem efeitos. No conjun- 2) Eleições proporcionais, eleições 20 Ver Conrado (2000) para uma
análise do conteúdo da Folha
to, em 1998 foram eleitos 43 parlamenta- majoritárias. Também não há garantia de Universal por ocasião da elei-
res evangélicos, só a Igreja Universal do que o atributo “evangélico” resulte em um ção de 1998. Sobre evangé-
licos e os meios de comunica-
Reino de Deus elegeu 15 representantes diferencial positivo para a imagem de um ção ver Fonseca (1997).

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candidato a uma eleição majoritária. Por porque há muitas e simultâneas ofertas de
um lado, há uma imagem ambivalente dos pertencimento religioso entre as denomi-
evangélicos na sociedade que combina res- nações evangélicas: muda-se com facilida-
peito com desconfiança (21). Por outro lado, de de “pastores”, de templos e mesmo de
se em uma eleição para deputado estadual denominações. Nesse sentido, compreen-
ou federal pode-se falar – a partir de refe- de-se por que dentro das igrejas as estima-
rências bíblicas – sobre os interesses das tivas eleitorais são menos otimistas do que
Igrejas Evangélicas que são “perseguidas” parecem ser (22) e por que – passadas as
pelas autoridades, em maioria católicas, este eleições – não há perguntas e/ou cobranças
argumento perde sua eficácia em uma elei- sobre os votos dos fiéis.
ção majoritária. Afinal prefeitos, governa-
dores e presidentes devem governar para Frente a essas virtualidades, resta saber
todos. como avaliar o impacto do chamado “voto
evangélico” na chamada “cultura política
3) “É evangélico” e… o que mais? O brasileira”. Para responder a esta indaga-
peso deste atributo “ser evangélico” só ção, vale fazer outra pergunta já esboçada
pode ser avaliado em relação com outras acima. Como votariam esses eleitores-ci-
variáveis do jogo político no momento dadãos brasileiros-evangélicos se não vo-
eleitoral. Cada eleição apresenta uma con- tassem nos candidatos indicados por suas
figuração dos aliados e opositores deter- igrejas? No geral, quando não se faz essas
minantes na disputa em questão. Por perguntas, relaciona-se esses votos – reli-
exemplo, Anthony Garotinho, governa- giosamente motivados – com um “retro-
dor do Rio de Janeiro, é evangélico. É cesso” da democracia republicana. É como
possível que os votos evangélicos tenham se “os evangélicos” tivessem chegado para
sido o “diferencial” que o fez vencer. Mas desmanchar sólidas e generalizadas práti-
esses votos foram somados a outros con- cas de participação democráticas preexis-
seguidos por outras vinculações e pela tentes. É como se a maioria de nossos elei-
configuração de seus adversários daque- tores votasse de acordo com os preceitos
le momento. Portanto, analisar as chan- cívicos contidos nos manuais da ciência
ces de candidatos evangélicos a prefeito, política levando em conta programas e
governador ou presidente da República partidos. Será o “fundamentalismo evan-
exige análise do quadro partidário, das gélico” o vilão que está nos distanciando
alianças possíveis e dos diferentes perfis da República de nossos sonhos?
do eleitor brasileiro em geral e evangéli- A mesma questão pode ser vista de outro
co, em particular. ângulo. Os evangélicos pentecostais, como
já foi afirmado, estão sobretudo em seg-
4) Diferenças entre clientelismo políti- mentos da população brasileira onde pre-
co e religioso. No contexto eleitoral, se é domina o desemprego, a falta de escolari-
possível identificar a existência de um cer- dade, a insegurança. Observação e entre-
to tipo de “clientelismo religioso”, sua des- vistas revelam que para muitos evangéli-
crição deve levar em conta a especificidade cos a participação na Igreja Universal do
da instituição em pauta. Diferentemente do Reino de Deus representa a primeira expe-
clientelismo político, caracterizado pela riência de “conversar sobre política”, de
manutenção do “curral eleitoral” do coro- valorizar o voto como escolha baseada em
nel e da troca de voto por proteção e/ou programas e interesses. Para muitos a Fo-
21 Há sempre alguém a lembrar
os “anões do orçamento”, pro- dinheiro, o poder dos pastores é de outro lha Universal, distribuída gratuitamente, é
cesso de desvio de verbas em tipo. A Igrejas Evangélicas atuam em um o único jornal onde já leram sobre “política
que – entre os acusados – esta-
vam deputados evangélicos. terreno em que a escolha individual e a do país”. Assim como a Folha Universal é
22 Segundo informação obtida por adesão voluntária são as idéias fortes. Atra- um veículo de constante “prestação de con-
Conrado (2000) trabalha-se vés delas se produzem conversões e se tas” dos eleitos aos seus eleitores (ver Fon-
com a expectativa de 20% de
votos de fiéis de cada Igreja. mantém a participação dos fiéis. Mesmo seca, 1997).

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Argumentando, ainda, sobre a necessi- e na telinha da televisão. Fazem sucesso
dade de se evitar comparações entre o Bra- programas de entrevistas e debates que con-
sil real e um Brasil ideal, podemos obser- vidam o ex- dominicano Leonardo Boff, o
var mais um outro aspecto da mesma ques- best-seller Paulo Coelho, ecologistas espi-
tão. Não é por acaso que a cada eleição vem ritualizados e personagens do mundo
aumentando o interesse de todos os parti- esotérico.
dos e candidatos pelo eleitor evangélico. O Por outro lado, para além da Rede Vida
interesse também vem da constatação de e do padre Marcelo, o catolicismo também
que é baixo o índice de participação de faz sua peculiar “política” através da mídia.
brasileiros em partidos, sindicatos e asso- A imagem do papa João Paulo II é extre-
ciações civis. Onde encontrá-los congre- mamente conhecida no mundo todo atra-
gados no período eleitoral? As Igrejas Evan- vés da televisão. O polonês, filho de traba-
gélicas têm alto índice de freqüência e são lhadores braçais e primeiro papa vindo de
vistas como celeiros de eleitores congrega- fora da Itália em 450 anos, ficou conhecido
dos. E, de fato, se olharmos em nossa volta, através de suas viagens fartamente cober-
veremos que não há outra instituição que tas pela imprensa mundial. E, a despeito da
reúna tantas vezes as mesmas pessoas na disciplina rígida imposta aos teólogos con-
mesma semana. siderados dissidentes e de suas posições
Assim sendo, a despeito de todas estas acerca da ordenação religiosa feminina, do
ressalvas relativizadoras sobre o peso do aborto, do uso de anticoncepcionais, des-
“voto evangélico”, é preciso reconhecer que perta simpatia entre jovens em várias par-
os espaços de agregação de evangélicos fa- tes do mundo.
zem hoje diferença no jogo eleitoral. Ain- Com efeito, através de viagens e visitas
da que as possibilidades de sucesso de can- recebidas, a Igreja Católica esteve presente
didatos evangélicos dependam, também, em momentos-chaves da política interna-
das experiências pessoais e de outros vín- cional. Anos depois de apoiar o sindicato
culos políticos que cada fiel-eleitor possa polonês Solidariedade, já em novembro de
ou não ter paralelamente, “ser evangélico” 1989, o papa, antes de ir aos Estados Uni-
tornou-se uma nova variável. Uma impor- dos, recebeu uma importante visita. Mikhail
tante variável entre outras que configuram Gorbatchov – na época secretário- geral do
as relações entre campo político e no cam- Partido Comunista da União Soviética –
po religioso. em plena glasnost parou em Roma para uma
audiência com João Paulo II. Em janeiro de
1998, o papa visitou Cuba. Após a passa-
gem do papa, o comunismo da ilha não caiu,
PARA CONCLUIR: TRÊS PONTOS como desejavam cubanos exilados e, tal-
vez, os poucos e mais aguerridos represen-
PARA UMA AGENDA DE PESQUISA tantes da Renovação Carismática Católica
no Brasil. Talvez a imagem da ilha socia-
lista tenha até melhorado, afinal todas as
TVs do mundo fizeram reportagens com
Política e religião: disputas e imagens de povo caloroso que tomou as
ruas. A figura do Santo Papa, representante
ofertas via mídia de Deus, ao lado de Fidel Castro, para
muitos a própria encarnação do demônio,
Há muito tempo católicos, evangélicos, produziu significativos efeitos visuais. Para
afro-brasileiros e espíritas têm seus pro- orgulho de alguns católicos ligados à Teo-
gramas de rádio. Agora, bem de acordo com logia da Libertação, com os quais conver-
o “espírito da época”, também a religiosi- sei, todas as emissoras transmitiram olha-
dade “nova era” (não-institucional e difu- res respeitosos, apertos de mãos e cenas de
sa) se faz presente em programas de rádio conversas amenas entre dois carismáticos

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CARSIMÁTICOS
septuagenários. A força das imagens en- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
fraquecia o poder de persuasão dos locuto- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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res e entrevistados mais críticos ao regime 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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cubano. As visitas mais recentes vão no 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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mesmo sentido, não são inconseqüentes 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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para o fortalecimento institucional da Igre- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
ja Católica e sua eficácia está diretamente 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
relacionada à repercussão na imprensa. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
Não fosse a circulação de imagens como 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
essas pela TV, a presença do catolicismo 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
no mundo não seria a mesma. No Brasil, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
em 1992, muitos católicos com diferentes 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
níveis de participação na igreja se emocio- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
naram com a presença do papa no Brasil, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
na cidade, dentro de sua casa, bem à manei- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
ra pentecostal. Nessa ocasião registrei casos 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
de pedidos feitos por católicos e umbandistas 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
ao papa, através do aparelho de televisão, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
naquele momento sacralizada. E como a TV 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
não garante “reserva de mercado” religioso, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
nessa mesma ocasião entrevistei uma senho- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012

PENTECOSTAIS
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
ra de 60 anos, ativa participante da Igreja 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
Universal do Reino de Deus que, após me 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
contar sobre as observações críticas de seu 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
pastor sobre a vinda do papa ao Rio de Janei- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
ro, fez longos comentários sobre o que ela 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
tinha visto e ouvido o papa falar em sua casa,

CATÓLICOS
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
pela televisão. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
Sem dúvida, os meios de comunicação 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
revolucionaram a política. Manipulações e 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
circulação de informações andam juntas. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
Para o bem ou para o mal, não há política 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
sem mídia. Também as religiões não seri- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
am as mesmas sem o uso que fazem da 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
mídia. Na televisão há um cardápio religio- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
so para a escolha do telespectador. Pela 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
mídia circulam ofertas de símbolos e 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
pertencimentos religiosos. Cada qual a seu 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
modo, católicos e pentecostais tiram van- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
tagem do lugar destacado que a televisão 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
ocupa no cotidiano dos brasileiros. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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Porém, faltam pesquisas que deixem de 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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recortar seu objetos, como se só os evangé- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
licos estivessem na mídia. Há diferenças 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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de graus de proselitismo, de situação do- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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minante ou minoritária no campo religio- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
so, de estilo. Mesmo porque, enquanto a 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
palavra é fundamental no cristianismo 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
evangélico, são os rituais que fazem o ci- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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123456789012345678901234567890121234567890123456789012
mento do pertencimento católico. Mas, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012
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mesmo considerando as formas diversas de 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

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uso do rádio e da televisão por religiões e vernos civis, a Pastoral Social e as CEBs
grupos religiosos diferentes, seria necessá- sempre produzem cartilhas que buscam in-
rio investigar como se produzem interpre- centivar o “voto consciente”. Encontra-se,
tações e apropriações, em uma mesma con- a cada dia, expedientes para fortalecer re-
juntura e configuração social, consideran- presentações e práticas presentes no Parti-
do como receptores pessoas pertencentes a do dos Trabalhadores (o PT) e, ao mesmo
mesmo segmento social. Só assim seria tempo, não se identificar totalmente com
possível conhecer melhor a eficácia da ele. Por outro lado, os carismáticos ainda
mídia religiosa para reforçar ou modificar não fizeram bem visíveis suas intenções de
valores religiosos e/ou para obstaculizar ou influenciar na política. Talvez ainda lhes
motivar formas de participação social. falte suficiente “convicção de competên-
cia”, que é – sem dúvida – mais fácil de ser
construída entre setores cristãos que po-
dem acionar mais imediatamente as ima-
Voto e religião gens do “povo de Deus perseguido” em
busca de Justiça.
Com variações surpreendentes em ter- No que diz respeito aos evangélicos, é
mos de perfil ideológico de candidatos e verdade que hoje podemos dizer que as li-
partidos, instâncias da Igreja Católica, de- gações entre religião e votos são mais dire-
nominações evangélicas históricas (e mes- tas. Como já foi dito, aliam o sentimento de
mo líderes das religiões espíritas e afro- perseguição dos “escolhidos por Deus” com
brasileiras que não tratamos no decorrer a assiduidade, a freqüência ao templo, a
deste artigo), ao longo do tempo, participa- ênfase na palavra (leitura, comentário, tes-
ram e modificaram circunstanciais acordos temunho), que aproximam a religião com o
eleitorais. Para além das diferenças entre calendário da vida real. Contudo, é preciso
as religiões – no tempo e no espaço – há um lembrar que não há um centro que respon-
denominador comum. Os vários tipos de da por todos. Não há quem possa dizer que
“funcionários religiosos” sabem que nos controle a capilaridade das novas denomi-
templos, nas igrejas (centros e terreiros) nações autônomas e independentes entre
não se faz política da mesma maneira que si. Se não é fácil entender esse fenômeno
se faz no partido ou no sindicato. A eficácia que às vezes parece ser único, orgânico e
da política no espaço religioso implica a poderoso e, outras vezes, parece ser múlti-
busca de manutenção dos laços religiosos plo, segmentado e frágil, mais difícil ainda
que unem aqueles que partilham da mesma é prever suas conseqüências políticas elei-
fé. Caso contrário enfraquece-se a “comu- torais.
nidade religiosa” colocando em risco sua Em termos de pesquisa, vale a pena
razão de ser. acompanhar os votos dos evangélicos, ca-
Assim, a “unidade católica” comporta tólicos das CEBs e Pastorais e católicos
diferentes leituras dos “sinais dos tempos” carismáticos nas próximas eleições. Mas,
e da participação política. Una e múltipla, além de suas declarações de voto, seria
a Igreja Católica, sob o controle potencial importante indagar se e como escolheram
de Roma, tendo como referência a “Doutri- candidatos em eleições passadas, como seus
na Social da Igreja”, suporta diversidade vizinhos e familiares escolhem em quem
no que diz respeito à ação pastoral e às votar…
maneiras de articular Fé e Política. No de-
correr dos anos, várias instâncias da Igreja
Católica, a exemplo da Liga Eleitoral Ca-
tólica (LEC), influenciaram no voto de seus A Bíblia nas mãos do “povo”
fiéis. Assim como, durante o processo de
abertura democrática e também em todas “O padre, o Juiz, o promotor, o delegado
as eleições que ocorreram nesses três go- de polícia, todas as autoridades dependem

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do grande senhor de terras que rodeiam as vivendo no Inferno, que vendeu um mi-
cidades. Quando começamos a defender os lhão de cópias: “Refrige minha alma, guia-
camponeses os vigários mais reacionários me pelo caminho da Justiça”, dizem, em
começavam a denunciar que se tratava de coro. Os salmos bíblicos permeando mú-
uma coisa perigosa, contra a religião e con- sicas de protesto concebidas na ótica das
tra Deus. Vi muitos camponeses preocupa- favelas e periferias (onde o Estado é pou-
dos em perder a alma, não poder batizar os co e as violências são muitas).
filhos, casar na igreja […]. A religião pro-
testante era ainda muito perseguida no Bra-
sil. Então eu dizia a eles: ‘Vocês são a re- “Deus fez o mar, as árvores, as crianças e o
ligião oprimida. Os camponeses também amor.
estão sendo oprimidos. Por que não se jun- O homem lhe deu favela, o crack, as armas,
tam comigo para fazer um trabalho no cam- a bebida, as putas.
po? Podem cantar seus hinos, recitem seus Eu tenho a Bíblia e a pistola automática.
trechos de grandes profetas… Peguem a Estou tentando sair desse inferno”
Bíblia que eu vou com o código civil’. Isto (vinheta falada na faixa “Gênesis”).
deu certo, em pouco tempo os camponeses
encheram este vazio, mesmo sendo analfa- Se, como afirma Geertz (1978), a reli-
betos recebiam a Bíblia”. gião é uma fonte de concepções gerais que
ultrapassam o contexto especificamente
São do falecido ex-deputado pernam- religioso, fornecendo um arcabouço de
bucano Francisco Julião estas afirmações idéias que dão forma significativa a uma
sobre a importância do Código Civil e da parte da experiência intelectual, moral e
Bíblia para a mobilização dos campone- emocional dos agentes sociais, é preciso
ses nos anos 60. Os pentecostais já foram atentar especificamente para o lugar da
chamados de “os Bíblias”. Como se sabe, Bíblia – com seus símbolos e grandes ima-
para ter acesso direto a este livro sagrado gens motoras – na constante invenção de
muitos se motivaram para aprender a ler. novas formas de religiosidade e participa-
Através da Bíblia, em certas situações, “re- ção social. Na era da informação, em pleno
ligiogizam a política”. Por outro lado, a século XXI, a Bíblia continua sendo um
possibilidade de acesso e interpretação da poderoso “recurso cultural” para a com-
Bíblia também é central para a união entre preensão do mundo e para ancorar esco-
Fé e Política proposta pela Teologia da lhas religiosas com efeitos políticos.
23 Segundo Cunha (1993), na Libertação, nas CEBs. Antes, só os padres No Brasil, o fato de a Bíblia ser uma
Jamaica movimentos que ti-
nham vínculos com associa- tinham “direito” à Bíblia. Através dela, fonte de saber religioso socialmente reco-
ções religiosas e igrejas do Sul
dos Estados Unidos e do em certas situações, politizam categorias nhecida, ontem e hoje, por católicos, evan-
Caribe, a partir de uma inter- religiosas. gélicos, afro-brasileiros (24), no campo e
pretação étnica da Bíblia – e
da territorialização do mito bí- Outros exemplos de interpretações na cidade, por bandidos e policiais, por
blico –, realizaram uma ruptu-
mais livres da Bíblia podem ser encontra- moradores do centro e da periferia, por po-
ra radical com toda a ideolo-
gia colonial e protestante que dos em movimentos políticos libertários líticos e eleitores, não é sem conseqüências
durante séculos justificou a es-
cravidão apoiada em interpre- em vários lugares do mundo, como, por para uma análise da configuração do cha-
tações religiosas. exemplo, aquela que está na origem do mado espaço público, para as virtualidades
24 A autonomia dos grupos e de- movimento rastafári (23). No Brasil de da política… Outras pesquisas poderiam
nominações faz muitos arran-
jos possíveis. É o caso de um hoje, além da inspiração bíblica presente trazer mais elementos para melhor análise
grupo de jovens baianos, da
pequena favela da Gamboa em
na assumida “mística” constitutiva do sobre a polifonia da simbologia bíblica que
Salvador, que semanalmente MST, a Bíblia também se faz presente em não se esgota nem como alavanca para a
em seus cultos pentecostais
combinam citações bíblicas outro importante espaço de crítica social: construção de identidades religiosas, nem
com as formas de protesto étni- o movimento hip hop. É só ouvir o último como linguagem e instrumento de nego-
co contido no reggae e ao
rastafarianismo (Cunha, 1993). CD dos Racionais MCs, intitulado Sobre- ciação política.

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