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Da vida para a 7ústória - Reflexões sobre a Era Vargas
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Getúlio Vargas e as comemorações
mesmo tenlpO em que o título apontava para o fim de urna era I também eram
lembrados rnOll1entos de glória e da relevância histórica do líder trabalhista,
Três grandes matérias procuravanl enfocar diferentes ângulos da trajetória
de Vargas. Uma primeira abordagem tratava exclusivamente os aspectos
pessoais de Getúlio, da infância até a formação na Faculdade de Direito e o
início da vida profissional como promotor.
a texto I ainda que de caráter pouco opinativo, deixa entrever uma
silnpatia pelo personagem. Ul11a segunda via de abordagem constituía-se da
apresentação de Ulna cronologia C0111entada dos principais fatos políticos
que tiveram a participação de Vargas, como a Revolução de 1930, o Golpe
de 1937 até a deposição em 1945 c a volta ao poder pelas urnas em 1950. Por
fim, na matéria intitulada "Memórias de Agosto" há uma retrospectiva dos
principais fatos que antecedermTI o suicídio, destacando o depoimento do
então vice-presidente Café Filho, que apenas relembra episódios vividos
naquele período, mas que não se dispõe a enunciar qualquer julgamento
sobre seu antigo companheiro de chapa, afirmando que "um ex-presidente
não deve julgar um ex-presidente"].
Um ponto que deve ser destacado neste conjunto de matérias é a
preocupação cn1 apresentar um distancian1cnto diantc do tema, expresso na
ausência de avaliações e de relações com o telTIpO presente. Essa abordagem
pode ser explicada pelas próprias circunstâncias po1iticas daquele ano. Se
não era possível deixar de mencionar a importância de Vargas na história do
país na passagem dos dez anos de sua morte, as possibilidades de expressão
e de valorização de sua herança eram n1uÍto restritas, uma vez que os seus
principais herdeiros políticos eram alvo das perseguições do regime militar.
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mas vê-se COll10 o uso político da me1TIória de Vargas está associado ao seu
desfecho trágico: o suicídio e a carta, No Rio Grande do Sul, o MDB homena-
geou Vargas com uma missa e uma concentração política ao pé do monumentó
à carta-testamento, na Praça da Alfândega.
Duas décadas após o suicídio de Vargas, não apenas conteúdos posi~
tivos foram associados à n1en1ória de Getúlio. Um artigo de Carlos Castelo
Branco,·publicado e1TI U1TI caderno especial do Jornal do Brasil é um exelnplo
l
de que não havia posição única em relação a este passado. O título do texto
de Castelo Branco, "A ditadura", já nos indica a posição do autor. A censura
exercida pelo DIP, a ação repressora do governo junto às 111anifestações
políticas e as prisões efetuadas no Estado Novo - esses são alguns aspectos
rememorados pelo jornalista. E a figura que emerge a partir daí é a de um
Vargas ditador, odiado por aqueles que defendem a liberdade de expressão
e a den10cracia. Para Castelo Branco, a ditadura de Vargas propiciava
"corrupção sob todas as formas e se' tornava ineficiente como fator de
mobilização para o trabalho. ( ..) A ditadura é por definição centralista, mas
no BJrasiZ daqueles tempos, sem comunicações, havia alérn de uma ditadura
estadual, ditaduras culturais!!4.
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do várias vozes saíram eI11 defesa da liberdade de expressão, algo que naque-
le momento parecia ser o ponto commTI de defesa, n1eSl110 entre aqueles que
discordavam em relação às versões da ll1en1ória sobre a Era Vargas.
Era um n10mento político de abertura e de novas articulações políticasi
o que possibilitou a realização de debates sobre a herança da Era Vargas. No
caderno especial publicado pelo Jornal do Brasil , especialistas analisaram o
papel histórico de Vargas 7 . Temas C01110 o pOpUliSl110, o trabalhismo e o pro-
jeto econôn1ico dc Vargas foram amplamente discutidos.
A discussão sobre a memória de Vargas passou a ser uma via de
acesso para discussões sobre a história recente do país. Na imprensa, foi
elaborada Ul11a série de comparações entre os períodos históricos. A
reestruturação dos partidos políticos é discutida à luz do cenário pós-45,
quando o país viveu um retorno à democracia. Se no pós-Estado Novo o
getulismo ou o antigetulismo se in1põs como fatores determinantes do jogo
político, confoT111e aponta Maria Celina D'Araujd', no cenário daquela aber-
tura não havia porém nenhum partido ou núcleo político declaradamente
antigetulista. Ao contrário, o getulismo, leia~se sobretudo o trabalhisll10 era j
utilizado como filão eleitoral por vários partidos. A exploração eleitoral ocor~
ria principah11cnte numa parcela da memória de Vargas, "seu lado naciona~
lista e patriótico, tal qu.al exposto na carta-testamento"!!.
Além de artigos de pesquisadores, os jornais publicaram biografias e
matérias que em geral apontavam a face positiva do passado varguista. Uma
matéria, assinada por Luiz Moreira (advogado e piloto aposentado)1 parece
H D'ARAUJO, Maria Cclina. "O velho c o novo nos panidos", Caderno Especial, .Jornal do Brasil, 17/
04/1983.
" Idem.
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10 Ver Jornal do Brasil - 19/06/1983 "Vargas fez a única revolução verdadeira da nossa história".
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I·' Jacques Le Gorf, retomando idéias de Paul Zmnthor, af1rma "o que transforma o documento em
monumento: it sua utilização pelo poder". Assim, a noção de documento-monumento busca dar conta
das relações sociais dos vestígios históricos. Fara o autor, "só a análise do documento enquanto
monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é,
com pleno conhecimento de causa". Vef: LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e
Memória. Campinas: Editora Unicamp, 1996, p. 545.
IS Ver Jornal do Brasil, 2/08/1994.
H, Idem.
;7 Ver Jornal do Brasil, Primeiro Caderno, 25/08/1994.
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texto não se procura trazer de volta certos conteúdos do período Vargas, con10
o nacionalismo ou o estatismo. No entanto, a opinião expressa no editorial
citado não foi a única veiculada pelo Jornal do Brasil. Muitas matérias e
artigos publicados pelo JB por ocasião dos quarenta anos do suicídio de
Vargas têm um tom positivo diante da memória de Getúlio. Há artigos de
Oscar Niel11eyer e Darcy Ribeiro que são absolutanlente favoráveis ao (llega~
do de Vargas". No que se refere a uma utilização mais imediata da memória)
deve-se mencionar uma associação ocorrida em 1994 entre Lula e o
trabalhisnlo de Vargas. Para Maria da Conceição Tavares, Lula era o princi~
paI herdeiro do trabalhismo, e o PSDB de Fernando Henrique poderia se
comparar à UDN.
Um outro foco de discussão comum a vários artigos é a carta-testamen-
to. Neste ano, uma nova aproximação do tel11a foi expressa no artigo de José
Murilo de Carva1ho, que retoma as informações de Hélio Silva lB as quais
chamavam atenção para a existência de duas cartas, uma carta-testamento
e uma carta de despedida. José Murilo reelabora a idéia das duas cartas ao
declarar que: "a bandeira da carta-testarrtento nc10 teJla a força que teve sem
o 'patus' embutido na carta-despedida. A soma das duas mortes, a do homem
Getúlio e a do presidente Vargas, é que gravou na memória coletiva a pre-
sença de Getúlio Vargas"I.'i. Para o autor, é a conjugação da morte de Vargas
com o texto da carta-testamento que torna a imagem de Vargas algo tão
relevante na memória coletiva brasileira.
Como já vimos, em 1984 a carta-testamento já havia se tornado um
capital simbólico dos diferentes herdeiros de Vargas. Uma década depois,
a carta-testamento ainda era uma fonte de mobilização num momento em
que, corno foi apontado havia urna proposta de desacreditar a herança da
I
i1l Ver Silva, Hélio. Um tiro no coração. Reedição (primeira edição em 1930). Porto Alegre, RS, L&PM.
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pais precisa e espera desde 1954'121 . No artigo não há uma defesa do projeto
de Vargas, n1as a defesa da necessidade de se criar um outro projeto naci-
onal, assinala o autor: "Ainda é tempo de mudm~ de reorientar o Brasil.
Le11'lbrar o passado em geral é o melhor passo para cOJneçar a construir o
futuro. O futuro da continuação do mesmo, dos últimos 50 anos, ou da cons~
trução do novo para o século 21"22.
Essa posição, no entanto, não é compartilhada por todos os membros
do governo. O BNDES criou o "Projeto Getúlio Vargas", que desde abril de
2004 telTI realizado selTIinários e preparado outros eventos, corno
documentário, livro, exposição, show, e memorial com estátua de Vargas. De
acordo con1 o material de divu1gação "pretenele-se essa iniciativa con-
COJ11
tribuir para o fortalecirnento ela história, a valorização ele seu legado e, so-
bretudo, o resgate ela Jnenlória de importantes conquistas para o cidadão
brasilciro"2:l. Carlos Lessa, então presidente do BNDES, defendia a idéia de
que é necessário retomar a agenda de Vargas elTI muitos pontos. O naciona-
11sn10 de Vargas e suas políticas econômicas são o carro-chefe dessa defesa
da herança getulista, opondo-a ao projeto neoliberal de FHC. Afirmou
Lessa: "Um presidente de alma seca achou que elevíamos enterrar a Era
Vargas. O que este presidente eleixou ele legado'" O presidente do BNDES
postula uma retomada dos ditames do segundo governo Vargas no m01TIento
atual, concluindo que: "Enfim, com Vargas, nos vi11'WS como nação. E é
assim que começamos a nos ver de novo (. . .) neste momento em que a
agenda recuperada de Vargas nos aponta uma continuidade entre o nacio~
nal-desenvolvimentismo dele e de sua época e o desenvolvimentismo naci-
onal democrático de Lula"!.4. Não se pode afirmar que esta seja U111a posição
hegemônica no governo, porém não se deve negligenciar a relevância desta
perspectiva, sobretudo, se levarmos em consideração os objetos culturais
engendrados a partir daí, C01TIO exposições, documentários e memorial.
Na verdade, são poucas as vozes que procuram divulgar UIna memó-
ria exclusivamente crítica de Vargas. Uma delas é a do Instituto Liberal,
que está na oposição ao governo Lula. Cândido Prunes, vice-presidente do
Instituto, defende a idéia de que a rememoração de Getúlio é UTI1 equívoco;
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sem considerar a enorme inOuência lIas novas tecnologias de mídia como veículos para todas as
formas de memória". (Seduzidos pela memória, Rio de Janeiro, Aeroplano, 2000, p. 21)
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referências no passado recente poderia se tornar uma via de acesso para uma
discussão mais ampla sobre o Brasil.
Esse boom de memória não atende apenas à demanda social, mas
expressa tan1bém os interesses da mídia que tem uma dinâmica específica,
re1acionada às próprias contingências comerciais e às necessidades de cria-
ção de 'fatos novos'.
Ao retomarmos as comemorações em conjunturas diferenciadas, des-
de 1964 até a atualidade, fica evidenciada a riqueza de uma abordagem
comparativa. Ao mesmo tempo, esse percurso revela a existência de um
vasto campo para investigações sobre as operações de construção da memó~
ria co1etiva e sobre a relação entre a história, a política e a lnídia contelTI-
porânea.
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