Você está na página 1de 24

ATORES E AÇÕES NA CONSTRUÇÃO DA

GOVERNANÇA CORPORATIVA
BRASILEIRA*

Roberto Grün

Introdução Essa discussão no Brasil é precedida e con-


substanciada pelas transformações da propriedade
Nos últimos cinco anos instalou-se no espa- empresarial que ocorreram no decorrer dos anos de
ço empresarial brasileiro uma discussão sobre a 1990, em particular o intenso movimento de fusão e
idéia de governança corporativa, em princípio, incorporação de empresas,1 bem como as disputas
uma nova maneira de se organizar as relações en- em torno da definição dos fundos de pensão e do
tre as empresas e o mercado financeiro. A partir papel do Estado na economia, o que converge para
de 1999, o fenômeno adquiriu uma forma mais a discussão sobre a questão da privatização das em-
precisa com a tramitação da nova Lei das Socie- presas públicas. Em torno desse processo, observa-
dades Anônimas e o “novo mercado de capitais”, mos tanto a criação e o aperfeiçoamento de artefa-
inaugurado na Bolsa de Valores de São Paulo (Bo- tos jurídicos que ordenaram as diversas tendências,
vespa). Numa primeira aproximação, podemos como a redefinição das funções de órgãos estatais
dizer que o modelo de governança corporativa
ou paraestatais, como o Cade e a CVM, pouco sa-
predica a transparência contábil das empresas e o
lientes em momentos anteriores. E de maneira já
respeito dos direitos dos acionistas minoritários.
prevista, diversos grupos engajaram-se nas facetas
desse processo, procurando novos espaços para a
* Agradeço o apoio da Fapesp e do CNPq, que finan- sua atuação intelectual, política e profissional.
ciaram as pesquisas nas quais o texto se baseia. Conforme já foi discutido por analistas inter-
Artigo recebido em novembro/2002. nacionais, no centro do recente processo de rees-
Aprovado em março/2003. truturação da propriedade empresarial há um im-

RBCS Vol. 18 nº. 52 junho/2003


140 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

perativo de liquidez. As grandes empresas fazem A “boa governança corporativa” seria o ins-
parte de portfolios de investimentos de agentes co- trumento que propiciaria a deflagração de um “ci-
letivos, que procuram estar sempre prontos para clo virtuoso”. Transparência nos procedimentos
mudar suas posições quando forem consideradas contábeis e administrativos das empresas de capi-
desvantajosas, refazendo-as, então, em outros ra- tal aberto e respeito aos direitos dos acionistas
mos de negócio ou em outras regiões. No caso minoritários são as bases de sustentação da nova
específico das privatizações, assistimos à forma- institucionalidade. Essas idéias lembram bandei-
ção de parcerias peculiares – prestadores de ser- ras importantes da luta pela instauração da cida-
viços estrangeiros, empresas nacionais de ramos dania plena no Brasil, processo que tem deman-
diferentes, fundos de pensão e bancos de inves- dado uma imensa descarga de energia social e
timento privados. Essas alianças ocorrem nos lei- produzido a legitimação de conceitos que dela pa-
lões e são reformuladas continuamente pelas recem derivar.
operações financeiras de mercado. Trata-se de No debate intelectual, a idéia de governança
constelações que precisam ter uma relação de corporativa possui dois sentidos, usados por ato-
transparência e de respeito aos direitos dos acio- res sociais diferentes que, em geral, disputam es-
nistas minoritários. Afinal, esse é o ambiente ade- paços nas cenas econômica e política dos países
quado ao entendimento entre sócios oriundos de onde esse tema aflora. O primeiro é mais estrito e
experiências muito diferentes, com linguagens diz respeito à relação peculiar existente entre
domésticas pouco traduzíveis e, assim, pouco à
mercado financeiro e mundo empresarial, obser-
vontade uns com os outros. Nele, a linguagem fi-
vada primeiramente nos Estados Unidos e, em se-
nanceira, em geral, e a transparência contábil,
guida, na Grã-Bretanha. De acordo com os que
em particular, tornam-se a língua franca e o am-
sustentam essa acepção, sua principal característi-
biente virtuoso por excelência.
ca é a existência de um mercado ativo de contro-
Contudo, a adequação do modelo de gover-
le acionário das sociedades anônimas centrado
nança corporativa às circunstâncias econômicas atu-
nas bolsas de valores. O segundo diz respeito ao
ais não explica a grande coalizão formada em torno
papel pouco relevante dos bancos comerciais (ao
dela, tampouco a sua aceitação como expressão do
contrário do dos bancos de investimentos) no mer-
interesse geral. Uma justificativa recorrente dessa ten-
cado de títulos. O primeiro aspecto garante a vigi-
dência consiste na idéia de que o capitalismo brasi-
leiro sofre da falta de um mercado de capitais, em es- lância externa sobre as atividades das direções
pecial de ações, realmente ativo, o que possibilitaria profissionais das empresas, à medida que com-
a criação de fundos para o desenvolvimento de em- portamentos que não assegurem os interesses dos
preendimentos que poderiam dinamizá-lo. E de que acionistas são penalizados com take-overs2 pro-
isso seria resultado da inexistência de um ambiente movidos naturalmente pelo mercado financeiro,
institucional que asseguraria aos investidores o des- pressionando diretores e gerentes a agir no senti-
tino de suas aplicações de risco, sobretudo em rela- do considerado correto pelos agentes do mercado
ção aos direitos dos acionistas minoritários. Na au- financeiro, os quais, nessa representação, podem
sência de regras favoráveis, os investidores acabam perfeitamente atuar em todo o espectro da cida-
investindo seus recursos em aplicações imobiliárias dania. A segunda característica exige a necessida-
e papéis bancários (em vez de ações e debêntures), de de não se permitir que coalizões espúrias fun-
realimentando o ciclo que torna os juros brasileiros cionem como escudos que protegeriam os maus
muito altos, na medida em que, ante a oferta inter- administradores da punição do mercado. Blocos
na de financiamento, os governos, em vez de pro- de ações e de controle acionário excessivamente
moverem ajustes fiscais, financiam seus déficits com concentrados em mãos de banqueiros (considera-
o aumento da dívida pública. Nesse sentido, seria dos indivíduos pertencentes às tradicionais old
vantajoso para o desenvolvimento brasileiro um boys leagues que, a princípio, protegeriam seus
mercado de ações mais ativo. amigos) seriam um convite para o conluio entre
ATORES E AÇÕES NA CONSTRUÇÃO DA GOVERNANÇA... 141

os dirigentes dos dois tipos de empreendimento. tos dos acionistas – a chamada “revolução dos
A partir da década de 1970, a chamada teoria da acionistas” (Useem, 1993). No limite, essa idéia
agência e o desenvolvimento da economia finan- significa o deslocamento das preocupações da
ceira em geral erigiram essa particularidade an- empresa com os chamados stakeholders para a
glo-americana como um modelo de relação a ser concentração em torno dos shareholders. Assim,
admirado e exportado urbi et orbi, denominando- a empresa “financeirizada” pensa transformar
o de “boa governança corporativa” (Fama, 1980). seus colaboradores em acionistas, crendo que
Por outro lado, especialistas em economia disso resulte uma maior motivação em todos os
política, estudos organizacionais, direito e ciên- níveis. Em contrapartida, na concepção da “qua-
cias sociais tentam transformar o sentido primeiro lidade total”, todos os atores ligados à empresa
do conceito de governança corporativa, denomi- são stakeholders, estão interessados no progresso
nando-a qualquer relação nacional entre atores da empresa e merecem igualmente atenção e con-
econômicos (em geral, de países desenvolvidos sideração. A nova representação de empresa re-
não-anglo-saxões e que apresentam bons índices lacionada à governança corporativa cria uma
de desempenho econômico ou social). Essa pers- oposição entre os antigos membros da comuni-
pectiva de análise ressalta as peculiaridades do dade direta ou indiretamente relacionada à em-
caminho histórico que levou à situação observada presa, os stakeholders e os acionistas. Assim, im-
e procura resgatar as virtudes da configuração es- plicitamente, essa perspectiva tende a destruir a
pecífica.3 Além disso, aponta as conseqüências idéia de comunidade organizacional, cara às di-
negativas da “boa governança corporativa”, pois, versas manifestações do espírito saint-simoniano,
ao direcionar o funcionamento das empresas para que se apresenta tanto na teoria tradicional de
satisfazer exclusivamente os interesses de seus administração, como na concepção de qualidade
acionistas, acaba por destruir os sistemas nacio- total e mesmo do mainstream da teoria das orga-
nais de relações do trabalho e, até mesmo, as ba- nizações. Os direitos não derivam mais de inte-
ses de segurança social erigidas nos países desen- resses comuns difusos, mas da posse especifica-
volvidos durante o século XX. da e qualificada de ações da empresa. Na prática,
O sentido “desafiante” para a idéia de gover- passa-se a focalizar os resultados de curto prazo
nança corporativa tem caráter nitidamente defen- que possam representar uma boa sinalização
sivo e reativo, já que em torno dele os atores para o mercado de capitais, o qual, por sua vez,
procuram justificar muitas posições contrárias às sanciona o sinal por meio da melhoria da cota-
diretrizes de órgãos supranacionais que tentam ção dos valores emitidos pela empresa.4
impor, como sendo um consenso internacional
sobre a boa condução econômica, as diretrizes
inspiradas na economia financeira – o mains- Sociologia da governança corporativa
tream da academia norte-americana. Assim, o de-
bate em torno desse tema está inserido na discus- A análise sociológica da governança corpo-
são mais geral sobre globalização. As posições rativa encontra-se ainda em uma fase inicial. A
favoráveis à “boa governança corporativa” con- primeira referência direta e sistemática à questão
fundem-se com aquelas favoráveis à globalização, pode ser observada em N. Fligstein e R. Friedland
e seus adversários, com os que são céticos em re- (1995). Apesar de essa publicação ter o mérito de
lação a ela. reconhecer a pertinência sociológica da questão,
Além disso, o conceito de governança cor- os autores discutem uma bibliografia advinda
porativa confunde-se com o da “financeirização” quase que integralmente de outras disciplinas. Do
das empresas, ou seja, a prevalência absoluta do ponto de vista da difusão do conceito para além
ponto de vista financeiro sobre outras considera- dos países anglo-saxões, talvez o principal texto
ções na estratégia da empresa e a focalização de referência sociológica seja o de M. Guillén
deste na valorização do retorno dos investimen- (2000a, 2000b, 2001). O número temático da re-
142 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

vista Economy and Society (2000) divulgou o con- de sua análise é estabelecida em torno da discus-
ceito na Europa ocidental. Na perspectiva da di- são sobre modelos de capitalismo, travada sobre-
nâmica deflagrada em torno dessa idéia, temos tudo no campo da economia política recente
os trabalhos de Dezalay (1995) e Dezalay e Garth (Guillén, 1994; Boyer e Hollingsworth, 1998;
(2002), que enfocam sobretudo o espaço das pro- Crouch e Streeck, 1998). Assim, o autor destaca
fissões jurídicas. em seu estudo as virtudes atribuídas às configura-
O estudo de Guillén (2000) apresenta sete ções particulares de cada país desenvolvido, insis-
requisitos que lhe possibilitou avaliar o possível tindo em argumentos que ressaltam a eficiência
avanço da governança corporativa para além do de cada um deles em lidar plenamente com pro-
universo de referência anglo-saxão: blemas que podem ser de escala, de inovação, de
adensamento ou de cooperação. Ao endossar as
1 Estrutura de propriedade: no padrão anglo- peculiaridades de cada “modelo”, Guillén descar-
saxão as empresas devem ser de propriedade ta razões objetivas que poderiam levar à adoção
do público (e não de bancos ou governos do modelo da governança corporativa, tipicamen-
como nos modelos renano, francês, japonês e te anglo-saxão.
escandinavo). Ao mostrar o êxito de configurações diferen-
2 Impacto do investimento estrangeiro: deve tes daquela apresentada nos países anglo-saxões,
ser alto para possibilitar a multiplicidade de a abordagem dos “modelos” ajuda-nos a questio-
investidores e a impossibilidade de controle nar as profecias dos arautos atuais da “globaliza-
direto dos mecanismos financeiros por um ção”. Entretanto, é difícil crer que a eficiência re-
pequeno grupo de capitalistas locais; lativa dos modelos possa ser medida, a não ser
3 Papel dos bancos: tem de ser o de fornece- com propósitos e resultados performáticos. Os cri-
dor de capitais às empresas por meio de em- térios que servem de parâmetros para analisar a
préstimos (em vez de comprador/detentor eficiência dos “modelos” são resultados contin-
de suas ações); gentes de disputas culturais, os quais dependem,
4 Papel dos investidores institucionais (fundos portanto, da dinâmica de atores e idéias, variando
de pensão, seguradoras): tem de ser alto no tempo e no espaço. Trata-se da expressão das
para exercer a vigilância, uma vez que esses alterações de linhas de força cujos sentido e mag-
investidores podem adotar o comportamen- nitude devem ser procurados na esfera do simbó-
to voice em vez do tradicional exit – único lico, e não no âmbito econômico.5 Dessa forma,
comportamento razoável para o acionista in- os resultados negativos para a hipótese da difusão
dividual atomizado; anotados estaticamente por Guillén parecem me-
5 Interlocking de diretores: deveria ser o menor nos importantes do que o registro da existência
possível para não haver conflito de interesses; da dinâmica deflagrada pela intensa militância de
6 Formas de pagamento do presidente das atores interessados na instalação do modelo de go-
empresas: devem estar ligadas à performan- vernança corporativa que, no Brasil, por exemplo,
ce financeira obtida; se consubstancia justamente nas tentativas de pro-
7 Mercado para o controle das empresas por dução e difusão de novos critérios de avaliação
meio de operações nas bolsas de valores ou da performance das empresas e demais organiza-
proxi: condição necessária para a instalação ções. Por outro lado, reforçando a positividade da
da governança corporativa. abordagem dos modelos, é preciso lembrar que a
análise baseada nos “modelos de capitalismo” dá
O fato de não ter encontrado em sua pesqui- conta, ainda que indiretamente, da inércia das
sa evidências fortes desses sete pontos levou instituições legais, formais, costumeiras e/ou cog-
Guillén a concluir que não há convergência das nitivas, a qual não consta dos discursos, mas
diversas formas de regulação capitalista para o constrange as ações e desafia os pensamentos ino-
modelo da governança corporativa. A perspectiva vadores. Se para a análise é mais fácil recuperar as
ATORES E AÇÕES NA CONSTRUÇÃO DA GOVERNANÇA... 143

instituições legais, em contrapartida, as outras for- das economias, de empresas, instituições, pessoas
mas institucionais só podem ser percebidas por e grupos. Instaura-se, assim, uma situação de “in-
meio de uma boa vigilância intelectual. comensurabilidade”, ao estilo da história da ciên-
O início da discussão sobre governança cor- cia de Thomas Kuhn, que talvez tenha passado
porativa no Brasil coincide com o debate político despercebida nos debates travados sobre a con-
que culminou com o revés parcial do grupo go- juntura econômica e social do país.9
vernamental de FHC nas eleições municipais de
2000. Nesse momento a coalizão que dominava a
cena política parecia perder a iniciativa da agen- A governança corporativa no conflito
da econômica para a oposição. Esta, ao conseguir simbólico brasileiro
empurrar o problema do desemprego para o cen-
tro da agenda, tentava caracterizar como fracasso Para contextualizar a inserção do modelo de
a gestão econômica do período.6 Sobretudo gru- governança corporativa na cena econômica brasi-
pos ligados ao Partido dos Trabalhadores insis- leira, é necessário apresentar seus opostos simbóli-
tiam na retomada da idéia de câmaras setoriais e cos. No período que estudamos, esse papel foi
regionais, as quais, segundo eles, impulsionariam preenchido pelas câmaras setoriais e regionais de
o desenvolvimento, combatendo o desemprego. desenvolvimento.10 A análise da carreira das câma-
Não é por acaso que, nesse momento, membros ras setoriais mostra oscilações de sentido que fize-
da equipe econômica do governo federal, bem ram com que elas fossem consideradas, no início
como agentes econômicos a eles ligados, passa- da década de 1990, a solução premente da econo-
ram a exaltar o modelo de governança corporati- mia brasileira, mas essa idéia foi praticamente des-
va como sendo o motor de aceleração do desen- cartada no período inaugurado pela ascensão do
volvimento e, em conseqüência, de atenuação do governo Fernando Henrique Cardoso (Arbix, 1997).
desemprego. Armínio Fraga, discutindo as alter- Essa trajetória permite avaliar a evolução da dispu-
nativas para o desenvolvimento econômico, afir- ta cultural em torno do tema nesse período, em que
mou explicitamente:7 “Acredito que o boom de o “excelente mecanismo de governança” foi trans-
produtividade registrado pela economia dos Esta- formado em “simples instrumento de manutenção
dos Unidos tem mais a ver com boa governança de privilégios corporativos” e, mais adiante, voltou
do que propriamente investimentos em tecnolo- a ser bastante discutido Em outras palavras, o as-
gia da informação”.8 sunto ganhou a esfera pública no final do governo
Esse quadro revela a disputa econômica e Collor, foi sepultado durante o primeiro mandato
cultural sobre quais caminhos deverá trilhar o de- de Fernando Henrique Cardoso e “ressuscitou” mais
senvolvimento econômico e cultural do Brasil. As recentemente.11 Isso com certeza vincula-se não
correntes que propugnam a governança corpora- apenas à discussão em torno do desemprego como
tiva esgrimem propostas oriundas da linha argu- o principal problema econômico brasileiro, mas
mentativa identificada com o individualismo, que, também à dramática experiência da desvalorização
no âmbito econômico, confunde-se com a idéia cambial que se seguiu à segunda eleição presiden-
de “financeirização” das empresas e das organiza- cial de Fernando Henrique, invertendo a hierarquia
ções em geral. Em contrapartida, as correntes que em relação à inflação e aos problemas de equilíbrio
defendem as câmaras representam a linha identi- macroeconômico em geral.12 No atual estágio de
ficada com o coletivismo. Essa apresentação es- nossa pesquisa, essa é a chave que deflagra a re-
quemática é importante nesse momento da análi- versão dos termos do debate econômico.
se no sentido de deixar perceptível a deflagração Lembremos que, na lógica do mercado, de-
de duas seqüências mnemônicas de argumentos semprego resolve-se ajustando a oferta de traba-
que revelam variadas formas de entender a reali- lho à demanda por meio do rebaixamento de seu
dade, ou, mais especificadamente, de compreen- custo. Paradoxalmente, no cenário brasileiro a “so-
der os instrumentos de medição da “eficiência” lução óbvia” de diminuir os custos de contratação,
144 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

cancelando ou suspendendo custos trabalhistas vezes à utilização de estruturas argumentativas tí-


indiretos e/ou o salário mínimo, não se realiza, picas de seus opositores, as quais permanecem la-
ainda que seja insistentemente propagandeada. tentes em sua competência cognitiva. Por outro
Essa constatação levanta dúvidas quanto à análise lado, o cultuador mais radical do princípio da hie-
do “enfraquecimento dos sindicatos” ou da “obso- rarquia é obrigado a aceitar o fato de que, por
lescência da consolidação das Leis do Trabalho exemplo, a igualdade de chances seja um impera-
(CLT) e de todo o universo trabalhista herdado da tivo de sistemas democráticos e que, portanto, as
era Vargas”. Ao menos seria necessário que se vagas no serviço público devem ser preenchidas
avaliasse com mais agudeza os vaticínios que es- por concurso, ainda que isso diminua as chances
tamos acostumados a ouvir nos últimos anos. As- de inserção de pessoas próximas a ele ou mais
sim, ainda que estivéssemos diante de uma grande necessitadas. Com isso ele mantém em seu esto-
ofensiva por parte dos postuladores do princípio que de alternativas a lógica adversária.15 Em con-
do mercado, não podemos deixar de registrar a ca- seqüência, os princípios antagônicos, mesmo que
pacidade de defesa do princípio inverso. possam se tornar mais ou menos relevantes em
O debate sobre as câmaras setoriais revelou determinados períodos, permanecem em um pla-
o que antes permanecia latente no discurso dos no subjacente e podem retornar à cena subita-
chamados “corporativistas nostálgicos do prote- mente, recuperando sua força.
cionismo”. Assim, voltando a ser legitimados, os A idéia das câmaras setoriais manteve-se
argumentos que fundamentam esse discurso con- viva, tanto na esfera acadêmica quanto na políti-
tribuíram para conter o esvaziamento que vinha ca, como uma alternativa básica ao conjunto de
ocorrendo nos setores sociais identificados com medidas econômicas neoliberais impostas pelos
práticas econômicas orquestradas, pois incutiram agentes governamentais. Anteriormente, propos-
nos agentes que atuavam nesses setores um sen- tas de negociação coletiva de preços e salários,
timento de autoconfiança.13 Evidentemente, há elaboradas sobretudo por Paul Singer, foram
uma grande distância entre a capacidade de resis- apresentadas como alternativas aos métodos “or-
tência e a efetivação de estratégias bem-sucedi- todoxos” de combate à inflação, mas recebidas
das, contudo a capacidade real de imprimir rumos com ceticismo e ironia pelos formadores de opi-
diferentes às disputas que ocorrem atualmente na nião que freqüentavam os meios de comunica-
esfera pública só é possível se os argumentos que ção. Entretanto, não podemos nos deixar levar
embasam a ação contestadora tiverem guarida na apenas pela louvação dos feitos heróicos dos “re-
sociedade. sistentes”. Há certamente uma lógica de concor-
Com certeza, pode-se observar em todos se- rência profissional que levou os economistas
tores sociais uma tenacidade que impede o desa- “heterodoxos” a assumir certas posições, impe-
parecimento dos princípios que referendam as dindo-os de aderir ao consenso prevalecente en-
posturas heterodoxas, e isso ocorre mesmo entre tre a academia, a mídia e os governos ditos “res-
os próprios paladinos da superioridade do merca- ponsáveis”. Esse espaço foi rapidamente ocupado
do. Seguindo a trajetória do argumento de M. pelas escolas de pensamento da PUC e da FGV
Douglas (1996), que reelaborou num quadro so- do Rio de Janeiro, e qualquer inserção de indiví-
ciocognitivo a oposição “hierarquia versus merca- duos ou grupos oriundos de outras esferas teria
do” proposta por Weber, os princípios metafóri- de ser necessariamente subordinada a elas. Aos
cos que dão coerência a cada linha argumentativa adversários institucionais só foi possível uma
estão “guardados dentro de todos nós” e, quando adesão individual – estratégia concebível apenas
necessário, são deflagrados de formas diversas. para alguns membros das novas gerações – ou
Por exemplo, o proponente mais ortodoxo do uma resistência coletiva, que aguardou a “volta
princípio do mercado também está imerso em re- do pêndulo”, mantendo, assim, o renome de ou-
des de relações familiares14 que o conduz muitas tras épocas.
ATORES E AÇÕES NA CONSTRUÇÃO DA GOVERNANÇA... 145

Novas linhas de força Uma verdadeira liturgia que culminou com


o lançamento público das idéias propostas num
O debate das idéias foi aquecido quando os cenário cuidadosamente montado e repleto de
políticos considerados suportes fiéis da ação econô- simbolismo – o seminário internacional “Janelas
mica do governo federal no período FHC passaram para a América Latina”, promovido pelo banco
a clamar pelo “capitalismo popular”. Tratava-se de de investimentos Goldman Sachs, uma das enti-
uma medida de coerência fundamental para o dades financeiras mais festejadas pela moderni-
construto cultural que suportou a política das priva- dade e arrojo, e destinado, segundo foi noticiado,
tizações, a qual aparentemente pôde ser evitada até a uma platéia de banqueiros, executivos das tele-
então, dada a incapacidade de reação da oposição. comunicações e da Internet e analistas de merca-
Anteriormente, no discurso dominante dos do, ou seja, a elite do mundo econômico. Esse
atores envolvidos no processo de privatização, a jogo de influência tem objetivos evidentes, pois
venda em bloco das ações das empresas estatais, se espera que haja uma maior propensão a acei-
que supunha a entrega do controle administrativo, tar a mensagem se ela estiver vinculada a um
foi considerada a melhor estratégia, já que o com- “grupo ilustre”.
prador pagaria também um “prêmio” pelo direito Podemos acompanhar na imprensa a manei-
de dirigir a organização. Essa postura tinha como
ra pela qual essas novas propostas foram sendo
principal argumento a possibilidade de maximizar o
agenciadas. Tramitava no Congresso Nacional o
resultado financeiro imediato para os cofres gover-
projeto da Nova Lei das Sociedades Anônimas e os
namentais e, assim, gerar uma fonte de receita im-
arautos da razão convencional pareciam perceber
portante para lidar com o déficit público. Ainda que
as dificuldades para fazer prevalecer suas idéias.
isso fosse esporádico, as fontes geradas seriam, de
Sem mencionar os opositores, o relator Antonio
acordo com essa visão, essenciais para viabilizar no
Kandir apontava os limites em relação ao “progra-
curto prazo a política econômica até que o resulta-
do fiscal das reformas econômicas viesse a tona, ma máximo” vislumbrado pelos intelectuais do
equilibrando de maneira sustentada as contas do mundo econômico. Eis os excertos da notícia:19
governo federal (ver Teixeira, 1999). Privilegiar essa
Segundo o relator, os pontos de maior dificulda-
consideração em detrimento de quaisquer outras
de de concordância são: a garantia de pagamen-
presentes no debate público mostra que as preocu-
to do valor econômico da ação aos acionistas mi-
pações com o impacto social e econômico acarre- noritários no caso de fechamento de capital; a
tado pelas decisões de alienação das estruturas do participação dos minoritários no conselho de ad-
setor estatal, tais como as condições em que os ser- ministração das empresas; e, depois de três anos
viços públicos seriam prestados a partir da privati- sem pagamento de fundos, dividendos, a garan-
zação, pareciam menos importantes. tia de direito a voto e aos donos de ações prefe-
Podemos esboçar uma cronologia da con- renciais – normalmente sem esse direito.
tenda simbólica a partir do acompanhamento da
imprensa escrita. Como vimos, no final de 1999, a E mais adiante, teorizando sobre as dificul-
sirene começa a tocar e observa-se um período de dades encontradas:
agregação da militância dita “moderna” que, entre
outros eventos, promoveu um amplo seminário Segundo o relator, a forte resistência na Câmara
realizado em maio de 2000 no BNDES.16 As pro- ocorre porque o que está sendo seguro de discu-
tido não é apenas a lei, mas as duas visões de ca-
postas apresentadas vieram da ala do governo
pitalismo existentes em Brasília. “A míope, que vê
mais comprometida com novas formas de “gover-
o Estado como eterna fonte de financiamento, e o
nança” empresariais,17 e seus reflexos foram nota- do capitalismo real”. E ainda acrescentou que “as
dos imediatamente na representação do congres- empresas com acesso privilegiado a recursos pú-
so vinculada a esse grupo, bem como assistimos blicos não vêem o desenvolvimento do mercado
à sua rápida difusão entre atores não-governa- de capitais ou o fortalecimento do direito de acio-
mentais próximos a essa esfera de influência.18 nistas minoritários como algo importante”.
146 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

Diante das dificuldades de conseguir a chan- nal, afirma que nos Estados Unidos a prática da
cela legal para o conceito de “boa governança cor- boa governança já é comum. “Lá é avaliada até a
porativa”, os agentes interessados irão tentar o ca- independência dos diretores em relação ao con-
selho da empresa” (Idem).
minho da sua implantação progressiva e voluntária
por meio da idéia de “novo mercado de capitais”,
tentando seguir o exemplo da Alemanha. Esse per- Acrescenta-se ainda uma reputada empresa
curso mobilizou uma grande diversidade de atores, de consultoria empresarial internacional que pôs
a maior parte proveniente do setor privado. É inte- seu capital simbólico para funcionar na tentativa
ressante acompanharmos os argumentos, as quali- de convencer empresas resistentes a aderirem ao
ficações dos personagens e as articulações entre novo mercado:
esses atores, situados em pontos estratégicos para
De acordo com um estudo mundial elaborado
a formação dessa nova instituição.
pela consultoria McKinsey, os investidores estão
Na escala da operacionalização,20 de início
dispostos a pagar um prêmio de, em média, 22,9%
temos a palavra da para as empresas que praticam a boa governança.
Se visto sob outro ponto de vista, esse seria o cus-
[...] a diretora da CVM (Comissão de Valores Mo- to para a empresa que não adotar as regras da boa
biliários), Norma Parente, [que] afirma que, com governança, explica Jean Marc Laouchez, sócio lo-
o Novo Mercado, o minoritário terá a chance de cal da McKinsey do Brasil (Idem).
discutir em pé de igualdade com o controlador.
“Na hora de exigir seus direitos diante da com-
Esses exemplos, entre tantos outros, reve-
panhia, o grande investidor sempre tem mais
poder do que o pequeno. Com o Novo Merca- lam que a defesa do modelo da governança cor-
do, isso vai acabar”, diz ela (Folha de S. Paulo, porativa foi muito bem alinhavada, fazendo con-
20/11/2000). vergir interesses de vários setores do mundo
econômico. No âmbito simbólico, é patente a
Dois participantes do mercado financeiro, condução do discurso no sentido de dar um en-
com interesse direto no deslanchar da novidade foque positivo à noção de indivíduo e de seus di-
apresentam-se: reitos, realimentando o modelo de capitalismo
“financeirizado”. Trata-se de realçar os direitos in-
Alexandre Póvoa, gestor de renda variável da dividuais, acima de quaisquer outras considera-
ABN Amro Asset Management, afirma que com ções. Em termos cognitivos, quando se acentua
isso os investidores terão a vantagem de conhe-
as cores dos direitos individuais, se esmaece as
cer mais rapidamente a empresa. “A política de
transparência será muito maior. Se a companhia dos direitos coletivos. Esse tipo de abordagem,
for boa ou ruim, logo o investidor saberá”, expli- ainda que não signifique necessariamente o
ca. Para o gestor de renda variável da BBA Capi- abandono dos direitos coletivos, torna a socieda-
tal Icatu, Luciano Snel, o Novo Mercado ajudará a de, ou a opinião pública, menos propensa a con-
estimular o mercado de capitais no Brasil, e até siderá-los, sobretudo se uma infringência a eles
quem investe em fundos será beneficiado. “Essa surgir no decorrer de um debate. Estamos diante
nova seção deverá atrair empresas que estão fora
de uma tendência internacional da atual fase do
da Bolsa. Com isso teremos mais opções de
ações’’ (Idem). capitalismo, qual seja, a associação do conceito
de cidadão ao de acionista minoritário,21 vincu-
Para corroborar, observa-se a sanção de es- lando a nova representação da empresa à nova
tudiosos acadêmicos mais próximos do mundo fi- representação do Estado. Como acionistas mino-
nanceiro que proliferaram muito nos últimos ritários, estamos habilitados a reivindicar o esta-
anos: tuto de clientes já que pagamos impostos e cum-
primos as demais obrigações, mas essa tendência
O professor Antônio Zorato Sanvicente, coorde- certamente enfraquece a pertinência de aborda-
nador do MBA em Finanças do Ibmec Educacio- gens coletivistas.
ATORES E AÇÕES NA CONSTRUÇÃO DA GOVERNANÇA... 147

Na dinâmica desse processo, pode-se verifi- ironicamente, a nossa “governança corporativa”


car que a “ofensiva” dos proponentes da gover- irá tirar proveito das forças desencadeadas pelo
nança corporativa, grupos ligados à equipe eco- processo de redemocratização da sociedade bra-
nômica do governo federal, mas não só eles, foi sileira, introduzindo o que, numa situação simbó-
bastante forte, em que pese a quantidade de arti- lica adversa a esse modelo, pode ser considerado
gos, palestras, eventos e diversas outras manifes- sua paródia – a democratização da empresa, mas
tações em prol de sua adoção. Há um consenso apenas para seus acionistas.
entre os argumentos de que uma parcela conside- A extensão de sentido pode ou não ser im-
rável de capital cultural e social tipicamente “jo- pugnada, dependendo do balanço de forças sim-
vens” será contemplada por uma avaliação mais bólicas. No Brasil de hoje pode causar estranheza
favorável. Em outras palavras, o modelo de gover- se considerar a governança corporativa uma paró-
nança corporativa é produto da recente “revolu- dia da transparência, mas essa associação aparece
ção dos acionistas”, em torno da qual foram cria- freqüentemente nos debates públicos da Europa
das novas especialidades financeiras, jurídicas, ocidental no final dos anos de 1990, quando a de-
econômicas, gerenciais e da área de informática, cantada “crise da previdência” passa a ser tema
o que significa um campo fértil para as estratégias obrigatório das discussões econômicas, políticas e
de ascensão de grupos jovens em espaços con- sindicais, além da pressão para que o modo de
gestionados, ou simplesmente um espaço ade- repartição dos sistemas nacionais de aposentado-
quado para indivíduos ambiciosos.22 ria seja transformado em modo de capitalização.
Muitos participantes desses debates repudiam as
mudanças e o modelo de governança corporativa,
A oposição simbólica contra-intuitiva pois ele é freqüentemente associado às reformas
da previdência. Ademais, teme-se o esgarçamen-
Seguir a dinâmica interna da instauração to do tecido social em virtude da quebra de soli-
dessa nova institucionalidade é um exercício se- dariedade consolidada por várias gerações entre
dutor que pode nos desviar da lógica social mais empresas e funcionários, pois com a introdução
ampla, que coordena seu desenvolvimento e seus desse modelo, as sociedades anônimas passariam
limites. Se no âmbito internacional ela representa a adotar modos de gestão característicos dos Esta-
uma tendência dominante, no Brasil, a especifici- dos Unidos e, assim, privilegiariam o ponto de
dade do momento em que esse modelo começou vista de seus acionistas em detrimento de outras
a ser discutido sugere um caráter reativo. Isso nos considerações relativas ao corpo funcional ou às
leva a considerar o processo interno do país a par- comunidades com que se relacionam (ver Niko-
tir da noção de “guerra cultural”, inspirada no “kul- noff, 1999; Lordon, 2000).
turkampf” da tradição dos debates intelectuais da No espaço da conformação das figuras sim-
Europa Central no período entre a metade do sé- bólicas que estamos analisando, observa-se a sub-
culo XIX e o advento do nazismo. mersão quase completa da idéia de câmaras seto-
Uma maneira de avaliar essa peculiaridade riais e uma maior discussão em torno do modelo
pode ser depreendida da relação que se faz entre de governança corporativa. Com a aproximação
a governança corporativa e a noção de transpa- do período das eleições federais, em 2002, a
rência. Lembremos que a necessidade de “trans- agenda imposta pelos ideais convencionais pare-
parência” foi um requisito social desenvolvido na ce ter tido êxito antecipado, já que os economis-
crítica dos aparelhos burocráticos hipertrofiados tas ligados ao Partido dos Trabalhadores, princi-
durante a ditadura militar.23 Uma vez alçada ao rol pal partido de oposição, passaram a afirmar seu
das preocupações sociais relevantes, essa noção respeito pela ortodoxia econômica então vigente.
foi sendo modelada para abrigar as necessidades Assim, ações locais orquestradas, que poderiam
contábeis das sociedades anônimas que queriam ser agrupadas em torno do conceito de câmara
ser financiadas pelo mercado financeiro. Assim, regional ou local, são registradas prioritariamente
148 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

como eventos políticos. Isso revela a dinâmica da que tudo indica, a possível alternativa de articula-
atuação política da oposição, em que os políticos, ção autônoma dos atores econômicos e sociais em
movidos (ou cognitivamente tolhidos) pela agen- torno das câmaras estaria sendo substituída pela te-
da de discussão vigente, ressaltam o rigorismo fis- matização cada vez mais forte da necessidade de
cal como a principal virtude das administrações uma “política industrial diferente do protecionismo
locais do Partido dos Trabalhadores.24 do passado”, construção social ainda bastante
As câmaras setoriais, que coordenavam os vaga, mas que deve indicar uma nova forma de
esforços dos stakeholders de um determinado ramo coordenação, em que as diversas instâncias gover-
econômico, no sentido de melhorar as condições namentais seriam mais centrais e teriam mais espa-
institucionais bem como conseguir condições fa- ço do que no sistema de câmaras.25
voráveis para o funcionamento do setor junto às A análise da seleção do pessoal político tal-
esferas federal e estadual, perderam grande parte vez lance uma luz sobre esse tema. Pode-se pen-
de seu espaço. Se no início do período FHC as câ- sar, por exemplo, quanto ao Partido dos Trabalha-
mara setoriais disputaram e perderam espaço em dores, onde a alternativa das “câmaras setoriais”
um governo mais operacional do que aquele que mais se desenvolveu, um estudo sobre a porosi-
assistiu, passivamente, ao aparecimento e à con- dade existente, ou possível, entre a esfera do sin-
solidação de grande parte delas, numa segunda dicalismo estritamente operário, responsável por
fase, foram os governos locais que se destacaram, grande parte do agenciamento de pessoal na
o que corrobora a análise de Arbix de que gover- construção do partido, e os setores da sociedade
nos fortes enfraquecem as câmaras. de onde se recrutam os indivíduos a cargos no
De maneira geral, a análise do período suge- executivo, mais próximos aos conceitos espontâ-
re uma ampliação, inspirada em Weber e Bourdieu, neos de “classe média assalariada”. De qualquer
da visão que contrapõe a vitalidade das câmaras maneira, ainda que encontrássemos evidências
com a vitalidade apresentada pelos governos lo- sociológicas de uma bifurcação importante entre
cais. Trata-se da maior ou menor capacidade de o esses dois tipos de recrutamento, como sugere a
sistema político, independentemente de suas divi- análise perfunctória da origem dos prefeitos re-
sões internas, absorver e lidar com as demandas centes da região do ABC ligados ou oriundos do
de coordenação e reivindicação setorial. A relação PT (por exemplo, Celso Daniel e Maurício Soares
da esfera política com as esferas econômica e sin- de Santo André e São Bernardo respectivamente),
dical, representadas por empresários e trabalha- seria preciso ainda explicar politicamente a cons-
dores, dependeria mais da capacidade operacio- trução da diferenciação de perspectivas.
nal pontual e da legitimidade de cada uma dessas Entretanto, talvez esse aparente fracasso, ou
esferas num determinado período do que da im- mesmo desaparecimento das câmaras, encubra
posição, teórica ou empírica, de um esquema de uma importante inflexão institucional que possi-
institucionalização abstrato. velmente não ocorreria sem a existência delas. As-
Trata-se, portanto, da maior ou menor capa- sim como os atores políticos regionais italianos es-
cidade de a esfera política se constituir em um cam- tudados por Putnam (1993), os participantes das
po autônomo, na forma pela qual Bourdieu (1981) câmaras setoriais passaram por um intenso proces-
analisou o cenário político francês. Isto é, um con- so de reconhecimento mútuo, que transformou sua
junto de atores que permanentemente se encontra visão de mundo e, conseqüentemente, seu modo
em uma relação ambígua, ao mesmo tempo de de atuação. É assim que constatamos recentemen-
concorrência e de cooperação, que os torna capa- te, e já sem muita surpresa, o processo de negocia-
zes de incorporar, registrar como atinentes à sua ção e cooperação empresa/sindicato para renovar
esfera legítima de atuação e traduzir para seus ter- a Unidade Anchieta de São Bernardo do Campo
mos toda a agitação ocorrida em sua volta e ainda da Volkswagen.26 É preciso lembrar não apenas de
de impor sua temporalidade e sua dinâmica inter- que se tratava da planta considerada pelos espe-
na no tratamento dos contenciosos. No Brasil, ao cialistas o exemplo do brown field – termo que
ATORES E AÇÕES NA CONSTRUÇÃO DA GOVERNANÇA... 149

conceitua uma instalação industrial antiquada, O panorama internacional e as


sem possibilidades de recuperação para as aplica- dificuldades do modelo de
ções de técnicas modernas, organizacionais e/ou governança corporativa
informáticas – e, portanto, condenada ao fecha-
mento, mas também de que essa unidade foi o Apesar da pressão dos ideólogos da transpa-
palco de uma das primeiras batalhas dos trabalha- rência contábil e do mercado de ações brasileiro,
dores, quando a direção da empresa tentou, sem assustado com o encolhimento de sua clientela, a
grande sucesso, instituir a figura do representante versão final da nova lei das Sociedades Anônimas
operário independente em oposição aos quadros ficou muito aquém do esperado por eles.28 Ade-
oriundos do sindicato. No final de 2002, obser- mais, o fantasma da crise cambial e uma série de
vam-se enormes painéis afixados na famosa plan- eventos desabonadores “na matriz ideológica” do
ta industrial, que simbolicamente anunciam os modelo de governança corporativa, sobretudo de-
novos tempos.27 É interessante ver o processo de pois da falência inesperada da Enron, mostraram
mudança estrutural por meio das transformações os limites do tipo de capitalismo desenhado e de-
ocorridas nesse local. Ponto de passagem obriga- sejado pela utopia financeira. A idéia de mercado
tório das viagens entre a cidade de São Paulo e o auto-regulado, aqui especificado na lógica do sis-
litoral paulista, essa unidade da Volkswagen no tema de double checking, que garantiria a integri-
passado significou o advento da industrialização dade dos demonstrativos contábeis, foi seriamen-
deflagrada no período JK – a nova fábrica, de ar- te abalada.29 Até mesmo uma empresa que teria
todo o interesse econômico em manter sua credi-
quitetura arrojada, justamente ao lado da nova ro-
bilidade, já que isso constitui a base de seu fun-
dovia Anchieta, marcos evocativos da modernida-
do de comércio, como a Arthur Andersen, uma
de da época –; a partir dos anos de 1970,
das maiores empresas de auditoria externa do
sinalizava, com os pátios repletos de automóveis,
mundo, foi capaz de coonestar as práticas contá-
a crise do setor automobilístico e, conseqüente-
beis que encobriam sua situação periclitante, o
mente, a necessidade de os governos melhorarem
que causou graves conseqüências para os acionis-
as condições institucionais dessa indústria, am-
tas e, sobretudo, para os funcionários que pos-
pliando o crédito, as alíquotas de importação de
suíam o plano de seguridade privada patrocinado
veículos estrangeiros e liberando a abertura de
pela companhia. E ainda o shareholder power –
consórcios; e no final do século XX e início do
recente militância de acionistas, em especial os
XXI serve de suporte físico e simbólico para o institucionais dos fundos de pensão, para garantir
anúncio do novo universo da cooperação entre seus direitos junto à direção das grandes empre-
todos os atores envolvidos na trama industrial, em sas norte-americanas –, até o momento considera-
grande parte nacionalista e oposto ao mundo fi- do um sólido instrumento de check and balance,
nanceiro internacionalizado. que aumentaria a proteção dos acionistas no mer-
Dessa forma, as câmaras setoriais, ainda que cado por meio do monitoramento contínuo e pre-
tenham fracassado no seu intuito original, repre- ciso das atividades das public enterprises, quedou-
sentaram um momento importante na construção se inerme diante das práticas indesejáveis das
social de uma retórica genérica de cooperação, empresas, ou seja, a maquiação de seus demons-
passo fundamental para, num ambiente original- trativos contábeis30, através da realização de “con-
mente marcado pelo antagonismo entre as partes, tas de chegada”, para satisfazer as “duras deman-
inserir esse conceito no espaço social das possibi- das do mercado”, que exigiam das empresas
lidades viáveis e assim tornar possíveis as mais di- lucros da ordem de 15% ao ano.31 É possível que
versas estratégias de cooperação efetiva, dotadas os eventos deflagrados pelos atentados de 11 de
de contornos e propósitos que a inventividade e setembro nos Estados Unidos e reavivados com a
a interação social dos agentes irão especificar no guerra do Iraque tenham encoberto parcialmente
decorrer do tempo e das experiências. esse assunto para um público mais amplo e evita-
150 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

do a irrupção de movimentos antiplutocráticos,32 tremamente explorado pelos ancestrais dos atuais


que seriam previsíveis dada a cultura política nor- populistas da direita européia37 e também presen-
te-americana e a ligação entre os executivos da te nas candidaturas independentes de centro-di-
Enron e diversos atores do establishment político reita que se apresentam regularmente nas
daquele país.33 Entretanto, dificilmente essa ten- eleições presidenciais norte-americanas, como a
dência será evitada diante de casos como “Wolrd- mais recente de Ross Perot. Assim, não está des-
com”, “Tyco” e de outros problemas com de- cartada a possibilidade de encontrarmos no futu-
monstrativos contábeis de public enterprises ro próximo figuras caricatas representando os
norte-americanas que eclodiram recentemente. E plutocratas, como o francês Gros Bonnet ou o
para tornar a situação ainda mais complexa, a fi- norte-americano Robber Baron. Como mostra Ste-
gura pública do CEO (Chief of the Executive Of- rhell (1978) em relação à evolução da extrema-di-
fice) da grande empresa norte-americana, até en- reita francesa, esse tipo de propaganda política,
tão entendida como o ressurgimento dos valores destinada a viabilizar carreiras que normalmente
positivos do capitalismo, começa a ser severa- não teriam lugar no tabuleiro institucional, come-
mente questionada como sendo cúmplice e prin- ça nas franjas do sistema por meio da difusão de
cipal responsável – na medida em que a remune- panfletos acusatórios anônimos. Se há uma boa
ração variável ligada ao desempenho da empresa repercussão, seus autores assumem progressiva-
se torna sua principal fonte de ingresso e mesmo mente a autoria, tentando influenciar o cenário
de enriquecimento – das “maracutaias” que têm político e ideológico. Uma análise, ainda que su-
aparecido na imprensa.34 perficial, da profusão de sites na Internet (equiva-
Provavelmente, o “caso Enron” irá influen- lentes funcionais para os panfletos apócrifos do
ciar de maneira negativa a crença no mundo das final do século XIX, dos quais os “Protocolos dos
finanças, no qual os preceitos da “boa governan- Sábios do Sion” foram o exemplo mais conhecido)
ça corporativa” se tornaram uma espécie de có- que divulgam essa ideologia revelaria que a extre-
digo de conduta virtuosa. Esse modelo depende ma-direita pode não ser muito ativa, mas está lon-
essencialmente de uma seqüência lógica, qual ge de ter sido extinta.38
seja, a de que os agentes econômicos têm inte- No Brasil, pode-se também encontrar esse
resse econômico em manter suas reputações, e, tipo de site,39 como os que criticavam o processo
em conseqüência, a tendência ao oportunismo de privatização das empresas públicas e, exploran-
seria controlada pelo altíssimo preço a pagar por do a figura do empresário Benjamin Steinbruch,
fraudes e conluios.35 Entretanto, a se crer nos da- insistiam na idéia de conspiração judaica dos plu-
dos coligidos pelas análises que assinalam o tocratas. Outra boa pista para investigarmos a sen-
avanço do componente financeiro e acionário sibilidade brasileira em relação à questão da plu-
nos Estados Unidos, na Inglaterra e, cada vez tocracia, esta possivelmente bem mais caudalosa,
mais, em todos os países desenvolvidos da Euro- é a discussão e o destino do Capítulo IV da Cons-
pa ocidental, o interesse direto da população no tituição Federal de 1988, e da Emenda nº 13/1996,
mercado acionário, sobretudo por meio dos fun- que tratam do sistema financeiro nacional. Esses
dos de pensão, o que implica um interesse pela dispositivos mantêm, ainda que aparentemente
lógica virtuosa dos mercados, pode mitigar a pro- sem regulamentação ou efeito prático, o inciso,
pagação do ceticismo.36 derivado da “velha” Lei da Usura dos anos de
Contudo, o inverso também pode acontecer. 1930, que limita as taxas de juros praticadas no
Por exemplo, a partir de uma propaganda políti- Brasil a 12% ao ano.40 Apesar de terem sido mui-
ca da cada vez mais expressiva extrema-direita to criticados, esses instrumentos legais continua-
européia, poderíamos assistir à revitalização de ram incomodando o pensamento econômico con-
idéias antiplutocráticas, como ocorreu no episó- vencional, já que também não houve consenso
dio da falência da Companhia Francesa do canal para derrogar o preceito anti-usura na legislatura
do Panamá na segunda metade do século XIX, ex- iniciada em 2003.41
ATORES E AÇÕES NA CONSTRUÇÃO DA GOVERNANÇA... 151

A “questão da lei da usura” pode ser anali- qüências de uma crença induzida, não por inte-
sada no mesmo registro em que se deu a Conso- resses ou necessidades explícitas, mas pelo desejo
lidação das Leis do Trabalho (CLT) e, de forma de pertencer a um grupo e de mantê-lo. É assim
mais reduzida, a “luta pela transparência contábil” que as coalizões se formam, e os entendimentos
anunciada pelos agentes favoráveis à governança compartilhados na cena econômica e social duram
corporativa. Ter uma posição contrária à CLT e à bem mais do que seria previsto por um conjunto
regulamentação do teto da taxa de juros tornou- de procedimentos de prova e refutação, como os
se a condição necessária para sedimentar idéias praticados pelo mundo acadêmico. Dessa forma,
“modernas” nas esferas política e econômica.42 Em além do trabalho de elucidação da lógica argu-
conseqüência, não surpreende que opiniões pau- mentativa, é conveniente examinar o “neolibera-
tadas pelo mainstream se sobressaiam de manei- lismo” no Brasil pelo viés da construção de uma
ra cada vez mais ruidosa, o que se constitui em liturgia em torno da celebração de valores moder-
um excelente verificador da hipótese da latência nos, conferindo também importância à pressão
dos critérios formadores de grupos e da sua insti- social pela manutenção de lugares privilegiados –
tucionalização, como foi predicado por Mary não só material, mas também, e sobretudo, sim-
Douglas (1987, p. 41). bolicamente – que se tornam disponíveis para os
Contudo, a CLT resiste, a nova lei das Socie- membros do grupo.
dades Anônimas propôs transformações muito
aquém das desejadas pelos ideólogos do modelo
de governança corporativa e a Lei da Usura, ainda Plutocracia no Brasil recente
que não regulamentada, paira como a espada de
Dâmocles sobre aqueles que vislumbram um sis- Não é preciso muito esforço para prever a
tema financeiro de “primeiro mundo”. Assistimos pressão dos organismos internacionais e do “mer-
a uma situação de equilíbrio curiosa, na qual um cado” sobre os apêndices “arcaizantes” da legisla-
dos lados parece concentrar toda a legitimidade ção econômica e trabalhista no Brasil, na medida
social e se manifesta de forma alardeante, en- em que a situação de dependência externa se
quanto o outro praticamente perdeu qualquer es- agrava e a exemplo do que ocorreu recentemen-
paço de expressão, mas consegue manter esse te na Argentina com a enorme pressão do FMI
desgaste controlado num nível que lhe possibilite pela revogação da “Lei do Crime Financeiro”.43
um possível retorno à arena pública (Douglas, Entretanto, as recentíssimas revelações em casca-
1987). Isso ocorre no campo da idéias ou está ta sobre os misdeeds do universo empresarial nor-
mais diretamente ancorado no espaço social? te-americano exigiram medidas legislativas dos re-
Acredito que a resposta institucionalista neodur- presentantes populares dos Estados Unidos,44 o
kheimiana proposta por Douglas, fortemente ins- que torna cada vez mais interessante a análise das
pirada na idéia de “comunidades intelectuais” que possíveis mudanças de orientação do FMI e de-
se popularizou com a redescoberta dos trabalhos mais organismos internacionais de crédito. Em
de história da ciência de Ludwik Fleck (1979), que grau as receitas tradicionais, que vislumbram
seja adequada para o traçado do espaço hipotéti- um ambiente institucional o mais próximo possí-
co sócio-lógico. As relações entre as idéias e a vel do modelo norte-americano, estariam institu-
criação são bem mais interativas do que estamos cionalizadas nos “aparelhos” internacionais?45 Em
acostumados a crer. A chamada “ilusão escolásti- que medida o pensamento econômico convencio-
ca” costuma impelir os analistas a pensar a rela- nal sedimentado nos anos de 1990 estaria perden-
ção entre indivíduos e idéias como um processo do espaço? Ou ainda em que medida a vitória do
de apreensão racional (Bourdieu, 1997). Desde o candidato do PT nas eleições presidenciais de
aforismo de Durkheim – Deus é a sociedade –, a 2002 questionaria esse tipo de pensamento? Será
sociologia tem uma boa base para ultrapassar que como outros exemplos de funcionamento
esse entendimento simplório e avaliar as conse- perverso daqueles “aparelhos” estaríamos fadados
152 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

a viver uma radicalização da ortodoxia econômi- em particular, do mercado financeiro que, afinal,
ca? Essas mesmas perguntas poderiam ser formu- é sediado em São Paulo. Assim a candidatura de
ladas para os locutores nacionais da “razão finan- José Serra, tida como excessivamente paulista,
ceira” no que diz respeito, sobretudo, ao grau de passou a ser atacada com o intuito de marcar o
complementaridade e de comunicação entre os “caráter mais brasileiro” de Ciro Gomes. O invó-
dirigentes dos órgãos internacionais e os seguido- lucro retórico utilizado permite a veiculação des-
res da ideologia “moderna”. ses conteúdos, os quais seriam indizíveis se ex-
Sinalizando o alcance e os limites da postu- pressos de maneira transparente.
ra “antifinanceira”, eis que o termo “plutocracia”, Na evolução da contenda, Ciro Gomes lan-
que até então tivera conotações notadamente ar- çou-se na campanha presidencial como outsider,
caizantes, ressurgiu no arcabouço da fulgurante recusando ostensivamente qualquer contribuição
campanha presidencial de Ciro Gomes.46 Sigamos, de banqueiros e do capital financeiro em geral,
pois, a “nova carreira” dessa fênix ideológica. Em mas, a caminho para o centro do tabuleiro políti-
uma primeira análise, é interessante notar que o co, passou a relativizar os rompantes que, até en-
reaparecimento desse termo se deu a partir de tão, enunciava de maneira estridente. Isso ficou
uma candidatura que parecia, de início, estar fora claro no auge de sua popularidade. Nas palavras
da disputa pelo poder. Havia o “grande bloco do de seu coordenador político:
governo e do sistema”, representado pela candi-
datura de José Serra (PSDB), e o “grande bloco da “As doações de banqueiros serão bem-vindas, des-
oposição e da esquerda representante dos movi- de que sejam feitas dentro da lei e sob o manto das
mentos populares”, que se reuniu em torno da nossas propostas”, disse o coordenador político da
candidatura de Lula. Em muitos aspectos, a reuti- campanha, o deputado João Hermann Neto (PPS-
SP). Segundo ele, apesar de defender a reestrutura-
lização dessa ideologia segue os modelos tradi-
ção do sistema financeiro e a drástica redução das
cionais da idéia de plutocracia, recorrente do ar- taxas de juros – que fazem com que esse setor acu-
cabouço da cultura política e econômica do mule grandes lucros –, o candidato conseguirá
Ocidente. Fenomenologicamente, essa idéia apre- atraí-los com suas propostas. “Para não perderem
senta-se como uma espécie de cunha verbal, em- os dedos, ele podem nos apoiar. Isso porque é pre-
punhada por atores situados nos extremos do es- ferível ganhar pouco, mas se manter vivo”.48
pectro político. Sua principal utilidade retórica
consiste em separar o “bom capital” do “mau ca- Assim, o candidato da frente trabalhista foi
pital” (ver, entre outros, Sternhell, 1978). O pri- aumentando sua interação direta com o centro do
meiro envolve os capitalistas tradicionais, enraiza- espectro político e econômico. O tom de seu dis-
dos, ligados à terra e às regiões do país em geral, curso antiplutocrático tornou-se mais suave, e em
que, de modo implícito, são chamados a contri- suas declarações começaram a surgir termos como
buir para a causa política que faz esse gênero de “a procura de bons banqueiros”, ou, de outro lado,
pregação. O segundo está vinculado ao “cosmo- a alcunha de “barão” para caracterizar os possíveis
politismo sem-raízes”, em geral associado aos ju- privilegiados de uma ordem injusta. Como nesse
deus e a outros grupos étnicos das chamadas “na- ambiente o espaço dos discursos possíveis é tam-
ções comerciantes” – sírios, libaneses, armênios e, bém o dos prováveis, assistimos, em seguida, a
mais recentemente, também chineses e coreanos. uma espécie de passagem de bastão, em que Ciro
Trata-se, segundo essa perspectiva, da personifi- Gomes transfere a Anthony Garotinho a denomina-
cação do perigo que se deve exorcizar. Ao que ção de candidato outsider e, não por acaso, o con-
tudo indica, o recurso à retórica da antiplutocra- tendor do Partido Socialista assume uma temática
cia tornou-se, no Brasil, uma maneira disfarçada mais radical em seu discurso.49
de se invocar a questão regional, sugerindo o “ca- Em contrapartida, mostrando de maneira
ráter menos brasileiro” do patronato paulista (cha- inequívoca os limites das posturas antifinanceiras,
mado posteriormente de “barões paulistas”47) e, é bastante reveladora a evolução da campanha
ATORES E AÇÕES NA CONSTRUÇÃO DA GOVERNANÇA... 153

empreendida pelo candidato do Partido dos Tra- sa de seus dirigentes na gestão dos fundos sociais
balhadores. À medida que Lula se aproximava do (FGTS, FAT), num processo simultâneo ao do ar-
pleito eleitoral com chances de se tornar vence- refecimento dos movimentos grevistas no setor
dor, ele explicitava uma plataforma econômica privado. Isso acabou transferindo a atuação visí-
que poderíamos chamar de “hipercapitalista”, ou vel e politicamente relevante das lideranças sindi-
seja, uma concepção de que o caráter estamental cais para a esfera das grandes decisões econômi-
da ordem econômica brasileira seria um dos pro- cas, restringindo sua atuação direta em torno de
blemas centrais a serem superados. Disso deriva- questões sindicais. Nos últimos anos, observa-se,
se a ênfase de seu discurso tanto na questão do então, a confluência entre o mercado de capitais
microcrédito para fomentar o empreendimento e os expoentes do movimento sindical e da es-
popular – e está implícito aí a idéia de que os pe- querda, o que, entre outras conseqüências, apon-
quenos negócios sejam sufocados por uma ordem ta para a evidência da impossibilidade de reten-
injusta e pouco dinâmica que privilegia interesses ção do argumento antifinanceiro no mainstream
já constituídos –, como na revitalização do merca- do espaço político e econômico.
do de capitais e, em particular, na formação de
fundos de pensão organizados por sindicatos e
associações análogas, que se tornariam precio-
Conclusão
sos mecanismos de formação e direcionamento
de poupança.50 A questão da transparência na
A análise das estratégias retóricas em confli-
gestão desses órgãos e a da governança corpora-
to e em composição que apresentamos tinha por
tiva em geral não foi explicitamente apresentada
objetivo explorar novos ângulos das contendas
naquele momento, mas a convergência para as
reivindicações dos setores do mercado de capitais culturais e econômicas recentes. Contudo, acredi-
era notável, o que ampliava as possibilidades, tamos que o viés analítico percorrido nos permi-
caso fosse eleito, de ele adotar essa perspectiva, tiu ir além desse objetivo. A construção de novos
processo que se configurou mais tarde.51 ou a preservação de antigos entendimentos refle-
As ligações entre o PT e a Bolsa de Valores tem-se na criação ou no impedimento de novos
só surpreenderam aqueles que não acompanha- grupos e dinâmicas sociais.54 No âmbito simbóli-
ram o desenvolvimento da cena econômica brasi- co, a análise do modelo de governança corporati-
leira nos últimos anos. Já faz algum tempo que a va e de sua relação com a noção de transparên-
Bovespa tem assumido um tom nacionalista, li- cia mostra que o uso das idéias não se modela a
gando-se a outros segmentos do movimento sin- nenhuma propriedade intelectual, e não obstante
dical, notadamente a Força Sindical, como no epi- a reapropriação de significados produzidos no de-
sódio da privatização da Companhia Siderúrgica correr das lutas sociais ser um dos principais ins-
Nacional e do uso do FGTS para a compra de trumentos para a construção de novas institucio-
ações da Petrobrás ou da Companhia Vale do Rio nalidades, observa-se menos antagonismo e mais
do Doce.52 Do lado dos agentes atuantes no mer- complementaridade dos agentes posicionados em
cado de capitais, a globalização deste concentrou zonas diferentes do espaço político .
operações de grandes investidores em Nova York, O período que chamamos de “década neoli-
Londres, Frankfurt e Tóquio, o que estreitou dras- beral” aparentemente representou a permanência
ticamente a possível clientela dos intermediários da visão financeira como uma doxa. No cerne des-
bursáteis locais, os quais foram, por sua vez, im- sa cristalização, observamos processos econômi-
pelidos a abraçar a causa do nacionalismo e a se cos, como o da privatização de diversas compa-
tornarem aliados potenciais dos movimentos sin- nhias estatais, que tiveram por conseqüência o
dicais e dos fundos de pensão nacionais.53 Do esfacelamento de grupos sociais que haviam se
lado das principais correntes do movimento sindi- formado em torno dessas organizações. Assistimos
cal, assistimos à participação cada vez mais inten- à paralisia da defesa pública dos princípios que re-
154 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

ferendam o coletivismo de trabalhadores ou da cos em detrimento dos chamados atores sociais.


comunidade industrial.55 Privados da base simbóli- A carreira do modelo de governança corpo-
ca para defender aqueles que representavam, os rativa, ainda que mais curta, também nos sugere
sindicatos de uma maneira geral, independente- interessantes pistas analíticas. No início e no auge
mente das nuanças políticas que os separavam, in- do período estudado, esse modelo fazia parte de
vestiram em coalizões que pudessem lhes garantir uma série de princípios de convivência oriundos
a continuidade de sua atuação pública. Daí a liga- da lógica mercantil-financeira, aceitos de maneira
ção com o mercado financeiro, a qual não deve irrefletida como simples dados de natureza – um
ser vista apenas em sua face conspícua da partici- ethos weberiano em estado implícito. No final da
pação das centrais sindicais na privatização (Força década, em proximidade às eleições municipais
Sindical), ou nas interações entre Lula, PT e Bo- de 2000, quando questões correlatas do desem-
vespa. A atuação em órgãos como o Conselho prego e da estagnação econômica tornaram-se re-
Gestor do FGTS ou do FAT e, sobretudo, o inte- levantes na agenda política, perturbando o equilí-
resse cada vez maior das centrais no destino e na brio simbólico da lógica até então prevalecente, o
própria gestão cotidiana dos fundos de pensão, to- ethos implícito não mais assegurava a estabilidade
dos princípios de relacionamento econômico e
dos esses aspectos sinalizam uma recomposição
social, necessitando de uma codificação explícita
de alianças apenas possível quando operada cog-
dentro de uma ética que reforçaria o construto e
nitivamente num sistema de equivalências que
sedimentaria as fissuras. Foi nesse momento que,
transcende a lógica industrial de que as câmaras
não por acaso, a idéia de governança corporativa
setoriais se nutrem. Além disso, como pudemos
adquiriu expressão pública. Segundo as reflexões
depreender da breve sobrevida da concepção plu-
de Duby e Bourdieu, o paradoxo, ainda que con-
tocrática, o repúdio às formas de articulação finan-
tra-intuitivo, não tem nada de inédito: a necessi-
ceiras parece ter fôlego curto, a não ser, talvez, no
dade de explicitação de um princípio de convi-
interior de uma crise social muito mais abrangen-
vência é sinal de seu desgaste social e atividade
te do que tudo a que assistimos até agora. Cons- absolutamente necessária para lhe conferir sobre-
tatamos, portanto, que no âmbito propriamente vida.56 E, como vimos para o caso da inserção do
político se observa uma dinâmica que opõe os modelo de governança corporativa no Brasil, uma
atores que investem na esfera macro da regulação vez reforçado, o princípio ganha novos adeptos e,
da sociedade àqueles que permanecem nas con- possivelmente, novos conteúdos.
tendas locais ou regionais. E mais do que isso,
essa linha de força perpassa tanto os partidos po-
líticos e as centrais sindicais como as demais enti- NOTA
dades coletivas e, provavelmente, suas exigências
se farão sentir num futuro próximo. 1 A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio
No contexto simbólico desse período, as câ- e Desenvolvimento (Unctad) informou que o va-
maras setoriais foram condenadas a representar os lor total de fusões e aquisições no Brasil no ano
interesses localizados espacial e funcionalmente, o passado foi de US$ 23,013 bilhões, mais do que o
que as tornou indefensáveis na arena pública na- dobro registrado em 1999, de US$ 9,357 bilhões.
cional. Em virtude dessa condição, assistiu-se a O Brasil foi também o responsável por mais de
um processo de deslegitimação, no qual as ques- 50% de todas as fusões e aquisições internacionais
tões tratadas pelas câmaras setoriais somente ga- registradas na América Latina em 2000, que totali-
nharam força quando estas estiveram vinculadas zaram US$ 42,5 bilhões (ver O Estado de São Pau-
ao sistema político e, portanto, à idéia de interes- lo, “Fusões e aquisições movimentam US$ 23 bi-
se geral então prevalecente. E essa mudança de lhões no Brasil”, 27/6/2002). Em 1994, foram 175
localização produziu um rearranjo no sistema de processos e, em 2000, esse número atingiu 353
forças que conferiu centralidade aos atores políti- (ver O Estado de São Paulo, 31/7/2001, “Estudo
ATORES E AÇÕES NA CONSTRUÇÃO DA GOVERNANÇA... 155

diz que fusões trouxeram ganhos para o país”). cas, financeiras e legais dos países do Primeiro
2 Nesse contexto, take-over é a aquisição do con- Mundo. Após a intensa divulgação das idéias so-
trole acionário de uma empresa por meio da bre administração industrial do Japão no Ociden-
compra ou da centralização de suas ações, a des- te, a recuperação da competitividade de várias
peito da opinião e da vontade de diretores e con- empresas norte-americanas na concorrência inter-
troladores do momento. nacional foi primeiro associada ao catch-up das
técnicas japonesas e aos progressos da automação
3 Qualquer semelhança com o debate sobre a in-
industrial, para depois obter uma explicação fi-
trodução das práticas relacionadas com a admi-
nanceira. Ver uma das primeiras aparições públi-
nistração industrial japonesa nos anos de 1970 e
cas relevantes desse novo consenso na revista The
1980 não é, evidentemente, mera coincidência.
Economist (1994), onde a nova interpretação pas-
4 É claro que esse tipo de reação dos mercados de sa a ter uma amplitude econômica internacional.
capitais não é uma conseqüência inevitável da fi-
9 A propósito do debate e dos esclarecimentos so-
nanceirização. Mas, dada a maior volatilidade dos
bre a “incomensurabilidade” de Kuhn, ver Hor-
portfolios financeiros observada na última década, wich (1993). Nesse estudo encontra-se a “matéria-
a tendência de se considerar apenas o curto pra- prima filosófica” para o debate sociológico sobre
zo é observada na quase totalidade dos casos, em- os problemas de mensuração da atividade econô-
bora esse resultado empírico não implique neces- mica. Para um ponto de vista mais próximo, ver
sariamente que isso vá acontecer no futuro. Uma Nelson Goodman (1996, p. 144), que afirmou:
boa análise institucionalista dessa tendência en- “We cannot find any world-feature independent
contra-se em Orléan (1999). of all versions”.
5 Para uma análise sociológica da mudança de mo- 10 Posteriormente as idéias de “concertação” econô-
dos de mensuração da atividade empresarial no mica e social, cognitivamente aparentadas às que
contexto de competição e da incompatibilidade fundamentam as câmaras setoriais, foram introdu-
entre patrões e gerentes, ver Fligstein (1990). Tra- zidas nos debates do início do Governo Lula pelo
ta-se de uma argumentação típica do neo-institu- Ministro Tarso Genro.
cionalismo aplicado à análise organizacional. 11 G. Arbix propõe o seguinte par de equações: go-
Para uma análise dos estágios da apresentação verno fraco = câmaras setoriais fortes; governo
sociológica neo-institucional desse problema, ver forte = câmaras setoriais fracas. O esquema pare-
Meyer (1993, 1994) e MMAA (1998). Um ponto de ce aderir perfeitamente aos fatos políticos dos úl-
vista semelhante sobre a incomensurabilidade, timos anos. Mas talvez devêssemos focalizar prio-
mas mais genérico e explicitamente ancorado na ritariamente as fontes de força e a fraqueza do
filosofia analítica, ver Bourdieu (2001, p. 146). tanto do governo federal como das câmaras seto-
6 A aparição pública do modelo de governança riais. Cf. Arbix (1997).
corporativa foi, evidentemente, antecedida por 12 Outros problemas como, por exemplo, os prove-
muita movimentação de atores, sobretudo nas nientes do desequilíbrio das contas externas eram
esferas jurídica e econômica. A criação da pri- também alvo das preocupações dos setores que
meira instituição foi em 1995 – Instituto Brasilei- faziam oposição ao governo FHC, o que tinha re-
ro de Governança Corporativa (IBGC). Ver site flexo nas preocupações do “mercado”, contudo
http://www.ibGC.org.br. esses problemas não parecem deflagrar mudan-
7 Despacho da Agestado em 7/9/2000, às 17h21, ças nas linhas do debate.
“Fraga: governo incentivará fundos de pensão”. 13 Analisei a situação extrema no sentido contrário,
8 A afirmação de Fraga deve ser contextualizada no a partir de dados colhidos em 1994 e 1995, em
espaço das interpretações correntes no mains- Grün (1996).
tream dos mercados financeiros acerca das posi- 14 Ao contrário do homo economicus, proposto
ções e das virtudes das configurações econômi- como um ser isolado de qualquer contágio emo-
156 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

cional, e, de certa forma, assinalando os limites aparecem apenas uma vez, como “câmaras técni-
dessa construção intelectual. cas setoriais” e no terceiro capítulo, denominado
15 Evidentemente, ambos os lados privilegiam com “Inclusão social”. Não há menção ao termo nos
maior entusiasmo a vigência de seu princípio, mes- dois primeiros, dedicados a questões estritamen-
mo que lhes pareça impróprio em certos momen- te econômicas. No programa de governo de Ciro
tos. Entretanto, a força social da razão dialógica Gomes, as câmaras também não aparecem (http://
tende a prevalecer nessas situações, impondo a uti- www.ciro23.com.br/23/arquivos/doc/0/ 248.doc)
lização do princípio das linhas argumentativas mais 25 Ver O Estado de São Paulo, “Política industrial fi-
adequadas para cada esfera. nalmente sairá do papel: em outubro, os minis-
16 Ver os textos apresentados em seminário do tros da área econômica e o presidente devem
BNDES no site dessa instituição: www.bndes. aprovar o texto da proposta”, 4/8/2002.
gov.br, (10/8/2000). 26 Ver, por exemplo, a coluna de Luís Nassif, “A es-
17 Ver Despacho da AGESTADO, op. cit. tratégia da Volks”, Folha de São Paulo, 15/6/2002.
18 Armínio Fraga teve papel crucial na estratégia de 27 Sobre as circunstâncias desses eventos, ver entre-
comunicação das autoridades econômicas do vista de José Lopes Feijó no endereço eletrônico:
período FHC, não só internamente ao grupo de http://www.oficinainforma.com.br/semana/leitu-
atores alojados na zona do Ministério da Fazen- ras-20020119/02.htm. Sobre a apresentação “ofi-
da, mas também na sua área de influência no cial”, ver http://www.volkswagen.com.br/ fábrica
congresso, na mídia e na academia. Se houve in- nova Anchieta.
telectuais orgânicos do período, estamos diante 28 Ver jornal O Globo, “Nova Lei das SA é sanciona-
de um deles. da com 17 vetos”, 2/11/2001.
19 Ver AGESTADO, 20/7/2000, às 20h51, “Kandir ad- 29 Ver, por exemplo, Financial Times, “The most se-
mite alterações na lei das S.As”. rious aspect of the scandal is the way in which
20 Ver Folha de S. Paulo, “Novo mercado: pequenos the checks and balances that safeguard investors,
e grandes terão direitos iguais”, 20/11/2000. employees and creditors were all found wanting”,
21 Para uma análise dessa tendência, ver Orléan 19/2/2002.
(1999, pp. 196e ss.). 30 Ver, New York Times, “Inquiry Appears to Bolster
22 Dezalay e Garth (2002) destacam essa dinâmica Fraud Case”, 28/6/2002, em especial a frase que dá
de atores ao examinarem as mudanças ocorridas razão aos críticos do capitalismo, o qual parece es-
na década de 1990 não só nos universos jurídico tar voltando à fase dos robber barons: "Tudo indi-
e econômico nacionais, como também na esfera ca que as declarações e lucros e perdas
internacional. começavam a ser confeccionada com o estabeleci-
23 A série de reportagens sobre as “mordomias das mento da taxa de lucro desejada e depois apareci-
estatais”, assinadas por Ricardo Kotcho e publi- am os outros números das receitas e despesas […]".
cadas pelo jornal O Estado de São Paulo em 31 Sobre a exigência dos acionistas nas cifras de di-
agosto de 1976 é o exemplo mais expressivo videndos em torno dos 15% ao ano, os rearranjos
desse padrão de denúncia. A crítica à falta de empresariais que são deflagrados por essa cir-
transparência do setor estatal brasileiro da época cunstância e as dificuldades em atingir os valores
unia esse repórter, marcado por uma postura es- desejados, ver J. Froud, C. Haslam, S. Johal e K.
querdista, e a direção do jornal, conhecida por Williams (2000).
sua postura “liberal”, a qual mais tarde seria cha- 32 Uma primeira indicação nesse sentido, ainda fora
mada de “neoliberalismo”. do mainstream cultural: “the unfolding Enron
24 No programa de governo divulgado pelo Partido spectacle is a cautionary tale about the fatal quick-
dos Trabalhadores em julho de 2002 (www.lula. sand of irrational exuberance and greed, deceit
org.br/programadegoverno), as câmaras setoriais and non disclosure of publicly pertinent informa-
ATORES E AÇÕES NA CONSTRUÇÃO DA GOVERNANÇA... 157

tion, and government officials beholden to power- transparente, no mesmo jornal, na coluna de Da-
ful private interests” (Centre for Public Integrity, niel Akst, o artigo intitulado “Shocked by scan-
25/2/2002). Este centro é uma fundação próxima dals? These are nothing!”. Essa matéria faz referên-
do espírito populista norte-americano. Mais recen- cia ao caráter cíclico dos eventos, lembrando as
temente, o assunto começa a entrar na agenda análises de John Kenneth Galbraith sobre a falta
principal. Ver o artigo de Paul Krugman, “Pluto- de memória do mercado financeiro.
cracy and Politics” (New York Times, 14/2/2002), 37 Sobre esse contexto histórico e a arqueologia do
traduzido nos jornais Folha de São Paulo e O Glo- antiplutocratismo, ver P. Birnbaum (1979).
bo em 15/6/2002. Faço uma pequena digressão
38 Ver histórico, periodicamente atualizado, no site
sobre as possibilidades da antiplutocracia no Bra-
da Anti-Defamation League: http://www.adl.org/.
sil no artigo, “O quê são os fundos de pensão bra- Provavelmente, dado seu público e sua origem
sileiros?”, a ser publicado na revista Mana. judaica, a institucionalização desse gênero de
33 Como foi assinalado no New York Times de “serviço de alarme” tende a exagerar o compo-
29/6/2002, “dos 248 senadores e deputados nente anti-semita do material coletado, dando
norte-americanos que estão presentes nos pouco atenção aos componentes tipicamente po-
comitês que investigam o colapso Enron e a con- pulistas, em geral, e antiplutocráticos, em particu-
duta da Arthur Andersen, 212 receberam doações lar. Ainda assim, esse serviço, que acumula dados
de uma ou das duas companhias”. dos últimos cinqüenta anos, é uma ferramenta
34 Ver New York Times, “Ashamed to be an executi- inestimável para se analisar esses temas inextrica-
ve”, 1/7/2002. velmente entrelaçados.

35 A sociologia econômica tem mostrado freqüente- 39 Ver, por exemplo, o site http://www.arma-
mente as vicissitudes e a fragilidade desse contro- ria.com.br/guardana.htm.
le. M. Abolafia (1996) faz uma análise “de campo” 40 O assunto voltou à pauta no início do governo
(aplicada sobretudo na bolsa de valores de Nova Lula. Houve nesse momento uma tentativa de re-
York e na de mercadorias de Chicago) do funcio- gulamentar o capítulo IV por meio da Proposta
namento dos controles coletivos sobre esse con- de Emenda Constitucional nº 53, com resultados
junto de práticas, as quais, se generalizadas, im- que não estavam claros quando da edição do ar-
plicariam a impossibilidade mesma da existência tigo. A limitação da taxa de juros continuava sen-
de mercados financeiros. Paul Thompson (1997) do objeto de polêmica.
traça uma história recente da city londrina, mos- 41 Durante a tramitação da Constituinte de 1988 e,
trando como os conflitos gerados pela sucessão em seguida, o processo de revisão constitucional,
de gerações põem em risco o equilíbrio do check- essa questão despertou a ira dos que se dizem
and-balance. Para uma tentativa brasileira desse “modernos”. É como se a manutenção desse item
tipo de análise, ver Muller (1997). no arcabouço jurídico brasileiro representasse
36 A passagem transcrita a seguir mostra com clare- uma mancha na reputação nacional. Estamos
za essa ambigüidade: “A resistência do mercado diante de uma questão que produz efeitos de
mostra que muita gente ainda acredita que as border-lineness. Ver, por exemplo, “A regulamen-
ações são o melhor investimento a longo prazo. tação de uma tolice”, O Estado de São Paulo,
De fato, suas únicas esperanças de completar seus 3/11/1997. De qualquer maneira, ainda que a
planos de aposentadoria dar-se-iam alcançando mancha representada pela manutenção em esta-
retorno para seus investimentos superiores aos do latente do dispositivo não tenha sido erradica-
existentes no mercado de renda fixa. Então, eles da, o fato é que a crítica parece ter funcionado,
mantêm seus investimentos em ações, rezando já que o assunto ficou restrito aos corredores da
para que aconteça o melhor” (“A hand over the Câmara dos Deputados.
nose, a hand still in stocks”, The New York Times, 42 Na formulação de gosto duvidoso da revista Veja:
27/6/2002). Ou, numa abordagem ainda mais “Existem leis-dinossauro, como a Consolidação
158 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

das Leis do Trabalho, que desde a década de 40 ta de Bolsa de Valores popular” (site http://
engessa as relações entre patrões e empregados, www.pt.org.br/, 5/8/2002). Uma das reivindica-
contribuindo para a redução das contratações for- ções mais expressivas formuladas pelo candida-
mais de mão-de-obra” (Veja nº 1773, 16/10/2002, to é justamente a da proteção dos investimentos
matéria de capa). dos trabalhadores, para os quais o modelo de
43 Ver, por exemplo, “Por um voto, Argentina derru- governança corporativa seria o “remédio pa-
ba lei e atende FMI”, em Folha de São Paulo, drão”. Posteriormente, quando a vitória de Lula
31/5/2002. Ou em Clarín (31/5/2002), “El FMI já estava bastante provável, o partido acentuou
está satisfecho por los “progresos” de Argentina”: essa perspectiva econômica pouco enfatizada no
“[...] el organismo internacional se refirió especial- período de FHC. Ver o despacho “Deputado de-
mente a la derogación de la ley de Subversión fende maiores mudanças na Lei das S.As.” no
Económica. Dijo que de esa manera se recupera site www.Estadao.com.br, 19/10/2002, no qual
la confianza de los inversores y la comunidad in- se confirma o lugar proeminente do modelo de
ternacional”. governança corporativa no interior do programa
do PT.
44 Ver New York Times, “Senate backs tough measu-
res to punish corporate misdeeds”, 11/7/2002. 52 Ver, por exemplo, Valor Econômico, “Bovespa
quer popularizar o mercado de ações e ampliar a
45 E, menos de dois meses depois, seria possível a
base de investidores: fabricando o futuro do mer-
pressão pela derrogação da lei argentina de crime
cado”, 12/8/2002.
financeiro?
53 Ver, por exemplo, Folha Online, “Operadores da
46 Nas palavras do candidato: “nós vamos crescer e
Bovespa usam fitas verde e amarela em paralisa-
quando a gente crescer os setores a serviço da
ção”, 6/9/2001, às 12h41.
plutocracia, da propaganda do governo, dos arre-
54 Esse aspecto das lutas cognitivas é catalogado por
ganhos do sistema financeiro internacional vão
Bourdieu (1997, pp. 221-222) como a matriz de
tentar agredir, atacar, levantar calúnia” (Folha de
todas as disputas que afloram no espaço político.
São Paulo, “Depois de Martinez, Ciro defende
Paulinho”, 29/7/2002). 55 Esquematicamente, a doxa do período dizia que
o progresso viria mais do uso judicioso dos recur-
47 “O candidato a presidente pela Frente Trabalhis-
sos existentes do que dos aumentos de capacida-
ta, Ciro Gomes, comparou o mercado financeiro
de que geram economias de escala. Trata-se do
à escravatura. Segundo ele, o Brasil continua do-
predomínio da lógica mercantil ou financeira so-
minado pelos barões que, ao contrário do século
bre a lógica industrial, do mercado sobre a fábri-
XIX, não estão nas fazendas e sim no mercado fi-
ca, do espontâneo sobre o articulado. Analisei
nanceiro” (“Ciro Gomes compara mercado fina-
sistematicamente essa disputa lógica/simbólica
ceito a escravatura”, O Globo, 31/8/2002).
em Grün (1999).
48 Ver O Estado de São Paulo, “Ciro já admite aceitar
56 A análise sociológica geral da passagem do ethos
doações de banqueiros: cúpula da Frente Traba-
implícito (e por isso eficiente) para a ética codi-
lhista abandona decisão de não receber dinheiro
ficada encontra-se em Bourdieu (1987). A inspi-
do setor”, 23/7/2002.
ração para a construção sociológica encontra-se
49 Ver, por exemplo o despacho Folha Online: “Ga- na análise de Duby (1982) sobre a explicitação
rotinho elege bancos como vilões e diz que quer da trifuncionalidade no ocaso da sociedade feu-
renegociar com FMI”, 15/8/2002, às 17h48. dal francesa.
50 Ver O Estado de São Paulo, “Esquerda e Bovespa
fazem aliança estratégica: para presidente da Bol-
sa, ‘muro de Berlim caiu’ com a inédita visita de BIBLIOGRAFIA
Lula ao pregão”, 1/9/2002.
51 “Lula e empresários se unem para criar propos- ABOLAFIA, M. (1996), Making markets: opportu-
ATORES E AÇÕES NA CONSTRUÇÃO DA GOVERNANÇA... 159

nism and restraint on Wall Street. Cam- DUBY, G. (1982), As três ordens ou o imaginário
bridge, Harvard University Press. do feudalismo. Listas Estampa.
ARBIX, G. (1997), “A câmara banida”, in G. Arbix e ECONOMY and Society. (2000), volume temático
M. Zilbovicius (eds.), A reinvenção dos 29 (1), fev.
carros, São Paulo, Ed. Scritta, pp. 471-502.
FAMA, E. F. (1980), “Agency problems and the
BIRNBAUM, P. (1979), Le peuple et le Gros: histoi- theory of firm”. Journal of Political Eco-
re d’un mythe. Paris, Grasset. nomy, 88 (2): 288-307.
BOURDIEU, P. (1981), “La représentation politi- FINANCIAL TIMES. (2002), “The most serious as-
que: eléments pour une théorie du pect of the scandal is the way in which
champ politique”. Actes de la recherche the checks and balances that safeguard
en Sciences Sociales, 36-37: 3-24.
investors, employees and creditors were
_________. (1987), Choses dites. Paris, Minuit. all found wanting”, 19 fev.
_________. (1997), Méditations Pascaliennes. Pa- FLECK, L. (1979), Genesis and development of a
ris, Seuil. scientific fac” (editado por T. Trenn e R.
_________. (2001), Science de la science et reflexi- Merton; postfácio de T. Kuhn). Chicago,
vité”. Paris, Raisons d’Agir. University of Chicago Press (orig. ale-
mão, 1935).
BOYER, R. & Hollingsworth, J. R. (eds.) (1998),
Contemporary capitalism: the embed- FLIGSTEIN, N. (1990), The transformation of cor-
dedness of institutions. Cambridge, Cam- porate control. Cambridge, Mass., Har-
bridge University Press. vard University Press, pp. 295-314.
CLARÍN. (2002), “El FMI está satisfecho por los FLIGSTEIN, N. & FRIEDLAND, R. (1995), “Theore-
‘progresos’ de Argentina”, 31 maio. tical and comparative perspectives on
corporate governance”. Annual Review
CROUCH, C. & Streeck, W. (1998), Political eco-
nomy of modern capitalism: mapping of Sociology, 21: 21-43.
convergence and diversity”. Londres, FOLHA de São Paulo. (2000), “Novo mercado: pe-
Sage. quenos e grandes terão direitos iguais”,
DEZALAY, Y. (1995), “Technological warfare: the 20 nov.
battle to control the mergers and acqui- _________. (2002), “Por um voto, Argentina der-
sitions market in Europe”, in Y. Dezalay ruba lei e atende FMI”, 31 maio.
e D. Sugarman (eds.), Professional com-
petition and professional power : law- _________. (2002), “A estratégia da Volks” (colu-
yers, accountants and the social cons- na de Luís Nassif), 15 jun.
truction of markets, Londres, Routledge, _________. (2002), “Depois de Martinez, Ciro de-
pp. 77-103. fende Paulinho”, 29 jul.
DEZALAY, Y. & GARTH, B. (2002), The interna- FROUD, J.; HASLAM, C.; JOHAL, S. & WILLIAMS,
tionalization of Palace Wars: lawyers, K. (2000), “Shareholder value and the
economists, and the contest to transform political economy of late capitalism”.
Latin American States. Chicago, Chicago
Economy and Society, 29 (1): 1-12.
University Press.
GOODMAN, Nelson. (1996), “Starmaking”, in P. J.
DOUGLAS, M. (1996), Thought styles. Londres, Sage.
McCormick (ed.), Starmaking: realism,
_________. (1987), How institutions think. anti-realism and irrealism”, Cambridge,
Syracuse: Syracuse University Press. The MIT Press.
160 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

GRÜN, R. (1996), “O medo do desemprego e a e R. Swedberg (eds.), The handbook of


mudança nos sistemas simbólicos da economic sociology”, Princeton, Prince-
classe média brasileira”, in E. Reis; M. H. ton University Press, pp. 556-579.
Tavares de Almeida e Peter Fry (orgs.),
MMAA. (1998), Finding performance: the new dis-
Política e cultura: visões do passado e
cipline of management”. The Wharton
perspectivas contemporâneas”, São Pau-
School/University of Pennsylvania (mi-
lo, Hucitec/Anpocs, pp. 127-141. meo).
_________. (1999), “Modelos de empresa, mode- MULLER, L. H. A. (1997), Mercado exemplar: um
los de mundo”. Revista Brasileira de estudo antropológico sobre a bolsa de va-
Ciências Sociais, 14 (41): 121-140. lores. Tese de doutorado, Brasília, UnB.
GUILLÉN, M. (1994), Models of management: NIKONOFF, J. (1999), La comedie des fonds de
work, authority, and organization in a pension. Paris, Arlea
comparative perspective. Chicago, Uni-
versity of Chicago Press. O ESTADO de São Paulo. (1997), “A regulamenta-
ção de uma tolice”, 3 nov.
_________. (2000a), “Corporate governance and
globalization: is there convergence _________. (2001), “Estudo diz que fusões trouxe-
across countries?”. The Wharton ram ganhos para o país”, 31 jul.
School/University of Pennsylvania (mi- _________. (2002), “Fusões e aquisições movi-
meo). mentam US$ 23 bilhões no Brasil”, 27
jun.
_________. (2000b), “Corporate governance and
globalization: is there convergence _________. (2002), “Ciro já admite aceitar doações
across countries?”. Advances in Compa- de banqueiros: cúpula da Frente Traba-
rative International Management, 13: lhista abandona decisão de não receber
175-204. dinheiro do setor”, 23 jul.
_________. (2001), The limits of convergence: glo- _________. (2002), “Política industrial finalmente
balization & organizational change in sairá do papel: em outubro, os ministros
Argentina, South Korea, and Spain. da área econômica e o presidente de-
Princeton, Princeton University Press. vem aprovar o texto da proposta”, 4 ago.
HORWICH, P. (ed.), (1993), World changes: Tho- _________. (2002), “Esquerda e Bovespa fazem
mas Kuhn and the nature of science, aliança estratégica: para presidente da
Cambridge, The MIT Press. Bolsa, ‘muro de Berlim caiu’ com a iné-
dita visita de Lula ao pregão”, 1 set.
KRUGMAN, Paul. (2002), “Plutocracy and poli-
tics”. New York Times, 14 fev. O GLOBO. (2001), “Nova Lei das SA é sancionada
com 17 vetos”, 2 nov.
LORDON, F. (2000), Fonds de pension, piège à
cons? Mirage de la démocratie action- ORLÉAN, A. (1999), Le pouvoir de la finance.
naire. Paris, Raison d’Agir. Paris, Ed. Odile Jacob.

MEYER, M. W. (1993), “Organizational design and PUTNAM, R. D. (1993), Making democracy work:
the performance paradox”, in R. Swed- civic traditions in Modern Italy. Prince-
berg (ed.), Explorations in economic so- ton, Princeton University Press.
ciology”, Nova York, Russell Sage Foun- STERNHELL, Z. (1978), La droite révolutionnaire
dation, pp. 249-278 les origines françaises du fascisme 1885-
1914. Paris, Seuil.
_________. (1994), “Measuring performance in
economic organizations”, in N. Smelser TEIXEIRA, Ariosto. (1999), “Base governista é
ATORES E AÇÕES NA CONSTRUÇÃO DA GOVERNANÇA... 161

contra modelo de privatização: para in-


tegrantes da bancada do PSDB, recursos
obtidos não reduziram dívida pública”.
O Estado de São Paulo, 19 dez.
THE ECONOMIST. (1994), “Ready to take on the
World”, 15 jan., pp.65-66.
THE NEW York Times. (2002), “A hand over the
nose, a hand still in stocks”, 27 jun.
_________. (2002), “Inquiry appears to bolster
fraud case”, 28 jun.
_________. (2002), “Ashamed to be an executive”,
1 jul.
_________. (2002), “Senate backs tough measures
to punish corporate misdeeds”, 11 jul.
_________. (2002). “Shocked by scandals? These
are nothing!”, 7 jul.
THOMPSON, Paul. (1997), “The pyrrhic victory of
gentlemanly capitalism: the financial eli-
te of the city of London, 1945-1990”.
Journal of Contemporary History, 32 (3):
283-304, jul.
USEEM, M. (1993), Executive defense: shareholder
power & corporate reorganization. Lon-
dres, Harvard University Press.
VALOR ECONÔMICO. (2002), “Bovespa quer po-
pularizar o mercado de ações e ampliar
a base de investidores: fabricando o fu-
turo do mercado”, 12 ago.
218 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

ATORES E AÇÕES NA CONS- ACTORS AND ACTIONS IN LES ACTEURS ET LES AC-
TRUÇÃO DA GOVERNANÇA THE CONSTRUCTION OF THE TIONS DANS LA CONSTRUC-
CORPORATIVA BRASILEIRA BRAZILIAN CORPORATIVE TION DE LA GOUVERNANCE
GOVERNANCE CORPORATIVE BRÉSILIENNE

Roberto Grün Roberto Grün Roberto Grün

Palavras-chave Key words Mots-clés


Sociologia econômica; Sociologia cogni- Economical sociology; Cognitive so- Sociologie économique; Sociologie
tiva; Sociologia do trabalho; Construção ciology; Labor sociology; Institutional cognitive; Sociologie du travail; Cons-
institucional; Governança corporativa. construction; Corporative governance. truction institutionnelle; Gouvernance
corporatiste.

Este ensaio procura analisar a evolu- This essay aims to analyze the evolu- Cet article analyse l’évolution de la
ção da cena econômica e institucional tion of the Brazilian economical and scène économique et institutionnelle
brasileira que vem produzindo uma institutional scene that has both pro- brésilienne, qui crée une nouvelle re-
nova relação entre as grandes empre- duced a new relationship among big lation entre les grandes entreprises,
sas, seus acionistas e os intermediá- corporations, shareholders, and com- leurs actionnaires et les intermédiai-
rios financeiros e espraiando suas mission agents, and spread its conse- res financiers. Les conséquences de
conseqüências sobre os sindicatos e a quences over unions and the security cette évolution se font sentir sur les
previdência. O autor aborda as vicissi- service. The article points the vicissi- syndicats et la sécurité sociale. L’au-
tudes das tentativas de instalação no tudes of the attempts to install the teur aborde les vicissitudes des essais
Brasil do modelo de governança cor- corporative governance model in d’installation au Brésil du modèle de
porativa, usando as câmaras setoriais Brazil, using the parceled chambers gouvernance corporative, en utilisant
como um contraponto cognitivo. as a cognitive counterpoint. It shows les chambres sectorielles comme un
Apresenta também algumas particula- also some particularities on the recent contrepoint cognitif. L’article présente
ridades da tramitação recente das leis dealings with laws that regulate the également quelques particularités sur
que regulam a governança corporati- corporative governance, focusing on le processus récent de formation des
va, enfocando as dificuldades enfren- the difficulties faced by the agents lois qui règlent la gouvernance cor-
tadas pelos agentes que tentam trazer who have attempted to bring such porative, en axant les difficultés en-
esse conceito, oriundo do mundo fi- concept, natural of the Anglo-Saxon courues par les agents qui tentent de
nanceiro anglo-saxão, para a cena finance community, to the Brazilian transposer ce concept – issu du mon-
brasileira. A discussão pretende mos- scene. The discussion intends to de financier anglo-saxon – à la scène
trar que, de um lado, as dificuldades show that, from one point of view the brésilienne. La discussion prétend
são expressão da resistência do mo- difficulties are an expression of the montrer que, d’un côté, les difficultés
delo de capitalismo brasileiro, que Brazilian capitalism model, which has sont l’expression de la résistance du
passa, atualmente, por um processo currently undertaken a process of de- modèle de capitalisme brésilien, qui
de deslegitimação causado pela pre- legitimization caused by the preva- passe, actuellement, par un processus
valência dos partidários da globaliza- lence of those who favor globaliza- de dé-légitimation causé par la supé-
ção, considerados os intelectuais or- tion, taken as the organic intellectuals riorité des partisans de la globalisa-
gânicos das elites dominantes do of the current dominating elites; from tion, considérés comme étant les in-
momento; de outro, que os atores another, it shows that the “globali- tellectuels organiques des élites
“globalizantes” recebem uma ajuda zing” actors have received a decisive dominantes du moment et, d’un autre
decisiva e aparentemente inesperada and somewhat unexpected help from côté, que les acteurs “globalisants »
das cúpulas do movimento sindical, o the high ranks of the union move- reçoivent une aide décisive et appa-
que influencia bastante a disputa eco- ment, which by all means greatly in- remment inattendue de ceux qui sont
nômica e política travada em torno da fluences the economic and political à la tête du mouvement syndical, ce
implantação ou não da governança dispute fought around the implemen- qui a une influence énorme sur la dis-
corporativa e seus contornos. tation or not of the corporative gover- pute économique et politique mise
nance and its boundaries. en place autour de l’implantation (ou
pas) de la gouvernance corporatiste
et de ses contours.

Você também pode gostar