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Direitos Fundamentais

Elementos de apoio
1ª parte

Elaborados por

Andreia Sofia Pinto Oliveira

Benedita MacCrorie

Março de 2018

(Este texto destina-se ao uso exclusivo dos alunos como apoio ao seu estudo. Trata-se de uma versão
provisória, de uma parte de um livro em preparação, não devendo, por isso, ser citado ou utilizado para
qualquer outro fim.)

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Direitos Fundamentais

Parte I - Momento da consagração

1. O Estado como berço da noção de direitos


fundamentais. A evolução histórica dos direitos
fundamentais. As “gerações” de direitos
fundamentais.

2. A importância actual dos sistemas de protecção


internacional – regionais e universais. As influências
recíprocas entre o sistema estadual e os sistemas
supra-estaduais de protecção dos direitos humanos.

Parte II – Momento da protecção especial: a


definição de um regime particular dos direitos fundamentais

3. O sistema constitucional de direitos fundamentais:


divisão entre direitos, liberdades e garantias e dos
direitos económicos, sociais e culturais, na
Constituição Portuguesa em confronto com outras
fontes de direitos fundamentais.O regime geral
aplicável a todos os direitos fundamentais.

4. O regime específico dos direitos, liberdades e


garantias. A vinculação das entidades privadas: o
problema dos direitos fundamentais nas relações
entre particulares.

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1. O Estado como berço da noção de direitos fundamentais.

A ideia de que aos seres humanos deve ser reconhecido


um estatuto especial, um conjunto de direitos e de deveres
adequados à sua especial natureza foi sendo desenvolvida por
diversas correntes filosóficas ao longo da História das Ideias.

Desde a Antiguidade Clássica que encontramos


autores que reflectiram sobre valores como a dignidade e a
igualdade, havendo na filosofia clássica importantes afloramentos
das ideias de igualdade e dignidade. O Cristianismo e a afirmação
de que todos os seres humanos são filhos de Deus, de que cada ser
humano é único e de que têm igual dignidade marcou
decisivamente a nossa cultura e o modo como nela se manifestam
os direitos fundamentais.

Seria, no entanto, aguardar pelo final do século XVIII


para que estas ideias fossem positivadas. É com o Estado
constitucional de final do século XVIII, em particular, com as
Revolução Americana e Francesa, que se dão as primeiras
consagrações globais, universais e com valor constitucional dos
direitos fundamentais. Em 1776, o primeiro Bill of Rights, do
Estado de Virginia, dizia no seu artigo 1º

“Todos os homens são por natureza igualmente livres e


independentes e possuem certos direitos que lhes são imanentes e
dos quais quando entram para o Estado de uma sociedade, não
podem ser privados ou despojados.”

Este “Bill of Rights” de Virginia serviu de modelo a


outros dos Estados da Pensilvânia, Maryland, etc.
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A Constituição Federal americana de 1787 retoma
estes direitos.

Em França foi a Declaração dos Direitos do Homem e


do Cidadão, de 1789, o marco mais importante para a afirmação
dos direitos fundamentais na Europa continental. No artigo 1º,
afirma que os homens nascem e permanecem livres e iguais em
direitos. O fim da sociedade é preservá-los e esses direitos são a
liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.
No artigo 16º, proclama que “qualquer sociedade em que a
garantia dos direitos não esteja assegurada, nem esteja
consagrada a separação de poderes, não tem uma Constituição”.

Começou assim, em finais do século XVIII, um movimento


de positivação dos direitos fundamentais, que fora já iniciado na
Inglaterra há alguns séculos atrás, mas que agora se expande
universalmente. Por todo o lado surgem “Declaraöçes de
Direitos”, dirigidas ao próprio Estado, que as edita. São direitos
que o Direito não cria, mas reconhece, declarando-os.

- Que direitos?

Na tradição americana, os direitos consagrados são,


sobretudo, o direito de resistência, direito de voto, liberdade de
imprensa, liberdade religiosa, liberdade de reunião e petição, justa
indemnização; direito à reparação, princípio nulla poena, sine
lege, presunção de inocência, etc.. As regras do processo penal
como direitos humanos são, nesta altura, uma especificidade
americana: julgamento por júri, direito de confronto directo com
as testemunhas; direito a apresentar testemunhas de defesa; direito
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a não testemunhar contra si próprio; habeas corpus; proibição de
penas cruéis e da dupla pena.

Na França e, por influência francesa em toda a Europa


continental, a compreensão dos direitos era muito restrita à
liberdade, segurança e propriedade e, mesmo em relação a estas, o
seu âmbito era delimitado pela lei. E esta concepção marcou
definitivamente a Constituição Portuguesa de 1822 e Carta de
1826, bem como outras Constituições europeias continentais do
século XIX.

O que levou Georg Jellinek a afirmar no século XIX –


“Sem a América, sem as constituições dos seus diversos Estados,
talvez tivéssemos uma filosofia de liberdade, mas nunca teríamos
uma legislação que garantisse a liberdade”(1892).

- Contra que poder era necessário proteger os


indivíduos?

Também aqui há diferenças entre a tradição francesa e a


tradição americana.

Os direitos aqui, na tradição europeia continental, são


concebidos como escudos de defesa face ao Executivo, ao Rei, à
Administração.

Na América, os direitos são concebidos como escudos


de defesa face ao legislativo.

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Por isso, a historiografia mais recente põe em causa a
coerência do programa liberal e do movimento constitucional com
que ele se identifica: o liberalismo como o “primado dos direitos
sobre o direito” – a constituição de liberdades individuais.

Na tradição constitucional do continente, os direitos


aparecem secundarizados face ao Direito. A explicação histórica
para isto parece estar no facto de, na Europa continental, o projecto
constitucional ter por detrás um projecto político de
desmantelamento de sociedades feudais, em que as situações a que
se queria pôr termo estavam garantidas juridicamente por direitos
de índole privada: direitos aos cargos públicos, direitos às
prestações feudais e senhoriais; direitos a posições de privilégio,
direitos ao desempenho de funções jurisdicionais. Neste contexto,
um Estado garante de direitos não era desejável. O que se queria,
antes, era um Estado em que o predomínio da vontade do poder,
materializada na lei, se impusesse.

LEITURAS RECOMENDADAS:

• Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição


Portuguesa de 1976, 5ª edição, Coimbra, Almedina, 2012, p. 15-
36.

• Horst Dippel, História do Constitucionalismo Moderno – Novas


Perspectivas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.

• António Manuel Hespanha, Guiando a Mão Invisível, Direitos,


Estado e Lei no Liberalismo Monárquico Português, Coimbra,
Almedina, 2004.

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-As gerações de direitos

Normalmente, quando os autores se referem a este


problema do reconhecimento progressivo de um acervo de direitos
fundamentais, costumam usar uma figura, uma metáfora – que é a
metáfora das gerações.

Tal como a história humana se faz pela sucessão de


gerações, também a história dos direitos se poderia contar usando
a mesma metáfora.

O uso desta metáfora remonta aos anos 70 do século


XX, sendo a sua autoria atribuída a Karel Vasak, que analisou o
processo europeu de reconhecimento progressivo aos direitos
fundamentais, associando à metáfora das gerações a triologia da
Revolução Francesa. E, assim, defendeu que os direitos da
primeira geração – direitos de defesa do indivíduo perante o
Estado – se associavam ao ideal de Liberdade; os direitos de
segunda geração – direitos sociais – estavam ao serviço do ideal
da Igualdade; os direitos de terceira geração – direitos de
solidariedade entre povos e gerações – estavam ao serviço da
Fraternidade.

Nos direitos de primeira geração incluir-se-iam a


liberdade física, as liberdades intelectuais e espirituais – de
pensamento, de consciência, de religião, de expressão, de criação
artística.

Nos direitos de segunda geração, encontraríamos o


direito à saúde, o direito à educação.

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Finalmente, os direitos de terceira geração abrangem o
direito dos povos à autodeterminação, o direito ao
desenvolvimento e o direito ao ambiente

Esta metáfora das gerações foi, depois, usada por


muitos autores, cada um fazendo a sua própria leitura das
principais etapas no processo de desenvolvimento do conjunto dos
direitos fundamentais.

- Outra leitura sobre a evolução histórica dos direitos


fundamentais (Vieira de Andrade)

Seguindo, por exemplo, a proposta de Vieira de


Andrade (Os Direitos Fundamentais, p. 51-70), descobrimos um
primeiro grupo de direitos, que coincide com a que expusemos
anteriormente, composta pelos direitos à liberdade, direito à
propriedade, reconhecidos como direitos de defesa do indivíduo
perante o Estado, direitos que exigem do Estado,
fundamentalmente, uma postura de abstenção perante as pessoas.
São direitos que cumprem uma função de defesa do indivíduo
perante os poderes públicos, aos quais corresponde um status
negativus, um dever de abstenção, de não ingerência, de não
restrição, de não violação. Nas palavras do autor:

“São liberdades sem mais, puras autonomias sem


condicionamentos de fim ou de função, responsabilidades
privadas num espaço autodeterminado.

Liberdades individuais que, no entanto, não são


caoticamente ou anarquicamente entendidas, pois actuam num
contexto social e político organizado, onde procuram a segurança
colectiva em contrapartida da qual aceitam (aceitaram) limitar-
se.”(Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais, p. 51)
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Num segundo grupo de direitos, encontraríamos os
direitos de participação política – direitos que reconhecem na
pessoa um ser capaz de participar no processo de
autodeterminação comunitária – votando, manifestando-se,
reunindo-se, associando-se, sindicalizando-se.

Num terceiro momento, os direitos sociais – direito à


saúde, direito à educação, direito à habitação, direito à segurança
social – direitos que exigem do Estado um conjunto de prestações
de serviços ou pecuniárias para satisfazer as necessidades
individuais. São direitos estruturalmente diferentes dos direitos de
defesa; são direitos a prestações. Correspondem a uma visão do
Estado não como inimigo das liberdades, mas como um ente que
necessita de intervir para garantir os direitos fundamentais.

- Novos direitos

Desde o último quartel do século XX têm surgido


diversas correntes que reclamam o reconhecimento de novos
direitos: por exemplo, os direitos relacionados com a protecção do
ambiente – direitos que se relacionam com a protecção de
interesses colectivos e transgeracionais; direitos contra a
manipulação genética, à identidade genética, à autodeterminação
bioética, o direito a morrer com dignidade, de que agora tanto se
fala; os direitos que se prendem com a utilização da informática e
a defesa de liberdades pessoais face a novas ameaças; os direitos
dos povos à paz, à boa governação; e até os direitos dos animais.

- Críticas à teoria das gerações

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Esta compreensão geracional dos direitos não é isenta
de críticas. Ela indicia que os direitos das novas gerações se
substituem aos da geração anterior e não é assim. A evolução do
acervo de direitos reconhecidos como fundamentais tem
obedecido a uma lógica de acumulação e não de substituição.

E a cada nova geração não são só novos direitos que se


acrescentam aos existentes, mas são também novos sentidos e
novas dimensões que vêm enriquecer o sistema dos direitos
fundamentais.

Além disso, aos direitos de primeira geração tende a


ser reconhecida uma densidade normativa máxima que tende a
regredir de geração em geração. Dessa diferença entre direitos de
densidade normativa forte e direitos de densidade normativa fraca,
trataremos melhor quando estudarmos os regimes dos direitos
fundamentais e atentarmos na definição feita pela nossa
Constituição entre direitos, liberdades e garantias e direitos
económicos, sociais e culturais.

Em função desta evolução, podemos caracterizar o


sistema de direitos fundamentais como tendo as seguintes
características/ideias-força a orientar esta evolução: acumulação,
variedade, abertura (Vieira de Andrade, Os Direitos
Fundamentais, p. 67/68).

Acumulação – cada época histórica formula novos


direitos, típicos do seu tempo, que se vêm somar aos antigos. Os
direitos típicos de cada geração subsistem a par dos da geração
seguinte.

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Variedade – o leque abre-se e acrescentam-se novas
dimensões e sentidos ao sistema – que se torna cada vez mais
complexo e multi-funcional.

Abertura – os catálogos não são nunca obras acabadas.


Por interpretação vão-se descobrindo sempre novas dimensões aos
direitos pré-existentes e vão-se descobrindo e acrescentando novos
direitos.

LEITURAS RECOMENDADAS:

• Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição


Portuguesa de 1976, 5ª edição, Coimbra, Almedina, 2012, p. 51-
70.

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2. A importância actual dos sistemas de protecção internacional –
regionais e universais.

Se é verdade que o Estado foi o berço dos direitos


fundamentais, nos nossos dias, é também verdade que o Estado
não detém o monopólio da defesa destes direitos.

No século XX, deu-se a transição desta matéria de


“domestic affair” para matéria de “international concern”.

Esta transição dá-se com particular força após a Segunda


Guerra Mundial, muito embora importantes instrumentos de
protecção dos direitos fundamentais tenham sido adoptados na
primeira metade do século XX e mesmo no século XIX.

A Carta das Nações Unidas, Carta de São Francisco, de


1945, refere-se à necessidade de os Estados cooperarem na defesa
de direitos e liberdades fundamentais, embora esta consagre
igualmente o princípio de não ingerência nos assuntos internos de
cada Estado.

E, desde aí, muitos instrumentos internacionais


surgiram com o objectivo de reconhecer a nível internacional um
conjunto de direitos humanos que, como se diz no Preâmbulo da
Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, a
“dignidade inerente a todos os membros da família humana e seus
direitos iguais e inalienáveis”.

E, apesar de a Declaração não ter formalmente força


vinculativa, foi o instrumento impulsionador e uma referência para
outros instrumentos internacionais que, a partir dela, se haveriam

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de elaborar no quadro das Nações Unidas, como particular
destaque para os Pactos Internacionais sobre Direitos Civis e
Políticos e sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais, ambos
de 1966.

A partir daí uma série de instrumentos que tratam de


direitos fundamentais autonomamente – discriminação racial,
tortura, discriminação contra as mulheres, direitos da criança,
direitos da pessoa com deficiência, direitos do trabalhador
migrante, etc. – foram adoptados sob a égide das Nações Unidas –
uns com mais sucesso do que outros.

E este sucesso afere-se, entre outros factores, pela


existência ou não de mecanismos de tutela e garantia destes
direitos que permitam às pessoas que se sintam vítimas de
violações de direitos humanos reagir a essas violações,
apresentando queixas mesmo contra os Estados de que são
nacionais. Veremos, mais tarde, como funciona este mecanismo.

O reconhecimento de direitos fundamentais na cena


internacional enfrenta, naturalmente, dificuldades – desde logo,
pela heterogeneidade cultural que se faz sentir numa organização
internacional de vocação universal.

Também por isso, o reconhecimento de direitos


humanos no plano internacional não se faz apenas no âmbito da
ONU. Faz-se também através de organizações de âmbito regional.

Assim aconteceu também na Europa, em que, no quadro


do Conselho da Europa, logo em 1950, foi aprovada a Convenção
Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e a Salvaguarda
de Liberdades Fundamentais.
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“The arrival of human rights on the
international scene is, indeed, a remarkable event because it is a
subsersive theory destined to foster tension and conflict among
States. Essentially it is meant to tear aside the veil that in the past
covered and protected sovereignity, giving each State the
appearance of a fully armoured titanic structure, perceived by
other States only 'as a whole', the inner meahanisms of which
could not be tampered with. Today the human rights doctrine
forces the States to give account of how they treat their nationals,
administer justice, run prisons, and so on, Potentially, therefore,
it can subvert their domestic order and, consequently, the
traditional configuration of the international community as well.

On the whole, one can say that within the


international community this doctrine has acquired the value and
significance which, within the context of domestic systems, was
accorded to Locke's theory of a social contract, Montesquieu's
concept of the separation of powers, and Rousseau's theory of the
sovereignity of the people. Just as these political ideas eroded
absolute and despotic monarchy, democratizing the fondations om
which kingdoms rested, so the doctrine of human rights has lent
and still lends, in the world community, tremendous impetus to
respect for the dignity of all human beings, and also to the
democratization of States”

Antonio Cassese, International Law, Oxford, 2005.

LEITURAS RECOMENDADAS:

• Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição


Portuguesa de 1976, 5ª edição, Coimbra, Almedina, 2012, p. 36-
49.

• A. Sofia Pinto Oliveira, A Carta dos Direitos Fundamentais da


União Europeia, Lisboa, Petrony, 2018, p. 11-24

15
• Antonio Cassese, International Law, 2ª edição, Oxford, Oxford
University Press, 2005, p. 375-396.

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3. O sistema constitucional de direitos fundamentais

- Esclarecimento terminológico – direitos humanos ou


direitos fundamentais?

Existe, quanto ao objecto desta disciplina uma discussão


quanto ao exacto significado e alcance dos termos utilizados para
descrever o objecto do seu estudo.

O conceito de “direitos humanos” é, frequentemente,


utilizado numa acepção mais moral e internacionalista,
convertendo-se numa expressão algo ambígua, podendo referir-se
com ela uma pretensão moral ou um direito subjectivo protegido
por uma norma jurídica.

Pelo contrário, o conceito de “direitos fundamentais” é,


muitas vezes, usado numa acepção restrita, pretendendo abranger
apenas os direitos reconhecidos numa ordem constitucional
concreta e deixando de fora as outras vias normativas de
reconhecimento de direitos.

Pela nossa parte, designamos como direitos


fundamentais aqueles que são protegidos por normas jurídicas de
carácter vinculativo – sejam estas de nível internacional, europeu
ou estadual.

- A diferenciação entre os direitos no plano


internacional

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O processo de consagração dos direitos fundamentais ao
nível internacional também se ressentiu destas distinções – aqui o
problema não foi “geracional”, mas geopolítico.

Tivemos, durante a Guerra Fria, duas doutrinas de


direitos fundamentais em confronto:

- a doutrina ocidental, que valorizava direitos civis e


políticos, punha em especial relevo as liberdades cívicas – como a
liberdade religiosa, de pensamento, de consciência e de expressão
e desvalorizava os direitos económicos, sociais e culturais.

- a doutrina socialista, que valorizava os direitos


económicos, sociais e culturais, mas defendia que os direitos
fundamentais era matéria de exclusivo interesse doméstico dos
Estados na qual nem outros Estados nem organizações
internacionais deveriam poder intervir; defendiam o direito à
autodeterminação.

Em consequência desta distinção, temos que na DUDH


– encontramos direitos dos dois tipos misturados – mas nos Pactos
Internacionais de 1966 já encontramos o reflexo desta distinção
geopolítica e vemos a divisão dos direitos em dois Pactos: o Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional
de Direitos Económicos, Sociais e Culturais.

Ainda hoje se tenta vencer na Comunidade


Internacional o estigma que esta distinção representou. Assim, em
1993, a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, de
Viena, no parágrafo 5, pode ler-se: “Todos os Direitos Humanos
são universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados.
A comunidade internacional deve considerar os Direitos

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Humanos, globalmente, de forma justa e equitativa, no mesmo pé
e com igual ênfase. Embora se deva ter sempre presente o
significado das especificidades nacionais e regionais e os diversos
antecedentes históricos, culturais e religiosos, compete aos
Estados, independentemente dos seus sistemas políticos,
económicos e culturais, promover e proteger todos os Direitos
Humanos e liberdades fundamentais.”. Esta declaração tem sido
repetida posteriormente inúmeras vezes, mas, no plano do direito
internacional geral, esta igualdade e equiparação entre os direitos
ainda parece estar longe.

Mesmo na Europa, cujo modelo de desenvolvimento


dá um especial relevo aos direitos sociais, se atentarmos na
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, constatamos que só
lá estão consagrados direitos de primeira geração, direitos de
defesa dos indivíduos perante os Estados, estando remetidos para
a Carta Social Europeia os restantes. Ou seja, no seio do Conselho
da Europa, reflecte-se a mesma cisão que se verifica ao nível das
Nações Unidas.

- O conjunto dos direitos fundamentais na ordem


jurídica portuguesa

A Constituição Portuguesa dispõe de uma catálogo de


direitos fundamentais extenso, que as diversas revisões
constitucionais têm enriquecido progressivamente e onde estão
presentes direitos das diversas “gerações” e mesmo vários dos
chamados “direitos novos”, como o direito ao ambiente (artigo
66º), o direito à fruição cultural (artigo 78º).

A CRP consagra no seu art. 1.º o princípio da dignidade


da pessoa humana. Tal significa que a concepção antropológica
19
consagrada na nossa Constituição é a do humanismo ocidental, ou
seja, é uma concepção liberal moderna. Neste contexto deve
entender-se o princípio da dignidade da pessoa humana como o
princípio de valor que confere unidade de sentido e fundamento ao
conjunto de preceitos relativos aos direitos fundamentais.

As normas de direitos fundamentais previstas na CRP


dividem-se em normas relativas a direitos, liberdades e garantias
(DLG) (artigos 24.º a 57.º da CRP) e normas relativas a direitos
económicos, sociais e culturais (DESC) (artigos 58.º a 79.º da
CRP). Dentro das normas relativas a direitos, liberdades e
garantias podemos distinguir entre:

- direitos, liberdades e garantias pessoais (artigo 24.º a


47.º);

- direitos, liberdades e garantias de participação política


(artigo 48.º a 52.º);

- e direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores


(artigo 53.º a 57.º).

O catálogo de direitos fundamentais constante da CRP


tem também explícita a nota caracteística de abertura que acima
referimos. Esta encontra-se no artigo 16º da Constituição. De
acordo com esta “cláusula aberta”, os direitos fundamentais
reconhecidos na ordem jurídica portuguesa não são apenas aqueles
que constam do catálogo contido na Parte I da Constituição, mas
são também todos os direitos consagrados em normas de direito
internacional ou mesmo na lei a que deva reconhecer dignidade de
direitos fundamentais.

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Assim, além dos direitos fundamentais “em sentido
formal” ou tipificados no catálogo, temos ainda direitos
fundamentais dispersos na Constituição, ou seja, direitos
fundamentais constitucionais, mas que se encontram previstos fora
da parte I, sendo assim direitos fundamentais dispersos, temos
direitos fundamentais extra-constitucionais, de fonte internacional
ou legal.

Na identificação dos direitos fundamentais extra-


catálogo, podemos socorrer-nos de um simples critério de analogia
com os direitos do catálogo ou podemos socorrer-nos de um
critério material de direitos fundamentais (ver, neste sentido,
critérios propostos por Vieira de Andrade, Os Direitos
Fundamentais, p. 79 e seguintes).

Já vimos que a existência de uma dicotomia entre


direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais e
culturais está, antes do mais, relacionada com a própria evolução
histórica dos direitos fundamentais e é ainda oriunda dos textos de
Direito Internacional. Para além disso, esta distinção parte do
entendimento de que os direitos, liberdades e garantias se
consubstanciam em direitos de defesa, de não intervenção, dos
particulares face ao Estado, enquanto os direitos económicos,
sociais e culturais são direitos a prestações estaduais positivas.

Convém realçar que, na nossa ordem jurídica, esta não é


uma distinção meramente teórica, uma vez que tem consequências
práticas significativas: por um lado, implica o reconhecimento de
um regime mais protector, estabelecido na CRP para os direitos,
liberdades e garantias; por outro lado, também releva do ponto de
vista das garantias previstas para a defesa dos direitos.
21
- Regime geral dos direitos fundamentais.

Depois de referidas as circunstâncias em que os direitos


fundamentais se afirmam como elementos centrais das
Constituições, do direito internacional e do direito europeu, é
chegado o momento de analisar em que é que se traduz, do ponto
de vista substancial, a atribuição a um qualquer direito do
adjectivo fundamental.

Este é um problema que se põe, fundamentalmente, no


plano interno, onde os direitos fundamentais convivem com outras
pretensões que não são qualificadas como direitos fundamentais.

E foi por isso que as Constituições e as jurisdições


constitucionais criaram um regime particular para defesa e
garantia dos direitos fundamentais, que, a seguir estudaremos.

Esse regime veio, no entanto, a criar mecanismos de


protecção e de defesa dos direitos fundamentais que foram depois
reproduzidos pelas instâncias internacionais que se ocupam da
protecção dos direitos fundamentais – em particular, pelo Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem, sediado em Estrasburgo, que é
a instância de protecção internacional dos direitos fundamentais
com a qual as jurisdições constitucionais mais têm dialogado.
Neste diálogo vem participando, cada vez mais, o Tribunal de
Justiça da União Europeia, como já vimos.

- O sistema constitucional português de protecção


direitos fundamentais

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As normas de direitos fundamentais previstas na CRP
dividem-se em normas relativas a direitos, liberdades e garantias
(DLG) (artigos 24.º a 57.º da CRP) e normas relativas a direitos
económicos, sociais e culturais (DESC) (artigos 58.º a 79.º da
CRP). Esta distinção marca de modo acentuado o regime aplicável
aos direitos fundamentais. Não se trata de uma mera questão de
arrumação dos direitos em categorias, uma vez que esta distinção
tem consequências práticas significativas: por um lado, implica o
reconhecimento de um regime mais protector, estabelecido na
CRP para os direitos, liberdades e garantias; por outro lado,
também releva do ponto de vista da protecção judicial dos direitos,
havendo meios específicos de protecção de direitos, liberdades e
garantias, que excluem os direitos económicos, sociais e culturais.

- Defesa de uma concepção unitária dos direitos


fundamentais: Reis Novais

Tem havido da parte da doutrina alguma contestação a


esta separação estabelecida na Constituição. Jorge Reis Novais,
por exemplo, tece várias críticas à consagração de regimes
diferenciados para os DLG e DESC. Este Autor considera que a
ideia de hierarquização dentro dos direitos fundamentais, com uma
pretensa superioridade dos direitos, liberdades e garantias (uma
vez que gozam de um regime de protecção mais reforçado), é
contrária à ideia de direitos fundamentais em Estado de Direito e
não é compatível com a vivência prática destes direitos. Esta
distinção pressupõe a consideração do direito na sua globalidade e
aquilo que acontece na vida de todos os dias são conflitos e
23
limitações, não do direito como um todo, mas de modalidades e
dimensões particulares, específicas, parcelares do direito.

Por outro lado, segundo o Autor, é também comum na


doutrina procurar a justificação da consagração constitucional de
um regime privilegiado de protecção aos direitos, liberdades e
garantias no facto de estes direitos terem uma relação mais
próxima com princípios nucleares do Estado de Direito, como
sejam a dignidade da pessoa humana, a autonomia ou
autodeterminação pessoal, etc.

No entanto, considera que também esta tentativa é


infundada, porque não há razões objectivas que a sustentem. Por
que, por exemplo, se deverá considerar que o direito de antena
(DLG pessoal na enumeração constitucional) está mais vinculado
à dignidade ou à autonomia pessoal que o direito a uma habitação
condigna?

Assim sendo, Jorge Reis Novais defende a aplicação de


uma dogmática unitária extensível a todos os direitos
fundamentais.
“As ideias directrizes desta proposta são as de
atribuição aos direitos sociais de uma relevância plena enquanto
direitos fundamentais, acompanhado do reconhecimento de uma
especificidade de natureza de que resultam consequências de
diferenciação num quadro de uma dogmática una e abrangente de
protecção jurídica aos direitos fundamentais.
Ser um direito fundamental significa, em Estado
constitucional de Direito, ter uma importância, dignidade e força

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constitucionalmente reconhecidas que, no domínio das relações
gerais entre o Estado e o indivíduo, elevam o bem, a posição ou a
situação por ele tutelada à qualidade de limite jurídico-
constitucional à actuação dos poderes públicos. Significa, por
outro lado, já no plano das relações entre os poderes públicos,
que os bens, posições ou situações tuteladas pelos direitos
fundamentais são retirados da plena disponibilidade decisória do
poder político democrático, sendo a sua garantia atribuída, em
última análise, à justiça constitucional. (...)
Assente aquele reconhecimento [de que os direitos
sociais são direitos fundamentais], ele não pode prescindir da
atribuição da devida relevância à especificidade que os direitos
fundamentais apresentam no sistema dos direitos fundamentais.
Designadamente, há que dar a devida relevância ao facto de os
direitos sociais (...) serem ainda sujeitos a uma reserva do
financeiramente possível e, logo, das margens de decisão e
apreciação que (...) cabem ao legislador democrático e ao poder
judicial” (Reis Novais, Direitos sociais, 251-253).

Antes porém de entrarmos nas particularidades de


regime de cada tipo de direitos, vamos analisar os traços comuns
do seu regime. A nossa Constituição estabelece, antes do mais, um
regime geral dos direitos fundamentais, ou seja, um regime que se
aplica quer a direitos, liberdades e garantias, quer a direitos
económicos e culturais e que está previsto no Título I da Parte I da
CRP.

Os elementos fundamentais desse regime –


universalidade, igualdade – são elementos reafirmados na
generalidade das constituições e nos instrumentos internacionais
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como pilares essenciais a qualquer afirmação de direitos
fundamentais.

Vamos então fazer uma breve análise do regime


constitucional, constatando sempre os pontos comuns existentes
entre os traços característicos deste regime e os instrumentos
internacionais

- Artigo 12º

Consagra o princípio da universalidade, segundo o qual


todos os cidadãos gozam dos direitos consignados na Constituição
e estão sujeitos aos mesmos deveres. Tal não invalida que certos
direitos pressuponham, pela sua própria natureza, uma certa idade,
como é, por exemplo, o caso da generalidade dos direitos políticos,
nomeadamente dos previstos no art. 49.º (direito de voto) e no art.
122.º (elegibilidade para Presidente da República), ou ainda que
haja direitos reservados, pela sua natureza, a certas categorias de
pessoas, como é o caso dos arts. 51.º ss (direitos dos
trabalhadores), ou do art. 71.º (cidadãos portadores de deficiência).

Quanto às pessoas colectivas, segundo o disposto no


artigo 12º, n.º 2, estas gozam dos direitos e estão sujeitas aos
deveres compatíveis com a sua natureza. Tal significa que as
pessoas colectivas gozam de direitos fundamentais que não
pressuponham características intrínsecas ou naturais do homem.
(No Acórdão n.º 198/85, o Tribunal Constitucional reconheceu,
por exemplo, que o sigilo da correspondência constitui um
daqueles direitos compatíveis com a natureza das pessoas
colectivas, o que não significa que tal direito se aplique a estas nos

26
mesmos termos e com a mesma amplitude que se aplica às pessoas
físicas.)

- Artigo 13.º

Consagra o princípio da igualdade, que, segundo alguns


autores é uma exigência que decorre já do princípio do Estado de
Direito, entendido em sentido material, isto é, como um Estado
comprometido com a realização da justiça. A inserção do princípio
nesta parte da CRP significa que, em matéria de direitos
fundamentais, a garantia de igualdade entre os cidadãos é medular
do próprio sistema constitucional dos direitos fundamentais, que
são estruturas de igualdade e não de privilégios.

Tal não implica, necessariamente, uma igualdade


absoluta, visto que o princípio da igualdade visa apenas proibir as
discriminações arbitrárias, sem fundamento razoável. O princípio
da igualdade poderá inclusivamente justificar tratamentos
diferenciados das pessoas quando haja fundamento objectivo para
tal diferenciação.

- Artigo 14.º

Refere-se aos direitos fundamentais de cidadãos


portugueses residentes no estrangeiro, estabelecendo que estes
gozam dos direitos que não sejam incompatíveis com a ausência
do país. Como exemplo de um direito que não pode ser gozado por
cidadãos portugueses que não residam em Portugal podemos
referir a capacidade eleitoral passiva, na maioria dos actos
eleitorais. Já a capacidade eleitoral activa poderá ser exercida

27
também por aqueles que residam no estrangeiro, nos termos
previstos na CRP e na lei.

- Artigo 15.º

Quanto aos estrangeiros e apátridas, nos termos do


artigo 15º da Constituição, estes gozam também dos direitos
consignados na Constituição para os cidadãos portugueses. Este
artigo estabelece, então, um princípio da equiparação.

Os estrangeiros e apátridas estão apenas excluídos do


gozo do leque de direitos que pertencem exclusivamente a
cidadãos portugueses e que estão previstos no n.º 2 deste artigo –
direitos políticos, exercício de funções públicas que não sejam de
carácter meramente técnico e direitos fundamentais que a
Constituição ou a lei reservam para os nacionais. Esta disposição
parece dar “carta branca” ao legislador ordinário para alargar as
excepções, reservando aos cidadãos portugueses quaisquer
direitos que entenda. No entanto, tem-se entendido que as
excepções a estabelecer por lei ordinária àquela regra não são
livres, devendo as leis que eventualmente reservem direitos deste
tipo para cidadãos portugueses ser consideradas verdadeiras leis
restritivas e sujeitas às condições de legitimidade estabelecidas no
artigo 18.º.

Os restantes números (3, 4 e 5) do art. 15.º consagram


excepções às excepções. Assim, sob condição de reciprocidade,
podem ser reconhecidos alguns direitos políticos limitados a
estrangeiros com residência em Portugal (números 4 e 5); um
estatuto especialíssimo de acesso a elevados cargos do Estado para

28
cidadãos de Estados de língua portuguesa (estatuto de que, neste
momento, só os cidadãos brasileiros podem beneficiar – número
3).

LEITURAS RECOMENDADAS:

• Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição


Portuguesa de 1976, 5ª edição, Coimbra, Almedina, 2012, p. 111-
133.

• A. Sofia Pinto Oliveira, A Carta dos Direitos Fundamentais da


União Europeia, Lisboa, Petrony, 2018, p. 87-109

29
4. O regime específico dos direitos, liberdades e garantias.

Vimos que a CRP estabelece uma dicotomia entre


direitos, liberdades e garantias e direitos económicos sociais e
culturais. Vimos também que essa distinção não é meramente
teórica, tendo consequências no regime aplicável aos diferentes
direitos.

Independentemente da bondade desta diferenciação


(que já vimos que é contestada), vamos ver qual o regime
estabelecido pela Constituição para os direitos, liberdades e
garantias e que visa proteger, com especial intensidade, estes
direitos.

- Regime específico dos direitos, liberdades e garantias

Dentro do regime específico dos direitos, liberdades e


garantias, podemos distinguir entre: um regime material, um
regime orgânico e um regime de revisão constitucional.

- Regime material

O regime material específico está essencialmente


previsto no artigo 18.º da Constituição (embora haja também
outras disposições constitucionais que atribuem um regime mais
30
protector a estes direitos, como é o caso dos arts. 19º, 20º, nº 5,
21º, 22º e 272º, nº3).

- Aplicabilidade directa
O n.º 1 do artigo 18.º estabelece que os direitos,
liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as
entidades públicas e privadas. Assim sendo, este regime material
específico consubstancia-se, em primeiro lugar, na aplicabilidade
imediata, o que significa que os preceitos constitucionais vinculam
todos os órgãos ou agentes do poder sem necessidade de mediação
legislativa.

No entanto, a aplicabilidade directa das normas


consagradoras de direitos, liberdades e garantias não implica
sempre a transformação automática destes em direitos concretos e
definitivos.

É necessário distinguir consoante as normas de direitos,


liberdades e garantias sejam ou não exequíveis por si mesmas. Se
a norma constitucional for exequível por si mesma, ela pode ser
imediatamente invocada, ainda que haja falta ou insuficiência de
lei. A regulamentação legislativa não é essencial, sendo apenas útil
pela certeza e segurança que cria quanto às condições de exercício
dos direitos ou quanto à delimitação frente a outros direitos. Pelo
contrário, se a norma não for exequível por si mesma (ex: art. 26º,
n.º 2), o sentido a atribuir ao art. 18.º é o de que o legislador está
vinculado a editar as medidas legislativas necessárias, não tendo o
poder de apreciação quanto á oportunidade de legislar. A falta
dessas medidas implica uma inconstitucionalidade por omissão,
sujeita ao regime de controlo do artigo 283º.

31
(Ver, sobre esta matéria da aplicabilidade directa, em
particular, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais, p. 191-
205).

- Vinculação de entidades públicas

Por outro lado, o art. 18.º estabelece a vinculação das


entidades públicas e privadas aos direitos, liberdades e garantias.
Segundo esta disposição os direitos, liberdades e garantias
obrigam tanto entidades públicas como entidades privadas.

Quanto às entidades públicas, retiramos deste preceito


que o Estado está, que todos os poderes públicos estão vinculados
aos direitos, liberdades e garantias. Abrangem-se aqui obviamente
os órgãos legislativos, os órgãos jurisdicionais e toda
Administração Pública, estendendo-se este imperativo de respeito
pelos direitos, liberdades e garantias mesmo a poderes que não
sejam estaduais, mas exercidos através de pessoas colectivas
públicas, com autarquias, universidades, ou outras.

O legislador está vinculado aos direitos fundamentais.


Não é ao legislador que cabe determinar e circunscrever
autonomamente o âmbito de protecção dos direitos fundamentais.
Hoje em dia, de acordo com uma célebre expressão, são as leis que
gravitam à volta dos direitos fundamentais e não os direitos
fundamentais que gravitam à volta das leis (Krűger). 

32
O legislador tem um papel essencial na protecção dos
direitos fundamentais, através de leis que podem ampliar, ordenar
e concretizar o gozo e o exercício de direitos fundamentais.

Tem também um papel mais ingrato, que é o de intervir


antecipando conflitos entre os direitos fundamentais ou entre estes
e bens comunitários essenciais através de leis que restringem
direitos, liberdades e garantias. Os termos concretos desta
vinculação específica estão previstos nos números 2 e 3 do artigo
18º que, a seguir, trataremos.

- Vinculação do poder judicial aos direitos, liberdades


e garantias

O papel dos juízes na protecção dos direitos


fundamentais, como amigos das liberdades do cidadão, obriga os
tribunais a uma vinculação estrita em matéria de direitos,
liberdades e garantias. Esta vinculação impõe-lhes uma actuação
particularmente célere nos processos em que estão em causa, de
modo mais flagrante, direitos fundamentais – em particular
naqueles em que há lesão iminente de bens jurídicos fundamentais
(quando há arguidos presos, quando se trata de um recurso perante
o TC em que estão em causa direitos, liberdades e garantias,
quando se requer uma providência cautelar para defesa de direitos,
liberdades e garantias – sobre isto, veremos, mais à frente,
concretizações legais específicas destas exigências).

Na substância das suas decisões, o dever de interpretar


normas em conformidade com a Constituição e de recusar a
aplicação de normas que com não se conformam com a

33
Constituição tem uma expressão mais intensa quando se trata de
normas relativas a direitos, liberdades e garantias.

- Vinculação da Administração

Ao contrário do poder judicial, o poder administrativo


começou por ser considerado a principal ameaça às liberdades dos
cidadãos. A vinculação das entidades administrativas às normas de
direitos, liberdades e garantias, prevista no art. 18º/1 e reforçada
no artigo 266º da Constituição, significa que a Administração tem
o dever de interpretar a lei em conformidade com as normas de
direitos, liberdades e garantias, tem o dever de quando actua em
domínios de discricionariedade, respeitar os direitos, liberdades e
garantias e assumi-los como parâmetros decisivos para o
preenchimento dos espaços livres de pré-determinação legislativa
(devendo o cumprimento deste dever ser objecto de controlo
judicial) e pode ter ainda o dever, em circunstâncias excepcionais
e muito limitadas, de recusar a aplicação de normas com
fundamento na violação de direitos, liberdades e garantias.

LEITURAS RECOMENDADAS:

• Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição


Portuguesa de 1976, 5ª edição, Coimbra, Almedina, 2012, p. 193-
228.

• André Salgado de Matos, A Fiscalização Administrativa da


Constitucionalidade, Coimbra, Almedina, 2004, 215 e seguintes.

34
-Vinculação das entidades privadas aos direitos
fundamentais.

Mais controvertida é a questão de saber em que termos


é que os privados, nas relações que estabelecem entre si, estão
vinculados a estes direitos, pelo que vamos ver mais
detalhadamente as diferentes posições que têm vindo a ser
defendidas a este respeito.

Apesar de a nossa Constituição referir expressamente


a vinculação das entidades privadas no n.º 1 do artigo 18.º, tem-se
entendido que esta norma não é inteiramente conclusiva.

Dentro da categoria dos direitos, liberdades e garantias


existem normas de direitos fundamentais que devem ser excluídas
desta discussão, uma vez que são, em princípio, inoponíveis aos
particulares, na medida em que têm por destinatário
exclusivamente os órgãos estatais. Será o caso, por exemplo, do
direito a tutela jurisdicional efectiva, da responsabilidade civil do
Estado, do direito de petição, do direito de asilo e não extradição,
etc.

As principais teorias defendidas a este propósito


dividem-se entre as que negam a vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais, as que advogam a aplicabilidade imediata
destes preceitos constitucionais nas relações entre sujeitos
privados (posições monistas) e aquelas que só indirectamente
admitem a relevância dos direitos fundamentais nesta área

35
(posições dualistas), abrangendo nós aqui a tese da eficácia
mediata e a tese dos deveres de protecção.

As teorias monistas defendem que os direitos


fundamentais são directamente aplicáveis nas relações jurídicas
privadas, ou seja, não carecem da mediação de disposições de
direito privado para que possam ser opostas a particulares. Esta
doutrina foi formulada, pela primeira vez, por Nipperdey, na altura
presidente do Bundesarbeitsgericht (BAG).

As teorias da eficácia mediata, por seu lado,


desenvolveram-se a partir da formulação de Dürig e defendem que
a influência dos direitos fundamentais é apenas indirecta e deverá
levar-se a cabo, principalmente, através da densificação de
cláusulas gerais e conceitos indeterminados do direito privado.

Finalmente, para a teoria dos deveres de protecção, os


direitos fundamentais vinculam apenas os entes públicos, mas
estes, para além do dever de os respeitar e concretizar, têm ainda
a responsabilidade de os proteger contra quaisquer ameaças, ainda
que essas ameaças resultem da actividade de outros particulares.
Parte-se aqui da distinção entre direitos fundamentais enquanto
direitos de defesa em relação ao Estado e direitos fundamentais
enquanto deveres de protecção. Canaris é um dos principais
defensores desta teoria na sua aplicação às relações jurídicas
privadas. Segundo ele, o destinatário deste dever de protecção nas
relações entre particulares é o legislador de Direito Civil e,
particularmente, o julgador do Direito Civil.

Independentemente da posição adoptada, a existência de


uma vinculação dos particulares, seja qual for a sua forma e o seu
alcance, é, hoje, inquestionável. E apesar das divergências entre as
36
teorias referidas, na prática estas conduzem muitas vezes ao
mesmo resultado. Ainda assim, há diferenças no que se refere ao
alcance do papel do juiz na ausência de lei ordinária. Neste último
caso, enquanto a teoria da eficácia imediata aplicará o direito
fundamental constitucionalmente consagrado em quaisquer
circunstâncias, a teoria dos deveres de protecção apenas o fará
quando esteja em causa um défice de protecção.

Consideramos que a tese da eficácia mediata não tem


devidamente em conta a evolução sofrida pelos direitos
fundamentais, limitando-se a defender uma ideia de interpretação
conforme à Constituição. Por outro lado, a teoria dos deveres de
protecção acaba por se reconduzir a uma vinculação das entidades
públicas, pois é aos poderes públicos que cabe o dever de proteger
os direitos fundamentais contra quaisquer ameaças, ainda que
essas ameaças resultem da actividade de outros particulares. Ora a
CRP diz algo mais do que isso, ao consagrar expressamente que
os direitos fundamentais vinculam as entidades privadas e ao não
estabelecer quaisquer limites a essa vinculação.

Por conseguinte, entendemos ser de reconhecer uma


vinculação directa “prima facie” dos particulares aos direitos
fundamentais. Considerar que há uma vinculação imediata dos
particulares não implica, no entanto, que deva haver uma
equiparação total entre pessoas públicas e privadas. Sendo ambas
as partes do conflito titulares de direitos fundamentais, a sua
solução dependerá sempre das circunstâncias do caso concreto e
dos direitos fundamentais em causa, tendo de se levar a cabo uma
ponderação de bens ou valores.

37
Um dos critérios fundamentais a ter em conta nessa
ponderação é o grau de desigualdade fáctica entre as partes.
Quanto mais uma das partes da relação se encontre numa posição
de supremacia, maior será a sua vinculação ao respeito do direito
fundamental em causa. Entre iguais, a regra deve ser o princípio
da liberdade.

Por outro lado, parece fazer sentido distinguir entre a


vinculação dos particulares ao princípio da igualdade e a
vinculação aos restantes direitos, liberdades e garantias. Ao
contrário do Estado que, em toda a sua actuação, está obrigado a
respeitar o princípio da igualdade, os particulares deverão poder
livremente escolher com quem contratar, sem justificações nem
preocupações igualitárias, sob pena de se estar a restringir
excessivamente a sua autonomia. Assim, à partida, este princípio
não deve oferecer um conteúdo limitativo da autonomia privada.
Há, no entanto, situações em que poderá ser legítima a imposição,
por via legislativa, de deveres específicos de igualdade de
tratamento.

É também relevante nesta sede saber se estamos perante


entidades privadas detentoras de um poder social ou económico de
facto. Ainda assim, a intensidade com que o princípio da igualdade
deve actuar não será sempre a mesma, devendo variar em função
do desequilíbrio negocial existente e da autonomia real das partes.

LEITURAS RECOMENDADAS:

• Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição


Portuguesa de 1976, 5ª edição, Coimbra, Almedina, 2012, p. 230-
262.

38
• Benedita MacCrorie, A Vinculação dos Particulares aos Direitos
Fundamentais, Coimbra, Almedina, 2005.

39
-As restrições de direitos, liberdades e garantias.

Vamos agora tratar o problema das restrições legais aos


direitos, liberdades e garantias.

Quando falamos de restrições estamos a referir-nos a


uma acção que afecta desvantajosamente o conteúdo de um direito
fundamental, ou seja, a restrição implica um enfraquecimento do
âmbito de protecção do direito.

Por que é que o legislador precisa de restringir direitos


fundamentais?

Os direitos fundamentais não são absolutos nem


ilimitados. A própria necessidade de co-existência de diversos
direitos fundamentais titulados por múltiplos sujeitos cria a
necessidade de intervenções legislativas que, nalguns casos,
inevitavelmente, vão limitar o “espaço” que se poderia considerar
protegido por uma liberdade ou um direito fundamental.

Essa actuação legislativa é, naturalmente, problemática,


porque permite ao legislador interferir no espaço de liberdade de
cada um, regulando-o, daí que a Constituição crie um conjunto de
requisitos, de “cautelas” que devem ser verificadas sempre que
estejamos perante leis restritivas de direitos, liberdades e garantias.

Antes, porém, de estudarmos quais são esses requisitos,


convém entendermos melhor o que são leis restritivas, começando

40
por enfrentar o problema da determinação do âmbito de protecção
dos direitos.

-Determinação do âmbito de protecção dos direitos


fundamentais.

Só estamos perante uma lei restritiva quando esta


comprime o âmbito de protecção do direito, tal como ele resulta
da norma (ou das normas) que o consagra(m).

A determinação do âmbito de protecção é, pois, uma


tarefa prévia essencial para que se possa concluir quanto à
verificação ou não de uma restrição.

Ora, nesta matéria, há duas formas de circunscrever o


âmbito de protecção: uma é a teoria do âmbito de protecção
alargado e outra é a teoria de âmbito de protecção estreito.

Segundo as teorias do âmbito de protecção alargado,


este deve ser definido, abrangendo o mais amplo e completo
conjunto de manifestações possíveis do direito fundamental. Não
cabe ao intérprete excluir prima facie do âmbito de protecção do
direito situações que estão dentro das margens semânticas da
norma, cujos pressupostos devem ser amplamente interpretados
(posição defendida por Robert Alexy).

Segundo as teorias do âmbito de protecção estreito, deve


tentar afastar-se ab initio do âmbito de protecção do direito as
manifestações meramente aparentes do direito. Nem tudo o que
cabe nas “margens semânticas” da norma que consagra o direito
fundamental constitui uma conduta protegida enquanto
manifestação desse direito. Ao intérprete cabe a tarefa de
identificar os limites dessa garantia, atendendo ao sentido e ao
41
alcance da norma constitucional e às condutas que se devem
considerar efectivamente como alvo de protecção.

Também na doutrina portuguesa estas posições se


confrontam.

Como é fácil de compreender, as teorias do âmbito de


protecção alargada potenciam os conflitos entre direitos
fundamentais enquanto as teorias estreitas os limitam.

Jorge Reis Novais defende que na delimitação do âmbito


de protecção do direito deve excluir-se apenas aquilo que, com
toda a evidência, não pode ser considerado pela consciência
jurídica própria de Estado de Direito como exercício
jusfundamentalmente protegido – comportamentos que
apresentem intolerável danosidade social ou sejam radicalmente
incompatíveis com os requisitos mínimos da vida em comunidade
e que, por isso, suscitam reprovação social e jurídica consensuais.

- Requisitos das leis restritivas

Quais são as condições que a Constituição estabelece


para a restrição de DLG?

A nossa Constituição prevê, nos números 2 e 3 do artigo


18º seis requisitos substanciais para a restrição legal de direitos,
liberdades e garantias: previsão constitucional expressa;
restrição justificada pela necessidade de protecção de bens
constitucionalmente relevantes; respeito pelo princípio da
proporcionalidade; necessidade de as restrições terem carácter
geral e abstracto; carácter prospectivo (eficácia projectada no
futuro) das restrições; respeito pelo conteúdo essencial dos
direitos.
42
Grande parte da doutrina tem uma posição crítica quanto
ao primeiro e ao último requisitos constitucionais, tendendo a
desvalorizá-los ou a contorná-los.

- Previsão constitucional expressa

O art. 18.º, n.º 2 estabelece uma exigência de previsão


constitucional expressa da respectiva restrição. Ora esta exigência
constitucional coloca uma série de problemas, uma vez que há
muitos preceitos constitucionais que não prevêem expressamente
restrições legislativas. (ex: direito à vida, à integridade pessoal e
outros direitos pessoais - arts. 24.º a 26.º, liberdade de aprender e
de ensinar - art. 43.º, direitos de deslocação e emigração - art. 44.º,
direito de reunião e manifestação - art. 45.º, etc.)

A doutrina tem procurado diferentes vias para contornar


este requisito de previsão constitucional expressa da possibilidade
de restrição, seja através da ideia de limites imanentes, da
existência de restrições implícitas ou ainda do apelo ao art. 29.º da
DUDH.

Jorge Reis Novais, cuja tese de doutoramento trata


precisamente o problema das restrições não expressamente
previstas na Constituição, considera, por seu lado, que a
consagração constitucional de um direito fundamental sem a
simultânea previsão da possibilidade da sua restrição não deve
constituir qualquer indicação definitiva sobre a sua limitabilidade.
Segundo este autor, “[t]omado a sério, o limite do n.º 2 do artigo
18.º CRP significaria serem inconstitucionais hipotéticas normas
ordinárias que, por exemplo, possibilitassem à Administração

43
impor medidas de vacinação obrigatória em caso de epidemia
(por violação do art. 25.º, n.º 1), que permitissem a um corpo
policial ou de bombeiros entrar, sem autorização, no domicílio de
alguém em caso de incêndio (por violação do art. 34.º) ou que
proibissem um culto religioso que envolvesse a prática de crimes
(por violação do art. 41.º, n.º 1) (…).”

Assim, partindo da natureza principiológica da


generalidade das normas constitucionais de direitos fundamentais,
o Autor entende que estas consagram garantias subordinadas a
uma reserva geral imanente de ponderação ou necessidade de
compatibilização com valores, bens ou interesses dignos de
protecção.

O reconhecimento de uma reserva geral imanente de


ponderação despe de todo e qualquer sentido útil o requisito da
necessidade de previsão constitucional expressa, pois onde a
Constituição preveja, implícita ou explicitamente, a necessidade
de restrição, já o legislador estava autorizado a restringir com base
naquela reserva.

- Necessidade de salvaguarda de outros direitos ou


interesses constitucionalmente protegidos

Por outro lado, a restrição só se pode justificar para a


salvaguarda de um outro direito ou interesse constitucionalmente
protegido: o interesse que se visa acautelar tem que ter suficiente
e adequada expressão no texto constitucional (ex: defesa nacional,
a segurança interna, ordem pública, etc.). O fim que se visa com a
restrição de um bem jurídico fundamental tem de ter dignidade
constitucional, sob pena de a restrição ser ilegítima, injustificada.

44
- Princípio da proporcionalidade

Não basta, no entanto, que haja outros direitos ou


interesses constitucionalmente protegidos a garantir. É ainda
exigido que a restrição se limite ao necessário para salvaguardar
esses outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos,
nos termos do artigo 18º, número 2. Está aqui em causa o princípio
da proporcionalidade, que obriga a que entre o conteúdo de uma
decisão estadual e o fim que ela prossegue haja um equilíbrio.

Podemos distinguir três critérios no seio do princípio


da proporcionalidade: a idoneidade, a necessidade e a
proporcionalidade em sentido restrito.

O princípio da idoneidade ou adequação obriga a que


se tenha em conta se um dado meio é apto para a realização do fim
em vista. O que se requer é um juízo de razoabilidade, bastando
provar que razoavelmente, em circunstâncias normais, o meio
escolhido é apto para alcançar o fim de interesse público que
justifica a medida estadual.

Quanto ao princípio da necessidade, trata-se de


apreciar se não existe outra medida menos gravosa capaz de
assegurar o objectivo com o mesmo grau de eficácia. O que se
pretende avaliar é se não haverá outro meio igualmente apto para
a prossecução do fim mas que seja menos oneroso para os direitos
fundamentais.
Finalmente, na proporcionalidade em sentido restrito,
deve aferir-se se a medida adoptada é equilibrada no sentido de as
desvantagens dela decorrentes não serem superiores aos benefícios
que se poderão alcançar.

45
- Necessidade de as restrições terem carácter geral e
abstracto

O art. 18.º, n.º 3 exige ainda que as restrições de


direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e
abstracto. Ou seja, as normas que as prevêem têm de ter como
destinatários um número indeterminado ou indeterminável de
pessoas e devem aplicar-se a um número indeterminado ou
indeterminável de situações.

- Não podem ter carácter retroactivo

Esta exigência visa tornar claro que, se a


possibilidade de leis retroactivas – sempre indesejável num Estado
de Direito, preocupado em garantir e respeitar a segurança jurídica
dos cidadãos – não é sempre inconstitucional, em matéria de
restrições a direitos, liberdades e garantias, é inadmissível. Ou
seja, não deve haver aqui margem de ponderação no sentido de
perceber se o fim que legitima a restrição sobreleva as expectativas
juridicamente protegidas. Se essas expectativas se referem a
direitos, liberdades e garantias, estas devem sempre prevalecer.

-Respeito pelo conteúdo essencial

Podemos distinguir aqui entre as teorias absolutas, que


defendem que o conteúdo essencial consiste num núcleo intocável
presente em cada direito fundamental e que é independente da
colisão de interesses verificada no caso concreto, e as teorias
relativas, que reconduzem o requisito do conteúdo essencial ao
princípio da proporcionalidade.

A dificuldade que levanta a teoria absoluta é a de saber


em que é que consiste efectivamente o âmbito nuclear intocável de
46
cada direito fundamental, não sendo fácil a distinção entre
elementos nucleares ou essenciais e elementos aureolares ou
acidentais.

Depois: deve o conteúdo essencial proteger a posição


subjectiva do titular do direito fundamental afectado (teoria
subjectiva), ou o preceito constitucional enquanto norma referida
a valores, a bens jurídicos como tal considerados (teoria
objectiva)?

A teoria subjectiva não parece poder ter aplicação


naquelas situações mais difíceis em que as intervenções restritivas
reduzem drasticamente ou excluem mesmo qualquer possibilidade
de exercício de determinado direito fundamental pelo seu titular.

Por outro lado, a protecção que a teoria objectiva


confere tem pouco significado prático, porque ao referir-se apenas
ao preceito enquanto norma de valor, só protege de situações
extremas de esmagamento total das liberdades.

Quanto às teorias relativas, que tudo reconduzem a juízo


casuístico quanto à parcela do direito que deve ser poupada à
restrição na situação concreta, a crítica que se lhes aponta é o facto
de, no limite, admitirem a anulação integral da eficácia de um
direito e, no fundo, acabam por se reconduzir ao princípio da
proporcionalidade.

Perante estas dificuldades, Jorge Reis Novais considera


que a garantia do conteúdo essencial não desempenha, hoje,
qualquer papel autónomo significativo nem desenvolve qualquer
efeito jurídico efectivo enquanto limite aos limites dos direitos

47
fundamentais e, consequentemente, para a limitação dos poderes
de restrição dos direitos fundamentais.

Convém ter, no entanto, presente que este requisito em


particular do conteúdo essencial não é uma “excentricidade” da
Constituição portuguesa. Está presente também noutras
Constituições e consta actualmente de modo expresso do artigo
52º, número 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia, ao lado dos requisitos do princípio da
proporcionalidade. Donde se deve atentar no facto de, também ao
nível da União, se fazer uma consideração autónoma do requisito
do respeito pelo conteúdo essencial.

- Regime orgânico

A matéria dos direitos, liberdades e garantias está sujeita


a reserva de lei num duplo sentido material e formal. Por um lado,
só a lei pode intervir na esfera reservada e protegida pelos direitos
fundamentais. Por outro lado, só o Parlamento pode legislar em
matéria de direitos, liberdades e garantias. Estes fazem parte da
reserva relativa da Assembleia da República, o que está previsto
no art. 165º, n.º 1, alínea b) da Constituição. Há, no entanto,
determinadas matérias relativas a direitos, liberdades e garantias
que estão abrangidas pela reserva absoluta da Assembleia da
República. É o caso das alíneas a),b),c),e),h),i),j),l),m) e o) do art.
164º.

- Regime da revisão constitucional

48
Finalmente, a alínea d) do art. 288.º da CRP integra os
direitos, liberdades e garantias como limites materiais de revisão
constitucional. No entanto, tal não significa que não se possa
alterar de forma alguma a parte da Constituição que os consagra.
Não são os preceitos constitucionais em si que são irrevisíveis,
mas o sentido dos princípios ou normas que visam proteger (veja-
se, por exemplo, as alterações introduzidas por revisão
constitucional nos artigos 33º e 34º, admitindo a extradição de
nacionais em situações excepcionais e admitindo a entrada no
domicílio durante a noite para repressão de criminalidade grave).

- Colisão entre direitos, liberdades e garantias

Para além das situações de previsão abstracta de


conflitos resolvidos através de restrição legislativa, subsistem
ainda muitas situações de colisão entre direitos fundamentais -
situações em que o direito fundamental de A colide com outro
direito fundamental de B. Essa colisão pode ser mais ou menos
intensa consoante afecte faculdades mais ou menos nucleares dos
direitos fundamentais em causa.

Para estas situações não dispomos à partida de uma


hierarquia entre os direitos fundamentais, que nos autorize a
sacrificar direitos menos fundamentais do que os outros que
pretendemos salvaguardar.

Devemos partir sempre de uma ideia de igual valor dos


direitos fundamentais em conflito e formular juízos de ponderação
entre os bens constitucionais em conflito tentando encontrar para
a situação concreta uma solução adequada, equilibrada e razoável
– o que nos remete para a aplicação do princípio da

49
proporcionalidade. Os direitos em conflito hão-se ser sacrificados
apenas na estrita medida do que se revele necessário para permitir
a realização do direito conflituante.

Para se encontrar a solução para o conflito, uma vez que


não partimos de uma hierarquia abstracta, temos de atender às
circunstâncias concretas do caso, seleccionando quais os
elementos que devem ser relevantes para o juízo de ponderação
que se impõe.

LEITURAS RECOMENDADAS:

• Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição


Portuguesa de 1976, 5ª edição, Coimbra, Almedina, 2012, p. 263-
312.

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