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ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DAS TEORIAS DOS


TEMPOS SOCIAIS PARA REFLETIR A
TEMPORALIDADE LABORAL 1
Revista SOME CONTRIBUTIONS OF THE SOCIAL TIMES THEORIES
de FOR A REFLECTION ON THE
Psicologia LABOR TEMPORALITY

Cássio Adriano Braz de Aquino


Aécio de Borba Vasconcelos Neto
Erica Maria Lima Pimentel
Ítalo Emanuel Pinheiro de Lima
sil, Raquel Nascimento Coelho 2
RESUMO
Fi-
A compreensão do fenômeno temporal em sua articulação com as estruturas sociais pode vir a constituir
um elemento fundamental de análise das transformações na sociedade contemporânea. O presente arti-
go é fruto de investigação inicial de dois dos autores mais representativos na constituição da teoria dos
tempos sociais - Roger Sue e Gilles Pronovost - e da articulação das suas teorias com a temporalidade
laboral. Nele são abordadas algumas idéias que guardam relação direta com o reconhecimento da cate-
goria trabalho como elemento central da estruturação da temporalidade social.
'co.
Palavras-chave: Tempo social, trabalho, jornada.
po

lo: ABSTRACT
The understanding of the time phenomenon in its articulation with the social structures can constitute a
en- basic analysis element of the transformations in the contemporary society. The present article is a result
In: of an initial investigation about two of the most representative authors in the constitution of the social
Ul-
times theory - Roger Sue and Gilles Pronovost- and also about the articulation between their theories
85- and the labor temporality. This article brings some ideas that keep a direct relation with the category
work recognition as a central element that structuralize the social temporality.

em
Key words: Social times, work, joumey.
G.;
'tu-

lho

cial:
ba-
92.
ória
tra- 1
O presente artigo é fruto de pesquisa realizada junto ao Núcleo de Psicologia do Trabalho- NUTRA/UFC coordenado pelo Prol. Dr.
104. Cássio Adriano Braz de Aquino e que contou com a participação de quatro alunos do Curso de Psicologia da UFC, Aécio de Borba
Vasconcelos Neto, Erica Maria Lima Pimentel, ítalo Emanuel Pinheiro de Lima e Raquel Nascimento Coelho.
1ita- 2
Endereços para contato: Núcleo de Psicologia do Trabalho- NUTRA/UFC. Av da Universidade, 2762- Dept0 de Psicologia- Benfica
CEP 60020-180. Correio eletrônico: nutra@ufc.br, Prol. Cássio Adriano Braz de Aquino. E-mail: ca.aquino@uol.com.br

Revista de Psicologia, Fortaleza, v. 23 n.l, p. 23-29, janJjun. 2005 d


Revista de Psicologia

1 INTRODUÇÃO dois de seus mais importantes expoentes - Roger


Sue e Gilles Pronovost - para compreender como
As discussões sobre as profundas transfor-
podemos nos apropriar de novos parâmetros de
mações ocorridas no fenômeno laboral, e que
análise da sociedade contemporânea. Seguindo a
impactam na configuração social, têm tido como
lógica de uma atividade social que impõe sua
conseqüência o surgimento de idéias que põem em
temporalidade- tempo dominante para Sue (1995),
dúvida a centralidade do trabalho e até mesmo a
tempo pivô para Pronovost (1996) -e regula a
formulação de hipóteses sobre o seu desapareci-
estruturação da sociedade é que vamos investigar
mento.
como essas duas teorias sobre os tempos sociais ex-
A caracterização da categoria trabalho como plicam o atual contexto de domínio de temporalidade.
histórica ou antropológica- muitas vezes de forma A contribuição dos dois autores constitui um referen-
excludente - está talvez no cerne desse movimen- te fundamental na discussão sobre a transformação
to. No entanto, de forma mais pontual, se pode alu- da temporalidade laboral e das conseqüências des-
dir como um importante elemento de análise dessa sa transformação na idéias da composição dos qua-
transformação a articulação entre as categorias tem- dros temporais dos membros da sociedade, além
po e trabalho. Como foi analisado no trabalho que dos efeitos sobre a configuração social.
resultou na tese doutoral A possibilidade de compreender essas duas
Tiempo y trabajo: un análisis de la vertentes de análise do tempo social tem impacto
temporalidad laboral en el sector de direto não apenas no âmbito da psicologia social,
ocio - hostelería y turismo - y sus área que estamos diretamente vinculados, mas nas
efectos en la composición de los ciências sociais como um todo. Como conseqüên-
cuadros temporales de los
cia direta dessa investigação temos a constituição
trabajadores. (AQUINO, 2003),
de subsídios para reflexão sobre a categoria traba-
a(s) teoria(s) dos tempos sociais reconhecem a ati- lho, uma vez que a transformação da temporalidade
vidade laboral como eixo central da estruturação laboral viabilizaria uma análise sobre a centralidade
da temporalidade social que vigora desde a Revo- do trabalho nas sociedades contemporâneas.
lução Industrial e deu origem à denominada socie- As idéias aqui expostas podem e devem ser
dade industrial. tomadas como uma reflexão inicial que tende a des-
Um breve resgate histórico aponta para uma dobrar-se em muitas outras, de tal forma que arti-
grande variedade de modelos explicativos, tanto culem os efeitos da transformação do mundo do
na filosofia como na religião, que tentam atribuir trabalho e as profundas alterações na forma de con-
um sentido ou principio de organização temporal ceber a temporalidade.
que possa vir a caracterizar as distintas sociedades.
O reconhecimento dessa organização temporal é
considerado por Beltrán (2000) como um recurso
2 A CONTRIBUIÇÃO DO PENSAMENTO
fundamental de compreensão do próprio funcio-
DE GILLES PRONOVOST NA CONFI-
namento da sociedade.
GURAÇÃO DE UMA TEORIA DOS
Elias (1997) também destaca a importância TEMPOS SOCIAIS
da organização temporal na compreensão das es-
truturas sociais. Ele explica que, ainda consideran- A noção de distintos sistemas e referências
do que o tempo é uma síntese de certos processos temporais que caracterizam não só diferentes soci-
sociais inseridos no decurso do desenvolvimento edades, mas também grupos dentro de uma mes-
das sociedades, há uma tendência a percebê-lo ma sociedade, além de diferentes momentos nessa
como uma categoria essencialmente natural, mui- referida sociedade, são um marco de â11álise da or-
tas vezes tomado como tendo existência própria, dem social e dos processos sociais. Uma das for-
embora ele seja uma construção própria de cada mas mais evidentes dessa constatação está no
contexto sociohistórico. exame das diferenças entre a organização e a con-
Ao reconhecer esse valor estruturante ou cepção de tempo entre as sociedades tradicionais
explicativo que a temporalidade tem dentro da con- e as sociedades modernas.
figuração social, buscamos aprofundar uma análi- Algumas concepções filosóficas se propõem
se das teorias dos tempos sociais, representados por a entender o sentido do tempo e se dedicam a com-

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preender a construção de um conceito para esse 3) A morfologia social do tempo: com base
fenômeno. Resulta oportuno fazer uma breve alu- nos estudos antropológicos de Mauss (1968) y
são à idéia de Deleuze (1996) sobre a criação dos Evans-Pritchard (1968), o autor afirma que a orga-
conceitos como uma característica inerente à Filo- nização do tempo está fundada pelas relações ime-
sofia, mas também à ciência e à arte, embora pon- diatas com a natureza, mas também guardam
do o acento na Filosofia para compreensão de como relação na demografia e geografia do grupo.
esses se constroem. Essa idéia é importante por- 4) Tempo e economia: reconhecendo a carac-
que nosso propósito nesse momento, mais que re- terística mais qualitativa do tempo, o trabalho esta-
fletir sobre como se constituiu o conceito de tempo va orientado por uma necessidade e não pela
social- ou de forma mais precisa, tempos sociais- dimensão temporal. Assim, o trabalho estava vin-
consiste em reconhecer as evidências que levam a culado a uma tarefa a cumprir e não constituía um
formulação de um conceito inscrito no âmbito das elemento medido por unidade de tempo. Sobre esse
ciências sociais. ponto merece relevo a reflexão de Bordieu (1963)
Pronovost (1996) propõe uma análise da con- sobre a sociedade argelina, revelando que a noção
cepção social do tempo através de uma formula- de previsão estava ancorada sobre um interesse con-
ção esquemática das características que compõem creto e não na concepção mais moderna na qual os
os sistemas temporais tradicionais e modernos. No benefícios- a curto e longo prazo- a obter, constitu-
entanto, o autor adverte que tal caracterização pode em o verdadeiro objetivo de utilização da previsão.
conter alguns riscos. O primeiro deles é uma visão As características que vão marcar o sistema tem-
caricaturada da situação com relação às socieda- poral das sociedades modernas ao seu turno seriam:
des antigas; o segundo, uma visão "ocidente- 1) Legitimação do valor do tempo: a) o tem-
centrista", e, por fim, com relação a uma adoção
po adquire valor e legitimidade e se inscreve no
de uma noção de evolução histórica, pode haver sistema de valores globais da sociedade; b) o tem-
uma tendência a uma melhor adaptação do con-
po passa a ser concebido como um recurso escasso,
ceito de tempo ao contexto moderno. Sobre essa
tendo a economia e a organização do trabalho, um
última visão reside a preocupação de Elias (1997)
papel fundamental nessa percepção; c) o corolário
em considerar o conceito de tempo como uma sín-
da concepção de valor do tempo é a noção de "per-
tese evolutiva complexa.
da de tempo";
As sociedades tradicionais estariam, segun-
2) A medida do tempo: o aperfeiçoamento dos
do Pronovost (1996), organizadas a partir de qua-
instrumentos de medida do tempo ressaltam a ca-
tro aspectos fundamentais:
racterística quantitativa e linear da temporalidade
1) Tempo Cultural: com base na concepção que se impõe sobre o caráter qualitativo. Essa noção
de Sorokin e Merton (1992) que reconhecem o de medida de tempo leva a: a) uma sincronização
tempo como um elemento sociocultural, ele des- de atividades e o estabelecimento de regularidades
taca que não só a natureza marca a noção de temporais; b) o tempo passa a ser representado como
temporalidade (o que conduziria a uma concep- dividido segundo seqüências e ritmos variados; c)
ção global do tempo), mas haveria também a par- se estabelecem pontos de referências e marcas tem-
ticipação de grandes marcadores dos ritmos
porais com base nas atividades dominantes.
sociais, tais como ciclo familiar, trabalho agrícola
e ritos religiosos. 3) Estratégias temporais: de acordo com a ma-
triz de duração e desenvolvimento da temporalidade,
2) A Consciência temporal: partindo da
as sociedades modernas estão caracterizadas por es-
idéia de Bordieu (1963) de que a consciência tem-
tratégias temporais voltadas ao futuro. Dessa tendên-
poral é solidária ao ethos de cada civilização,
Pronovost aponta os elementos-chave da articu- cia derivam que as noções de previsão e planificação
lação temporal nas sociedades tradicionais como adquirem relevo, além de ressaltar que se estabele-
sendo: a) um tempo qualitativo composto de par- cem distintas estratégias temporais relativas às dife-
tes heterogêneas e descontínuas; b) um modelo renças entre classes sociais e situação de inserção
retrospectivo, antes que prospectivo do tempo; laboral (o desemprego, por exemplo);
c) uma visão do presente descontínuo que impe- 4) Horizonte temporal: o horizonte tempo-
de uma compreensão do futuro; d) movimento ral está fundamentado na concepção de valor e de
cíclico do tempo. estratégia temporal. Assim, aspectos como os pro-

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jetos de vida, a representação de futuro e as atitu- possível dizer que, se Pronovost tem uma consci-
des baseadas na duração, dependem de forma de- ência de construção teórica dos tempos sociais mais
cisiva dos vínculos mantidos com a atividade flexíveis, a proposta de Sue está radicalmente en- ma
dominante e que estrutura a experiência temporal volvida na construção de uma teoria dos tempos cias
no plano individual e coletivo. sociais que ressalte o tempo como fator fundamen-
A proposição construída por Pronovost, tem tal da análise da estruturação social.
no"
uma importância pragmática de identificação de A concepção de Sue fica clara quando ele põe
uma distinção entre a temporalidade vivida nas so- acento na proposta de Rezsohazy (1986) que, a par-
ciedades tradicionais e as referências constituídas tir das idéias de Sorokin e Merton (1937 I 1992), con-
na modernidade. Para Elias (1997), no entanto, o sidera que a ordem temporal é básica para a
modelo proposto poderia ser questionado pelo fa to compreensão dos fatos sociais. Rezsohazy crê que
de usar o pensamento evolucionista ocidental para a noção de temporalidade está baseada numa atri-
estabelecer essa distinção e com isso ressaltar um buição de importância dos fatos sociais aos quais
caráter tendencioso de análise. Apesar dessa ob- se incute valor, representados por uma ordem e
servação, é importante compreender que uma das configuração hierárquica. Atribuir à temporalidade
características que está descrita no pensamento de uma expressão de valor e normas é fundamental
Pronovost, e que é reconhecida também por Elias, para a ordem social, pois implica que haverá um
é um critério de abstração crescente na compreen- tempo característico, associado a uma atividade
são do tempo, ou seja, as sociedades ocidentais es- social que vai predominar nessa sociedade. Além
disso, a mudança de um tempo dominante a outro
tão marcadas por uma capacidade cada vez mais
tempo (atividade) dominante implica uma trans-
abstrata de transmitir culturalmente, através das
formação na própria estrutura social.
gerações, uma interpretação da duração, medida e
ordem do tempo. Sue (1995), ao analisar as transformações soci-
ais que precipitaram a modernidade, ressalta de for-
No prinápio, as sociedades mais primitivas
ma especial que o seu surgimento ocorre com a
estavam centradas em uma noção mais concreta e
ruptura do predomínio da noção de temporalidade
simplista de divisão entre o sagrado e o profano, já
tradicional, o que leva a pressupor que a chamada
as sociedades modernas começam a introduzir refe- "crise da modernidade" pode também ser analisada
rências mais abstratas e complexas que podem ser através da percepção de uma mudança da ordem
vinculadas tanto a uma noção de orientação tempo- temporal. Tal mundança estaria sendo provocada
ral- memória, recordação, perspectiva de futuro - com a alteração na forma de organização da ativida-
como com relação a tipos particulares de tempos de social dominante, a saber, o trabalho. A seguir são
sociais - tempo de trabalho, tempo de lazer, tempo explicitadas as características que, segundo Sue, defi-
escolar. nem o que ele denomina por "tempos modernos:"
• A idéia moderna de tempo implica algu- 4
mas características peculiares a toda temporalidade.
3 O PENSAMENTO DE ROGER SUE E
Uma delas é a questão de Precisão do tempo, que
SUA COMPREENSÃO DO TEMPO
generaliza e tenta impor a todos uma concepção de
tempo universal, medido de forma cada vez mais
COMO ORDENADOR SOCIAL
precisa, numa evidência de que todos os "tempos" ca UJ
Enfocando sua atenção também sobre uma estão submetidos à lógica da produtividade e à mod
distinção da temporalidade entre as sociedades tra- compreensão mecânica. lise c
dicionais e modernas, Sue (1995) reconhece que •Outra característica do tempo moderno é estu
existe um conjunto de características que vão mar- o Escalonamento de atividades. Essa idéia está sos,
car a passagem do tradicional ao moderno, de for- baseada na proposta de Hall (1984) que defende temi
ma que se pode falar do estabelecimento de uma uma distinção entre o tempo policrônico- diver- dem
noção de "tempos modernos". sas atividades sendo realizadas ao mesmo tempo Suet
Está claro que a idéia de Sue é estruturar a - e tempo monocrônico - tempos distintos para fund
concepção de tempo como um elemento fundamen- atividades distintas. Essa distinção marca, pois, a poss
tal da compreensão da ordem social. Ele toma esse característica das sociedades pré-modernas e mo-
pensamento como um a priori de toda sua teoria. É dernas, respectivamente. O escalonamento das ati- sobli

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vidades somente pode ser pensado a partir de uma possibilita a compreensão das relações e configu-
concepção de tempo linear e divisível, matéria pri- rações de uma sociedade em um determinado con-
ma da racionalidade estruturada segundo referên- texto histórico. Quando se faz referência a uma
cias causais típicas da modernidade. estrutura, em realidade implica dizer que os tem-
• A terceira característica do "tempo moder- pos sociais não são mais que uma representação
no" é o Sentido de previsão. Aqui se estabelece ou construção que permite dar uma configuração
uma distinção radical com as sociedades pré-mo- à ordem social real, partindo de práticas sociais es-
dernas. Nessas, o centro da temporalidade é o tem- pecíficas, como, por exemplo, o trabalho, a família,
po passado, ou seja, seu olhar está centrado no mito o lazer ou a educação.
original ou fundador. Sua lústória é a lústória da Sue propõe que a avaliação do tempo domi-
contínua reprodução do mito criador, ou seja, a nante se dá através da adoção de cinco critérios de
temporalidade é concebida como cíclica. Nos tem- reconhecimento:
pos modernos se acredita na noção de um tempo
1) Tempo dominante e duração do tempo-
linear, um tempo em constante devir e, portanto
prevalece a idéia de que a lústória jamais se repete. concebido como o critério mais simples, já que base-
ado no critério quantitativo, destaca o tempo da ati-
• A quarta característica do tempo moderno é
vidade dominante e que impõe sua temporalidade
sua Orientação ao progresso. A idéia de progresso,
aos demais tempos sociais;
fruto do período ilustrado, está ligada à representa-
ção de desenvolvimento do tempo e no tempo, numa 2) Tempo dominante e valores dominantes-
perspectiva de processo e realização da lústória. Exis- é um critério qualitativo e implica que um tempo
te um vínculo entre a noção moderna de progresso e social é dominante se ele é o lugar de produção dos
a própria concepção judaico-cristã de "tempo reden- valores dominantes do sistema social;
tor", inserida na mística de um futuro melhor (em- 3) Tempo dominante e categorias sociais do-
bora, além da vida terrena). Há distintas formas de minantes- vinculado às principais categorias soci-
messianismo, mas sem dúvida, o messianismo cientí- ais que representam uma sociedade na forma de
fico representado pelo positivismo lógico é o que vai reconhecer-se como unidade e constituir uma or-
demarcar essa promessa de aperfeiçoamento do tem- dem social. Assim, o tempo social dominante pode
po moderno. Assim, é o futuro como progresso, por receber essa caracterização se as grandes categori-
meio da aplicação e aprimoramento do princípio de as sociais são produtos da atividade referente a esse
racionalidade científica a todas as coisas - sejam na- tempo social;
turais, humanas ou sociais-, que vai caracterizar o
tempo na modernidade. 4) Tempo dominante e modo de produção
dominante - um tempo é considerado dominante
quando o modo de produção concebido como do-
minante se efetua no interior desse tempo social
4 A CONTRIBUIÇÃO DE SUE E PRO- em particular. Deve ser ressaltado que o modo de
NOVOST PARA PENSAR A TEMPO- produção dominante é o domínio ou esfera da pro-
RAUDADE LABORAL COMO MARCO DA dução, simbólica e real, de uma sociedade, inserida
TEMPORAUDA DE SOCIAL num sistema de valores.
Ao refletir sobre essa transformação que mar- 5) Tempo dominante e representação social-
ca uma diferença entre as sociedades tradicionais e é um critério simples que implica que para um tem-
modernas, nos aproximamos do paradigma da aná- po social seja dominante necessita ser reconhecido
lise que empreendemos. Tal como está pontuado nos como tal pelos membros que compõe a sociedade.
estudos sobre o tempo social, ou para sermos preci- O fato de propor a idéia de que as mudanças
sos, dos tempos sociais, é possível reconhecer na produzidas pela temporalidade constituam referen-
temporalidade um recurso básico de análise da or- tes para as etapas lústóricas, parece importante, pois
dem social. A idéia de um tempo dominante para pode servir de elemento da análise sobre uma pos-
Sue (1995) ou tempo pivô para Pronovost (1996) é o sível transformação da denominada sociedade
fundamento da construção de uma teoria dos tem- laboral, ou, pelo menos, com o reconhecimento de
pos sociais. uma alteração do sentido do trabalho nas socieda-
A idéia de um tempo que domina, flli•dada des atuais. A passagem de um tempo (atividade
sobre a base da estruturação dos tempos sociais, social) dominante a outro tempo (atividade soei-

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al) dominante pode revelar uma transformação dais. A segunda faz referência a uma espécie
social. Uma ruptura histórica que levaria a uma de "neutralização" histórica, de forma que asso-
nova ordem social. ciedades atuais possam lançar mão de suas orga-
Sue (1995) propõe uma espécie de "guia de evi- nizações formais para integração de distintas
dências" que podem representar esquematicamente temporalidades num mesmo presente.
a evolução da estrutura de um tempo dominante, Essa observação permite a Pronovost propor
desde seu reconhecimento de predomírúo absoluto o estabelecimento de uma taxonomia do tempo
até sua submissão a um novo tempo dominante: social em quatro grandes categorias:
1° Momento: É o momento do apogeu do 1) Segundo as relações históricas - se pode
tempo dominante, seu controle é quase um mo- fazer referência a dois fundamentos a partir dos
nopólio; quais as sociedades ocidentais, ou os seus indiví-
2° Momento: Surgem novos tempos sociais duos, concebem a implicação histórica: a) a
com algum destaque, mas adquirem um estatuto temporalidade dos ciclos de vida e das gerações,
residual; ou seja, segundo a posição de um indivíduo no ci-
clo de vida, segundo a memória coletiva histórica
3° Momento: Os tempos que eram residuais
do momento ou segundo o horizonte social defini-
adquirem amplitude, mas segundo critérios espe-
do por uma ou mais gerações; e, b) com relação à
cíficos. São, no entanto, dissociados entre si e não
história em si, ou seja, através dos elementos signi-
se convertem em alternativa ao tempo dominante;
ficativos da sociedade, dos fatos simbolicamente
4° Momento: É o momento de conjunção en- relevantes;
tre os distintos tempos não dominantes que mes-
2) Segundo a estruturação das atividades-
mo com um caráter heterogêneo, chegam a
constituir uma unidade de enfrentamento ao tem- resgatando a idéia de Sorokin e Merton (1937 I
1992), que destacam que o tempo social está
po dominante. Deve ser ressaltado que há o reco-
estruturado em função das atividades significa-
nhecimento da sua existência nos fatos concretos,
tivas que o compõe, é importante reconhecer que
mas não é ainda aceito ou representado como do-
as atividades servem de pontos de referência sim-
minante;
bólicos ao estabelecimento do tempo. Essa cate-
5° Momento: O que era evidenciado em fa- goria é o que permite a formulação do que o
tos passa a ser reconhecido objetivamente como autor denomina "tempo pivô" - que vem a ser
dominante, segundo os critérios de representa- uma concepção semelhante ao tempo dominante
ção social. de Sue - que além de ser caracterizada por sua
Antes de analisar a idéia de Sue sobre um forte carga simbólica, será demarcada também
modelo de alteração de domínio de temporalidade, por sua regularidade. Pronovost ressalta ainda
é importante apresentar a idéia de Pronovost (1996) que essas "atividades pivôs" estão diretamente
que, em realidade, não apresenta um modelo, mas vinculadas às grandes instituições sociais- tra-
constitui um modo de reflexão que reconhece que balho, escola, religião- de forma que se lhes pode
a multiplicidade não é um fenômeno relativo e ex- atribuir o caráter de produtores e reguladores
clusivo do tempo social tomado como elemento dos tempos sociais;
absoluto. Para ele, é necessário reconhecer nos di- 3) Segundo valores, normas e significações
versos sistemas ou subsistemas sociais, que com- dos tempos sociais- essa categoria busca por em
põe a sociedade moderna, o próprio sentido da destaque como os tempos - seu ritmo e desenvol-
multiplicidade. Citando a Luhmann (1976/1992), vimento- estão marcados pelos valores e pela cul-
Pronovost acredita que a complexidade das socie- tura, além de compreender a relação simbólica da
dades atuais produz uma compreensão mais abs- articulação dos tempos sociais entre si. Pronovost
trata do tempo, resultando numa noção de horizonte considera que o esquema de análise cultural apre-
temporal mais ampla e que conduziria a um duplo senta três distinções: a) é possível compreender as
processo de coordenação da temporalidade: uma concepções globais do tempo tais como se apresenta
temporalidade seqüencial e uma temporalidade no conjunto de valores observáveis na sociedade
estrutural. A primeira estaria ancorada numa base contemporânea; b) Pode-se abordar o tempo a par-
histórica, ou seja, uma articulação de diversas re- tir de um recorte setorial e analisar as coações da
ferências históricas relacionadas às mudanças so- vida cotidiana e os controles sociais que lhe são

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impostos; c) Pode-se considerar as diversas signi- O reconhecimento de que a temporalidade


ficações sociais de utilização do tempo (os estudos está mediada por valores e pela cultura e, ademais,
de budget-time atuam nesse sentido). é reconhecida como um recurso delineador das ati-
4) Segundo escalas de tempo- ainda reconhe- vidades sociais, permite a introdução da idéia de
cendo que a representação da duração e extensão domínio na estruturação da ordem social. A noção
de uma atividade é uma característica fundamental de tempo dominante (Sue) e pivô (Pronovost) pa-
na concepção da estruturação do tempo pessoal, exis- rece constituir-se como elemento importante e de
te também um efeito sobre os grupos e instituições. alguma forma pouco explorado para uma aborda-
Pronovost reconhece como escalas mais significati- gem das transformações da realidade laboral. Essa
vas de referência os tempos macro-sociais, os tem- será a continuação do processo de investigação do
pos insti-tucionais, os tempos próprios dos grupos qual este artigo é apenas o resultado de uma refle-
sociais e os tempos micro-sociais. xão inicial.
A distinção entre uma temporalidade histó-
rica e uma temporalidade estrutural posta por
Pronovost ressalta, uma vez mais, a complexidade REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
da compreensão do tempo em um recorte social. AQUINO, C.A B. Tiempo y trabajo: un análisis de la
Sua contribuição é sem dúvida mais elaborada do temporalidad laboral en el sector de ocio- hostelería y
que a que propõe Sue, pois reconhece uma dupla turismo- y sus efectos en la composidón de los cuadros
dimensão ao introduzir o recurso histórico como temporales de los trabajadores. Tesis (Doctoral).
corolário da dimensão estrutural. Madrid: Universidad Complutense de Madrid;
O intento desse momento permitido por nos-
BELTRÁN, L. Sobre la sociología del tiempo. Re-
sa investigação teórica é ressaltar a temporalidade
vista de Pensamiento y Cultura, n.14, s. Zaragoza:
como elemento de análise da ordem social, destacan-
Mira Editores, 2000, p. 91-100.
do o caráter central do tempo de trabalho como tem-
po dominante ou pivô da construção da ordem DELEUZE, G. O que é a filosofia. São Paulo: Edito-
social. Essa compreensão serve de base para refletir ra 34,1996.
sobre a transformação da temporalidade laboral ou
ELIAS, N. Sobre el tiempo. México: Pondo de Cul-
diminuição do seu domínio no ordenamento social,
tura Econômica, 1997.
implicando um recurso viável de introdução de uma
nova perspectiva na discussão da crise do trabalho. HALL, E. T. La danse de la vie: temps culturel, temps
Se num primeiro momento parecesse mais vecú. Paris: Seuil, 1984.
lógico adotar a referência de Sue, como fundamen- LUHMANN, N. El futuro no puede empezar:
talmente adequada para nossa análise - sobretudo estructuras temporales en la sociedad moderna.
por seu enfoque centrado na ordem social -, não In: RAMOS TORRE, R. Tiempo y sociedad. Madrid:
podemos deixar de considerar a importância da Centro de Investigaciones Sociológicas, 1992. p.
perspectiva de Pronovost. Ao adotar a conjunção 161-182.
do recurso proporcionado pela temporalidade his-
tórica e a temporalidade estrutural, Pronovost per- PRONOVOST, G. Sociologie du temps. Bruxelles: De
mite a apreensão da complexidade própria da Boeck, 1996.
questão temporal, gerando uma validade fiável REZSOHAZY, R. Les mutations sociales recentes et
para uma análise que elege o tempo como uma ca- les changements de la conception du temps. Revue
tegoria central da estrutura social. internationale du sciences sociales, n.107, Paris,
Partindo de um recorte do tempo social, que Blackwell Publishers/UNESCO, 1986. p. 37-52.
reconhece sua multiplicidade - tempos sociais -
SOROKIN Y MERTON, P. A. y R. K. El tiempo so-
numa inserção histórica e de crescente complexi-
cial: un análisis metodológico y funcional1937. In:
dade e abstração, somado a sua consideração como
RAMOS TORRE, R. Tiempo y sociedad. Madrid: Cen-
recurso de análise da realidade social, parece perti-
tro de Investigaciones Sociológicas, 1992. p. 73-87.
nente utilizá-lo no estudo das transformações do
trabalho. SUE, R. Temps et ordre social. Paris: PUF, 1995.

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