Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CADORE, ANALU.
RESUMO
O final do século XIX foi marcado por grandes transformações em Curitiba. Com a elevação à
capital de província e a chegada das grandes levas de imigrantes europeus, gradativamente o
panorama urbano da cidade foi se modificando. Ernesto Guaita, engenheiro-arquiteto italiano,
foi um dos nomes mais importantes neste período de expansão e produziu desde planos de
urbanismo à concepção dos mais representativos edifícios da cidade. É neste contexto que
surge o edifício conhecido como Palácio da Liberdade, hoje sede do Museu da Imagem e do
Som de Curitiba PR. Construído inicialmente como residência para um próspero imigrante
alemão, Ignácio Weiss, este edifício adquiriu uma grande representatividade e serviu como
sede dos mais importantes órgãos públicos do estado, sendo sede do Governo paranaense
por mais de 40 anos. Em 2015 o edifício foi reinaugurado após uma obra de restauração e
consolidação. Diversos aspectos funcionais foram contemplados, como a reorganização
espacial interna e a construção de um edifício anexo para abrigar depósitos e laboratórios.
Porém o ponto mais marcante da intervenção foi a demolição de uma ampliação lateral para
devolver ao edifício a simetria original que é marca notória nas composições arquitetônicas de
Guaita. Com isto, devolveu-se a sua composição volumétrica porém o resultado foi uma
arquitetura que não é nem fiel ao original, no que tange às ornamentações e aberturas, nem
semelhante ao que se via antes da intervenção gerando, assim, uma “terceira” arquitetura,
onde questões como autenticidade e historicidade aparecem lado a lado em uma dicotomia
projetual.
Palavras-chave: Patrimônio arquitetônico, Patrimônio Histórico, Restauração, Arquitetura
Resultante.
Atualmente Curitiba é um dos maiores centros urbanos do país, sendo uma cidade
mundialmente conhecida por suas inovações urbanas. Suas primeiras grandes
transformações se iniciaram no momento em deixou de integrar o conjunto das províncias
de São Paulo e passou a ser a capital da província do Paraná, em 1858. Esta autonomia
permitiu uma grande expansão nas atividades comerciais, o que impulsionou rapidamente o
crescimento econômico da capital de província.
O ecletismo foi o estilo adotado na busca de conciliar estes fatores, onde o desejo de
modernização da arquitetura foi viabilizado pelo saber fazer do imigrante e o seu domínio
nas novas tecnologias e materiais construtivos, além da bagagem cultural.
É neste contexto que aparece o engenheiro italiano Ernesto Guaita, que em 1875 chegou na
cidade integrando a equipe de engenheiros que vieram trabalhar na construção da ferrovia
Curitiba-Paranaguá. Após o término das obras, continuou residindo na cidade e pouco a
pouco foi firmando-se como um dos principais profissionais da época.
Guaita foi o responsável pelos projetos dos edifícios de maior notoriedade na cidade neste
período, sendo eles destinados ao poder público ou às residências de nomes de destaque
da sociedade curitibana do século XIX. Além disso, atuou também nas transformações
urbanísticas, tendo realizado o projeto que previa a expansão da cidade – conhecido como
“Nova Coritiba (1885) - que é considerado por muitos um projeto de traços bastante
visionários para a época. Três anos depois realizou a primeira planta cadastral de Curitiba.
O ECLETISMO CURITIBANO
O PALÁCIO DA LIBERDADE
O edifício conhecido como Palácio da Liberdade foi construído em 1871 para servir de
residência do engenheiro e imigrante português Leopoldino Ignácio Weiss e sua família. A
monumentalidade e o requinte em detalhes arquitetônicos e ornatos são o maior destaque
deste edifício.
Vinte anos depois, o edifício foi comprado juntamente com toda a sua mobília, pela Fazenda
Nacional e em 1892 passou a abrigar a sede do Governo do Estado do Paraná. O então
Palácio da Liberdade foi palco de muitas atividades administrativas do Estado, desde a
gestão de Generoso Marques, o primeiro governador eleito, até medos dos anos 30, quando
na época da ditadura de Getúlio Vargas passou a ser ocupado pelo interventor Manoel
Ribas.
Com o passar dos anos foram realizadas diversas obras e acréscimos no edifício, tanto em
fachada enquanto planta, que vieram por descaracterizar os traços originais de Guaita. Com
fortes influências classicistas, a composição original do edifício era marcada pela simetria e
por um partido que muito lembra as villas palladianas de Vicenza, na Itália.
O edifício permaneceu fechado por mais de dez anos, sendo o museu e seu acervo
transferidos do local temporariamente, até os diversos problemas em sua estrutura serem
sanados. Em 2003 o edifício já não conseguia mais comportar as atividades do museu, tanto
pela falta de espaço quanto pelo acelerado estado de deterioração em que se encontrava.
Após um criterioso levantamento arquitetônico e documental e um diagnóstico preciso das
condições físicas do edifício, deu-se início ao projeto que visava não apenas restabelecer a
integridade do imóvel mas também retomar a simetria através da remoção de uma
ampliação na lateral e de acréscimos feitos ao longo dos anos e das inúmeras reformas
sofridas. O processo de restauração do edifício foi finalizado em 2015 e o museu e seu
acervo puderam retornar ao seu local.
A intervenção realizada no edifício foi mais facilmente percebida em sua fachada. Houve
demolição dos acréscimos que descaracterizavam a composição original de Guaita, onde a
simetria era um traço marcante. A intervenção buscava principalmente a contenção e
estabilidade do edifício, mas também foram contemplados no projeto a necessidade da
ampliação dos espaços de suporte, a demolição de um anexo existente, também em
acelerado estado de degradação e a proposta de um novo edifício anexo, com melhores
condições de funcionamento.
O objetivo desta intervenção, segundo os autores do projeto, era devolver ao edifício suas
características estilísticas originais para que este pudesse ser enquadrado corretamente
dentro do movimento histórico ao qual pertence. Sendo um edifício de grande importância e
representatividade para a cidade e para o estado, não só pelo seu histórico de atividade
mas pela composição incomum de fachada e ornamentação, recuperar suas características
originais devolve a ele uma relevância acima das esferas locais e também como marca da
produção de Guaita, que foi um profissional de suma importância na construção e
consolidação de Curitiba como capital, cuja produção e biografia ainda permanecem
carentes de estudos aprofundados.
Observando o edifício concluído, notamos que a arquitetura resultante não foi nem
exatamente fiel ao original - onde na lateral direita havia uma entrada de garagem com
portão trabalhado em ferro e hoje permanece fechada, havendo no local uma janela que
imita as demais esquadrias do pavimento térreo - e nem manteve a porção coberta sobre
este espaço. O que se observa é que houve um cuidado em não repetir o mesmo
acabamento em massa na quina onde houve a remoção, que traria a simetria e unidade
original, mas também resultaria em um ato de falso histórico.
Confrontando o produto da intervenção com as teorias de restauro, é notável que não houve
um critério norteador na postura adotada no projeto. Segundo os responsáveis, no processo
projetual procurou-se seguir as recomendações da Carta de Veneza. Aconteceram
remoções, alterações e adições, mas não se identifica um traço significante de leitura do
conjunto. Em alguns momentos buscou-se uma autenticidade na retomada da simetria da
fachada, mas ao mesmo tempo, houve concessões sobre a permanência de elementos que
não pertenciam ao projeto original. A questão da autenticidade fica comprometida e a leitura
arquitetônica também.
O resultado desta intervenção foi, se assim pode-se dizer, uma terceira arquitetura. Não é
totalmente fiel ao projeto original - talvez por falta de alguns dados históricos – nem manteve
A questão da demolição foi ainda mais proeminente com o pensamento de estabelecer uma
unidade de leitura da produção arquitetônica do período, ainda mais em se tratando de
Guaita, uma vez que seus demais projetos na cidade possuem uma integridade compositiva
de fachada – principalmente – que permite uma unificação da produção deste autor e
consequentemente fomenta estudos sobre a arquitetura eclética de origem imigrante que se
produziu em Curitiba no período pós emancipação.
A questão é delicada não somente a partir do ponto de vista técnico mas também sob a
visão da população local e sua identificação com o edifício e seu impacto no entorno, com a
significação do elemento histórico como legado de sua cultura e identidade enquanto grupo
social. Quando ocorre a supressão de elementos – mesmo que não-originais – que já
compõem o imaginário da população como parte integra do edifício, acontece uma ruptura
na conexão cultural das pessoas com o edifício.
É neste ponto em que esta arquitetura resultante mais causa confusão do que esclarece. É
neste momento em que a quebra de conexão cultural, de identidade com o bem histórico
pode ser irreparável. E é também neste momento em que presenciamos o nascimento de
um “novo” edifício, que inicia neste momento sua trajetória no imaginário das novas
gerações onde a curiosidade sobre a intervenção pode suscitar novos estudos sobre o
edifício, o autor e a cidade.
Cabe a nós, então, lançar um olhar sobre esta arquitetura resultante da ação da intervenção
de restauro, dentro de suas características projetuais e trazer à tona o raciocínio crítico
sobre a questão de preservação arquitetônica e da memória urbana. Como a ação
restaurativa pode contribuir ou não para a manutenção deste ideário que permite com que a
população de uma cidade crie identidade com o edifício restaurado enquanto patrimônio vivo
de sua história. E da importância do profissional da restauração e preservação em conhecer
as lições teóricas e buscar sempre a harmonia entre o novo, o velho, e o uno.
RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem. Editora
Perspectiva. São Paulo, 2014.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Editora UNESP. São Paulo SP. 2001.
BRENNA, Giovanna Rosso Del. Ecletismo no Rio de Janeiro. In. FABRIS, Anateressa.
Ecletismo na arquitetura brasileira. São Paulo. Nobel, 1987.
DUDEQUE, Irã Taborda. Cidade sem véus: doenças, poder e desenhos urbanos. Editora
Champagnat. Curitiba PR. 1995 1a Edição
LYRA, Cyro Corrêa. SOUZA, Alcídio Mafra de. Guia dos Bens Tombados – Paraná. Editora
Expressão e Cultura. Rio de Janeiro RJ. 1994
ARQUIVOS PÚBLICOS
Arquivos da Secretaria do Estado da Cultura do Paraná – SEEC
Arquivos do Instituto de Planejamento Urbano de Curitiba – IPPUC
Arquivos da Casa da Memória
Arquivos da Fundação Cultural de Curitiba - FCC