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Rodolfo Walsh e a crise da literatura 1

As perguntas formuladas ao cânone são perguntas formuladas à


instituição literária. N ada melhor que o cânone encarnaria as proprie­
dades da instituição. D e modo que as relações que um determinado
escritor (Borges, Walsh) trava com o cânone significam toda uma po­
ética ou, caso se prefira, todo um modo de se relacionar com a literatu­
ra em seu conjunto.2

1. A primeira versão foi lida no Coloquio Internacional “Declínio da arte/Ascensão da cultu­


ra” organizado pela Universidade Federal de Santa Catarina e o Núcleo de Estudos Literá­
rios e Culturais. Ponta das Canas (Florianópolis, Brasil), 5 a 7 de março de 1997, com o título
“Rodolfo Walsh: Quisiera ser negro". U m a segunda versão foi lida no X X Congresso Interna­
cional da Latin American Studies Association, LASA 97 —“Latín America towards the Fin
desiècle". Guadalajara (México), 17 a 19 de abril de 1997.
2. Se bem que não exatamente da mesma perspectiva que aqui reivindicamos, tanto Edward
Said, em Beginnings: Intention and Method. New "Yòrk: Basic Books, 1975, quanto H arold
como se lê

O que sabemos, pois, do cânone, entendido enquanto objeto


não tanto de urna sociología da literatura mas de uma teoria das rela­
ções (políticas) de dois conjuntos de diversa ordem: a literatura, a obra?
O cânone supõe processos de seleção, atribuição de proprieda­
des e de modelização: o mesmo aos santos e aos textos. U m texto ou
uma vida, portanto, não seriam singulares, mas são singularizados por
um processo de investimento de sentido. A singularização afeta a vida,
ou o texto, de modo que essa vida e esse texto resultem, por um lado,
representativos e exemplares. A vida de Walsh, a obra de Walsh, como
se diz.3 E isto representa “o espírito de uma época”, ou uma maneira
de articular experiências e sentidos, ou também um exemplo (positivo
ou negativo). Algo da ordem do particular (a vida vivida, o texto escri­
to) deve se singularizar e, mediante esse processo de singularização,
torna-se universal. U m a vida representa “a vida”, um texto representa
“a literatura” (em cortes sincrónicos, ao menos). Assim, a história con­
sagra uma obra.
O cânone opera seletivamente: este escritor, mas aquele não. Este
livro, mas não aquele. N em tudo entra no cânone. E é a partir de um
complicado jogo entre normas e valores estéticos que se decide o in-

Bloom em La angustia de la,-influencias (Caracas: M onte Ávila, 1977) [Versão brasileira pela
editora Im ago], postularam modelos de relação entre uma obra em processo e a literatura em
seu conjunto. Recentemente, Bloom publicou E l canon occidental (M adrid: Anagrama, 199í )
[Rio de Janeiro: Objetiva, 1995], onde tenta restaurar o ancien régime do cânone.
3. São indicadas na seqüência as obras de Walsh que foram consideradas na formulação destas
hipóteses, ordenadas cronologicamente. As diversas edições de Operação massacre são desig­
nadas porque cada urna délas tem variantes. As edições utilizadas figuram nas notas de pé-de-
página deste trabalho. 1953: Variaciones en rojo (Premio Municipal de Literatura); 1957:
Operación masacre (primeira edição); 1964: Operación masacre (segunda edição); 1965: h a
granada e La batalla (teatro); 1965: Los oficios terrestres-, 1967: Un kilo de oro-, 1969: Operación
masacre (terceira edição); 1969: iQuién mató a Rosendo?-, 1972: Operación masacre (quarta edi­
ção); 1973: Un oscuro día de justicia-, 1973: Caso Satanowsky. Compilações postumas: 1981:
Obra literaria completa-, 1987: Cuento para tahúresy otros relatospoliciales-, 1995 -.El violento oficio
de escribir. Obra periodística 1953-1977-, 1996: Ese hombre y otrospapeles personales.
argentina

gresso nele.4 M as o cânone, dissemos, atribui propriedades, modela


(o mesmo aos santos e aos textos). N um duplo sentido, o cânone clas­
sifica-. designa um lugar, uma posição, uma classe. M as também trans­
forma em clássico. N ada mais universal (e ao mesmo tempo nada mais
singular) do que o clássico. Todos os textos, todas as obras que inte­
gram o cânone são clássicos? Em todo caso, o são do mesmo modo?
A classificação se realiza de acordo com um ordo, que não é ape­
nas posicionai mas hierárquico. Existem ordens (entre os santos, entre
os anjos, também entre os textos), e se poderia dizer que o clássico
ocupa a hierarquia de primeira ordem dentro do cânone. A singulari­
dade levada ao cúmulo: o clássico é irrepetível e é por isso que se
propõe enquanto um modelo definitivo, para sempre (mesmo quan­
do, sabemos, o cânone esteja sujeito a revisões, modificações, dispu­
tas, aniquilamentos).5
Para que haja clássicos, pois, é necessário um dispositivo que,
como o cânone, tome textos particulares e os singularize. Esse proces­
so de singularização é o que propriamente se poderia chamar a cons­
trução de uma obra.
U m a obra é construída em duas dimensões. E “a obra”, en­
quanto objeto de análise, supõe, pois, um duplo sujeito. D e um lado,
quem progressivamente atribui sentidos a sua própria prática. E o escri­
tor. D e outro lado, quem retrospectivamente atribui sentidos a uma prá­
tica alheia. São os críticos, os editores, os professores. A obra será,

4. O trabalho mais abrangente sobre a dialética de valores, normas e funções na arte é


Mukarovsky, Jan. “Función, norma y valor estéticos como hechos sociales” em Ensayos de
estéticay semiótica del arte. Barcelona: Gustavo Gili, 1978 [Lisboa: Estampa, 1978]. Jacques
Derrida, em “Ante la ley” (incluido em La filosofía como institución. Barcelona: Juan Granica,
1984), retoma algo confusamente o texto clássico de Mukarovsky. Seguimos também Sarlo,
Beatriz. “Valores y mercado” em Escenas de la vidaposmodema, op. cit.
5. E são estas disputas as que resultam especialmente pertinentes em relação à obra de Walsh.
Mais adiante voltaremos a elas.
como se lê

pois, o espaço de articulação de duas subjetividades diferentes. Esta


articulação às vezes pode ser problemática, como no caso de Rodolfo
Walsh.
Em que sentido o Diario de Walsh6 é necessário para compre­
ender sua obra? Agora sabemos: é ai, justamente, onde as duas dife-
-entes instâncias de subjetividade se confrontam. È ai onde se encon-
ra o “motor” da obra. E ai onde o cânone é debatido. O modo em que
) escritor Walsh afirma a singularidade de sua obra não é o mesmo em
jue a crítica o faz. M as o modo como Walsh se relaciona com o cânone
;upõe também operações diferentes em relação às da crítica.

II

Isto é, então, o cânone. U m dispositivo que regula a prática lite-


ária e que tem, portanto, um poder prescriptivo, tanto para o que se
efere aos processos de escritura quanto aos processos de leitura. A
nstituição literária existe por e para o cânone. Quais serão, pois, seus
feitos sobre os textos? Já dissemos que o cânone singulariza, modela
designa propriedades. O que se chama consagração ou, se se prefe-
e, processos de institucionalização literária.
Dado um texto qualquer e submetido à lógica do cânone, pode-
íamos d izer que o cânone a) estetiza, b) m onum entaliza, c)
iesterritorializa, d) homogeneiza.
O cânone homogeneiza porque retira o texto do sistema literário
que seria, a princípio, o espaço em que adquire sentido, mas sobretu-
o: sentido polêmico). Sistema literário e cânone funcionam de ma-
eira diferente e supõem organizações diferentes. D e acordo com o

Ese hombre y otros papeles personales. Buenos Aires: Seix-Barral, 1996. Edição de Daniel
ink.
argentina

sistema, um texto, um autor, urna “obra” (mais ou menos formada)


têm um valor estratégico e diferencial.7 O cânone homogeneiza as di­
ferenças entre os textos (as obras ou os autores) precisamente para
poder propor modelos (que, a posteriori, serão lidos como consisten­
tes). A “obra” de Walsh é, naturalmente, exemplar em relação a esse
aspecto. Lida no sistema literário tem um sentido e uma posição. Lida
a partir do cânone, perde algumas de suas propriedades.
Com quem Walsh se parece, enquanto modelo de escritor, no
sistema argentino que lhe é contemporâneo? Com que textos se pare­
cem os seus? Segundo os momentos que consideremos, claro, as res­
postas serão diferentes. Vejamos um exemplo.
E m 1957 Walsh faz trinta anos. Nesse ano Leoplan publica uma
matéria (sem assinatura) intitulada “Se lhe restassem cinco minutos
de vida, o que você faria?” Respondem “U m escritor, U m a atriz, U m
toureiro, ator e poeta, U m político, U m lanterninha do cinema
M etropolitan, U m jornalista, U m ator, U m chofer de ambulância,
U m a trapezista, O utra trapezista, U m autor cômico e U m autor de
romances policiais”. O jornalista é Ignacio Covarrubias, que em 1954
tinha entrevistado Walsh, o escritor é Jorge Luis Borges e o autor de

7. Nesse sentido, ver a obra de H erre Bourdieu, cuja noção de “campo intelectual” funciona
de maneira similar ao que aqui preferimos chamar “sistema literário”. As dificuldades e defi­
ciências do modelo, já suficientemente assinaladas, se explicam exatamente porque Bourdieu
trabalha com textos e autores já canonizados, o que em algum sentido impede o próprio
funcionamento do sistema. N em Flaubert nem Heidegger podem mais ser lidos fora do
cânone. Lê-los em relação ao sistema literário teria dado resultados certamente muito diferen­
tes dos que as análises de Bourdieu propõem. Não é casual: filtrados pelo cânone, os objetos
mudam. As posições que Bourdieu assinala parecem sempre equivalentes ou idênticas
exatamente porque parecem ignorar os processos de institucionalização literária que obturam
o funcionamento de seu modelo. N o sistema literário cabem afirmações como a de Ruskin,
que considerava Dickens admirável “enquanto caricaturista (...), excluiu a si mesmo do círcu­
lo dos grandes autores” (em Praeterita. Oxford University Press, 1978), ou o reparo de Proust
contra a vulgaridade de Balzac {El tiempo recobrado. Madri: Alianza, 1984 [O tempo redescoberto.
Trad. Lúcia Miguel Pereira. São Paulo: Globo, 1998]).
como se lê

romances policiais é o mesmíssimo Walsh. Entre outras coisas, Borges


responde “observar como é o princípio da morte, como a morte vai-se
apoderando da vida até aniquilá-la. Possivelmente, meu experimento
resultaria tão vão como quando, criança, queria ver o momento em
que se passa da vigília ao sono: sempre que estava a ponto de assistir
ao milagre, dormia”. Walsh, que é o provável autor desta matéria um
pouco ridícula, responde: “Testamento”. Angel Rama nos persuadiu
de que Walsh é o herdeiro de Borges, aquele que volta a fazer nos
sessenta o que Borges fez nos trinta.8 Provavelmente, mas isto supõe
uma operação de singularização própria do cânone. Lida retrospecti­
vamente, sua obra pode ter esse sentido, mas não é o sentido que o
próprio Walsh e o sistema literário lhe davam, e é por isso que antes
insistíamos no duplo sujeito da “obra”.
Aqui Walsh propõe toda uma separação ao se qualificar como
“U m autor de romances policiais” e não como “Outro escritor”, tal
qual o sistema de tipificação lhe permitia. Próxim o de Ignacio
Covarrubias, próximo de Syria Poletti, próximo, inclusive, de M arco
Denevi. Distante, por exemplo, de Contorno, porém sobretudo muito
distante de Borges. Essa distância cresce quando são comparadas as
respostas: Walsh, que nesse momento não tinha nada além de duas
filhas e um prêmio quase “condenatorio” do cânone, pensa que seu
último ato seria um legado. Borges, pelo contrário, se concentraria
num ato de conhecimento que prevê fútil. O que se joga nestas defini­
ções são maneiras de pensar a literatura. No mesmo ano, sumamente
produtivo, Walsh publica dois contos em Vea y Lea, uma série de ma­
térias em Leoplan e, em dezembro, a primeira versão em livro de Ope­
ração massacre,9 que mudaria definitivamente seu lugar no sistema li­
terário e que, sobretudo, lhe mostraria por onde passavam, na Argen-

3. Rama, Angel. “Rodolfo Walsh: la narrativa en el conflicto de las culturas” em Literatura y


lase social. México: Folios, 1983.
>. Operación masacre. 3a ed. Buenos Aires: de la Flor, 1972.
argentina

tina daquele momento, os debates centrais a propósito da literatura. O


limiar do cânone.
N ão é que Ángel Rama se equivoque ao julgar Walsh um
borgiano. E que já o toma noutro lugar que não é o lugar dos contos
obedientes ao género, das matérias no jornal La Nación ou do Prêmio
M unicipal de Literatura, um conjunto das vaidades de segunda ou de
quarta ordem, no contexto da literatura argentina. É o lugar de Opera­
ção massacre mas é, sobretudo, o lugar da posteridade política de Walsh:
a leitura retrospectiva. A homogeneização: Borges e Walsh enquanto
posições equivalentes.

III

Porque homogeneiza, o cânone transforma o documento em


monumento, A obra (monumental) de Miguelángelo, Joyce ou Proust.
M as também a obra monumental de Borges e de Walsh. Walsh escre­
ve um texto monumental que se chama Operação massacre. E o texto é
monumental porque se antecipa em seis, oito, dez anos à non-fiction
que tantos lucros daria a Truman Capote e a outros autores norte­
americanos. Monumentalizada, a obra perde seu caráter documental.
Porém, neste ponto o escritor já está consciente do que a obra signifi­
ca, das operações que deve realizar. Operação massacre deixa de ser
uma série de reportagens publicadas em obscuras revistas. Transfor-
ma-se em livro. É registrada na Direção da Propriedade Intelectual.
O monumento precisa de um suporte material adequado. N o que se
refere à literatura, este suporte é o livro porque há uma relação de
mútua necessidade entre a “grande forma” e o cânone. Toda urna po­
lítica das formas é desenvolvida em relação ao cânone.10 Walsh escre-

10. “A obra do poeta maior deve ter magnitude: deve tentar com êxito uma e outra das formas
poéticas mais eminentes, que ponham à prova seus dotes de invenção e variação” (Gardner,
como se lê

ve o livro, suspeitando que poderá, agora sim, agora sim, colocar-se


num lugar diferente do que estava. A distancia que vai do documento
ao monumento aparece textualizada em Operação massacre. “Assim nasce
aquela investigação, este livro”.11Poderia dizer: aquele documento, este
monumento.

E sta é a história que escrevo quente e de um a sentada, para que não me


passem a perna, mas que depois se vai enrugando dia a dia num bolso
porque a levo a passear por toda Buenos Aires e ninguém quer publicá-
la, e quase ninguém quer saber dela. E que a gente chega a acreditar nos
romances policiais que leu ou escreveu, e pensa que um a história assim,
com um morto que fala, vai ser motivo de briga nas redações, pensa que
está jogando um a corrida contra o tempo, que a qualquer momento um
grande jornal vai m andar um a dúzia de repórteres e fotógrafos como
nos filmes. Ao contrário, encontra-se com um desdém monumental. É
coisa pra se rir a doze anos de distância, porque se pode vasculhar as
coleções dos jornais, e essa história não existiu nem existe. [12-13]

O monumento aniquila o documento. O documento é urgente ,


clama e grita a sua força referencial, o seu caráter puramente indiciai:
isto (que digo) está aí, isto é, existo por e para o que mostro e comprovo.
Como a foto, o documento é uma prova judicial e pouco mais além

D am eH elen. TheArtofT. S. Etíot (1949). Nova York: Faber&Faber, 1979, p. 3). A ‘¡grande
forma” é o problema de Eliot e também de Pound, que aspiram a um puro céu literário de
grandes formas. A “forma pequena”, ao contrário, é o problema de Kafka, que aspira a um
céu que jamais possa ser confundido com o Estado. Sua “Teoria das pequenas literaturas” é
uma teoria da “pequena forma” (Cf. Diarios. Buenos Aires: Marymar, 1968). Potencializada,
constitui uma política da arte em Gilíes Deleuze e Félix Guattari (Kafka. Por una literatura
menor. México: Era, 1985) [Rio de Janeiro: Imago, 1977]. As estéticas do século estão atra­
vessadas por esta dialética entre grande forma e forma pequena, que tensiona as práticas
vanguardistas. O desejo de aniquilar a instituição literária e desmontar o cânone (“melhor a
destruição, o fogo,’) é instrumentalizado no ataque à “grande forma”. As neovanguardas dos
anos sessenta e setenta foram bem conscientes dessa estratégia.
11. E u sublinho (p. 11).
argentina

disso12. Ainda que se trate do juízo da historia, da paciência dos ar­


quivistas, do fervor dos doutorandos ou dos professores. O documen­
to é anónimo. O monumento tem um nome. O monumento é o
predicado desse nome. OlnoMumento clama e grita a urgência de sua
própria existência, de sua singularidade irrepetível, o nome do autor:13
a obra de Miguelángelo, a literatura de Kafka, Os sertões, Operação
massacre.

IV

Contra a pequena forma do documento, a grande forma do


monumento. A pequena forma existe apenas em relação a um circuito
bem delimitado ao qual abastece. O utra vez Walsh:

D e maneira que perambulo pelos subúrbios cada vez mais remotos do


jornalismo, até que enfim ancoro num sótão da Leandro Alem onde se
faz um a folhinha gremial, e encontro um homem que se anima (...). E a
folhinha sai, é um tremular de folhinhas amarelas nas bancas, sai sem
assinatura, mal diagramada, com os títulos trocados, mas sai. Vejo-a com
carinho enquanto desaparece em dez milhares de mãos anônimas. [13]

Anónima, suburbana, subterrânea. Operação massacre é em prin­


cípio uma investigação que assume a “pequena forma” e seus circuitos
de distribuição enquanto estratégia de denúncia. A “folhinha” é o nome
e o lugar designado à investigação. M ais adiante, Walsh dirá: “acredi­
to neste livro, em seus efeitos” e “Releio a história que vocês leram.

12. As relações entre a palavra policial, política e jurídica foram analisadas mais acima.
13. Seguimos, neste ponto, Michel Foucault, que define a “função autor” (em polêmica
aberta com Jacques Derrida) em “O que é um autor”, Conjetural, 4 (Buenos Aires: agosto
1984) [Lisboa: Vega, 1992] t A arqueologia do saber, op. cit.
como se lê

H á frases inteiras que me incomodam, penso com desgosto que agora


escreveria melhor. Escreveria?” 14 O livro e o estilo impõem-se agora
como a forma e o lugar da investigação: a grande forma.
D o mesmo modo, Walsh escreveu contos policiais. Três desses
contos integram o premiado livro Variaciones en rojo.15 N um a carta de
1964, Walsh escreve:

D epois dos três romances curtos, penso em reescrever integralm ente os


dez contos policiais assinados por D aniel H ernández, e com o comissá­
rio L aurenzi como protagonista, que apareceram na últim a década em
Veay L e a } b

Existe uma distância entre os contos assinados p o r Daniel


H ern án d e z e os rom ances curtos, protagonizados por D aniel
H ernández mas assinados por Rodolfo Walsh. É a distância entre o
documento e o monumento, a^distância entre a grande forma (o ro­
mance, mesmo curto) e a forma pequena (o conto).
D a forma pequena à forma grande, o que aparece é o estético
porque, se o cânone tem um efeito constante, este é a estetização e a
academização. O estilo, a escritura, mas também aquilo que do ro­
mance enquanto gênero Walsh imprime em sua investigação.
É junho de 1956. Walsh vive em La Plata. Walsh escreve no
prólogo à terceira edição de Operação massacre que vive em La Plata.
Walsh lembra e escreve. Escreve: “Lem bro que depois voltei a me

14. Respectivamente, na “Introdução” à primeira edição em livro, de março de 1957, e no


Epílogo” da segunda edição, de 1964. Ambos incluídos em Operación masacre. Buenos Aires:
Planeta, 1994, p. 266 e 298.
15. Buenos Aires: Hachette, 1953. Reed. Buenos Aires: de la Flor, 1987.
16. E m carta a D onald Yates de 17 de março de 1964. Publicada em E l gato negro. Revista de
narrativapolicial y de misterio, 5 (Buenos Aires: dezembro de 1994)
argentina

encontrar sozinho, na sombria rua 54, onde três quadras adiante devia
estar minha casa, à qual queria chegar e finalmente cheguei duas horas
mais tarde, entre o aroma das tílias que sempre me deixava nervoso,
esta noite mais que noutras” [10]. O que é esse cheiro das tílias que
embriaga o narrador “esta noite mais que noutras” senão um puro
suplemento estético? Porque as tílias, em junho de 1956, e em todos os
junhos de todos os anos, em qualquer cidade do hemisfério sul, não
apenas não têm cheiro, como sequer têm folhas. Somente em dezem­
bro ou em janeiro as tílias ficam carregadas de flores diminutas e dou­
radas, cujo cheiro inunda tudo efetivamente. Walsh se imagina, se lem­
bra, se pensa (porém não foi assim, não foi assim) “sob as tílias”. E
este “sob as tílias” introduz subrepticiamente, enquanto suplemento, a
literatura: os valores da literatura, o olhar da literatura, os universais
da literatura.
A construção de uma obra é um processo complicado. U m su­
jeito, o escritor, realiza opções em relação aos textos, marca lugares de
pertencimento, elege circuitos de circulação, formas adequadas a um
projeto literário. A instituição reage de um modo ou de outro, mas o
certo é que torna a imprimir os valores universais da arte. O cânone
I estetiza. Facundo carece hoje, para nós, de todo valor político. E , ainda
assim, podemos admirar a prosa de Facundo com absoluta prescindência
dos conteúdos políticos que explicam sua emergência. D a mesma for­
ma que não lemos mais a Ilíada em relação a sua eficácia referencial
sobre os modos de organização da sociedade ática. O cânone exige
que os fundamentos de uma obra sejam somente os universais da arte.
Autonomiza, e nesse sentido estetiza, aquilo que num nível ou noutro
fará parte da instituição literária. Porque o cânone é essencialmente
uma construção pedagógica (o tesouro da humanidade, da raça ou da
pátria) que deve homogeneizar, monumentalizar e estetizar os textos
que o iñfegram.
como se lê

E , finalmente, o cânone desterritorializa: remove os textos de


seu mercado específico e os move a outro ou outros. A canonização é
reconhecida justamente quando o mercado enquanto instância de va­
lorização se vê debilitado. E por isso que as lógicas do cânone e a
lógica do mercado e um sucesso de crítica são muitas vezes inimigos.
U m poeta entrará no cânone quando o leiam não só os demais
poetas e os críticos. U m escritor de ficção científica ou de romances
policiais ou de melodramas será reconhecido como consagrado quan­
do possa ser \\àofora do gênero.
A lei da arte é inimiga do mercado. O u, ao menos, é inimiga das
leis dos mercados de arte. Leonardo D a Vinci ou Miguelângelo ou
Rafael ou Donatello são clássicos exatamente porque estão fora do
mercado da arte. M as não estão fora do mercado de seguros. Removi­
dos do m ercado de arte, são parte do m ercado de seguros. A
desterritorialização que o cânone realiza é sempre módica.
E m literatura, a consagração de um autor é medida pela quanti­
dade de traduções:17 isto, que é um fato de mercado, já equivale a uma
primeira remoção: Poe, traduzido por Baudelaire. Poe, traduzido por
Cortázar. Proust, traduzido por Benjamin. Nabokov, traduzido por
Pezzoni. Pound, traduzido por H aroldo de Campos. São muitas as
conseqüências das políticas da tradução, porém a princípio é evidente
que o prestígio do tradutor reforça a potência clássica da obra. E , lida
noutra língua, esta obra deve ter um significado que transcende o cir­
cuito para o qual, a princípio, foi pensada18.

17. Operación masacre e ¿Quién mató a Rosendo? Buenos Aires: Tiempo Contemporáneo: 1969
(reed. Buenos Aires: de la Flor, 1987) foram traduzidos ao alemão pela Rotpunkt Verlag.
18. O livro paga cada vez menos direitos: a lógica da consagração aniquila a renda daquele
que escreve. N a língua original, o livro restitui uns 10 % sobre o preço de capa. Traduzido,
argentina

O cânone, pois, subtrai textos do mercado, remove-os e os põe


noutra parte, noutros territórios, cancela a territorialidade lingüística
e libera a literatura (“a literatura de verdade”, a literatura consagrada)
de toda relação (sempre mentirosa, parasitária, escrava) com o dinheiro.
A antologia e o manual são o museu da literatura. E é aí, logo aí,
onde brilha o puro valor dos universais. Fora do mercado e do marketing
e da crítica jornalística, singularizados, autonomizados, esvaziados de
seus conteúdos polêmicos e, portanto, homogeneizados, estes monu­
mentos da literatura convivem sem conflito no seio da instituição en­
quanto modelos positivos e patrimônio de todos.
U m a tradição19é nesse ponto mais restritiva, menos universalista,
e um pouco mais polêmica. Suporá sempre zonas de fricção com ou­
tras tradições, exclusões, alianças táticas. Enquanto autores canônicos
da literatura argentina, a série Borges, Cortázar, Walsh, Puig (apenas
como exemplo) não incomoda ninguém. É no momento em que são
consideradas tradições diferentes (mas isso fora do cânone) que a paz
das antologias é perturbada.

entretanto, a percentagem é reduzida a apenas 7.5 %. Depois de cinqüenta anos (ou setenta
e cinco, conforme os países) da morte do autor, a obra entra em domínio público: não paga
mais direitos. Paga-se com dinheiro pela consagração. A obra, que já é patrimônio da huma­
nidade (afinal, se ocorre a alguém continuar lendo um livro mais de cinqüenta anos depois de
ter sido escrito, este livro já é outra coisa e não uma mercadoria comum), é removida do
mercado de direitos. É de livre disponibilidade. Não é estranha esta lógica no seio do capita­
lismo? Talvez por isso se encontre em processo de profunda revisão. Seria possível imaginar
uma redução similar para a renda da terra? A instituição arte segue sendo, em algum ponto,
estranha. A utopia distributiva das sociedades de massas parece ser cumprida pontualmente
na esfera da arte, mas não noutros domínios.
19. Entendida, à maneira de Williams, enquanto “uma versão intencionalmente seletiva de
um passado configurativo e de um presente pré-configurado”. Cf. Williams, Raymond. M ar­
xismo e literatura, op. cit.
como se lê

VI

Aos 26 anos Walsh é um escritor, digamos, módico, mas com


pretensões certamente nada módicas, que talvez saiba que um “gran­
de autor” é reconhecido, anos depois, pela maneira de se relacionar
com os autores canónicos da literatura. E Walsh, então, “descobre” e
propõe Ambroce Bierce para o cânone.
Quem é Ambroce Bierce? U m secundário, um “fidalgo” da li­
teratura norte-americana. “Nom ear Ambroce Bierce é evocar a me­
moria ilustre de E dgar Alian Poe. (...) E, contudo, Ambroce Bierce é
quase um desconhecido, não apenas no estrangeiro, mas também em
seu próprio país” [14] .20 “Bierce escreveu contos de mistério, contos
de terror e outros simplesmente truculentos. Foram assinalados seus
defeitos: é sensacionalista, às vezes é retórico, não poupa o pormenor
espantoso, a alusão macabra. E, no entanto, em alguns de seus relatos
atinge a difícil perfeição do gênero” [15]. Tal perfeição, Walsh não
pode ainda compreendê-lo (ou sua compreensão é tão sutil que nos
escapa), é justamente o que obtura a consagração de Bierce, ou o con­
dena a uma consagração de segunda ordem (uma “celebridade subter­
rânea”, para usar as palavras do próprio Walsh).
Sabemos: quando um escritor olha para trás e elege uma tradi­
ção, essa tradição marca o caminho que ele mesmo haverá de seguir,
imaginariamente. E a tradição não tem por que coincidir com o cânone.
M ais ainda: o processo de seleção que toda tradição supõe contradiz a
lógica do cânone. N a eleição de Beirce, Walsh encontra um autor de
segunda ordem com o qual se confrontar de forma certeira. E m sua

20. Esta referência e todas as demais à obra de Ambroce Bierce, retiradas de “L a misteriosa
desaparición de un creador de misterios”, publicada originalmente em Leoplán de 4 de março
de 1953 e recompilada em E l violento oficio de escribir. Obra periodística 1953-1977. Buenos
Aires: Planeta, 1995.
argentina

imaginação, é Beirce e não Poe o antecedente considerável. Não é um


traço de humildade, mas urna mera colocação: “Tinha começado sua
carreira ‘literária’ em São Francisco, estampando inscrições terroristas
nas paredes da Casa da Moeda. Lá mesmo exerceu o jornalismo d u ­
rante mais de vinte anos, provocando polêmicas descomunais, sem
que ninguém escapasse do chicote de sua sátira. (...) Não é estranho
que mais adiante os editores da cidade assim malhada se negassem a
publicar seus livros de contos, que tiveram igual sorte no resto do
país” [15]. Com que precauções Walsh define a carreira “literária” de
Bierce, até que ponto reconhece como ilegítimo, de acordo com o sa­
ber sobre o cânone da década de cinqüenta, apontar esta obra como
obra “literária”? M as Walsh insiste, porque a obra de Bierce, noutra
ordem, é a sua própria: os “contos” (alguns dos quais atingem “a difí­
cil perfeição do gênero”), o “chicote de sua sátira”, as “inscrições ter­
roristas”. Primeiro movimento construtivo: a obra nasce de um im­
pulso mimético mais ou menos inconsciente. Progride, e seu progres­
so marca momentos de fricção em relação às normas estéticas domi­
nantes, digamos: o cânone.
Neste ponto o que se percebe é a repugnância do escritor em
legitimar o peso morto dos clássicos. Afinal, para que os clássicos ha­
veriam de precisar da pobre defesa do presente ou do caloroso abraço
de um desconhecido?
Ao contrário, as operações de Walsh em relação à literatura con­
sagrada, a “literatura de verdade”, desestabilizam o cânone e essa ope­
ração, típica das vanguardas, está ligada, no caso de Walsh, a um pro­
blema político (ao qual voltaremos) e a um imperativo estético.
M uitos anos depois, já famoso, Walsh enfrentou o então jovem
Ricardo Piglia, o qual assinalava sobre o conto “U n oscuro día de
justicia”:21 “Também está conectado com certa tradição da literatura

21. A entrevista de Piglia, realizada em 1970, foi publicada originalmente no livreto Un oscuro
día dejusticia (Buenos Aires: Siglo XXI, 1973) com o título “H oy es imposible en la Argén-
como se lê

em língua inglesa, digo, porque é um pouco certo mundo do primeiro


Joyce, um pouco o tom de Faulkner” [216]. A tão temerária relação,
Walsh responde:

Exato, pode ser. E u aí neste caso mais que com Joyce, se bem que evi­
dentem ente no Rxtrato e em alguns contos e inclusive no Ulisses, já nem
me lembro, existam algumas historias que transcorrem num colégio de
padres, repare que se eu tivesse que buscar alguma influência na forma,
ou seja, no tipo de estilo que você cham ou de bíblico, ou seja, no tipo de
desenvolvim ento da frase, buscaria talvez mais em D unsany, que
temáticamente não tem nada a ver. E Dunsany, eu li em tradução, a não
ser um ou outro conto...” [217]

A de-gradação é perfeita: Exato, pode ser, não. Não tanto Joyce


nem Faulkner, antes Beirce e L ord Dunsany.22 Não tanto Joyce ou
Faulkner, clássicos até o impossível, e portanto irrecuperáveis a partir
de qualquer tradição, mas antes Beirce e Dunsany, divindades de se­
gunda ordem, celebridades subterrâneas. E outra tradição que Walsh
constrói, ou melhor: é outro o cânone que pode ser adivinhado nas
preferências de Walsh: esse cânone não coincide com o cânone escolar
(quer dizer, universitário), e sim com tensões propriamente estéticas
em relação às quais a obra de Walsh é resolvida.
Porém, os textos secundários da história literária não funcionam
apenas enquanto um contexto casual de escritura. Se desbaratam o
cânone, ou pelo menos permitem vislumbrar suas falhas e fissuras, é
exatamente porque parecem questionar o poder de sedução de seus

tina hacer literatura desvinculada de la política”. Circula uma versão modificada por Piglia
desta entrevista. Aqui citamos o texto original, retirado de Ese hombrey otrospapelespersonales,
op. cit.
22. L ord Edward Dunsany (1878-1957). Contista e dramaturgo irlandés. Autor, entre ou­
tros livros, de A dreamer’s Tales (1910), livro de contos que Walsh cita adiante na entrevista.
argentina

parentes famosos. Por que haveria eu, sugere Walsh, de me impressi­


onar ou de me comover com as obras monumentais de Poe, Joyce,
Faulkner, das quais “já nem lembro”?

VII

Não lembrar é o motor. Não lembrar de ninguém. Escrever no


vazio, contra o cânone e junto a urna literatura de segunda ordem. O
que se chama urna literatura menor: escrever feito um cachorro que
cava o seu buraco. Não desejar integrar o panteão de celebridades (ou
desejá-lo de tal modo que não pareça um desejo). Assim como Kafka
prefere não lembra de Goethe,23 Walsh prefere não lembrar de nin­
guém ou lembrar só daqueles que os demais, todos, a instituição, es­
queceram. Isto é um (pequeno) atentado contra o cânone no qual é
preciso ler uma micropolítica contestadora e antiestatal, porque o cânone
é o Estado da literatura.
Cortázar, antes de Walsh,24 havia desenvolvido uma teoria do
escândalo pequeno enquanto motor da literatura.25 Porém, Cortázar

23. Esquecer de Goethe é uma obsessão que percorre os Diários de Kafka. Desemboca na
anotação de 25 de dezembro de 1911, onde é incluída a teoria das pequenas literaturas ou
literaturas menores. “A vivacidade —diz Kafka - de uma literatura deste tipo até pode ser
maior que a de uma literatura mais rica em talentos” e “A ausência de modelos nacionais
irresistíveis [o caso de Goethe] mantém os totalmente ineptos afastados da literatura” (p.
142).
24. A rigor, quase simultaneamente. M as o efeito-Walsh obriga a ler as rebeldías cortazarianas
enquanto coisa do passado, enquanto ensaios módicos de uma rebelião mais profunda e gene­
ralizada. Vistos de perto, os deslocamentos que Cortázar desenvolve, o sistema de leituras e
referências culturais que introduz não são senão a contraface do impulso modernizador e
intemacionalista dos anos sessenta: não são operações contra o cânone, e sim o extremo opos­
to, porque demonstram que o cânone se moderniza. Nunca é uma segunda ordem o que
C ortázar invoca, e sim a prim eira ordem avant garde, antes fora do cânone, mas
institucionalizada já nos sessenta.
25. Cf. “E l regreso de Berthe Trépat” em Link, Daniel. La chancha con cadenas, op. cit.
como se lê

não pode esquecer de nada, e incorpora inclusive o presente (Lezama


Lima, Pizarnik) na memoria da literatura argentina. Walsh, ao con­
trário, esquece. E ao esquecer de alguns autores, o que esquece é da
literatura institucionalizada. O s textos canónicos da literatura
institucionalizada, mas também seu modo de operar, o que se conside­
ra legítimo mecanismo de consagração, o que considera “elevado” num
ordo classificatório e consagratório: a grande forma, as genealogias
prestigiosas, a separação entre géneros.
G uerrilha contra o cânone enquanto o Estado da literatura.
Efetivamente, Walsh tem uma postura de incômoda confrontação,
porque nada lhe garante o sucesso e todos reclamam aquilo que ele, na
década de setentava não pode fazer: o romance, o romance que Walsh
chama burgués por pressão do contexto,26 mas que é basicamente um
tipo de textualidade que sua própria “obra” impede de construir._Se o
novelesco estava em Operação massacre como um pozinho amarelo que
“deixava nervoso” o narrador, é porque o novelesco não pode ser, para
Walsh, mais que isto: um suplemento tranqüilizador, um aroma vago,
fora de lugar e do tempo. O livro, Operação massacre, é outra coisa e é
refratário ao cânone, ou melhor: reclama uma posição que, do cânone,
n in g u é m lhe pode dar. R eclam a um reconhecim ento.,., a
monumentalidade da literatura, para o que não existe lei adequada no
Estado das letras argentinas.
Por isso a crítica encontra dificuldades para falar da obra de
Walsh. N um primeiro movimento, Walsh é um escritor que ainda não

26. A década de setenta parece estar dominada pela obsessão telqueliana contra os “verossímeis
burgueses”. D a revista Los Libros soa o grito de combate que acabaría (para sempre) com um
género cuja historia está associada com a historia da (decadente) classe dominante. Cf. Sarlo
Sabajanes, Beatriz. “Novela argentina actual: códigos de lo verosímil”, Los Libros, 25 (Buenos
Aires: março 1972). Walsh não lia, seguramente, nem Tel Quel nem os livros escritos a sua
sombra. Porém escutava, e escutava bem, a voz da época.
argentina

escreveu seu romance, um romance que “todos” solicitam,27 ao longo


da primeira metade da década de setenta. Depois, já morto, o segundo
movimento: a recuperação da obra de Walsh. Porém, sob que forma
esta obra é recuperada? H á os que recuperam os contos policiais: seri­
am a manifestação mais perfeita do gênero na Argentina. H á os que
recuperam as grandes investigações, enquanto exemplo perfeito do
“jornalismo comprometido”. Depois há, ainda, os que recuperam “a
literatura de Walsh”, seus contos, também o “momento mais alto” do
relato breve na Argentina. M as a obra, como e sob que máscaras teria
de ser recuperada? Evidentemente há aí uma dificuldade. D e um lado,
é evidente o que a cultura industrial codificou (em inglês, naturalmen­
te: a língua do império cultural): Walsh participa igualmente da category
fiction e do mainstream literário,28 o que é a princípio um problema: em
relação a que cânone avaliá-lo?
M as, além disso, Walsh escreve ficção e não ficção, e tal oscila­
ção é prévia ao aparecimento de uma nova categoria, a non-fiction
(category fiction, mainstream?). O juízo estético deve submeter-se à ló­
gica da cultura industrial. A obra de Walsh é, afinal, a obra de um
jornalista, de um militante político, de um escritor? E como se articu­
lam a política, o jornalismo e a literatura nessa obra? O u como enten-
der essa caprichosa oscilação entre o literário e o não literário? “Se
você escrevesse um romance!”, é a reclamação de quem o entrevista
durante a década de setenta. Seria tudo mais fácil. E Walsh entende

27. Entre outras entrevistas, cf. “La novela geológica” e “¿Lobo estás?”, ambas recompiladas
em Ese hombre y otrospapelespersonales.
28. A industria editorial norte-americana codifica desse modo a produção literária: category
fiction é a ficção de gênero, mais ou menos industrialmente produzida: a ficção científica, o
policial, o romance de espionagem, o romance sentimental. Ao mainstream (corrente princi­
pal) literário (que às vezes se chama inclusive literary fiction em alguns catálogos)
corresponderiam os exercícios de “literatura alta” no campo da ficção.
;omo se lê

:sta reclamação, fazendo-a passar por seu próprio corpo, e seu diário é
jasicamente a tensão em torno desse romance impossível mas neces­
ario ao mesmo tempo. E Walsh, que sabe algo de lógica, desespera-se
iiante da contradição.
H á mais: talvez seja essa mesma contradição o que o leva à
nilitância política: “E u já não escrevo mais”, exclama com maiúscu-
as.29

VIII

M as Walsh continua escrevendo. São os sinais dos tempos: es-


;reve-se que não se pode escrever. Toda a obra de Walsh está marcada
)or esse imperativo blanchotiano ou beckettiano: escrever, seguir es-
:revendo, porque é preciso continuar escrevendo, mas escrever que
íão se pode escrever, que não se encontra a forma, o romance, o mo-
nento histórico, o público ou, simplesmente, o desejo.
Esta é a lógica (vanguardista) na qual Walsh se instala: querer
iscrever, inscrever-se no mercado, produzir “romances” e contos po-
iciais, a categoryfiction, denominar-se “um autor de romances polici-
lis” (porque “o escritor” é outro). Separar-se assim da lógica do cânone,
'Star noutro lugar, não poder lembrar dos autores consagrados (Joyce,
7aulkner) e sim dos de segunda ordem. Abandonar, inclusive, a ficção
: o romance. Continuar escrevendo. Escrever romances fragmenta-
los ou condensados. Cada conto de Walsh pode ser pensado enquan-
o um capítulo de romance (o “ciclo dos irlandeses”), ou enquanto um
'esumo de romance ( “Fotos”, “Cartas”, cuja densidade os torna às

■9. Cf. Ese hombre y otrospapelespersonales, cp. cit., p. 160.


'0. O s exemplos são bem diferentes e não funcionam do mesmo modo. Beckett imprime suas
mpossibilidades na teoría do grupo Tel Quel, que ideologiza e politiza a obsessão de Beckett
argentina

vezes ininteligíveis). Produzir uma investigação jornalística. Levá-la


ao livro. Transformar a forma pequena em grande forma, o Livro.
M as numa variedade de grande forma desconhecida. O cânone titu­
beia, a instituição literária não tem espaço (ou posições) para tanto.
Constituir-se em escritor de referência. E o boom da literatura: as re­
vistas o entrevistam, os jornalistas (eco do público) solicitam um ro­
mance. Walsh promete apressadamente um romance. E o boom edito­
rial. Walsh cobra adiantamentos, mas o romance não aparece. Porque
o romance é impossível segundo a lógica na qual Walsh se instala e
segundo o mandato da história que diz que depois de Beckett, depois
de García M árquez,30 o romance (burguês) morreu.
E m duas frentes, pois, a instituição literatura perde sua autono­
mia. O mercado editorial imprime sua lógica à produção latino-ame-
ricana e transform a Paradiso num best-seller, por exemplo. E a
neovanguarda (noutra frente, com outros objetivos) desbarata toda
ilusão de neutralidade política. E o paradoxal, o excepcional, o verda­
deiramente único é que Walsh ocupe as duas frente de uma vez, ou
melhor: parte de Walsh ocupa uma frente e parte de Walsh ocupa
outra. A obra, enquanto summa da carreira do escritor, adquire sentido
precisamente nesse desgarramento e nessa dupla confrontação.
D a literatura na obra de Walsh não fica senão um rastro, apenas
o suficiente para poder seguir lutando (micropolíticas) contra o cânone.
E Walsh, no momento em que é reconhecido como um escritor estre­
la, fracassa e conta o seu fracasso: não há romance, não haverá nunca

pelo vazio. García M árquez entrega, fora de hora, um dos maiores romances do século. Seu
êxito é indício (na Argentina vanguardista dos setenta, de Los Libros a Literal) da mercantilização
da literatura e da impossibilidade histórica da arte. Enquanto a Europa goza com Cem anos de
solidão, com o romance recuperado, o neovanguardismo argentino dos setenta observa
ceticamente um episódio a mais de fetichização, de reificação, de mercantilização e, finalmen­
te, de alienação do leitor.
como se lê

tal romance, porque ele, que é um homem de consciência,31 faz passar


por seu próprio corpo a impossibilidade do romance, vale dizer, por
sua obra.
Não é que Walsh não tenha escrito um romance, o romance. E
que Walsh põe no centro de sua obra a impossibilidade (histórica, mas
também lógica) do romance. E , somente tendo em conta essa impos­
sibilidade e o lugar central que ocupa, é que sua obra pode ser com­
preendida enquanto uma totalidade mais ou menos organizada.
Não há romance. E porque não há romance é que esta obra
existe e permanece como uma pedra difícil de talhar. Walsh o sabia?
Sabia que, ao se retirar do romance, ao declarar o romance impossível,
infligia ao cânone, à instituição literária, um golpe mortal? Sabia que
estava propondo, com o fim da autonomia, o fim da literatura? Acre­
ditava na regeneração da arte a partir desse final glamoroso? O u, feito
Rimbaud, limitou-se a ficar sozinho e calado obstinadamente?

31. Tanto para as prostitutas de Havana quanto para a crítica populista. “Você é um homem
de consciência”, diz Zoila Estrella, prostituta adolescente negra com quem Walsh dorme. Cf.
Ese hombre y otros papeles personales, op. cit. “Não tennho outra forma para definir Rodolfo
Walsh além da frase de M adame de Stael referida a Schiller: A consciencia ésua musa”, escreve
Osvaldo Bayer no prólogo a Operación masacre (Planeta, 1994).

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