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CADERNOS
N9 17 - 1P SERIE
SETEMBRO DE 1982
ENDEREÇO:
Caixa Postal 8.105
01000 - São Paulo - SP
Brasil
Solicita-se permuta.
CULTURA BRASILEIRA: UMA NOçAO AMBfGUA
Ruth C. L. Cardoso *
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à cultura brasileira, ou aos valores próprios de nosso povo, sem que a
falta de clareza desoriente os interlocutores.
Não sabemos se a cultura popular é a cultura de todo o povo e se
é sinônimo de cultura brasileira. E o que fazer com as diferenças entre
o sul e o norte ou, ainda, por onde passar a linha que demarca o territó-
rio cultural das elites e do povo?
De qualquer modo, se estas noções não são precisas, devem trans-
mitir alguma (ou algumas) significação, pois não será só por capricho
que nos reunimos para discutí-Ias.
Certamente há uma razão para que, de tempos em tempos, o
interesse pela produção do povo retome impulso e ganhe espaço nas
discussões acadêmicas. Em geral, as revitalizações dos temas nacionais
e populares estão associadas a perspectivas pol iticas e cumprem a fun-
ção de legitimar alguma forma de unificação ou disjunção simbólica en-
tre o povo e as elites.
As produções culturais de origem popular são fontes de símbolos
diferenciadores que podem dar especificidade à nação e unidade entre
as classes que a constituem. Entretanto, é preciso lembrar que a lingua-
gem dos símbolos não é unívoca e, por isso mesmo, permite combina-
ções e composições diversas e contraditórias.
Bem sabemos a variedade de conotações que podem ser atribu i-
das aos símbolos nacionais e as diferentes formas de valorizar os costu-
mes populares. Peter Fry, em seu artigo "Feijoada e soul food"2, nos
dá um ótimo exemplo da composição de diferentes linguagens utilizan-
do patrimônios comuns. Mostra que no Brasil a feijoada, prato criado
pelos negros, é símbolo nacional incorporado pela elite branca enquan-
to, nos E.E.U.U., a mesma receita produz um "soul food", isto é, co-
mida diferenciadora dos negros. Aqui, é expressão de todo o povo e lá
é apoio para uma identidade grupal que denuncia a discriminação.
I: também um esforço de criação de uma linguagem própria que
foi feito pela elite nordestina, desde o começo deste século quando,
valorizando as manifestações populares regionais, procuram identificar
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nelas o espírito da brasilidade. Este grupo dominante regional desco-
briu e divulgou as falas populares tornando-se, com isto, guardiã de um
patrimônio cultural que devia representar a nação, dando-lhe caráter e
especificidade3 • Como diz Mauro B. Almeida - "apesar de toda a evi-
dente manipulação, o resultado líquido dessa assimilação, pelas elites
locais, de 'idéias do lugar', a fim de formular seus próprios interesses,
foi uma visibilidade cultural do 'povo' em escala nacional. Falar do po-
vo, ainda que seja falando por ele, coloca em cena um novo e legítimo
ator que não pode ser posto de lado porque é parte constituinte da na-
ção (...to ponto a reter, ao pensar como a região e a nação falam do
'povo', "que falar de um outro, e mesmo falar a linguagem dele, tradu-
zir uma linguagem noutra, não é jamais um ato puramente cognitivo,
e
quando há uma separação prévia entre uns e outros. antes um ato que
envolve poder. Nas sociedades de classe, diferenças entre 'nós' e 'outros'
são marcadas por diferenças de poder (... ) O controle dessas fronteiras,
desses espaços de manifestações da palavra do outro é o controle dos
meios de produção e circulação de signos, dos espaços legais de mani-
festação da palavra, dos repertórios de símbolos já acumulados na expe-
riência social."4
Já vemos melhor porque tantas vezes e tantos grupos falaram e
falam em nome do povo e defendem a pureza da cultura brasileira. Pa-
ra tomar apenas um outro exemplo, não muito distante, lembramos
como o Manifesto do Centro Popular de Cultura, redigido em março de
1962, trata da relação entre arte popular e arte erudita e afirma seu pa-
pei como grupo dirigente do processo de liberação popular: "Tanto a
arte do povo, em sua ingênua inconsciência, quanto a arte popular co-
mo arte da distração vital, não podem ser aceitas pelo Centro Popular
de Cultura como métodos válidos de comunicação com as massas, pois
tais forn:tas artísticas expressam o povo apenas em suas manifestações
fenomênicas e não em sua essência (... ) A prova do caráter alienado
dessas formas artísticas destinadas ao povo está em que não assumem
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L
posição radical diante das condições de sua própria existência (... ) Nes-
se conformismo revela-se sua negação do povo e sua convivência com o
ponto de vista daqueles cujo interesse é dividir em partes a sociedade (. .. )
Os artistas e intelectuais do Centro Popular de Cultura escolheram para
si outro caminho, o da arte popular revolucionária. Para nós tudo come-
ça pela essência do povo e entendemos que esta essência só pode ser vi-
venciada pelo artista quando ele se defronta a fundo com o fato nu da
posse do poder pela classe dirigente (. .. )5.
Este grupo, manifestamente aceita que tomar o partido do povo
é assumir uma postura política mas definem uma única via para fazê-
lo. Existe uma essência para ser captada e só quem a alcança entra no
reino dos bem-aventurados defensores dos interesses nacionais e popu-
lares.
São os representantes do povo e falando em seu nome vão retirá-
lo de sua passividade "inconsciente". Outros discursos ficam imediata-
mente desqualificados assim como as manifestações da vontade popular,
pois a falta de gosto e a ingenuidade fazem com que as massas não re-
conheçam seus interesses e as virtudes de suas próprias criações.
O resultado desta tomada de posição é estabelecer uma determi-
nada (e positiva) relação entre um setor da elite intelectual e política
do país e as classes subalternas. Estabeleceu-se o contorno das alianças
e das exclusões, pois todos aque!es que divergirem serão tidos por "alie-
nados", se fizerem parte do povo, e "alienantes" se falarem em nome
de outros grupos de elite ..
*
Chegamos a um ponto importante: por diversos caminhos, tanto
os discursos pol íticos quanto os trabalhos acadêmicos (se é que pode-
mos distingui-los) qualificam, com freqüência, aspectos positivos ou ne-
gativos da cultura nacional-popular. A avaliação pode ser explícita ou
disfarçada por uma linguagem técnica que recorre a termos tais como:
alienação, autenticidade ou tradicionalismo (que se opõe ao não aliena-
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encontramos mais grupos sociais estranhos a sua influência. Entretan-
to, é bom estar atento às diferenças culturais mesmo constatando o
imenso poder homogeneizador das ondas transmitidas via EMBRATEL.
Se nos lembrarmos de Leach e deixarmos de lado a noção de cu 1-
tura como um todo harmônico, fica mais fácil interpretar este duplo
movimento de comunicação e isolamento que faz eco ãs transmissões
massivas e igualizadoras e às experiências particularizantes de grupos
em diferentes posições sociais.
Estas considerações deveriam nos levar a evitar as oposições sim-
plificadoras que estabelecem como resultado da indústria cultural a im-
posição indesejada do cosmopolitismo e o desaparecimento das formas
autenticamente nacionais.
Mesmo quando esta formulação vem embutida numa análise dita
política, porque denuncia o uso (ou abuso) do poder pela classe domi-
nante que distila sua ideologia através dos seus aparelhos de comunica-
ção, é preciso desconfiar desta oposição simples entre imposição ideoló-
gica e a expressão cultural verdadeira, nascida da convivência imediata.
Tem razão Althusser quando mostra que os aparelhos ideológicos
das classes dominantes incluem, desde as emissões controladas pelo Es-
tado, até a fam(lja que, supostamente, é o dom(nio absoluto do priva-
do. Exagera, entretanto, quando enfatiza exclusivamente o lado coerci-
tivo desses aparelhos e desconsidera os vários lugares, a partir dos quais
se fala e se responde numa sociedade tão complexa quanto a nossa. Se
recorrermos a uma visão menos rígida da sociedade e aceitarmos sua
fragmentação relativa, poderemos acreditar numa eficácia menor (ain-
da que grande) dos meios de comunicação e poderemos ouvir (ainda
que sem grande força) vozes resistentes. E esta distinção entre mensa-
gens de massa e manifestações populares não deve ser entendida como
uma nova oposição que, com outro nome, entraria na mesma lista das
anteriores:
cosmopolitismo x nacionalismo
ideologia x expressão cultural autêntica
falso x autêntico
alienado x não alienado.
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J: a passividade do público que está sendo posta em causa para
que possamos constatar que as "ideologias cosmopolitas alienadas"
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não se impõem num campo virgem, mas são incorporadas de modo
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