Você está na página 1de 3

Os Bárbaros

no
Ocidente texto de Carlos Fabião
fotografias de António Cunha

O
declínio do Império Roma- da em que não é fácil dizer se houve uma verda-
no do Ocidente e as invasões deira invasão ou uma instalação pactuada. Nes-
bárbaras continuam a ser te último caso, nem será despropositado supor
temas controversos. O sim- que a tolerância demonstrada por uma das par-
ples facto de se convocarem tes em litígio pela púrpura imperial constituiu
estes dois conceitos – “declí- mera opção táctica: remeter os bárbaros para a
nio” e “invasão” – como duas faces da mesma Hispânia, para resolver o problema mais tarde.
moeda diz muito sobre a perspectiva tradicional Convém não perder de vista o impacte desta
que a investigação tende a matizar fortemente. penetração. Estima-se que os contingentes de bár-
A noção de declínio do império está associa- baros, que incluíam mulheres, crianças e idosos,
da à ideia de que o sistema político romano se ou seja, povos em movimento e não hordas gue-
encontrava à beira do colapso. Na realidade, o rreiras, seriam menos de 5% da população dape-
império cristão, fraccionado em duas metades, nínsula. Eram grupos de escassa coesão social,
uma ocidental e outra oriental, e dilacerado por incipientes instituições políticas e escassa capa-
constantes conflitos internos era bem diferente cidade militar. Invadiram um território organi-
do império pagão dos três séculos anteriores. No zado, devidamente governado e ocupado por uma
entanto, em muitas regiões, entre as quais a Penín- população muito mais numerosa, com os centros
sula Ibérica, não se identificam sinais de crise. de poder sedeados em cidades fortificadas.
Quanto às invasões, torna-se necessário As fontes disponíveis são escassas e parciais.
entendê-las no contexto da época. No início do A mais importante, a “Crónica” do bispo Idácio
século V, mais concretamente em Setembro de de Chaves, oferece uma imagem apocalíptica da
409, alanos, vândalos e suevos instalaram-se na situação, ainda que não isenta de elementos con-
península. Vinham das margens do império ro- traditórios. Fala de chacinas e saques, mas tam-
mano, cruzaram a sua fronteira, como tantas vezes bém de uma epidemia de peste e de uma
sucedera anteriormente, aproveitando-se de uma tremenda opressão do fisco e dos militares, o que
guerra civil que então lavrava. Deambulavam pela sugere que as populações locais não estariam
Gália há cerca de três anos e, ao que tudo indica, entregues a si próprias. Sublinhe-se que, para um
constituíam um problema para a região. Esta con- autor cristão da época, o quadro apocalíptico seria
juntura constitui um factor importante, na medi- uma prova de que se cumpriam as profecias.
Em cima, um exemplar exuberante de um frontão, proveniente de Trigaxes (Beja), ostenta uma coroa
funerária envolvendo uma roseta. Duas pombas guardam um fruto em forma de pinha. Desta colu-
na, proveniente de vale de Aguieiro (Beja), conservam-se cachos de uvas e um entrançado de ramos
de videira, alegorias prováveis à cultura vinícola durante a ocupação visigótica do actual Alentejo.
COLUNA, SÉCULO IV/V (À ESQUERDA) E FRONTÃO, SÉCULO IV/V. REPRODUZIDOS o s bá r ba ro s n o o ciden te 21
COM AUTORIZAÇÃO DO NÚCLEO VISIGÓTICO DO MUSEU REGIONAL DE BEJA
Porta de entrada no Guadiana, último recurso navegável por mar, Mértola – ou Mirtylis Iulia – foi
sucessivamente ocupada por romanos, visigodos e, mais tarde, por populações islâmicas. Os epitáfios
22 nat i onal ge o g r aphic • abr il 2 008 funerários ali encontrados dão conta de uma sociedade cosmopolita e aberta.,
Seguiu-se um conturbado período, marcado dos do século VI, o império do Oriente, sob o poder. Verificamos que continuam a chegar a estas Montinho das Laranjeiras (Alcoutim), Monte da
por confrontos pontuados por intervenções de governo de Justiniano, empreendeu tentativas de paragens ocidentais as cerâmicas finas e as ânfo- Cegonha (Vidigueira), Silveirona (Estremoz) ou
tropas imperiais, acompanhadas por visigodos, recomposição da velha unidade, com expedições ras, fabricadas no Norte de África, já sob o domí- Torre de Palma (Monforte). Apesar de destruições
que serviam então nos exércitos do império, não sobre a Itália, o Norte de África e Península Ibé- nio vândalo, mas sem quebras assinaláveis na e abandonos, houve continuidade dos modelos
faltando intervenções de altos dignitários da Igre- rica. Neste último território, acabaria por se cons- exportação. Do Oriente, chegavam também cerâ- de povoamento da época romana, pelo menos
ja na mediação dos conflitos. Os vândalos, que tituir uma nova província, a Spania, confinada às micas finas e ânforas, difundidas pelas áreas cos- até meados do século VI.
tinham assimilado o que restava dos alanos, aca- orlas costeiras levantina e meridional. teiras do velho império até paragens distantes. A conjugação de dados arqueológicos e literá-
baram por passar ao Norte de África, em 429, onde Este é o cenário histórico dos “séculos obscu- No espaço hoje português, a presença destes rios revela uma Península Ibérica aberta e integra-
se fixaram. Na Península Ibérica, constituiu-se um ros”. O registo arqueológico, porém, oferece uma artigos exóticos não se confina aos centros do lito- da nas redes de circulação de mercadorias, mas
reino suevo no Noroeste, com a capital em Bra- perspectiva distinta. Por exemplo, o bispo Idácio ral. Estão também documentados em locais de também de gentes e ideias. É evidente que os pre-
cara (Braga), e o restante território parece ter ficar afirma que, em 468 a cidade de Conímbriga foi interior e em núcleos rurais. Não só se mantin- lados peninsulares acompanham e participam
entregue a si próprio, mantendo as suas formas saqueada e que a região se transformou num ha a função redistribuidora das cidades, como nas polémicas teológicas do seu tempo. Um João
de organização e governo, sob um vago protec- deserto. No entanto, a investigação arqueológica permaneceria intacta a rede de comunicações que de Bíclara, natural de Santarém, onde nasceu em
torado visigodo. Entretanto, o império romano não o confirma e, sabemo-lo por outras fontes, a sustentava. Estas cerâmicas encontra- meados do século VI, estudou em Cons-
do Ocidente desagregou-se em 476. a cidade era ainda sede de bispado em meados das em escavações arqueológicas são tantinopla antes de regressar ao
Depois de batidos pelos francos, os visigodos do século VI, como sedes episcopais eram tam- apenas a ponta de um icebergue Ocidente e desempenhar impor-
confinaram-se ao espaço peninsular, onde man- bém muitas das antigas cidades que, tudo o indi- comercial, que incluiria outros tantes funções eclesiásticas.
tiveram relações tensas com os suevos. Em mea- ca, continuavam a ser os principais centros de artigos perecíveis, cuja Outra personalidade relevan-
existência conhecemos por te da época, Martinho de
ROTEIROS SUÉVICOS E VISIGODOS referências na literatura da Dume, natural da Panónia
No roteiro nacional dos lugares relevantes época. De que modo (na actual Hungria), fixou-
da Antiguidade Tardia, assumem especial participava o Ocidente se na corte sueva, também
relevo, de norte para sul:
da Península Ibérica nesta em meados do século VI.
Capital sueva rede de trocas comerciais? Finalmente, os epitáfios
Templo ou mosteiro A resposta encontra-se, por funerários de Mértola mos-
Dume exemplo, no extraordinário tram uma sociedade aberta e
Bracara Muralha
sítio arqueológico de Tróia. Ali, cosmopolita, com inscrições em
Cidade desde os primórdios da época romana, existiram latim e em grego e a presença de judeus.
Portocale Villa instalações dedicadas ao fabrico de condimentos Na segunda metade do século VI, a Península
Indústria de peixe, exportados para diversas regiões. O local Ibérica acabaria por ser unificada sob domínio
Viseu Museus com espólio visigótico é totalmente inóspito, pelo que a sua ocupação visigodo. Na centúria seguinte, acentuam-se os
só é justificável pela exploração dos recursos sinais de mudança. A cunhagem monetária dos
Conímbriga marinhos. Justamente nos meados do século VI reis godos e as sedes episcopais continuam nas
Egitanea foi ali construído um imponente edifício de cul- principais cidades, mas os sinais de mudança mul-
to, com as paredes revestidas de estuques pinta- tiplicam-se. Tornam-se raros os indícios de acti-
dos, eloquente prova da sua prosperidade. vidade edilícia, escasseiam os epitáfios funerários,
Conhecemos em outras paragens edifícios reli- praticamente desaparecem os indícios de relações
giosos erguidos nesta mesma época, por exem- comerciais externas. Apesar da acção legislativa,
Torre de palma
Lisboa plo, em Mértola, cidade cuja relevância esteve a monarquia visigoda não parece ter logrado criar
Tróia sempre associada à sua localização privilegiada, modelos de estabilidade política e institucional.
Sines
no limite da navegabilidade do Guadiana, a par- No início do século VIII, quando o exército
tir do mar; em Egitanea (sob a actual Idanha-a- islâmico desembarcou no Sul da Península o rei-
Beja -Velha); Viseu ou Dume, nas imediações de Braga. no visigodo era uma entidade frágil. Tornara-se
Mas também em sítios rurais como nas villae de incapaz de se opor aos novos “invasores”. j
Mértola
Alcoutim Exemplares do “tesouro visigótico”, estas jóias e a famosa espada descoberta no concelho de Beja
estarão patentes na exposição de Veneza dedicada ao legado bárbaro na Europa Ocidental.
Faro A partir do final deste mês, o Museu Nacional de Arqueologia exibirá “Sit Tibi Terra Levis: Rituais
Funerários Romanos e Paleocristãos no Território Português”
EM CIMA: BOTÃO E FIVELAS VISIGÓTICAS, SÉC. V. REPRODUZIDO COM AUTORIZA- o s bá r ba ro s n o o ciden te 25
ÇÃO DO MUSEU NACIONAL DE ARQUEOLOGIA. À ESQUERDA: ESPADA VISIGÓTICA,
SÉC. XX, REPRODUZIDO COM AUTORIZAÇÃO DO MUSEU REGIONAL DE BEJA

Você também pode gostar