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CADERNOS
N9 17 - 1P SERIE
SETEMBRO DE 1982

CENTRO DE ESTUDOS RURAIS E URBANOS


SÃO PAULO

ENDEREÇO:
Caixa Postal 8.105
01000 - São Paulo - SP
Brasil

Solicita-se permuta.
CULTURA BRASILEIRA: UMA NOçAO AMBfGUA

Ruth C. L. Cardoso *

As referências laudatórias ou críticas a aspectos trpicos de uma


pretensa "cultura brasileira" são tão freqüentes quanto ambíguas. Re-
metem vagamente às criações populares que ficaram preservadas das
influências cosmopolitas e servem como símbolos de nosso caráter na-
cional. Entretanto, não é simples esta tarefa de sobrepor característi-
cas culturais a fronteiras nacionais.
Sempre que os antropólogos procuraram qualificar culturas es-
pecíficas definindo seus limites, enfrentaram problemas dif(ceis. Entre
a reação de um conjunto abstrato de costumes, valores e comportamen-
tos herdados e as realidades históricas com que se deparam os investi-
gadores, estão todas as sobreposições, semelhanças e diferenças que apa-
gam limites e testemunham contatos. Só uma sociedade completamen-

* Departamento de Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia, letras e Ciên-


cias Humanas - U.S.P.

Cadernos CERU n9 17 I set. 82 15


te isolada e homogênea poderia ostentar uma cultura exclusivamente
sua e inteiramente não diferenciada.
Por essa razão, o conceito de cultura, mesmo quando aplicado
às sociedades primitivas, descreve uma realidade não homogênea. Os
antropólogos começam a dar uma atenção maior para a convivência de
grupos que, no interior de uma mesma sociedade, mantêm diferentes
identidades cult4rais. Leach 1 , em seu livro sobre Burma, já criticava a
definição tradicional de cultura porque supunha um sistema harmôni-
co e integrado de valores e práticas sociais. Interessado em recuperar
a dinâmica social e o processo contínuo de refazer as normas e os sig-
nificados, renova o conceito de ritual dando-lhe um novo conteúdo.
Retirando a conotação de repetitividade sempre associada ã prática
ritual, propõe uma relação de novo tipo entre o conjunto das tradi-
ções e os ~mportamentos concretos. A vida social é vista como um
jogo (ritual) que tem regras prescritas mas que, em cada partida, per-
mite novos lances e novas emoções.
A cultura, nesta concepção, é sem dúvida um sistema mas não
é um conjunto integrado e constitu ído. Pelo contrário, está sempre
sendo construída.
A contribuição essencial do trabalho de Leach sobre os sistemas
pol íticos está na demonstração de que, dentro dos limites tradicionais
de uma cultura, podemos encontrar diferentes sistemas de comunica-
ção que se sobrepõem e competem. Deixando as terras altas de Burma
e olhando em nosso volta, encontramos também situações que serão
melhor explicadas se recorrermos a um conceito de cultura mais ma-
leável e menos estático.
Tratando com sociedades identificadas a Estados nacionais e
divididas, em classes, a antropologia tem esbarrado em crescentes difi-
culdad~~ quando pretende delimitar grupos sociais e características
culturais. Entretanto, se para a ciência esta falta de precisão incomo-
da, para o discurso polítiCO ela é, muitas vezes, vantajosa. E, na ver-
dade, encontramos com freqüência referências positivas ou negativas

1. Leach, E. - Polítical Systems of Highland Burma.

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à cultura brasileira, ou aos valores próprios de nosso povo, sem que a
falta de clareza desoriente os interlocutores.
Não sabemos se a cultura popular é a cultura de todo o povo e se
é sinônimo de cultura brasileira. E o que fazer com as diferenças entre
o sul e o norte ou, ainda, por onde passar a linha que demarca o territó-
rio cultural das elites e do povo?
De qualquer modo, se estas noções não são precisas, devem trans-
mitir alguma (ou algumas) significação, pois não será só por capricho
que nos reunimos para discutí-Ias.
Certamente há uma razão para que, de tempos em tempos, o
interesse pela produção do povo retome impulso e ganhe espaço nas
discussões acadêmicas. Em geral, as revitalizações dos temas nacionais
e populares estão associadas a perspectivas pol iticas e cumprem a fun-
ção de legitimar alguma forma de unificação ou disjunção simbólica en-
tre o povo e as elites.
As produções culturais de origem popular são fontes de símbolos
diferenciadores que podem dar especificidade à nação e unidade entre
as classes que a constituem. Entretanto, é preciso lembrar que a lingua-
gem dos símbolos não é unívoca e, por isso mesmo, permite combina-
ções e composições diversas e contraditórias.
Bem sabemos a variedade de conotações que podem ser atribu i-
das aos símbolos nacionais e as diferentes formas de valorizar os costu-
mes populares. Peter Fry, em seu artigo "Feijoada e soul food"2, nos
dá um ótimo exemplo da composição de diferentes linguagens utilizan-
do patrimônios comuns. Mostra que no Brasil a feijoada, prato criado
pelos negros, é símbolo nacional incorporado pela elite branca enquan-
to, nos E.E.U.U., a mesma receita produz um "soul food", isto é, co-
mida diferenciadora dos negros. Aqui, é expressão de todo o povo e lá
é apoio para uma identidade grupal que denuncia a discriminação.
I: também um esforço de criação de uma linguagem própria que
foi feito pela elite nordestina, desde o começo deste século quando,
valorizando as manifestações populares regionais, procuram identificar

2. Fry, P. - Feijoada e Soul Food - Ensaios de opinião 2 + 2.

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nelas o espírito da brasilidade. Este grupo dominante regional desco-
briu e divulgou as falas populares tornando-se, com isto, guardiã de um
patrimônio cultural que devia representar a nação, dando-lhe caráter e
especificidade3 • Como diz Mauro B. Almeida - "apesar de toda a evi-
dente manipulação, o resultado líquido dessa assimilação, pelas elites
locais, de 'idéias do lugar', a fim de formular seus próprios interesses,
foi uma visibilidade cultural do 'povo' em escala nacional. Falar do po-
vo, ainda que seja falando por ele, coloca em cena um novo e legítimo
ator que não pode ser posto de lado porque é parte constituinte da na-
ção (...to ponto a reter, ao pensar como a região e a nação falam do
'povo', "que falar de um outro, e mesmo falar a linguagem dele, tradu-
zir uma linguagem noutra, não é jamais um ato puramente cognitivo,
e
quando há uma separação prévia entre uns e outros. antes um ato que
envolve poder. Nas sociedades de classe, diferenças entre 'nós' e 'outros'
são marcadas por diferenças de poder (... ) O controle dessas fronteiras,
desses espaços de manifestações da palavra do outro é o controle dos
meios de produção e circulação de signos, dos espaços legais de mani-
festação da palavra, dos repertórios de símbolos já acumulados na expe-
riência social."4
Já vemos melhor porque tantas vezes e tantos grupos falaram e
falam em nome do povo e defendem a pureza da cultura brasileira. Pa-
ra tomar apenas um outro exemplo, não muito distante, lembramos
como o Manifesto do Centro Popular de Cultura, redigido em março de
1962, trata da relação entre arte popular e arte erudita e afirma seu pa-
pei como grupo dirigente do processo de liberação popular: "Tanto a
arte do povo, em sua ingênua inconsciência, quanto a arte popular co-
mo arte da distração vital, não podem ser aceitas pelo Centro Popular
de Cultura como métodos válidos de comunicação com as massas, pois
tais forn:tas artísticas expressam o povo apenas em suas manifestações
fenomênicas e não em sua essência (... ) A prova do caráter alienado
dessas formas artísticas destinadas ao povo está em que não assumem

3. Barbosa de Almeida, M. - "Linguagem Regional e Fala Popular". Revis·


ta de Ciências Sociais, v. 8, n9 1 e 2,1977.
4. Idem, idem, p. 175-6.

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L
posição radical diante das condições de sua própria existência (... ) Nes-
se conformismo revela-se sua negação do povo e sua convivência com o
ponto de vista daqueles cujo interesse é dividir em partes a sociedade (. .. )
Os artistas e intelectuais do Centro Popular de Cultura escolheram para
si outro caminho, o da arte popular revolucionária. Para nós tudo come-
ça pela essência do povo e entendemos que esta essência só pode ser vi-
venciada pelo artista quando ele se defronta a fundo com o fato nu da
posse do poder pela classe dirigente (. .. )5.
Este grupo, manifestamente aceita que tomar o partido do povo
é assumir uma postura política mas definem uma única via para fazê-
lo. Existe uma essência para ser captada e só quem a alcança entra no
reino dos bem-aventurados defensores dos interesses nacionais e popu-
lares.
São os representantes do povo e falando em seu nome vão retirá-
lo de sua passividade "inconsciente". Outros discursos ficam imediata-
mente desqualificados assim como as manifestações da vontade popular,
pois a falta de gosto e a ingenuidade fazem com que as massas não re-
conheçam seus interesses e as virtudes de suas próprias criações.
O resultado desta tomada de posição é estabelecer uma determi-
nada (e positiva) relação entre um setor da elite intelectual e política
do país e as classes subalternas. Estabeleceu-se o contorno das alianças
e das exclusões, pois todos aque!es que divergirem serão tidos por "alie-
nados", se fizerem parte do povo, e "alienantes" se falarem em nome
de outros grupos de elite ..
*
Chegamos a um ponto importante: por diversos caminhos, tanto
os discursos pol íticos quanto os trabalhos acadêmicos (se é que pode-
mos distingui-los) qualificam, com freqüência, aspectos positivos ou ne-
gativos da cultura nacional-popular. A avaliação pode ser explícita ou
disfarçada por uma linguagem técnica que recorre a termos tais como:
alienação, autenticidade ou tradicionalismo (que se opõe ao não aliena-

5. Estevam, C. - A questão da cultura popular - Tempo brasileiro, parte


2, p. 91 e 92.

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~ I

do, inautêntico ou moderno), mas que mal encobrem, critérios exterio-


res à análise cultural. São exteriores porque não são postos em causa,
não são objeto de reflexão enquanto se está estudando os aspectos cul-
turais que eles qualificam de antemão. Usando tais critérios, quer os
discursos políticos, quer os acadêmicos, se transformam em discursos
fechados que pouco acrescentam ao conhecimento e à ação. Essas aná-
lises classificatórias perdem, tanto a dinâmica real da sociedade, quanto
as ambigüidades inerentes às linguagens simbólicas. Em geral, os crité-
rios classificatórios derivam de uma teoria simplista da relação entre
estrutura sócio-econômica e cultura.
~ imprescind ível estabelecer uma relação entre o sistema produ-
tivo e o simbólico, mas também é fundamental que esta relação não se-
ja mecânica. O trabalho que relaciona manifestações culturais e posi-
ções na estrutura sócio-econômica deve ser feito, sem que se perca de
vista as contradições da sociedade e a ambigüidade dos símbolos que
as expressam.
Algumas interpretações das mudanças ocorridas nos pa(ses de-
pendentes, que passaram por rápidos processos de industrialização e
urbanização, colocam como contrapartida destas transformações o
poder quase absoluto da ideologia das classes dominantes sobre as ma-
nifestações dos dominados, condenadas a desaparecer. Por outro ca-
minho, recuperamos a passividade das massas, incapazes senão de fa-
zer sobreviver como fantasmas algumas formas expressivas de sua cul-
tura, ameaçadas constantemente, pelos acréscimos espúrios de uma
"cultura cosmopolita".
Não seria o caso de classificar menos e questionar mais a corres-
pondência entre processos econômicos e paradigmas culturais? E, es-
pecialmef,lte não esquecer que todos os movimentos das sociedades ge-
ram contradições e abrem múltiplos caminhos que a história vai trilhan-
do e fechando ao mesmo tempo.
Voltando ao nosso tema inicial - a cultura brasileira - sabemos
que é indispensável, para recolocá-Io, considerar as condições do de-
senvolvimento brasileiro nestes últimos anos. Os meios de comunica-
ção de massa têm uma atuação tão poderosa que, praticamente, não'

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encontramos mais grupos sociais estranhos a sua influência. Entretan-
to, é bom estar atento às diferenças culturais mesmo constatando o
imenso poder homogeneizador das ondas transmitidas via EMBRATEL.
Se nos lembrarmos de Leach e deixarmos de lado a noção de cu 1-
tura como um todo harmônico, fica mais fácil interpretar este duplo
movimento de comunicação e isolamento que faz eco ãs transmissões
massivas e igualizadoras e às experiências particularizantes de grupos
em diferentes posições sociais.
Estas considerações deveriam nos levar a evitar as oposições sim-
plificadoras que estabelecem como resultado da indústria cultural a im-
posição indesejada do cosmopolitismo e o desaparecimento das formas
autenticamente nacionais.
Mesmo quando esta formulação vem embutida numa análise dita
política, porque denuncia o uso (ou abuso) do poder pela classe domi-
nante que distila sua ideologia através dos seus aparelhos de comunica-
ção, é preciso desconfiar desta oposição simples entre imposição ideoló-
gica e a expressão cultural verdadeira, nascida da convivência imediata.
Tem razão Althusser quando mostra que os aparelhos ideológicos
das classes dominantes incluem, desde as emissões controladas pelo Es-
tado, até a fam(lja que, supostamente, é o dom(nio absoluto do priva-
do. Exagera, entretanto, quando enfatiza exclusivamente o lado coerci-
tivo desses aparelhos e desconsidera os vários lugares, a partir dos quais
se fala e se responde numa sociedade tão complexa quanto a nossa. Se
recorrermos a uma visão menos rígida da sociedade e aceitarmos sua
fragmentação relativa, poderemos acreditar numa eficácia menor (ain-
da que grande) dos meios de comunicação e poderemos ouvir (ainda
que sem grande força) vozes resistentes. E esta distinção entre mensa-
gens de massa e manifestações populares não deve ser entendida como
uma nova oposição que, com outro nome, entraria na mesma lista das
anteriores:
cosmopolitismo x nacionalismo
ideologia x expressão cultural autêntica
falso x autêntico
alienado x não alienado.

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J: a passividade do público que está sendo posta em causa para
que possamos constatar que as "ideologias cosmopolitas alienadas"
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não se impõem num campo virgem, mas são incorporadas de modo
"

diversificado e conflitivo. Só por este caminho poderemos ter esperan-


ça de que Gramsci tenha razão quando admite que os dominados pos-
sam impor sua hegemonia cultural antes mesmo de chegarem ao poder.
Se a ideologia dominante é toda-poderosa e o povo "ingênt'o e incons-
ciente", como queria o manifesto do Centro Popular de Cultura, a
história chegou ao seu fim com a ditadura dos meios de comunicação
de masSâ: Acredito ainda que hajam falhas, não só no terreno rochoso
da ideorOgia, mas também no mecanismo produtivo que freqüentemen-
te necessita ser azeitado.
E a cultura brasileira? Guarda suas especificidades, resistindo aos
enlatados da indústria cultural? Parece que sim, mas para vê-Ia é preci-
so que não procuremos sempre a mesma face, mas justamente o cami-
nho de sua transformação. O que vamos chamar de "nacional" é o mo-
do específico pelo qual vivemos as imposições do progresso e marcamos
nossa identidade, mesmo quando convivemos com influências externas.
Este esforço de explorar a produção simbólica popular, justamen-
te naquilo que ela tem de dinâmico, cria um tecido variado, dentro do
qual se pode distinguir alguma lógica. O nosso passado está presente,
mais como um código que trabalha e classifica novas informações do
que como produtos prontos e acabados que devem ser preservados. São,
pois, as chaves, para decifrar o código, que nos interessam.

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