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Cidades: o que há de novo?

A cidade, seus habitantes, o lugar. A observação de algumas intervenções urbanas


mostra o que
é necessário para estabelecer uma relação harmoniosa entre esse três personagens

Texto original de Jorge Wilheim

Estação ferrometroviária de Canary Wharf, de Norman Foster, na região


revitalizada das Docklands de Londres

Na escala urbana é importante distinguir espaço e lugar. O primeiro se define por


suas dimensões, seus parâmetros, sua circulação e inserção no resto da cidade e
pelas funções a que deve responder. Para que um espaço seja considerado um
lugar, no entanto, deverá ele ter condições de ser escolhido por alguém como
espaço preferencial. Quem o adota e usa pode ser um indivíduo, um casal, um
grupo afim, uma "tribo" ou comunidade, uma torcida, uma multidão. É o usuário
quem define um espaço como lugar.

Cidade "boa" é aquela que oferece suficiente número e qualidade de espaços para
que todos os cidadãos possam escolher os lugares em que se encontrem. O lugar,
seja qual for o objetivo, será sempre um ponto de encontro, ou seja, um espaço
que acolha um encontro.

Mas, na era da informação, com a maximização da comunicação eletrônica entre


pessoas, qual a necessidade de um lugar de encontros? Não será suficiente o
encontro cibernético? Levando ao extremo, qual a necessidade de uma cidade? Há
apenas 13 anos a internet nos fornece uma explosão de dados que podem ser
contextualizados e agrupados para constituir uma informação. Para transformar
informação em conhecimento, entretanto, é preciso mais: a intuição, o estoque de
conhecimentos prévios, a perspectiva da busca, a experiência pessoal. E mesmo
construindo o conhecimento, ainda não teremos alcançado a sabedoria...

Não é dado a todos alcançar a sabedoria, mas do conhecimento ninguém pode


prescindir. Para alcançá-lo exige-se toda a riqueza fornecida ao indivíduo pela
vida societária, a experiência vivida, o mundo de relações pessoais, a vivência de
emoções sem as quais o saber intuitivo não surge. Em outras palavras, para
enfrentar a batalha pelo conhecimento não poderemos nos limitar às horas frente
ao computador, mas sim, deveremos aumentar a intensidade dos contatos
humanos, pessoais e ricos em experiência e diversidade. Encontros, portanto...
No alto e acima, o emblemático Guggenheim de Bilbao, de Frank Gehry. A
cidade do País
Basco, Espanha, recebeu investimentos do Estado que resultaram em nova
atração urbana, promoveram atividades e empregos.
Debrucemo-nos sobre o fenômeno da urbanização: em 1975 apenas 38% da
população global vivia em aglomerações urbanas. Essa urbanização aumentou
para 47% em 1948 e é estimada em 55% para 2015 e 61% em 2025. Enquanto em
1975 havia apenas cem cidades com mais de um milhão de habitantes, estima-se a
existência de 527 cidades dessa categoria em 2015. Quanto às megacidades, com
mais de dez milhões de habitantes, enquanto havia apenas duas em 1960 e 14 em
1975, haverá 26 no ano 2015, segundo estimativas da ONU. No Brasil, 81,2% da
população de cerca de 170 milhões de pessoas vive em cidades pequenas, médias
e grandes. A população de suas 27 regiões metropolitanas, freqüentemente
decorrentes da conurbação de diversas cidades, alcança 40% da população
brasileira, correspondendo a cerca de 69 milhões de pessoas.

Na era da informação, tudo é mobilidade e consumo, até mesmo nos


relacionamentos pessoais afetivos. Disso decorre, como aspecto negativo, uma
superficialidade e impaciência passíveis de aumentar o individualismo e agravar a
sensação de solidão e desamparo, sublinhando a conveniência de ensejar espaços
onde pessoas possam readquirir, com vagar necessário, as condições para
encontros interpessoais.

Por isso os urbanistas do mundo têm sido instados a participar ativamente da


solução de problemas que afligem a gestão urbana, sendo chamados para
responder a um novo leque de exigências: soluções para acolher o crescimento
rápido da população urbana, redesenho de setores industriais e portuários
superados, pontos de encontro fortemente marcados pelo exacerbado aumento de
consumo, espaços de conexão de transporte, exigência de espaços públicos em
cidades de crescente privatização do espaço e espaços para fazer frente ao
aumento de público para atividades esportivas, culturais e de lazer, além dos
problemas habitacionais que ultrapassam a mera, porém necessária, criação de
moradias.

Alguns dos desenhos urbanos mais bem-sucedidos equacionaram a relação entre


pedestres e veículos seja criando vias expressas elevadas ou subterrâneas,
enfrentando o grande aumento de automóveis circulando pelas cidades, seja
inventando as estruturas físicas que carregam veículos destinados a transporte de
massa sobre trilhos, seja, ainda, para propiciar espaços ampliados e seguros para
os pedestres. Outros, no entanto, tiveram abrangência maior. Alguns exemplos da
última década se destacam, podendo ser agrupados em projetos de revitalização
de áreas centrais; projetos de revitalização e nova função de zonas portuárias,
ferroviárias e industriais; instalações olímpicas; projetos de melhorias urbano-
paisagísticas; novos bairros e cidades novas.

A reforma do bairro de Bercy (Paris, 1992) objetivou revitalizar o leste parisiense,


na proximidade do Sena. Em 51 ha, dos quais 41 ha pertenciam ao Estado,
distribuíram-se um estádio coberto poliesportivo, 2.200 habitações, áreas
comerciais em boa parte dedicadas a especialidades vinícolas tradicionais da
região e os equipamentos sociais correspondentes, como creches, biblioteca, casa
de idosos e oficinas para artistas. Ao longo do rio foi criado o vasto Parque de
Bercy. O conjunto situa-se ao lado do interessante edifício do Ministério de
Finanças, que se projeta sobre o Sena.
Na outra margem do rio, construíram-se a Biblioteca de França, de Dominique
Perrault, e diversos prédios residenciais. Embora o novo bairro ostente um prédio
de Frank Gehry, o Centro Cultural Americano (hoje transformado em
cinemateca), nada nele se destaca do ponto de vista de desenho urbano e a
Biblioteca não se transformou até agora em centro comunitário. Bem mais
interessante é a criação parisiense da Promenade Plantée, da Place de la
Repúblique ao Parc Vincennes, com sua variedade de soluções espaciais e
ambientais, ou mesmo a simples utilização dada aos cais sobre o Sena,
periodicamente transformados em praias.

Dois exemplos em que fortes investimentos não trouxeram o resultado esperado:


a Biblioteca de França,
de Dominique Perrault (no alto), não se tornou um centro comunitário da região
de Bercy, em Paris.
Tampouco Atenas lucrou com a renovação de seu conjunto olímpico feita por
Santiago Calatrava
Outro foi o processo de implantação do projeto das Docklands de Londres, a
partir de 1985. A iniciativa pública de produzir um concurso por etapas objetivava
criar um bairro denso, com edifícios de escritórios e institucionais servindo de
âncoras, em área portuária desativada. Cogitava-se uma operação de parceria com
setores privados, contudo seriam consideráveis os investimentos públicos em
transporte, especialmente metrô, e infra-estrutura.

De acordo com Eduardo Rojas, em Volver al Centro (BID, 2004), para cada
milhão de dólares investidos pelo Estado, o setor privado investiu 4,4 milhões.
Obedecendo a uma orientação inicial liberal, a iniciativa não tinha um projeto
rígido e custou a deslanchar. Quando o Estado implantou a extensão do metrô que
une Docklands à City em onze minutos e iniciou uma linha de trem,
empreendedores decidiram "acreditar" na iniciativa e começaram a investir. É o
caso da empresa Olympia & York, que implantou o setor de Canary Wharf. O
projeto inicial de Skidmore, Owings and Merrill, foi revisto. Seu edifício
principal de 50 pavimentos foi projetado por Cesar Pelli e a importante estação
ferrometroviária por Norman Foster. O restante foi projetado e construído por
empresas privadas. Percebe-se a importância de ancorar novas urbanizações com
edifícios projetados por arquitetos famosos por sua qualidade e originalidade.

Em 2001, depois de 20 anos de implantação freqüentemente interrompida, já há


em Docklands 24 mil habitações e cinco mil empresas, tendo sido gerados (ou
deslocados) 80 mil empregos. Hoje, considera-se que a revitalização foi bem-
sucedida.
A capital de Catalunha prepara uma intencional mudança de escala urbana,
com edifícios de maior densidade e altura, como a Torre Agbar, desenhada
por Jean Nouvel. A cidade teve toda a frente marítima redesenhada e o
sistema viário, pela construção da Avenida Diagonal, foi prolongado até o
mar.

Considero, contudo, mais exemplar o caso de Bilbao, no País Basco, Espanha. O


Estado, a partir de 1988, tomou para si o projeto de revitalização de toda a cidade.
Em sete anos construiu 41 km de linhas de metrô já em operação em 1995 e
realizou um concurso para a principal das 40 estações, vencido por Cesar Pelli.
Localizou e negociou a implantação, em uma área de 31 ha, do Palácio de
Congressos e Música, de Soriano e Palácios, e do excelente Museu Guggenheim,
de Frank Gehry, separados por vasto parque ao longo do rio Nervión, sobre o qual
construiu-se a bela ponte projetada por Santiago Calatrava, ao lado do Museu.

Em resumo: um metrô, uma ponte e três edifícios emblemáticos, de grande


qualidade arquitetônica, resultaram em nova atração urbana, promoveram
atividades e empregos, atraindo, por outro lado, considerável turismo, função
inteiramente nova nessa cidade basca.

Bem-sucedido foi também o projeto de revitalização de Puerto Madero, em


Buenos Aires, com concepção arquitetônica de A. Garay, entre outros arquitetos.
Iniciado em 1991, o plano interveio em uma série de armazéns portuários e suas
áreas adjacentes, assim como incorporou à cidade uma vasta área de reserva
natural no Rio da Prata. O projeto objetivava implantar residências, escritórios,
lojas e restaurantes, assim como instalações hoteleiras e destinadas ao lazer.

A implantação começou pelo novo uso dado aos armazéns, hoje ocupados
basicamente por restaurantes e bares no térreo e escritórios nos andares
superiores. No entanto, hotéis e edifícios institucionais já foram construídos do
outro lado das bacias. A proximidade do centro da cidade garantiu o êxito do
empreendimento, típico de cidades que possuem uma frente "aberta" para o mar
(no caso, o vasto rio), ensejando ganhar áreas novas próximas ao centro, seja
mediante aterros, como no Rio de Janeiro, seja reciclando funções portuárias,
como em Puerto Madero.

Detalhe do Estádio Olímpico de Barcelona, projeto de Arata Isozaki

A realização de megaeventos como os Jogos Olímpicos tem produzido


transformações de efeitos diversos e desenhos urbanos por vezes de boa
qualidade. Enquanto Munique e Tóquio podem ostentar a belíssima arquitetura do
estádio projetado por Frei Otto e das piscinas criadas por Kenzo Tange, outras
cidades que sediaram competições olímpicas não obtiveram grandes sucessos
urbanísticos e nem em desenhos urbanos à altura dos investimentos realizados.
Foi o caso de Atlanta e de Los Angeles, nos Estados Unidos, de Sidney, na
Austrália, e mesmo de Atenas.

Digno de nota, nesse campo, é o caso de Barcelona. A realização das Olimpíadas


de 1988 e do Fórum Internacional das Culturas - Barcelona 2004 foram eventos
mundiais que catalisaram reformas urbanas e atualização de desenhos urbanos.
Toda a frente marítima foi redesenhada e adquiriu nova função, com o
deslocamento do porto comercial. O sistema viário, pela construção da Avenida
Diagonal, foi prolongado até o mar, construindo-se um novo centro de feiras,
exposições e congressos. Algumas edificações existentes foram adequadas, como,
por exemplo, o estádio. Outras, como o ginásio poliesportivo de Montjuich, obra
de A. Isozaki, foram construídas. Ainda por ocasião das Olimpíadas, a cidade
recebeu um novo sistema viário periférico e implantaram-se inúmeras praças,
sempre bem desenhadas e dotadas de obras de arte expressivas.

A expansão urbana produzida pelo Fórum das Culturas resultará em uma


intencional mudança de escala urbana, com edifícios de maior densidade e altura,
em uma tentativa de dar nova linguagem à desejável proximidade de atividades
que garantem o dinamismo da vida urbana ao nível do pedestre. As obras já
projetadas e em construção, criadas por arquitetos como Jean Nouvel, Dominique
Perrault, Herzog e De Meuron, entre outros, colocam um ponto de interrogação
sobre o resultado final dessa mudança de escala urbana.

A capital de Catalunha prepara uma intencional mudança de escala urbana,


com edifícios de maior densidade e altura, como a Torre Agbar, desenhada
por Jean Nouvel. A cidade teve toda a frente marítima redesenhada e o
sistema viário, pela construção da Avenida Diagonal, foi prolongado até o
mar.

Outros exemplos, de escala menor, poderiam ser mencionados, como o Battersea


Park, em Londres, ou a ambiciosa renovação da zona portuária - com corajosa
demolição de viadutos - em processo de execução em Boston, nos Estados
Unidos. Há ainda os desenhos urbanos do novo cais de Amsterdam e o feito em
Havana, mais modesto, além do centro de Yerba Buena, em Los Angeles, os
inúmeros desenhos de pedestrianização de vias, notadamente na Inglaterra, e os
projetos de Joan Busquets para Rotterdam e outras cidades européias.

No Brasil, em que pese não possuirmos grande tradição em desenho urbano, além
dos já históricos exemplos do aterro de Botafogo, de Roberto Burle-Marx, e da
Pampulha, de Oscar Niemeyer e Burle-Marx, é preciso apontar os bons projetos
que foram implantados mais recentemente por iniciativa pública em diversas
cidades. Um exemplo é o desenho urbano da Avenida Paulista - primeira via
paulistana a ser realmente projetada, feito em 1973 por Rosa Kliass, Cauduro &
Martino e Esther Stiller.

Há também o Vale do Anhangabaú, projeto desenvolvido entre 1981e 1992 por


Jorge Wilheim, Rosa Kliass e Jamil Kfoury, devolvendo ao pedestre o usufruto do
vasto centro de São Paulo. Mais recentemente, entre 1999 e 2002, houve a
revitalização da área denominada Feliz Lusitânia, em Belém, idealizada por Paulo
Chaves e sua equipe da Secretaria de Cultura, com participação de Rosa Kliass. O
projeto Feliz Lusitânia abrange o vasto espaço contíguo em que se situam
numerosos edifícios históricos da capital do Pará. Além dessas, há a renovação do
Centro de Recife, a criação da Rua da Cidadania e da 24 Horas, em Curitiba, e a
intervenção na Praça do Patriarca, em São Paulo, com projeto de Paulo Mendes
da Rocha.

Acima, área do projeto Feliz Lusitânia, em Belém, idealizado por Paulo Chaves e
sua equipe da Secretaria de
Cultura, com participação de Rosa Kliass. A região abrange numerosos edifícios
históricos da capital do Pará.
Abaixo, vista do mercado Ver-o-Peso, também em Belém, revigorado a partir de
projeto do carioca Flávio Ferreira
Nesses exemplos - que certamente não constituem uma resenha completa do que
se tem feito na última década - cabe assinalar a fusão que na prática ocorre entre
questões ambientais e urbanismo ao nível do desenho urbano. Sempre considerei
que o meio ambiente é a dimensão física do planejamento urbano, não sendo
conveniente a separação entre eles, nem na atividade de criação, nem nas
instituições que desenvolvem políticas públicas. Nos exemplos, mencionados por
sua qualidade e importância social, o trabalho de paisagistas se integra no desenho
urbano ao dos urbanistas.

Na questão da paisagem urbana, afetando o próprio desenho urbano, há que


salientar a ocorrência de projetos arquitetônicos especiais, seja por sua função e
dimensões, seja por sua qualidade estética, ou ainda por sua estratégica
localização urbana. O prestígio de arquitetos de justificado renome mundial tem
distribuído obras singulares pelas cidades do mundo, como ícones implantados
com a intenção de atrair a atenção do mundo para suas cidades. Embora nem
sempre tenham resultado em sucesso, eles marcam a paisagem, atraem turismo e
curiosidade e podem, em certas circunstâncias, resultar em uma multiplicação de
obras de boa qualidade.

O aumento de desenhos urbanos em nossas cidades aponta na direção de uma


considerável melhora da paisagem urbana, exigindo-se cada vez mais que aos
espaços urbanos se confira a qualidade e o carinho reservados aos lugares de
nossos pontos de encontro favoritos.
Dois momentos da renovação do Centro de São Paulo: acima, a Praça do
Patriarca, com
cobertura desenhada por Paulo Mendes da Rocha. No alto, o Vale do
Anhangabaú, refeito
pelo projeto desenvolvido entre 1981 e 1992 por Jorge Wilheim, Rosa
Kliass e Jamil
Kfoury. A intervenção devolveu ao pedestre o usufruto do vasto Centro de
São Paulo

Jorge Wilheim, arquiteto e urbanista, é autor do Parque Anhembi e co-autor da


reurbanização do Vale do Anhangabaú, em São Paulo, além de cerca de 20 planos
urbanos, entre os quais os de Curitiba, Joinville, SC, Campinas, SP, Goiânia, São
José dos Campos, SP, Natal, São Paulo, e Nova Lima, MG. É também autor de
nove livros sobre cidades e vida urbana; ocupou cinco cargos públicos municipais
e estaduais nos campos do planejamento e do meio ambiente. Foi secretário-geral
adjunto da Conferência Habitat 2 da ONU. Conferencista internacional, ocupou a
Cadeira Rio Branco na Universidade da California-Berkeley

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