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Reflexées Sobre o Jusnaturalismo eo Direito Contemporaneo JULIA MAURMANN XIMENES * RESUMO; A polémica sobre o Direito Natural é uma constante histérica no ambito da Filosofia do Direito: desde a teoria clissica dos gregos sobre a imutabilidade da natureza, até as contemporineas percepdes do Direito Altemativo. Desta feita, o estudo sobre o Jusnatura- lismo contribui para uma compreensio, de cunho axiolégico, do direito no século XI: instru- mento de justificagdo da ordem politica e juridica em vigor. Palavras-chaves: JUSNATURALISMO ~ DIREITO NATURAL ~ FILOSOFIA DO DIREITO ~ AXIOLO- GISMO. ABSTRACT From the classical Greek theory on the immutability of nature to the contemporary per- ceptions of Altemative Law, the debate on Natural Law has been a historical constant in the Philosophy of Law. Therefore, the study of jus naturale leads to an axiological understanding of Jaw in the XXI century: an instrument of justification for the political and judicial order in effect. Key-words: JUS NATURALE ~ NATURAL LAW ~ LAW PHILOSOPHY - AXIOLOGY. * Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba; professora de Metodologia Juridico Cientifca das Faculdades Claretianas / Rio Claro; e-mail: juliamaurmann@aol.com 157 cadernos de direito Introdugao A polémica sobre o Direito Natural diz respeito a concepcio de fonte € da definigao de direito utilizada, que implica em admitir a presenca de um elemento axiolégico: a justi- ‘¢a.!Verdit destaca que o grande dilema do Di- reito Natural nao é sua matureza, suas caracteristicas, mas, sua existéncia.? Ha aque- les que créem na existéncia do Direito Natu- ral e hi quem nao cré ~ problema de crenca, de onde surge a indagacao: existem motivos acionais para crer na sua existéncia? Ade- mais, a fungao do Direito Natural seria com- preender o fundamento ¢ 0 critério de legitimagio do ordenamento juridico, servin- do de base & critica e reforma deste e intervin- do na interpretacao, na integracio de lacunas ena corregio de normas.> Alguns autores destacam um renascimen- to do Jusnaturalismo no século XX, notada- mente frente a violacio dos direitos humanos apés a Segunda Guerra Mundial e ao periodo em que interpretagdes hist6rico- evolutivas do direito ¢ o positivismo juridico prevalece- ram. Trata-se de uma percepcio que reconhe- ce © relativo esgotamento das formas tradicionais de perceber a polémica do Direi- to Natural, mas que se preocupa com a neces- sidade de estabelecer limites éticos ao arbitrio do legislador em uma ciéncia do direito ori- entada por valores éticos. Contudo, estas teo- rias nem sempre estio nos moldes do Jusnaturalismo, mas sim revestidas de um ob- jetivismo ou axiologismo juridico, que a rigor nio pertencem ao campo estrito do Direito Natural.’ Muitos chamam estas atuais perce- podes de Teorias da Justiga. De maneira geral, estas teorias se distinguem do Jusnaturalismo, porque nao se reportam necessariamente a principios suprapositivos, ou melhor, acima do Direito Positivo. Uma outra percepcao do direito contemporineo é a escola do Direito Alternativo: baseada nas escolas cientificas francesas e na sociologia do direito, esta esco- Ja busca redefenir a juridicidade, alargando os postulados democriticos do aparato normati- vo oficial, reforcando o cariter libertador € democritico da juridicidade. Isto posto, 0 objetivo do presente artigo € demonstrar, por intermédio de uma breve anilise do desenrolar histérico do Jusnatura- lismo®, a influéncia do mesmo sobre uma no- va percep¢io do conceito de Direito no século XXL Esta nova percepgio implica em uma abordagem de cunho axiolégico, que nio parte de conceitos rigidos, mas permite o constante debate. 1. Percurso Histérico do Jusnaturalismo Clissico ao Moderno ‘A anilise do percusso histérico do Jusna- turalismo nos permite compreender melhor a esséncia do Direito Natural. Contudo, cum- pre salientar, que, ainda que intimamente li- gados, o Jusnaturalismo se diferencia do Direito Natural, assim como 0 Juspositivismo do Direito Positivo: o Jusnaturalismo é a teo- ria que fundamenta, explica e defende a exis- téncia do Direito Natural, a sua superioridade sobre 0 Diteito Positivo, ao qual serve de cri tério inspirador e norma valorativa.® Eo que se compreende por Direito Natu- ral? O Direito Natural tem recebido uma plu- ralidade de significados ao longo de sua existéncia histérica, mas pode-se concluir que sua univocidade historico-funcional é caracte- 1 dom, p. 119; TEIXEIRA, Anténio Braz. Sentido e Valor do Direito ~ Introducio 3 Filosofia Juridica, 1990, p. 120. 2 VERDU, Pablo Lucas. Garso de Derecho Politico, 1972, p. 371. 5 Idem, p. 105. 4 TEIXEIRA, Anténio Braz, p. 155,¢ CHORAO, Mirio B. Temas Fundamentais de Direito, 1991, p. 109, 5 Doravante incluse na expressio “estudo do Jusnaturalismo” a sua relacio com as Teorias da Justia ¢ o Direito Alter nativo do século XX. O PEREZ LUNO, Antonic-Enrique. Iusnaturalismo y Positivismo Juridico en la Italia Moderna, 1971, p. 33 cadernos de direito 158 rizar o seu contetido como uma ordem de principios etemos, absolutos ¢ imutaveis.” Is- to porque a polémica reside na dicotomia filoséfica Direito Natural/Direito Positivo, que permite duas andlises distintas. A monis- ta, que interpreta o Direito Natural como su- perior e assim elimina qualquer outro direito seno © natural, substituindo um conceito por outro. A outra, dualista, admite uma hie- rarquia, mas se a natureza é a justificagao do direito, o Direito Natural é superior ao Direi- to Positivo, ainda que no o substitua.® Mes- mo que existam varias interpretagdes para o sentido da palavra “natureza”, a doutrina é univoca em um ponto: o Direito Natural € a medida de justica do Direito Positivo, porque este € direito apenas porque é estabelecido. As trés fases comumente abordadas pelos estudiosos do Jusnaturalismo sio: 0 classico, © medieval, € 0 modemo. O Direito Natural clissico dos gregos compreende uma concepgio essencialista ou substancialista do Direito Natural: a natureza contém em si a sua propria lei, fonte da or dem, em que se processam os movimentos dos corpos, ou em que se articulam os seus elementos constitutivos essenciais.” A ordem da natureza é permanente, constante ¢ imuti- vel. Trata-se da concepgio cosmolégica da na- tureza, que marcou o pensamento grego pré- socritico, destacandose trés pensadores — Anaximandro, Parménides e Hericlito.!° 7 Idem, p. 37. O pensamento medieval € escolistico parte de um conceito teolégico de natureza: a natura nao é s6 nem principalmente aquilo por que cada coisa tem um modo de ser pré- prio, mas o modo de ser proprio de cada coisa enquanto criada por Deus”!!. Assim, defendia- se a existéncia de uma lei superior 4 vontade humana, e em ultimo termo, 4 vontade divi- na. O Direito tem como fonte uma ordem ontolégica, que transcende a vontade huma- na € expressa o justo, decorrente da natureza das coisas. Assim, o Estado de Direito deve estar subordinado a exigéncias materiais e ob- jetivas de Justica (Estado de Justiga) € a uma cordem normativa que lhe é anterior e superi- or (Estado de legitimidade).!? O direito se di- rige ao legislador € no a cada um dos membros da comunidade. Os grandes repre- sentantes desta filosofia medieval sio Tomés de Aquino e Santo Agostinho.!> © Jusnaturalismo Modemo, ou Escola Moderna do Direito Natural, ou Jusnaturalis- mo Racionalista, de Hugo Grécio, Pufendorf, Hobbes, Rousseau, Locke ¢ outros, representa uma ruptura com 0 Jusnaturalismo Clissico e com o Jusnaturalismo Escolistico, desligan- do-se de seus fundamentos ontoldgicos e teo- ogicos, ¢ passando a ser instrumento de um racionalismo subjetivista, abstrato ¢ a-histéri- co.!4 Deus deixa de ser visto como emanador das normas juridicas e a natureza ocupa esse lugar, com um adendo: nao é a natureza que ® DIREITO NATURAL. In: ARNAUD, André-Jean (org,) Diciondrio Enciclopédico de teoria e sociologia do Direito, 1999, p. 264 ° Idem, p. 1228. 10 TEIXEIRA, Antonio Braz, op. cit. p. 126. 1 dem, p. 124. 12 CHORAO, Mario B., op. cit, p. 102, que ainda acrescenta sobre a legitimidade: “O ordenamento juridico, para ser leghimo, tem de se conformar com o dito natural. Nao basta, com efeito, que as notmas juries apresentem uma validade formal (eigni) e socal (eicca) Carecem também de uma validade ética ou intinseca (egtmidade), Pre samente, a natureza das coisas ~ ou 0 justo natural ~ constitu a medida, por excelénca, dessa validade. Ser ela, os -pmandos legais deixam, em rigor, de ter forcae natureza de lei." (p. 106) ‘Momento oportuno para salientar que € esta percepgao de Direito Natural que & mais conhecida e utilzada, muitas vezes de forma negativa, Assim, atnibuise genericamente a0 Direito Natural o cariterteoldgico do Direito Natural Medieval, percebendo seu fundamento, em ttima instincia a uma determinada féreligiosa, postulando a lei natural relativamente & lei etema. Porém, esta percepgao representa uma corrente historica do Jusnaturalismo como teoria que fa exsténda de um Direito Natural, seja ele de ordem divina ou no. ‘CHORAO, Mistio B., op. cit, p. 108. 159 cadernos de direito da aos homens esse entendimento, mas é ele mesmo, por meio da razio, que apreende es- se conhecimento € 0 coloca em pritica na so- ciedade.!> A partir de certos_principios, procurase construit, dedutivamente, rigidos ¢ exaustivos sistemas de Direito Natural, dota- dos de validade universal e perpétua. Este foi © pensamento predominante nos séculos XVII © XVIII, € cujos tragos distintivos do pensamento medieval Braz Teixeira destaca da seguinte forma: b)O fundamento da lei natural, que o pen- samento medieval encontrara na lei etema, expressio da vontade ¢ da raza0 dlivinas, passa agora a ser a razio humana, a recta raz30 ou a razio dedutiva, conce- bida como via segura e adequada para a obtengio de conhecimentos ou das ideias claras ¢ distintas, operando através dos processos matemiticos da andlise e da sin- tese; ©) O conceito de homem de que parte ou em que assenta esta visio antropolégica do jusnaturalismo ¢ de feigao mecanica, projectando-se essa visio igualmente no corpo social e politico ¢ no atomismo individualista que lhe anda intima- mente ligado; d)Enquanto o Direito Natural medieval apenas se preocupava em definir os grandes principios relativos 4 ordem social, que aos legisladores caberia depois desenvolver ¢ aplicar as diversas sociedades, agora pensase que a razio humana, devidamente esdlarecida ou ilt- minada, esté em condig6es de construir ou formular sistemas completos e aca- bados de direitos naturais, vilidos para todos os tempos ¢ lugares, pelo que careceria de sentido a distingio entre direito natural primdrio e secunddrio apre- sentada pelo pensamento medie- val.(sic)!® Portanto, nos séculos XVIII e XIX a essén- cia do Direito Natural era a razio, surgindo 0 racionalismo, com o objetivo de construir uma nova ordem juridica baseada em princi- pios de igualdade e liberdade, proclamados como os postulados da razio e da justiga. Contudo, em seguida temos a passagem do Jusnaturalismo ao Positivismo Juridico, quando se percebe a redugao do Direito Na- tural a um critério de avaliagio do Direito Positivo, no tocante ao elemento justiga. O seu estudo nio faz parte das tarefas da jurisprudéncia. A reflexio teérica sobre o reito comega apenas quando o direito foi es- tabelecido, ou seja, o importante é 0 que 0 direito é, e no como o direito transformou- se no que cle é, idéia bem representada na ‘Teoria Pura do Direito de Kelsen.!7Esta con- cepgio permaneceri até a segunda metade do século XX, quando surgem as primeiras Teorias da Justica. 2.0 Jusnaturalismo e as Teorias da Justiga Contemporaneas Um ctitério que permite distinguir 0 Jus- naturalismo do Positivismo Juridico é a perce- odo sobre a certeza juridica. A certeza do Direito para o Jusnaturalismo é 0 conheci- mento por parte do individuo sobre o que é licito ou no fazer, nio se limitando ao mero ato de conhecimento objetivo das normas, mas sim transcendendo a empiria normativa para dirigirse a busca da verdade do Direito: a justica.!8Assim, a justiga est’ em primazia com relacdo a certeza, em contraponto a per cepcio positivista, onde a certeza est sobre a justiga. No século XX, notadamente apés a Se- gunda Guerra Mundial e suas atrocidades em 'S BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito, 2001, p. 227, 16 Op. cit, p. 140. '? GOUVEIA, Alexandre Grassano F. Direito Natural ¢ Direito Positiv, p. 4. '8 PEREZ LUNO, Antonio-Ennique, op. cit. p. 133. cadernos de direito 160 nome de um Direito Estatal, surge um movi- mento que admite a incapacidade do Positivis- mo Juridico de fundamentar axiologicamente © Direito ¢ que nio garante principios essen- iais. Trata-se de uma concepgio que busca a reflexio sobre a citada verdade do Direito: a justiga.!? Um dos precursores foi Rudolf Stamler, baseado em um raciocinio aprioristico, que entende que os “seres humanos trazem para a percep¢ao cognitiva dos fendmenos certas ca- tegorias aprioristicas e formas de entendimen- to que nio obtiveram através da observagio da realidade””®, O fildsofo ainda distingue conceito do direito ¢ a idéia do direito: esta é a realizacao da justica, que exige que todos os esforcos legais se dirijam no sentido de atingir a mais perfeita harmonia na vida social. Gior- gio Del Vecchio também trabalha com esta distingao ¢ considera que o Direito Natural sempre acompanhou a humanidade?! Outros fildsofos: so Chaim Perelman, Il mar Tammelo, Emil Brunner, John Rawls, Robert Nozick, Ottfried Héfie, dentre outros, que também defendem este resgate do valor justiga na anilise do Direito. Para Chaim Perelman, por exemplo, a jus- tiga € invocada para proteger a ordem estabe- lecida e para. justificar as _reviravoltas revolucionarias. E neste sentido a justica & um valor universal, ainda que seja uma “nogdo confusa”>— assume rostos diversos. © autor conclui pela existéncia de dois contetidos no conceito de justiga: o formal, ou justiga abstrata, que compreende “princi- pio de acio segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma”4, e o particular, ou justiga conereta (que representa uma nogio co- mum), que nio permite acordo justamente porque considera uma caracteristica diferente como a tinica, que se deve levar em conta na aplicacao da justica. Assim, Perelman trabalha com 0 prinefpio da igualdade para definir sua Teoria da Justica. John Rawls, por outro lado, parte de ‘uma concepgio mais contratualista: em uma situagio inicial, que o autor chama de origi- nal, se atinge um consenso sobre justiga, a partir de um véu de ignorincia que dissipa as atitudes ¢ inclinagdes particulares dos individuos (circunstincias econémicas € so- ciais diversas)25O autor trabalha mais com a concepcio politica de justia - principios bisicos de uma sociedade, um conceito de justica como eqitidade. “O objetivo da abor- dagem contratualista ¢ 0 de estabelecer que tomados em seu conjunto esses pressupos- tos estabelecem parimetros adequados para 0 principios de Justiga aceitaveis.”2° ‘A concep¢io de justiga politica de Héfie procura resgatar o Direito Natural por inter- médio de uma critica ética ao direito € ao Es- tado. A Justica Politica seria a critica ética das leis ¢ das instituigdes politicas, designando a idéia ética de Direito e de Estado, 0 que o legi- tima ¢ 0 limita, Para tanto, ¢ preciso estruturar 1 Cumpre salientar que a primeira linha de pensamento sobre a Justiga, que afirma a sua realidade como principio, valor, idéia ou ideal, se inicia no periodo pré-socritico, com Homero, Hesiodo, Sélon, Anaximandro, Parménides € Hericito, se desenvolve na filosofia platénica ¢ aristotlica, se projeta no Direito Romano ¢ na Escolistica, culmi- nando no pensamento de Leibniz. A segunda linha, cujos representantes iniciais foram os sofistas gregos, entende a Jus- tiga como uma mera convencio ou criagao humana, prossegue com Epicuro ¢ os céticos, ¢ retomada por David Hume g pels coments urlitarsas, empiri, posivstas sociologists, (TEIXEIRA Antenio Braz, pcp. 164) ii ‘BODENHEIMER, Edgar. Giéncia do Direito — Filosofia e Metodologias Juridicas, 1966, p. 150. Hom, p. 151-153, 2 PERELMAN, Chaim. Etica e Direito, 1999, p. 146. 23 Por “nocao confusa” compreendemse termos de dificil definigio e com alto grau valorativo (PERELMAN, Chaim, «ity p. 6) RAWLS, John. Uma teoria da justia, 1997, p. 19. 25 Thidem, p. 136-153. 2° Ibidem, p. 20 161 cadernos de direito ¢ organizar os poderes piblicos, determinan- do estratégias e caminhos, a fim de que o comprometimento com a justica nao fique 4 mercé do arbitrio daquele que detém 0 po- der. A ordem juridica estatal se apresenta co- mo uma trama complexa de regras, instincias € poderes exclusivamente positivos, perdendo seu sentido o apelo a uma instincia critica su- prapositiva, e tomando a justiga utépica. A fi- losofia politica deve considerar trés conceitos: Direito, Justica e Estado, a serem considera- dos em um contexto sistematico: 0 Estado es- ta obrigado a justica, a Justiga Politica forma a medida normativo-critica do Direito e 0 Di- reito justo é a forma legitima da convivéncia humana. Assim, ¢ possivel melhor compreen- der o objeto e a finalidade da Justica Politica. Neste sentido, a Justiga Politica de Héffe busca justamente resgatar a legitimidade do Estado de Justica e no qualquer Estado, dis- cutindo os mandatos politicos sob uma pers- pectiva ética, Mas ele destaca que a justica no € um ato de graga, ela é exigida, o que a diferencia e a legitima frente a outras exigénci- as da moral social, os deveres de virtude. Tra- ta-se de ser justo por convicgio, de conhecer suas obrigacdes juridicas nao apenas por me- do da punigio” ‘As concepsdes abordadas, portanto, bus- cam defender o fundamento axiolégico do direito, que é a justiga, como valor fundante universal. Contudo, a justiga € um valor destituido de conteiido univoco ¢ exige a percepgio da circunstancialidade histérica, cultural, politica, econémica e social do di- reito sob andlise. Ainda que se aceite a nogio de justica na andlise do Direito, ela nio € tinica e implica em complementagdes de cunho diverso, que analisaremos adiante. 3.0 Jusnaturalismo 0 Direito Alternativo OJusnaturalismo é muitas vezes utilizado para justificar certos padres de conduta que rejeitam o positivismo formal ou o dogmatis- mo. Contudo, este posicionamento mais “al- temativo” implica na andlise de uma nova escola. O movimento do uso altemativo do Di- teito iniciou-se no final dos anos 60 com a Magistratura Democratica Italiana, com vistas a lidar com o Direito sob uma otica democra- tizante, superando o legalismo estreito, mas tendo como limite os principios gerais do Di- reito, estabelecendo que 0 compromisso do juiz deve ser a busca incessante da Justica. Pa- 1a 0 Direito Alternativo a atividade do jurista deve ser criadora e comprometida com deter- minada utopia. Existem varias correntes, como aqueles doutrinadores que defendem que o jurista de- ve procurar concretizar os principios, atuan- do dentro do limite do positivado como forma de politizar a interpretacdo, inclusive negando vigéncia @ lei que viole principios gerais do Direito. Outros defendem o Direito Alternativo em sentido estrito, que abandona a visio monista do Direito, onde s6 existe um Direito, 0 oficial estatal; e permite que a pro- pria sociedade crie um Direito que supere a opressio ¢/ou dominacio, tendo como hori- zonte a utdpica vida digna®*, Alguns autores colocam que o Direito Al- temativo poderia utilizar a metafisica do Jus- naturalismo como método. Contudo, esta relagdo é contraditéria para outros autores, ‘uma vez que o Diteito Altemativo lida com a pritica ¢ transformacao social, implicando na negacdo da lei em favor daqueles que se en- contram submetidos por relagdes sociais de 2, HOEEE, Ortied. Justia Politica — Fundamentacio de uma Filosofia Critica do Direito do Estado, passim 28 CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo na Jurisprudéncia, 1993, pp. 8-15. Nem sempre os defenso- res do Direito Alternativo conseguem explcitar se estio propondo uma nova ordem juridica, uma nova hermenéutica para a ordem juridica vigente ou novos paradigmas doutrinarios para a reflexio teOrica ¢ analitica do fendmeno legal (FARIA, José Eduardo, Os desafios do Judicirio, of. cit, p. 48). cadernos de direito 162 dominagao, baseada em critérios de justiga que nao esto necessariamente ligados raci- onalidade do ordenamento juridico vigente. O ponto em comum entre os dois & a repulsa 4 norma injusta, mas os critérios de afetigao sio diferentes”? Contudo, *..ndo cabe ao julgador, siste- maticamente, colocar a mao em um dos pra- tos da balanca, pois, ao contririo daquilo que dizem os ‘altemativos’, o direito nem sempre esti com 0 locatirio, com o posseiro (muitas vezes invasot) ou com 0 devedor. Estes verda- deiros arquétipos sio muito mais a expressio do pensamento ingénuo, que se esconde na redugio do Estado aos interesses de uma classe hegeménica.”* Neste sentido, José Reinaldo de Lima Lopes apregoa que nos precedentes do Direito Altemativo estio al- ‘gumas vertentes do Direito Natural, a saber: © jusnaturalismo, que julgo estar na matriz do direito alternativo, nao é irraci- ‘onal:ao contrério, seja na sua versio clas- sica, na sua versao tomista, na sua versa0 modema, 0 apelo dos jusnaturalistas sempre foi & racionalidade e a razo humana. Esta, com todas as suas diferen- ‘cas nas diversas escolas, era algada a0 {grau de instancia critica do dever de obe- decer, Naturalmente, no Estado modemo e contemporéneo algo precisa ser destacado e salvo.*" ‘Ainda que algumas correntes do Direito Altemativo neguem o ideal do Jusnaturalis- ‘mo, pois este recusa a insergio histérica, as reivindicagGes populares, de novos direitos individuais e coletivos, 0 apregoado compro- misso ético com a opcio democritica, impli- ca em resgatar valores de cunho abstrato, como a justiga. Até porque parte da premissa do pluralismo juridico e, portanto, da “nogio confusa” de pressupostos filoséficos. Ainda que defenda a producio de resultados priti- cos, é preciso ter uma teoria. 4. Conclusées Isto posto, percebe-se que o Direito Natu- ral € uma constante histérica, apesar das im meras criticas. Ora € invocado para justificar rupturas com o ordenamento juridico vigen- te, ora para suprir lacunas legais. Ele reflete caracteristicas especificas de sua respectiva época, mas, continua suscitando questdes so bre a natureza do direito, sua justificagio, in clusive do direito oficial. Conforme destaca Miguel Reale, Direito Natural se reduz a um problema de axiologia antropolégica, haja vista que sua configuragio depende do sentido do valor atribuido ao ho- mem, consoante a época histérica e a respecti- va escala prioritiria de valores.2Assim, um novo enfoque do Direito Natural implicara em uma “compreensio transcendental-axiol6- gica, como tal nao estatica, mas dinamica; nao formal, mas de fundamental contetido valora- or Portanto, quando se pergunta se existem ritérios racionais para crer na existéncia de um Direito Natural, poderiamos responder afirma- tivamente, se considerarmos que de cada épo- ca histérica. emergem novos pressupostos axiol6gicos como arcabouco justificador dos ordenamentos juridicos positivos.* Infere-se, entio, uma concepsao politica do Jusnaturalis- mo, compreendido como instrumento legiti- mador de uma nova ordem juridica e politica. 2 SOUZA, Luiz Sérgio Femandes. Que Direito Alternativo?, pp. 200-201 3 Ihidem, p. 207 31 Em tomo do direito altemativo, 1994, p. 257 © ‘Direito Natural/Direito Positivo, 1984, p. 3. 33 dem, p. 16. 4 Tiata-se aqui do problema axiol6gico do direto: interrogar se o dieito ¢ um valor em si ou tem em si o seu proprio fandamento, ou sea, se hi um valor ~ 0 direito ~ de que o direto positivo retra a sua validade. (TEIXEIRA, Antonio Braz, op. it, p. 119). 163 cadernos de direito Verdi coloca que as supremas razées do Direito Natural sio evocadas para justificar ‘uma ruptura com a ordem em vigor, sendo que, depois de solidamente estabelecida, a nova ordem se refugia no positivismo juridi- co. O Estado liberal de Direito, na medida em que se afastou da perspectiva ética, se ma- terializa, porque se apéia na legalidade vigen- te que garante uma estratura econdmica social, do Direito da propriedade privada e do mercado livre.5> Depois da Segunda Guerra Mundial, como salientamos, houve um flore- cimento do Jusnaturalismo face ao momento de opressio totalitiria até entio em vigor. Desta feita, 0 que os autores das Teorias da Justiga e do Direito Alternativo buscam é, de certa forma, resgatar um dos aspectos do Jusnaturalismo: o de legitimacdo do ordena- ‘mento juridico. Alguns buscam uma conce- cio mais universal de justica, como Rawls, ao defender um consenso na situagio origi- nal; como Héffe, que apregoa a justica por conviegio; como os autores do Direito Alter- nativo, ao defender um direito mais democra- tizante a favor dos sujeitos, que se encontram submetidos por relagdes sociais de domina- 40; e outros, que admitem a diversidade, co- mo Perelman, De qualquer forma, os fil6sofos juristas, que defendem uma linha de pensamento mais metafisica, so criticados por adotarem uma postura muitas vezes con- siderada ingénua, mas que no fundo se preo- cupa com o fundamento, a legitimidade do direito posto. Por que a sociedade deveria obedecer a um ordenamento que nao corres- ponda minimamente is suas percepcdes acer- ca de valores, como a justia, a ética, a protecio dos direitos humanos? A fragilidade % Op. cit, p. 390. do direito reside no fato de ele ser valido con- tra a justiga>° ‘Assim, por intermédio de uma breve ani- lise do Jusnaturalismo buscou-se salientar as contribuigdes para uma nova percepcio do conceito de direito no século XXI. Este contemporiineo conceito de Direito implica em resgatar o seu contetido, em separi-lo da lei, Tratase de uma abordagem de cunho axiolégico, que enfatiza o direito como algo dinamico ¢ legitimo justamente pelo seu ele- mento primordial: a justiga. O Jusnaturalismo, ao isolar 0 problema da justica, abriu espaco para que o Positivis- mo Juridico extirpasse do campo da reflexio juridica 0 problema e a aspiragao do Direito Natural: a justica. Hoje a questio é retomada para uma reflexio integrada do direito, para a qual o objeto central de pesquisa se toma o problema da justificagao.” ‘Ainda que se insista nas palavras iniciais de Verdit sobre a “crenga” no Jusnaturalismo, & preciso crer. Crer para ter a certeza de que um ordenamento juridico nao existe s6 porque 0 arbitrio do legislador assim 0 concebeu, sem nenhum critério. E preciso relativizar a dogma- ticidade do direito, seu critério cientifico, em favor de um direito mais humano, interdisci- plinar e ciente de seu papel na legitimagio de um Estado de Direito que nao tenha unica- mente 0 cunho positivista, mas também axiolégico, que interaja com o cidadio e bus- que, na medida do possivel satisfazer seus an- seios. Disto se retira a preméncia do debate sobre o ressurgimento do Jusnaturalismo e sua relevancia em uma época carente de valores € ideais, que nao sejam os economicamente fun- damentados pela globalizacio. + DI GIORGI, Beatriz. Especulagio em torno dos conceitos de ética ¢ moral, 1995, p. 240. A autora ainda acres- centa! Por isso a exigéncia moral da justiga €condicio para que o Direito tenha sentido. A arbitrariedade priva asim ‘0 Direito de sentido, por ser unilateral e prescindir dos outros, enquanto mundo comum. ... O Dieito sem justiga é, portanto, sem sentido.” " DIREITO NATURAL. In: ARNAUD, André-Jean (org). Diciondrio Enciclopédico de teoria ¢ sociologia do Direito, 1999, p. 265. cadernos de direito 164 Destas reflexdes surge um processo de poli- tizagio ¢ legitimacio do direito: o Jusnaturalis- mo, de cunho axiolégico, histérico, dinimico € nio formal, como instrumento de justifica- 20 da ordem politica ¢ juridica em vigor, a fim de garantir um minimo “axiolégico” ao di- reito. Nao se quer aqui negar o sistema juridi- co, 0 que implicaria no desaparecimento de ‘um minimo de seguranga juridica. A intengao é coneiliar este aspecto legal, e portanto, estiti- co, do ordenamento juridico, ao direito como expressio de valores. Desta feita, 0 estudo so- bre o Jusnaturalismo contribui para esta com- preensio, de cunho axiolégico, do direito no século XXL REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. Sio Paulo: Atlas, 2001 BODENHEIMER, Eagar. Giéncia do Direito - sofia ¢ Metodlogas Juridics. Tiad. Enéas Marzano. Rio de Jan: Farense, 1966 CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo na Jurisprudéncia. io Palo: Académica, 1993. CHORAO, Mirio Bigotte. Temas Fundamentais de Direito, Coimbra: Livraria Almedina, 191. CLEVE, Clémerson Merlin. Temas de Direito Constituci- onal (E de Teoria do Direito). Sio Paulo: Académica, 1993. DI GIORGI, Beatriz. Especulagio em torn dos conceitos de ética € moral. In: DI GIORGI, Beatriz, CAMPILONGO, Celso Fernandes; PIOVESAN, Flvia (oord)-Direto, Cida- ania ¢ Justiga ~ Ensaio: sobre Ligia,Inerpreacio, eo Saxiolgin Filosofia Jura. So Paulo: Rvisa dos Tribus 199. Pp. 229-245. DIREITO NATURAL. 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