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UNIVERSIDADE DA INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA

CURSO DE ANTROPOLOGIA

Estudante: Leonardo Pontes Ferreira


Disciplina: Realização Documental
Professor: Bernardo Teodorico

Jogo, alteridade e cinema:


uma análise de “A pirâmide humana” (1961) de Jean Rouch

“Esse filme é uma experiência que o autor provocou entre adolescentes negros e brancos.
Iniciado o jogo, o autor se contentou em filmar o resultado”. Placas com letreiros nos trazem essa
espécie de aviso, logo do início do filme, nos alertando que o filme foi uma experiência provocada,
um jogo de improvisação que o autor propôs a um grupo de adolescentes, e que nesse jogo, acabou
entrando, para gravar imagens. O principal argumento do filme é explorar o que poderia ser uma
amizade sem nenhum preconceito racial, entre jovens europeus e africanos que vivem em Abidjan,
na Costa do Marfim.
Considerando a importância do argumento central do filme, que toca em questões e debates
de extrema relevância, como o racismo, a possibilidade de integração e superação do mesmo e
também, a possibilidade do rompimento das fronteiras que existem entre esses jovens estudantes,
para esta análise, não me aprofundarei nessas temáticas de modo a construir uma compreensão
sobre o tema do racismo presente no filme de Jean Rouch.
Portanto, o objetivo deste exercício crítico é o de analisar como as estratégias fílmicas
utilizadas por Rouch se comunicam e se relacionam com a história da linguagem documental, por
isso, procurarei apresentar o filme e o seu caminhar, dançando entre a descrição e a análise
propriamente dita. E no esforço de relacionar “A pirâmide humana” com a história do cinema
documentário, utilizarei como base teórica e histórica, o livro “O espelho partido” 1, de Silvio Da-
Rin (2004).
Vemos o próprio autor, Jean Rouch, explicando separadamente, para os jovens europeus e
africanos a sua proposta de jogo, suas regras e sua vontade de fazer desse jogo, um filme. Também
explica que esse filme não possui roteiro pré-estabelecido e que é a partir da improvisação
espontânea que o filme vai ser construído. E é nesse momento em que o “filme” propriamente dito
se inicia, com os letreiros que trazem os nomes da equipe técnica e das pessoas que participaram da
produção fílmica. E é sobre o filme que procurarei construir esta breve análise, e aqui cabem
algumas explicações.
1 DA-RIN, Silvio. “O espelho partido”. Rio de Janeiro: Azougue. 2004.
Quando vemos o próprio Rouch conversando com os jovens, estamos vendo as condições
da realização fílmica, ou seja, no próprio filme assistimos o que esteve por detrás do filme, as
negociações e os debates entre o realizador e os jovens. Jean Rouch está explicando com imagens as
suas próprias concepções sobre documentário, que nada mais seria do que um jogo. A intervenção
ativa de Rouch revela uma postura que se relaciona com as manifestações do Cinema Verdade na
França. Ao invés de esconder e de dissimular a produção do filme – os equipamentos, a equipe
técnica, etc. – Rouch assume a sua participação como um personagem que se relaciona com os
demais.
A observação participante como uma ferramenta metodológica emprestada (ou
compartilhada?) das Ciências Sociais foi uma estratégia incorporada na produção do filme.
“Participar” pressupõe “estar ali”, juntos aos sujeitos, neste caso, os personagens, e com eles, viver
e compartilhar sentidos sobre determinada realidade. Essa estratégia incorporada ao cinema
possibilitou novas possibilidades de fazer filmes, como a maior aproximação entre a equipe técnica
e os sujeitos-participantes do filme, no entanto, essa aproximação é construída como relações que se
estabelecem entre equipe-sujeitos no cotidiano do local onde se irá produzir o filme.
As primeiras imagens nos levam do externo para o interno, uma sala de aula, onde vemos
os mesmos jovens, mas agora, em pleno jogo. Também conhecemos Nadine (uma estudante
europeia), uma das personagens principais, que fala conosco através de uma narração, se apresenta.
Em seguida, os outros jovens também se apresentam. E Nadine volta a se comunicar conosco,
ouvimos os seus pensamentos e vemos o que ela narra, é interessante que é ela quem nos apresenta
ao grupo dos estudantes europeus, e em seguida, aos estudantes africanos. E depois, conhecemos
Denise (uma estudante africana), que também se comunica diretamente conosco. Em sua narração,
ela faz o mesmo movimento de Nadine, apresenta os estudantes.
Essas narrações, mais do que “narrar” o que vemos, nos apresentam em primeira mão os
pontos de vista das duas personagens, centrais para a narrativa do filme. De certa forma, cada uma
delas apresenta a si mesma, os outros jovens e suas relações com eles, mas também, constroem e
delimitam o mundo dos europeus e o mundo dos africanos. O filme, nesse sentido, vai sendo
construído paralelamente, tendo mais de uma voz, de uma narrativa, de um universo. E nesse
sentido, as personagens vão construindo o drama, apresentando suas visões de mundo, e também, os
próprios do filme.
O argumento de Rouch é desenvolvido pelos próprios personagens a pelo encadeamento de
suas narrativas. Nesse sentido, há uma montagem paralela tanto das narrações em off quanto das
imagens, assim, entramos nos diferentes universos que esses jovens participam, de forma mais ou
menos fechada. Há de um lado, o encadeamento das narrações, e de outro, o encadeamento das
imagens. No entanto, não necessariamente há uma continuidade única ou linear, mas sim, quebrada
e que se articula na própria narrativa fílmica.
O jogo se inicia quando Nadine e Denise têm a ideia de propor um encontro entre os dois
grupos de estudantes, esse jogo, como o contato, é construído tanto na narração quanto nas imagens.
Então, vemos os estudantes, que antes eram distantes, convivendo juntos, jogando, conversando e
debatendo o argumento do filme. Esses debates (que assistimos) problematizam o racismo, a
segregação e a possibilidade de contato entre negros e brancos. O contato entre eles se aprofunda e
as fronteiras que antes marcavam suas diferenças se tornam mais imperceptíveis, mas ainda estão
ali.
Percebemos que o filme de Rouch, além de suscitar um apelo emocional, trazendo as
narrativas das personagens, há a abordagem de um tema de grande relevância política e social: o
racismo. Podemos relacionar portanto, essa preocupação com a finalidade social ao cinema de John
Grierson, que pensava um cinema documentário que escapasse do psicologismo e do
individualismo, trazendo discussões que privilegiassem a relação indíviduo-sociedade e abordassem
temas de relevância social (DA-RIN, 2004).
Em torno dos 30 minutos da narrativa, o conflito (que nomeia o filme) começa a ser
delineado. “A pirâmide humana” segundo Nadine começou quando o contato entre os jovens
culminou em dramas amorosos e jogos de sedução. É interessante pontuar, que nas narrativas que as
duas personagens constroem, em vários momentos, acessamos suas opiniões e seus interesses sobre
os garotos. Através da montagem paralela, o drama é articulado paralelamente, nesse sentido,
garotas e garotos, negros(as) e branco(as) nos são apresentados falando uns sobre outros. Abre
parêntese.
Por isso, o jogo principal que o filme representa é o próprio jogo da alteridade. “Nós” e
“eles” vão se conformando como universos discursivos que se tocam, mas que excluem. Mas esse
jogo de alteridade é o jogo que caracteriza o uso (e o abuso) que Jean Rouch faz da linguagem
cinematográfica – da montagem paralela, dos cortes abruptos entre situações cotidianas, encontros,
eventos e dramas, e do encadeamento dramático das relações que o jogo proposto possibilita.
Antes de encarcerar a obra de Rouch dentro de alguma tradição de documentário
específica, é mais interessante falar da criatividade de Rouch em adotar estratégias que fogem de
sua própria tradição. Isso, para mencionar a dificuldade de tentar definir o que é um documentário,
quando na verdade, as tradições se misturam e se interseccionam, fugindo das regras e das
delimitações. A obra de Rouch traz elementos dramáticos (genuínos) – narração em primeira
pessoa, apresentação de conflitos, tensões e aproximações, construção individual e psicológica das
personagens, etc. – e também foge das convenções cinematográficas de representação dos dramas.
Concordo com Silvio Da-Rin quando ele nega as perspectivas totalizantes que tentam
definir o que é o documentário, mas tenta encontrar as (des)continuidades das construções da ideia
de documentário, admitindo que esse campo foi historicamente (re)construído pelos atores
envolvidos em sua zona de atração – realizadores, produtores, atores e espectadores (DA-RIN,
2004). Nesse sentido, a obra de Rouch se intersecciona com diferentes momentos históricos e com
distintas convenções sobre o modo de produzir documentário. Por exemplo, o ab(uso) da montagem
paralela retoma ao início do século XX, onde havia uma preocupação com a montagem de muitos
quadros, bem como a valorização dos movimentos de câmera, revelando o jogo entre fragmentação
(quadros) e unidade (montagem) e uma preocupação com a construção de uma ilusão temporo-
espacial.
Fecha parênteses. Voltando ao que foi mencionado acima, o conflito que se estabelece, na
forma de micro-narrativas, é conflito amoroso (ou da disputa) que Nadine “gera” sobre os garotos,
que literalmente, passam a disputar entre si a conquista de Nadine. O jogo dos garotos ultrapassam
fronteiras raciais e o conflito começa a tomar forma, atingindo o seu ápice na festa onde as micro-
narrativas amorosas explodem. A festa, como um evento, é o local onde o encadeamento dramático
ganha corpo e se aprofunda.
Rouch propõe um jogo e passa a bola para os jovens, e são eles quem constroem o filme,
que Rouch se contentou em filmar: novamente, assistimos aos jovens debaterem sobre essas
questões, problematizarem os temas e se afetarem com essa delicadas pautas que fazem parte de
vida em comum que têm no cotidiano de Abidjan. No ápice do desenrolar do filme há uma ruptura
que nos leva para uma dimensão meta-narrativa ou meta-fílmica: Alain, um jovem francês, opera
um projetor e narra a reação das pessoas aos assistirem ao filme que nós mesmos assistimos. É o
próprio filme de Rouch que foi exibido para os jogadores que o construíram, a dramatização do
jogo e da relação entre “nós” e “eles”.
Após esse corte, o filme propriamente dito segue com suas micro-narrativas de contato
entre os jovens, vemos eles na praia, brincando, correndo e se relacionando. Mas a centelha do
conflito amoroso ainda estava acesa, e um ataque de ciúmes faz Alain entrar em um briga com seus
companheiros, fugir e se atirar ao mar. Vemos planos e contra-planos que mostram tanto o jovem
em meio as ondas quanto os outros jovens assustados, gritando o nome de Alain, que não volta. Em
seguida, vemos cada um dos jovens, sozinhos, pensando, e depois, todos eles, juntos, discutindo as
causas da morte de Alain.
Esse ápice dramático sugere uma encenação e uma dúvida: será que Alain realmente
morreu no mar? Se vimos ele (segundos antes) operando o projetor e exibindo o filme que ele
participou, como pode ele ter morrido no mar? Essa questão suscita aquilo que Silvio Da-Rin
chamou de “dialética do verdadeiro e do falso”, que caracteriza o sociodrama de Jean Rouch:
“[...] Nós quisemos fugir da comédia, do espetáculo, para entrar em tomada direta
com a vida. Mas a própria vida também é comédia, espetáculo. […] Ao longo dos diálogos,
cada um pode ao mesmo tempo mais verdadeiro que na vida cotidiana e, ao mesmo tempo,
mais falso” (ROUCH apud DA-RIN. 2004:154)
O sociodrama de Rouch acontece através do jogo que foi proposto, o jogo da
espontaneidade e também da dissimulação, que se misturam quando os participantes estão
desempenhando suas próprias vidas diante da câmera. Essa característica etnográfica que
caracteriza o filme tem uma influência direta com o cinema de Robert Flaherty, que dançava entre o
cinema de viagem e a representação ficcional, onde a centralidade estava nas pessoas na frente da
câmera e a montagem articulava uma cadeia dramática de eventos e situações, que humanizavam as
pessoas, mostrando seus conflitos e tensões. Da mesma forma que Flaherty aprendeu e dominou a
linguagem cinematográfica de seu tempo e soube transgredir certas convenções, Rouch fez o
mesmo, entendeu a linguagem do documentário clássico (Flaherty e Grierson) e utilizou dela para
propor o seu estilo de fazer documentário.
Dessa forma, é importante pontuar que tal como trabalhou Silvio Da-Rin, é extremamente
difícil definir o que é um documentário, e que responder essa questão é tomar a história do cinema e
dos modos de fazer cinema, e no campo da história, vemos que o que foi documentário em
determinado momento depende muito da articulação do campo do documentário com os campos
político, social, econômico, científico e estético. Por isso, cada momento é devedor dos outros, mas
isso não deve ser confundido com uma ideia de unilinearidade ou de evolução, mas que essas várias
formas de pensar-fazer o documentário se cruzam e se interseccionam mais do que se separam,
talvez seja por isso a dificuldade de definir com exatidão.
Assim, talvez seja melhor abandonar a necessidade de nomear e classificar e olhar para os
cruzamentos criativos que cada cineasta faz, e no caso de Rouch, a forma como ele “revolve” as
diferenças entre Flaherty e Grierson e incorpora suas “inovações” em sua maneira de pensar e fazer
filmes, utilizando dos recursos da própria linguagem para abordar criatividade e dialogicamente a
realidade, assumindo sua participação e interferência nela e com as pessoas que jogaram na frente
da câmera. É uma espécie de jogo, entre o cineasta e a câmera, da câmera com as pessoas, das
pessoas entre si e da realidade e da ficção.

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