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O amigo informa que a cidade tem mais um sebo.

Exulto com a boa-nova e


corro ao endereço indicado. Ressalvada a resistência heróica de um Carlos
Ribeiro, de um Roberto Cunha e pouco mais, os sebos cariocas foram se
acabando, cedendo lugar a lojas sofisticadas, onde o livro é exposto como
artigo de moda, e há volumes mais chamativos do que as mais doidas gravatas,
antes objeto de decoração, do que de leitura.
Para onde foram os livros usados, os que tinham na capa este visgo
publicitário, as brochuras encardidas, as encadernações de pobre, os folhetos,
as revistas do tempo de Rodrigues Alves? Tudo isso também é “gente”, na
cidade das letras, e como “gente”, ninho de surpresas: no mar de obras
condenadas ao esquecimento, pesca-se às vezes o livrinho raro, não digo raro
de todo, pois o faro do mercador arguto o escondeu atrás do balcão, e destina-
o a Plínio Doyle, ao Mindlin paulista ou à Library of Congress, que não dorme
no ponto… mas pelo menos, o relativamente raro, sobretudo aquele volumeco
imprevisto, que não andávamos catando, e que nos pede para tirá-lo dali, pois
está ligado a circunstâncias de nossa vida : operação de resgate, a que
procedemos com alguma ternura. Vem para a minha estante, Marcelo Gama,
amigo velho, ou antes, volta para ela, de onde não devias ter saído; sumiste
porque naqueles tempos me faltou dinheiro para levar a namorada ao cinema,
e tive de sacrificar-te, ou foi um pilantra que me pediu emprestado e não te
devolveu? Perdão, Marcelo, mas por 5 cruzeiros terei de novo a tua companhia.
Matutando no desaparecimento de tantos sebos ilustres, inclusive o do
Brasielas chego a este novo. É agradavelmente desarrumado, mas não muito,
como convém ao gênero de comércio, para deixar o freguês à vontade. Os
fregueses, mesmo não se dando a conhecer uns aos outros, são todos
conhecidos como frequentadores crônicos de sebo. Caras peculiares. Em geral
usam roupas escuras, de certo uso ( como os livros ), falam baixo, andam
devagar. Uns têm a ponta dos dedos ressecada e gretada pela alergia à poeira,
mas que remédio, se a poeira é o preço de uma alegria bibliográfica?
Formam uma confraria silenciosa, que procura sempre e infatigavelmente uma
pérola ou um diamante setecentista, elzeveriano, sabendo que não o
encontrará nunca entre aqueles restos de literatura, mas qualquer encontro a
satisfaz. Procurar, mesmo não achando, é ótimo. Não há a primeira edição dos
Lusíadas mas há do Eu, e cumpre negociá-la com discrição, para que o vizinho
não desconfie do achado e nos suplante com o seu poder econômico. À falta da
primeira, a segunda, ou outro livro qualquer, cujo preço já é uma sugestão:
“Me leva”. Lá em casa não cabe mais nem aviso de conta de luz, tanto mais
que as listas telefônicas estão ocupando lugar dos dicionários, mas o
frequentador de sebo leva assim mesmo o volume, que não irá folhear. A
mulher espera-o zangada: “Trouxe mais uma porcaria pra casa!”. Porcaria?
Tem um verso que nos comoveu, quando a gente se comovia fácil, tem uma
vinheta, um traço particular, um agrado só para nós, e basta.
A inenarrável prosmicuidade dos sebos! Dante em contubérnio com o relatório
do Ministro da Fazenda, os eleatas junto do almanaque de palavras cruzadas,
Tolstói e Cornélio Pires, Mandrake e Sóror Juana Inés de la Cruz… Nenhum
deles reclama. A paz é absoluta. O sebo é a verdadeira democracia, para não
dizer: uma igreja de todos os santos, inclusive os demônios, confraternizados e
humildes. Saio dele com um pacote de novidades velhas, e a sensação de que
visitei, não um cemitério de papel, mas o território livre do espírito, contra o
qual não prevalecerá nenhuma forma de opressão.

Carlos Drummond de Andrade

Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à
natureza – essa natureza que não presta atenção em nós.

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