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FADIGA, PERDA DE PESO, HEMORRAGIAS E ANEMIAS – 2019/2 dissociação de maturação núcleo-citoplasmática, produzindo

PROBLEMA 02: “MEU DEUS, QUANTA FRAQUEZA”. células de tamanho aumentado e com alterações morfológicas
OBJ 01) CARACTERIZAR ANEMIAS CARENCIAIS. características. No entanto, uma parcela considerável dessas
CARÊNCIAS DE FOLATOS OU VITAMINA B12 - ANEMIAS células morre na própria medula óssea, antes de completar o
MEGALOBLÁSTICAS desenvolvimento.
As anemias resultantes de carências de vitamina B12 ou de folatos A intensa desordem da maturação nuclear das três linhagens,
vão se tornando menos frequentes, em virtude da diminuição da mais evidente na série eritroide, produz um aumento de morte
ocorrência de carências nutricionais. No entanto, ainda são celular intramedular: apenas 10 a 20% dos eritrócitos sobrevivem
encontradas na prática médica, em especial entre grávidas de e tornam-se viáveis para o sangue periférico (hematopoese
classes mais pobres, idosos e alcoólatras, na forma clássica da ineficaz). Como resultado, além da anemia macrocítica, com
anemia perniciosa. As alterações morfológicas do sangue e da megaloblastos na medula óssea e número de reticulócitos normal
medula óssea são similares, sendo conjuntamente conhecidas ou baixo, pode também ocorrer neutropenia, com neutrófilos
pela denominação de anemias megaloblásticas. Embora a anemia polissegmentados e moderada plaquetopenia.
seja a manifestação mais proeminente, essas doenças têm em
comum uma redução seletiva na síntese de DNA e,
consequentemente, as alterações se estendem a outras linhagens
hematopoéticas como leucócitos e plaquetas, e a outros locais
com grande proliferação celular como intestino delgado, língua e
útero.
A vitamina B12 ou cianocobalamina faz parte de uma família de
compostos denominados genericamente cobalaminas, enquanto
que a designação folato aplica-se coletivamente a uma família de
mais de uma centena de compostos.
Inter-relações metabólicas
FISIOPATOLOGIA de folatos e da vitamina
A hematopoese normal compreende intensa proliferação celular, B12, mostrando que a
carência desses nutrientes
que por sua vez implica a síntese de numerosas substâncias como
reduz a síntese de timidina
DNA, RNA e proteínas; em especial, é necessário que a quantidade
e, por isso, reduz a síntese
de DNA seja duplicada exatamente. Tanto os folatos como a de DNA, sem afetar a
vitamina B12 são indispensáveis para a síntese da timidina, um síntese de RNA e proteínas.
dos nucleotídeos que compõem o DNA, e a carência de um deles
tem como consequência menor síntese de DNA.
Os folatos participam dessa reação na forma de N5-N10- MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
metilenotetraidrofolato, que cede um radical -CH3 (metil) à A principal manifestação clínica é a anemia; apesar de
desoxiuridinamonofosfato (dUMP), transformando-a em plaquetopenia e neutropenia ocorrerem com frequência,
timidinamonofosfato (dTMP) que, por sua vez, será incorporada sangramento ou infecções secundárias à plaquetopenia são pouco
ao DNA. A vitamina B12 participa indiretamente nesta reação, comuns. A deficiência da síntese de DNA afeta a divisão celular em
funcionando como coenzima da conversão de homocisteína em outros tecidos em que há rápida multiplicação, em especial os
metionina, transformando simultaneamente o 5- epitélios do tubo digestivo, originando queixas de diarreia, glossite
metiltetraidrofolato em tetraidrofolato, a forma ativa de folato (ardência, dor e aparência vermelha da língua, “língua careca”),
que participa da síntese de timidina. Na ausência de vitamina B12, queilite e perda do apetite. Pode ser encontrada discreta a
o folato vai se transformando em 5-metiltetraidrofolato, uma moderada esplenomegalia.
forma de transporte do folato, inútil para síntese da timidina e do A deficiência de vitamina B12 determina ainda uma degeneração
DNA. do cordão posterior da medula espinal, cuja base bioquímica seria
A síntese inadequada de DNA tem como consequência a carência de S-adenosil-metionina resultante de menor
modificações do ciclo celular, retardo da duplicação e defeitos no suprimento de metionina, pelo bloqueio da mesma reação
reparo do DNA. Por outro lado, a síntese de RNA não está homocisteína-metionina discutida anteriormente. O quadro
alterada, pois a timidina não é necessária para sua síntese; não há, resultante, denominado “degeneração combinada subaguda da
portanto, redução da formação de proteínas citoplasmáticas e do medula espinhal”, inclui sensações parestésicas dos pés
crescimento celular. (formigamento ou picada de agulhas), pernas e tronco, seguidas
Devido principalmente à lentidão da divisão celular na fase S do de distúrbios motores, principalmente dificuldades da marcha,
ciclo celular, há aumento do número de células com quantidade redução da sensibilidade vibratória, comprometimento da
de DNA entre o diploide e o tetraploide. Estudos citogenéticos sensibilidade postural, marcha atáxica, sinal de Romberg, e
revelam exuberantes alterações cromossômicas, como gaps, comprometimentos das sensibilidades termoalgésica e dolorosa
fraturas e separação prematura do centrômero. A maioria dessas “em bota” ou “em luva”. O envolvimento do cordão lateral é
células com lesões cromossômicas graves não é capaz de menos frequente, manifestando-se por espasticidade e sinal de
completar a divisão celular, sendo prematuramente destruídas na Babinski. A tríade de fraqueza, dor na língua e parestesias é
medula óssea. Essa desorganização cromossômica é reversível clássica na deficiência de vitamina B12, mas os sintomas iniciais
após o tratamento adequado. variam muito.
O quadro morfológico do sangue periférico e da medula óssea é
idêntico nas deficiências de folatos ou de vitamina B12:
São também comuns as manifestações mentais como a depressão contra células parietais e contra fator intrínseco, acloridria, níveis
e os déficits de memória, disfunção cognitiva e demência, além de séricos reduzidos de pepsinogênio e níveis elevados de gastrina.
distúrbios psiquiátricos graves como alucinações, paranoias, Por outro lado, na gastrite do tipo B, geralmente causada pela
esquizofrenia. infecção pelo H. pylori, não ocorrem os fenômenos de
A deficiência de folatos não causa envolvimento do sistema autoimunidade e os níveis de gastrina são reduzidos pela
nervoso, mas a deficiência durante a gravidez aumenta a destruição das células do antro.
incidência de defeitos de tubo neural em recém-nascidos. • Transporte e metabolismo. No plasma, a vitamina B12 é
transportada conjugada a duas proteínas denominadas
CAUSAS DE CARÊNCIAS transcobalamina I e II. A maior parte da vitamina B12 do plasma
Como a anemia por carência de ferro, as anemias por deficiência (cerca de 80%) está ligada à transcobalamina I, que tem um turn-
de folatos ou de vitamina B12 resultam de uma disparidade entre over muito lento, sendo essencialmente inacessível aos tecidos;
a disponibilidade e a demanda. A anemia é o último estádio das por isso, deficiência congênita de transcobalamina I é associada a
deficiências nutricionais, surgindo quando as reservas orgânicas baixos níveis séricos de vitamina B12, sem manifestações clínicas.
esgotaram-se em virtude do balanço negativo. O tempo Por outro lado, a pequena porcentagem de vitamina B12 ligada à
necessário para que a anemia se manifeste depende da transcobalamina II tem um turn-over muito rápido, e sua ausência
magnitude dos depósitos e do grau de desequilíbrio. Assim, no congênita produz uma forma rara de anemia megaloblástica grave
caso da vitamina B12, os depósitos são habitualmente suficientes com níveis séricos de vitamina B12 normais.
para manter a eritropoese por dois a cinco anos após haver • Outras causas. A gastrectomia total leva à carência de vitamina
cessado a absorção, enquanto que as reservas de folatos são B12, em um prazo em torno de cinco anos, se o paciente não
suficientes apenas para três ou quatro meses. receber suplementação da vitamina por via parenteral para
Genericamente, as causas de carências podem ser classificadas manter o depósito. A deficiência na gastrectomia parcial ou
em: a) menor ingestão do nutriente; b) menor absorção intestinal; subtotal ocorre em torno de 10-40%, e o grau de deficiência
c) defeitos do transporte ou metabolismo; d) aumento da depende do tipo de cirurgia. Pode haver associação com anemia
excreção ou das perdas; e) aumento das necessidades fisiológicas ferropriva (anemia dimórfica) e com isso mascarar as alterações
ou patológicas. megaloblásticas. Pacientes com obesidade mórbida, tratada
cirurgicamente com curto-circuito gástrico, também são
Causas de carência de vitamina B12 ou cobalamina „ candidatos à deficiência. Pessoas idosas são muito suscetíveis à
• Dieta. A vitamina B12 existe primariamente em alimentos de deficiência de vitamina B12, devido à dissociação inadequada da
origem animal, não sendo encontrada em frutas e vegetais. As cobalamina da proteína alimentar resultante de alterações
necessidades diárias são ínfimas (0,5-2 g/dia), e por isso a carência gástricas com atrofia parcial da mucosa, mas com pouco ou
de vitamina B12 de origem alimentar é excepcional: somente nenhum sinal clínico, embora cerca de 10-14% têm baixos níveis
ocorre em vegetarianos estritos após vários anos sem ingerir séricos de vitamina B12 e 50-75% dos indivíduos desse grupo têm
alimento de origem animal. Apesar de ser frequentemente deficiência metabólica e devem ser tratados com baixas doses de
referida, não há demonstração conclusiva da ocorrência regular vitamina B12 oral. Doenças do íleo terminal como espru, doença
da deficiência de vitamina B12 em idosos. „ celíaca, enterite regional e ressecção ileal podem comprometer a
• Absorção. A absorção de vitamina B12 ocorre absorção da vitamina, assim como numerosas drogas (PAS,
predominantemente no íleo terminal e depende de uma colchicina, colestiramina, neomicina), mas raramente chegam a
glicoproteína produzida pelas células parietais da mucosa gástrica, provocar anemia importante por deficiência de vitamina B12.
denominada “Fator Intrínseco” (FI). O complexo de vitamina Causas raras de carência são a deficiência congênita de fator
B12/FI é captado pelos receptores das células epiteliais do íleo e a intrínseco, e o defeito ou ausência congênita de receptores para
vitamina B12 é absorvida. Qualquer alteração desses passos da fator intrínseco nas células ileais (síndrome de Imerslund-
absorção leva à deficiência de vitamina B12. O tipo mais comum Gräsbeck). Na “síndrome da alça cega” ocorre proliferação de
de carência de vitamina B12 é representado pela anemia bactérias que consomem a vitamina B12 em segmentos intestinais
perniciosa, doença de natureza provavelmente imunológica, em deixados fora do trânsito após cirurgia ou quando há divertículos
que ocorre atrofia e inflamação crônica da mucosa gástrica intestinais mútiplos, fístulas ou hipomotilidade, casos em que a
(gastrite atrófica), levando à ausência concomitante de fator absorção da vitamina pode ser normalizada com o uso de
intrínseco e da secreção de ácido clorídrico, com consequente má antibióticos como a tetraciclina. Níveis séricos sub-ótimos de
absorção da vitamina B12. O diagnóstico de anemia perniciosa vitamina B12 têm sido descritos em 20-30% dos pacientes com
implica a presença de anemia megaloblástica por carência de Aids, mais comumente naqueles que usam zidovudine, porém sem
vitamina B12 associada à gastrite atrófica, demonstrada por manifestações clínicas evidentes, provavelmente por má
exame anatomo-patológico obtido por biópsia endoscópica. absorção.
Aparentemente a gastrite evolui por muitos anos (10 a 30 anos)
antes do aparecimento dos sintomas clínicos da deficiência de Causas de carência de folatos
vitamina B12. Existem dois tipos básicos de gastrite (reação A causa mais comum de carência de folatos é representada por
inflamatória crônica da mucosa gástrica, com importante dieta inadequada, por vezes associada a uma condição em que
infiltrado de plasmócitos e linfócitos, associada à atrofia da aumentam as necessidades diárias, habitualmente a gravidez ou o
mucosa): gastrite do tipo A (autoimune), que envolve o fundo e o crescimento. De fato, a anemia megaloblástica da gravidez e a
corpo do estômago, poupando o antro, associada à anemia anemia megaloblástica do lactente são os dois tipos mais
perniciosa; gastrite do tipo B (não imune), que compromete o frequentes dessa deficiência. Outras causas comuns são
fundo, o corpo e o antro. A gastrite do tipo A, além de estar alcoolismo, idade avançada, doenças intestinais associadas à má
associada à anemia perniciosa, envolve a presença de anticorpos
absorção, pobreza e desnutrição. Em geral, deficiências de folato eritropoese estar aumentada em até dez vezes nesses pacientes.
são resultantes da associação de mais de um mecanismo. A carência de folatos pode se superpor ao quadro de anemia
• Dieta. O folato existe nos alimentos sob formas complexas, hemolítica crônica, agravando as manifestações clínicas. A
conjugado com múltiplos resíduos de ácido glutâmico formando suplementação com ácido fólico nas doses de 5 mg/dia é
os “poliglutamatos”, que são removidos pela enzima conjugase da primordial para manutenção da eritropoese e diminuição das
mucosa intestinal, deixando mono e diglutamatos que são necessidades transfusionais. „
absorvidos pelo jejuno proximal. Parte do folato plasmático é • Erros inatos. Os erros inatos do metabolismo do folato são raros
excretado na bile e reabsorvido no jejuno. Uma proporção e compreendem a má absorção do folato, a deficiência de
considerável do folato do organismo está envolvida nesta metilenotetraidrofolato e deficiência de glutamato
circulação êntero-hepática, e por isso os distúrbios do trânsito formiminotransferase.
intestinal, que diminuem a quantidade absorvida,
facilmente induzem carência de folato.
As principais fontes de folato na alimentação são os
vegetais frescos, fígado e frutas; o cozimento
excessivo pode remover ou destruir grande
porcentagem do folato dos alimentos. As
necessidades mínimas diárias são cerca de 50 µg na
criança e 100 µg no adulto, e a quantidade mínima
recomendada na dieta do adulto é de 400 µg. Como
as reservas do organismo são de cerca de 5.000 µg,
quando a dieta é carente, os níveis de folato sérico
começam a cair em duas semanas e a anemia
megaloblástica desenvolve-se após cerca de três a
quatro meses.
A carência alimentar do folato é observada em grupos
de risco, como em indivíduos que subsistem com
dietas inadequadas devido à pobreza e desnutrição,
sendo geralmente acompanhada de deficiência de
ferro e proteína, em alcoólatras, em idosos, DIAGNÓSTICO
principalmente os institucionais, que se alimentam apenas de chás Para o diagnóstico correto, em geral, três são as abordagens
e bolachas, em indivíduos que se submetem a dietas rigorosas, e nesses pacientes: a primeira é reconhecer se a anemia
em crianças, em especial entre 2 a 18 meses de idade. megaloblástica está presente; a segunda é distinguir entre as
• Absorção. A má absorção de folatos pode ser causada por deficiências de vitamina B12 e folato; e a terceira é a
doenças intestinais crônicas com diarreia, como a doença celíaca, determinação da causa.
o espru tropical e a enterite regional, drogas como os
anticonvulsivantes (difenil-hidantoínas, primidona, Quadro clínico
carbamazepina, fenobarbital) e álcool. „ As manifestações megaloblásticas das deficiências de vitamina
• Transporte e metabolismo. Numerosas drogas inibem a di- B12 e de folatos são clinicamente indistinguíveis, a não ser pela
hidrofolato redutase, como metotrexate (antineoplásico), história recente (ao redor de seis meses) na deficiência de folato e
pirimetamina e trimetoprim (em associação com sulfametoxazol). mais prolongada (três anos ou mais) na deficiência de vitamina
Doses elevadas ou prolongadas de pirimetamina e trimetoprim B12. Além das manifestações de anemia (fraqueza, palidez,
podem resultar em efeitos tóxicos, o que não ocorre no dispneia, claudicação intermitente) são importantes os sintomas
tratamento de infecções com as dosagens habituais. „ gastrintestinais e as alterações da boca e língua. Graus variados de
• Aumento das necessidades. A demanda de ácido fólico aumenta palidez, com pele cor de limão (combinação de palidez com leve
em pessoas com intensa proliferação celular e a síntese de DNA, icterícia) são comuns. Uma das manifestações clássicas da anemia
tais como: portadores de dermatites crônicas exfoliativas, perniciosa é a perda de papilas da língua, que fica lisa, brilhante e
anemias hemolíticas crônicas, neoplasias, gravidez e nos dois intensamente vermelha (“língua careca”). Associação com outras
primeiros anos de vida. carências vitamínicas pode mostrar queilite angular, dermatite,
Excluindo a má nutrição em crianças, a causa mais comum de sangramento de mucosas, osteomalacia e infecções crônicas. Os
anemia megaloblástica é a deficiência de folatos da gravidez, que casos mais graves são acompanhados de sinais de insuficiência
ocorre em geral no 3o trimestre, provocada por uma dieta pobre cardíaca. De importância é o quadro neurológico que acompanha
capaz de suprir as demandas normais, mas que se torna a deficiência de vitamina B12 e que auxilia na diferenciação.
insuficiente quando aumentam as necessidades. Por ser um Queixas de outras doenças autoimunes devem orientar a atenção
micronutriente crítico na neurogênese, recomenda-se que a para anemia perniciosa.
suplementação com ácido fólico na dose de 1 mg/dia a partir do
primeiro mês da gravidez, qualquer que seja o nível Avaliação laboratorial
socioeconômico da paciente. Sangue periférico. Os principais achados são anemia macrocítica,
Os portadores de anemia hemolítica crônica grave, principalmente leucopenia, trombocitopenia, acompanhados de anisocitose,
as congênitas (talassemia, anemia falciforme, esferocitose macrocitose com macro-ovalócitos, poiquilocitose, e granulócitos
hereditária), são propensos à depleção de folato em virtude da polissegmentados. A contagem de reticulócitos é normal ou baixa,
mas o cálculo do índice de reticulócitos corrigido indica anemia uma anemia megaloblástica com baixos níveis de vitamina B12. Se
hipoproliferativa. Em resumo, tem-se como manifestação uma houver sinais de gastrite atrófica, o diagnóstico provável é de
pancitopenia associada à macrocitose. No entanto, a macrocitose anemia perniciosa, e a execução de outros exames somente é
pode estar mascarada pela coexistência de carência de ferro, necessária se houver dúvidas ou se o quadro for atípico. O teste
talassemia ou anemia de doença crônica, que são doenças que de Schilling avalia indiretamente a absorção de vitamina B12 e
produzem microcitose e hipocromia, e nesses casos pode-se consiste na ingestão oral da vitamina B12 marcada, seguida de
observar anemia dimórfica, com duas populações de células. As medida da vitamina B12 radiativa excretada na urina no período
principais alterações morfológicas no esfregaço do sangue de 24 horas após a ingestão oral: baixa excreção significa que
periférico são: a) eritrócitos: macro-ovalócitos, poiquilocitose com pouca vitamina foi absorvida. A pesquisa de anticorpos antifator
esquistócitos, dacriócitos, corpúsculos de Howell-Jolly, anel de intrínseco e anticélula parietal, e a ausência de produção de ácido
Cabot, eritroblastos, e até megaloblastos; b) granulócitos: clorídrico pelo estômago após estímulo máximo (acloridria)
hipersegmentação nuclear, com presença de neutrófilos contribuem para confirmar o diagnóstico de anemia perniciosa.
polissegmentados reconhecidos por no mínimo 5% de neutrófilos Outros exames endoscópicos e radiológicos do tubo digestivo
com cinco lobos (regra dos 5) ou um neutrófilo com seis ou mais auxiliam no diagnóstico das afecções ileojejunais.
lobos; c) leucócitos: leucopenia com neutropenia, podendo os
leucócitos chegar até abaixo de 2.000/µL, embora seja rara a TRATAMENTO
ocorrência de infecções graves; d) plaquetas: trombocitopenia A mais importante medida no tratamento dessas anemias consiste
com 30.000 a 100.000 plaquetas/µL. em identificar a causa e removê-la, se possível. Só
Medula óssea. O quadro citológico medular é muito excepcionalmente há necessidade de tratar esses pacientes com
característico, e quando a punção é realizada precocemente, transfusões sanguíneas, uma vez que a reposição adequada do
antes do uso de medicamentos com vitamina B12 ou folatos, o nutriente é acompanhada de pronta resposta, com rápida
diagnóstico de anemia megaloblástica pode ser firmado com normalização hematológica. Nos casos em que há concomitância
segurança. Há intensa hiperplasia da medula óssea, com com carência de ferro, o tratamento deve ser simultâneo, caso
acentuada hiperplasia da linhagem eritroide, que é composta por contrário não haverá recuperação completa dos níveis de
megaloblastos: eritroblastos mais volumosos que o normal, com hemoglobina.
núcleos com estrutura mais granular e menos condensada. Além
disso, há grandes quantidades de aberrações citológicas, como Tratamento da carência de vitamina B12 „
megaloblastos gigantes ou com núcleos polilobulados, A anemia perniciosa deve ser tratada com vitamina B12 por via
binucleados, contendo múltiplos micronúcleos, pontes parenteral por toda a vida, uma vez que o defeito de absorção é
citoplasmáticas e nucleares, e cariorréxis. As alterações na série irreversível. „
branca são representadas principalmente por mielócitos e Existem numerosos esquemas terapêuticos que se baseiam na
metamielócitos de volume aumentado, contendo núcleo gigante. noção de recompor os depósitos com doses iniciais repetidas,
O ferro medular está aumentado em virtude da eritropoese seguidas de injeções periódicas a intervalos regulares para suprir
ineficaz e geralmente há grande número de sideroblastos, mas só as necessidades. Por exemplo, injeções de 5 mg semanais no
raramente há sideroblastos em anel. primeiro mês, seguidas de injeções de 5 mg mensais. „
Dosagem das vitaminas. Esses testes compreendem as dosagens Pacientes idosos com atrofia gástrica e má absorção por
de vitamina B12 sérica, folato sérico e folato eritrocitário. Na dificuldade de dissociação da vitamina B12 do alimento e
deficiência de folatos, tanto o folato sérico quanto eritrocitário vegetarianos beneficiam-se preventivamente com doses orais da
estão diminuídos, enquanto que os níveis de vitamina B12 estão vitamina em torno de 50 µg/ dia (doses maiores podem ser usadas
normais ou aumentados. O folato eritrocitário é mais acurado na sem efeitos indesejáveis).
avaliação dos depósitos de folatos, porque não sofre influência de
drogas ou dieta, mas tem caído em desuso. A mensuração do Tratamento da carência de folato „
folato sérico também deve ser analisada com cautela, porque Correção da dieta, aumentando a ingestão de verduras. „
pode apresentar dados falso-positivos ou falso-negativos. Na Ácido fólico por via oral na dose de 5 mg/dia até que a causa da
deficiência de vitamina B12 os níveis de cobalamina estão carência tenha sido removida. A quantidade de folato absorvida
geralmente baixos e os de folato normais. Entretanto, níveis quando se usam doses terapêuticas é geralmente suficiente para
subnormais ou mesmo normais de vitamina B12 podem ocorrer tratar a carência, mesmo quando há defeito de absorção. O risco
em indivíduos com carência, em especial idosos. do tratamento é a possibilidade de haver resposta (parcial) em
Pesquisa de metabólitos. Nos casos de dúvida diagnóstica, a pacientes com anemia megaloblástica por deficiência de vitamina
dosagem sérica de ácido metilmalônico e de homocisteína total B12. Nesses casos, o quadro hematológico pode melhorar, mas a
pode auxiliar na diferenciação das duas anemias megaloblásticas. doença neurológica pode se exacerbar. „
Ambos os metabólitos estão aumentados em cerca de 95% dos Em muitos casos a causa da carência é autolimitada, como na
casos de deficiência de vitamina B12, enquanto que o aumento de gravidez e em prematuros; em outros, a carência de folatos de
homocisteína (sem aumento do ácido metilmalônico) ocorre em origem nutricional tem grande tendência a recair, como em
91% na deficiência de folatos. No entanto, o alto custo desses alcoólatras e em pacientes com doença celíaca. „
exames faz com que sejam reservados para situações de dúvidas Tratamento permanente é necessário em pacientes que têm
diagnósticas, sendo dispensados quando o diagnóstico pode ser doenças que aumentam o consumo de folatos, como anemias
firmado com base nos testes rotineiros. hemolíticas crônicas e pacientes submetidos à diálise.
Identificação da causa. A forma mais direta e simples,
atualmente, de identificar a anemia perniciosa é a realização de
endoscopia gástrica com biópsia nos pacientes em que se revela
ANEMIA PERNICIOSA quantidade esta que se correlaciona com o estoque total de ferro
• Forma mais comum de anemia megaloblástica por carência de no organismo. Por isso, a dosagem de ferritina plasmática é um
vitamina B12. „ exame importante para avaliar os depósitos de ferro do
• Gastrite atrófica com ausência de produção de ácido clorídrico e organismo.
de fator intrínseco, causada por mecanismo autoimune. „ A outra forma de depósito de ferro no organismo é a
• Várias outras manifestações de autoimunidade: vitiligo, hemossiderina, que corresponde a um agregado heterogêneo de
anticorpos antifator intrínseco, anticorpos anticélulas parietais, ferro, componentes do lisossomo e outros produtos da digestão
doença de Graves, tireoidite de Hashimoto, hipotireoidismo. „ intracelular. Ela restringe-se aos macrófagos da medula óssea, do
• Anemia macrocítica, glossite, doença neurológica progressiva fígado e baço, representando pequena fração do ferro de estoque
(perda de sensibilidade proprioceptiva e vibratória, dificuldade à que pode, todavia, estar dramaticamente aumentada na
marcha, sinal de Romberg). „ sobrecarga de ferro.
• Uso abusivo de polivitamínicos tem levado a aumento da A destruição de hemácias senescentes ocorre nos macrófagos,
proporção de casos em que os sintomas iniciais são principalmente do baço e medula óssea. Modificações
predominantemente neurológicos, com manifestações bioquímicas presentes na membrana, decorrentes do
hematológicas escassas ou ausentes. „ envelhecimento eritrocitário, são sinais essenciais para que o
• Diagnóstico: anemia megaloblástica (sangue + medula óssea) + macrófago reconheça quais células devem ser eliminadas. O ferro
baixo nível de vitamina B12 no sangue + gastrite atrófica dos depósitos e aquele liberado pela destruição das hemácias são
demonstrada à endoscopia digestiva alta com biópsia. „ reutilizados para a síntese de hemoglobina. Dessa forma, o ferro é
• Tratamento: vitamina B12 injetável durante toda a vida. transferido dos depósitos, principalmente os macrófagos, para os
eritroblastos em desenvolvimento. Essa mobilização do ferro dos
ANEMIA FERROPRIVA depósitos torna possível a reutilização 25 a 30 mg de ferro por dia,
METABOLISMO DO FERRO o que corresponde à necessidade diária de ferro para a
O ferro faz parte do grupo heme, que integra numerosas eritropoese.
proteínas do organismo, como citocromos, citocromo oxigenase, Os depósitos de ferro da medula óssea podem ser visualizados por
peroxidases, catalase, mioglobina e hemoglobina. Sendo um metal reação citoquímica específica, que também revela um a três
pesado, o ferro livre é quase insolúvel e bastante tóxico, e por isso grânulos no citoplasma de eritroblastos (denominados
durante todo o seu ciclo metabólico está sempre ligado a “sideroblastos”). Esses depósitos medulares e os sideroblastos
proteínas de transporte ou funcionais. O homem adulto possui desaparecem por completo na deficiência de ferro.
cerca de 3-4 g de ferro (ou seja, 35- 45 mg de ferro/kg de peso),
quantidade em média 30-40% menor em mulheres em idade fértil DIETA E ABSORÇÃO DE FERRO
em consequência à perda periódica de sangue na menstruação. A absorção intestinal é um processo finamente regulado em
Mais de dois terços do conteúdo de ferro do organismo encontra- resposta às alterações da necessidade de ferro pelo corpo. Em
se incorporado à molécula de hemoglobina. Assim, a hemoglobina geral é absorvido 0,5-2,0 mg/dia, quantidade que compensa as
é a principal forma funcional de ferro no organismo e também seu perdas, principalmente resultantes da descamação de células,
principal depósito, e por isso a anemia é a manifestação clínica crescimento e, no caso das mulheres, das perdas sanguíneas
mais proeminente da carência de ferro. Aproximadamente 1 mL menstruais. Entretanto, essa absorção depende do depósito
de concentrado de hemácias contém 1 mg de ferro. No homem, corporal de ferro, da hipóxia e do ritmo de eritropoese. A
cerca de 2 g de ferro estão presentes na hemoglobina, enquanto deficiência de ferro, por exemplo, é capaz de estimular a absorção
que, em mulheres, esse valor corresponde a 1,7 g. de qualquer forma de ferro, embora seja menos eficiente no
A mioglobina tem uma estrutura muito semelhante à estímulo de absorção do ferro heme.
hemoglobina, sendo no entanto um monômero e não um A quantidade de ferro da dieta é bastante variável, na
tetrâmero, e funciona como uma proteína para depósito de dependência de sua composição; os alimentos mais ricos em ferro
oxigênio nos músculos, de onde o O2 é liberado durante o são fígado, carne e alguns vegetais como feijão e espinafre.
exercício. Presente em todas as células dos músculos esquelético Fitatos, oxalatos e fosfatos formam complexos com o ferro,
e cardíaco, o organismo humano contém um total de cerca de 300 retardando a sua absorção, enquanto substâncias redutoras como
mg de ferro na mioglobina. As demais formas de ferro funcional hidroquinona, ácido ascórbico, sorbitol, cisteína, lactato, piruvato
nos tecidos (citocromos e enzimas) representam 0,5% do total de e frutose facilitam a absorção de ferro.
ferro do organismo. A facilidade com que o tubo intestinal absorve o ferro depende da
Além da hemoglobina, o organismo armazena ferro em diferentes forma como ele está presente no alimento. O ferro na forma
tecidos sob formas de ferritina e hemossiderina. A quantidade de heme, presente em carne e fígado, representa um terço do ferro
ferro nos depósitos é muito variável, mas equivale a 800 a 1.000 da dieta, sendo muito mais facilmente absorvido. Essa absorção é
mg em um homem adulto, e cerca de 300 mg na mulher adulta. realizada por uma proteína ainda não completamente
A ferritina, proteína presente no citoplasma da maioria das identificada, a HCP1 (Heme Carrier Protein 1). Já a absorção do
células, tem importante papel na estocagem do ferro (estoca até ferro dos vegetais (ferro inorgânico ou ferro não heme) é menos
4.500 átomos de ferro). É composta por 24 subunidades, com dois eficiente, dependendo bastante de vários fatores, como a
subtipos denominados H (Heavy ou Heart) e L (Light ou Liver), presença de outras substâncias (fosfatos, oxalatos, aminoácidos
codificados por genes localizados nos cromossomos 11q e 19q, livres) e produção de ácido clorídrico pelo estômago.
respectivamente. A ferritina H é pouco maior que a ferritina L e Uma dieta bem equilibrada contém 10-20 mg de ferro por dia, dos
tem ação ferroxidase importante. A maior parte da ferritina quais cerca de 10% é absorvido. Contudo, o controle da absorção
sintetizada é usada na estocagem do ferro, entretanto pequena de ferro pelo epitélio intestinal é fundamental para a regulação
quantidade é secretada e liberada no soro (ferritina sérica), dos estoques, pois a sua excreção não é fisiologicamente
regulada. O ferro é absorvido na borda em escova das células outro lado, na presença de deficiência de ferro, anemia ou
epiteliais dos vilos intestinais do duodeno. Para sair do lúmen hipóxia, situações em que a hepcidina encontra-se diminuída, a
intestinal e atingir o plasma, o ferro precisa atravessar duas expressão de ferroportina e a liberação de ferro das células
membranas da célula epitelial: a membrana apical e a basolateral. intestinais, do fígado e dos macrófagos está aumentada. „
O transporte do ferro pela membrana apical do enterócito é • Regulação hematopoética, que faz com que a absorção seja
realizado pelo DMT1, capaz de transportar outros metais modulada de acordo com as necessidades da eritropoese. A
divalentes (zinco, cobre, cobalto). Como o ferro inorgânico está eritropoese acelerada aumenta a absorção de ferro,
primariamente presente na dieta na forma oxidada (Fe3+, ferro independentemente do depósito corporal de ferro. Esse processo
férrico) não biodisponível, para ser transportado pelo epitélio parece ser mediado pela Eritropoetina (Epo) e pelo GDF15
intestinal necessita ser reduzido a Fe2+ (ferro ferroso) pela DcytB (Growth Differentiation Factor 15). A Epo suprime a expressão da
(Duodenal cytochrome B), redutase férrica associada à membrana hepcidina pela regulação negativa das vias STAT3 e SMAD. O
apical do enterócito. A expressão dessas proteínas, DcytB e DMT1, GDF15 também tem ação supressora da expressão da hepcidina e
é acentuadamente influenciada pela deficiência de ferro. atua nos estágios finais da eritropoese.
Uma vez no citoplasma do enterócito, o ferro tem dois possíveis
caminhos a seguir: pode ser armazenado como ferritina na própria TRANSPORTE DE FERRO
célula ou pode atravessar a membrana basolateral para chegar até Após atravessar o enterócito, o ferro chega ao plasma onde se liga
o plasma. A proporção de ferro que segue cada uma das vias à transferrina. A transferrina pode receber ferro dos enterócitos e
(absorção para o plasma ou armazenamento no enterócitos como dos depósitos, e pode liberá-lo para os depósitos, para os
ferritina) é determinada quando a célula é formada nas criptas do eritroblastos, para o músculo, para a síntese de mioglobina, ou
epitélio intestinal. Nas células das criptas, a proteína HFE (cujas para diferentes tecidos para a síntese de enzimas e citocromos. A
mutações Cys282Tyr e His63Asp estão relacionadas à captação do ferro ligado à transferrina é intermediada pelo TfR,
etiopatogenia da hemocromatose hereditária) e o receptor de que pode ocorre sob duas formas: TfR1 e TfR2. O TfR1 é
transferrina (TfR) formam um complexo HFE-TfR que modula a amplamente expresso na maioria das células, enquanto o TfR2 é
capacidade absortiva do enterócito que futuramente irá migrar restrito a hepatócitos, células da cripta duodenal e células
para os vilos intestinais e se tornar uma célula de absorção. Um eritroides, sugerindo que o TfR2 desempenhe um papel mais
dos moduladores da absorção de ferro é a dieta: quando a dieta é especializado no metabolismo do ferro.
rica em ferro, e consequentemente a quantidade de ferritina no Desta forma, o compartimento plasmático de transporte de ferro
interior do enterócito está elevada, o complexo HFE-TfR inibe a tem papel central no intercâmbio de ferro entre os diferentes
capacidade absortiva de ferro do enterócito. Esse fenômeno é locais, e por isso as medidas laboratoriais realizadas no plasma ou
conhecido como bloqueio mucoso. soro (concentração de ferro sérico, de transferrina, de ferritina e
Entretanto, nem todo ferro captado pelo enterócito é realmente saturação da transferrina) dão importantes informações sobre o
transportado ao plasma. Se o ferro permanecer na forma de metabolismo do ferro. Aproximadamente um terço da capacidade
ferritina no enterócito, ele será perdido quando essa célula de ligação ao ferro da transferrina é ocupada pelo ferro, e o ferro
morrer e for descamada; dessa forma, o ferro não será ligado a ela se renova no mínimo dez vezes por dia.
“efetivamente” absorvido. Alternativamente, o ferro do
citoplasma do enterócito pode atravessar a barreira basolateral, ENTREGA DO FERRO AOS TECIDOS
pela ação coordenada de duas proteínas: a ferroportina e a A ligação do TfR1 com a transferrina carregada de ferro
hefaestina, duas proteínas de membrana. desencadeia a invaginação da membrana celular, mediada pela
A ferroportina é o único exportador celular de ferro, tem papel clatrina, e formação de endossomos contendo o complexo
central na homeostase sistêmica desse metal e está presente na transferrina/TfR1, seguida de alterações conformacionais das
mucosa duodenal, nos macrófagos, hepatócitos e trofoblastos proteínas, liberação e redução do ferro para Fe2+. O Fe2+ é então
sinciciais da placenta. A outra proteína de membrana, a transportado através da membrana endossomal pela DMT1. No
hefaestina, tem a função de oxidar o Fe2+ a Fe3+, permitindo seu citoplasma, o ferro é incorporado à protoporfirina para a síntese
transporte pela transferrina. do heme (nos eritroblastos) ou retido na forma de estoque
A absorção de ferro é regulada em três pontos principais: (ferritina/hemossiderina nas células não eritroides). Nesse meio
• Modulação de absorção provocada pela quantidade de ferro tempo, os endossomos retornam as proteínas, apotransferrina e
ingerida, chamada bloqueio mucoso; no entanto, com grandes TfR1, à superfície celular para serem reutilizadas.
doses de ferro, como doses farmacológicas ou intoxicações
exógenas, esse bloqueio é superado, e a quantidade absorvida é HOMEOSTASE INTRACELULAR DO FERRO
proporcional à ingerida. O sistema regulatório IRP/IRE (Iron Regulatory Protein/ Iron
• Regulação pelo estoque de ferro pela hepcidina, de forma que a Responsive Element) permite às células ajustar rapidamente a
sobrecarga de ferro reduz a absorção, enquanto que a carência concentração do ferro citoplasmático e o funcionamento
promove maior absorção de ferro. Sabe-se, hoje, que a hepcidina, adequado dos componentes celulares dependentes de ferro.
peptídeo secretado pelo fígado, regula a taxa de absorção do As IRP1 e IRP2 são capazes de registrar a concentração
ferro. Essa regulação se faz pelo controle de expressão da citoplasmática de ferro e regular a expressão pós-transcripcional
ferroportina. A ligação da hepcidina à ferroportina resulta na de genes relacionados ao metabolismo deste metal, otimizando a
internalização desta última e perda de sua função. A ferroportina utilização do ferro celular. A IRP1 é uma forma mais ativa de
presente em macrófagos e fígado também é alvo da hepcidina. aconitase (proteína que contém agrupamento Fe-S) que a IRP2.
Assim, em situações de sobrecarga de ferro ou inflamação, Essas proteínas interagem com IRE, que são estruturas hairpin
observa-se elevação da hepcidina, e a liberação de ferro a partir conservadas, localizadas nas regiões não traduzidas do RNA
de enterócitos, fígado e macrófagos encontra-se reduzida. Por
mensageiro (mRNA) da ferritina, do TfR e de outras proteínas, formado pelo somatório de eritroblastos, reticulócitos e
aumentando a captação de ferro ou diminuindo seu sequestro. hemácias) é o maior compartimento funcional de ferro do
A ligação das IRPs às IREs presentes na região 5’ não traduzida de organismo humano, contendo de 60 a 70% do ferro total. Desta
uma determinada proteína bloqueia a tradução do mRNA. Ao forma, a necessidade de ferro do éritron tem influência
contrário, sua ligação às IREs da porção 3’ não traduzida estabiliza dominante na sua deficiência. O restante do ferro corporal está
o mRNA evitando a degradação da proteína. distribuído nos hepatócitos e nos macrófagos do Sistema
Reticuloendotelial (SRE), que atuam como órgão de depósito. O
EXCREÇÃO E PERDAS DE FERRO SRE é responsável por fagocitar células senescentes, catabolizar
Não existe mecanismo fisiológico de excreção de ferro, que é Hemoglobina (Hb) para restaurar o ferro e devolvê-lo à
conservado pelo organismo com grande eficiência. transferrina para nova utilização. Apesar da baixa capacidade
Aproximadamente 1 mg de ferro (menos de 1 milésimo do total absortiva do duodeno, o balanço de ferro no organismo é
do organismo) é perdido diariamente, por via fecal (ferro presente regulado a partir da absorção intestinal. Como não existe uma via
nas células descamantes do epitélio), descamação da pele, do fisiológica de excreção de ferro, essa regulação é crítica.
epitélio urinário e perspiração. Em mulheres, a menstruação A deficiência de ferro surge a partir do desequilíbrio entre ingesta,
normal leva à perda de 30-60 mL de sangue por mês, absorção e situações de demanda aumentada ou perda crônica
correspondentes a cerca de 15-30 mg de ferro por mês. A (anemia ferropriva), sendo multifatorial.
gravidez, a lactação e o crescimento são outras formas fisiológicas Anemia ferropriva é bastante frequente em recém-nascidos,
de aumento das necessidades de ferro. crianças, adolescentes e mulheres em idade fértil, gestantes e
lactantes. Além de esses grupos apresentarem incremento na
Em condições normais, necessidade de ferro, sua ingestão média diária de ferro está
1-2 mg de ferro são abaixo da recomendada, mesmo em países desenvolvidos, em
absorvidos, e a mesma diferentes levantamentos populacionais.
quantidade perdida
O ferro dietético consiste de ferro heme e não heme. Ferro heme
diariamente. O ferro é
está presente em alimentos de origem animal e tem excelente
absorvido nos
enterócitos do duodeno biodisponibilidade para absorção intestinal; o ferro não heme é
e jejuno proximal, encontrado em produtos de origem vegetal e tem baixa
circulando no plasma biodisponibilidade. Assim, indivíduos que consomem produtos
ligado à transferrina. A animais têm menor risco de desenvolvimento de anemia
maior parte do ferro do ferropriva que vegetarianos.
organismo (80%) está Anemia ferropriva é o distúrbio do ferro mais frequente em
na forma de
adultos e está associada à perda crônica de sangue, tanto por
hemoglobina, e o
hipermenorreia ou menorragia (sítio mais frequente em mulheres
restante do ferro
funcional está em idade fértil), quanto pelo trato gastrointestinal (sítio mais
incorporado à frequente em homens e mulheres pós-menopausa). Cada mL de
mioglobina, aos sangue perdido resulta em redução de cerca de 0,5 mg de ferro.
citocromos e às
enzimas. Nos
hepatócitos e no sistema fagocítico mononuclear o ferro está estocado na
forma de ferritina e hemossiderina.

ANEMIA POR DEFICIÊNCIA DE FERRO


De acordo com a OMS, anemia é um problema de saúde pública
global, que afeta o estado de saúde, a capacidade laborativa e a
qualidade de vida de cerca de 2 bilhões de pessoas, cerca de um
terço da população mundial. A Deficiência de Ferro (DF) é
responsável por 75% de todos os casos de anemia.
Estima-se a prevalência de DF em até 45% das crianças até cinco
anos de idade, e de até 50% nas mulheres em idade reprodutiva.
Cerca de 500 milhões de mulheres e até 60% de gestantes
apresentam Anemia por Deficiência de Ferro (ADF), com
resultados negativos na qualidade de vida, no feto e no lactente.
Tanto em países subdesenvolvidos quanto em países
desenvolvidos, a DF advém principalmente de desigualdades
sociais. É muito mais prevalente em estratos sociais mais baixos,
nos grupos de menor renda, e na população menos educada. Esse
dado deve ser considerado na proposição de medidas CLÍNICA
populacionais de profilaxia e tratamento. Deficiência de ferro pode gerar redução da capacidade funcional
de vários sistemas orgânicos, estando associada à alteração do
FISIOPATOLOGIA E ETIOLOGIA desenvolvimento motor e cognitivo em crianças, redução da
O corpo de um indivíduo adulto bem nutrido e saudável contém produtividade no trabalho e problemas comportamentais,
de 3 a 4 g de ferro. O éritron (órgão descontínuo, porém único, cognitivos e de aprendizado em adultos. Em gestantes, aumenta o
risco de prematuridade, baixo peso, sendo responsável por 18% (ZPP). A taxa de elevação de ZPP é proporcional ao déficit de ferro
das complicações no parto e morbidade materna. na medula em relação à eritropoese, e a elevação de ZPP é o
As queixas costumam ser leves, pois a anemia se instala de primeiro marcador de eritropoese deficiente em ferro, embora
maneira insidiosa, gerando adaptação, e há pacientes não seja específico.
completamente assintomáticos. Pode-se observar palidez O fragmento solúvel do receptor de transferrina (sTfR) é derivado
cutaneomucosa, fadiga, baixa tolerância ao exercício, redução do do receptor de transferrina de todas as células, porém os
desempenho muscular, perversão alimentar ou pica (desejo e principais geradores desse fragmento são os eritroblastos e
consumo de substâncias não nutritivas como gelo, terra, sabão, reticulócitos. Assim, a concentração de sTfR reflete a atividade
argila), baqueteamento digital e coiloníquia (unhas em forma de eritropoética e se encontra elevada na DF. A razão do sTfR pelo
colher), atrofia das papilas linguais, estomatite angular e disfagia logaritmo da ferritina sérica (sTfR/log da ferritina) mostrou-se útil
(formação de membranas esofágicas ou síndrome de Plummer- na determinação de DF em pacientes com anemia de doença
Vinson). crônica. O principal problema da dosagem de sTfR é a falta de
padronização internacional que permita comparação entre os
DIAGNÓSTICO diferentes ensaios, o que impede sua ampla utilização.
O hemograma é um teste rápido, barato e amplamente disponível A dosagem plasmática ou urinária de hepcidina ainda não está
no rastreio de anemia ferropriva, mas incapaz de detectar DF sem comercialmente disponível, mas parece promissora em estudos
anemia. Frequentemente se observa hipocromia, microcitose, preliminares na distinção entre anemia ferropriva e anemia de
aumento do índice de Anisocitose Eritrocítica (RDW) e plaquetose, doença crônica. Seus níveis estão aumentados na presença de
além da presença de anisocitose, poiquilocitose, hemácias em inflamação e de estoques de ferro elevados, e reduzidos na
charuto, eliptócitos e reticulocitopenia ao exame microscópico. presença de DF.
A avaliação dos estoques de ferro na medula óssea a partir da
coloração do tecido medular pelo corante de Perls é considerada Alterações laboratoriais nos diferentes estágios de DF
padrão-ouro no diagnóstico de DF. É exame invasivo, de
reprodutibilidade e acurácia questionáveis, não tendo papel na
prática clínica diária. No mielograma observa-se hiperplasia
eritroblástica com displasias morfológicas na DF moderada até
hipoplasia das três linhagens da DF grave prolongada.
A dosagem da ferritina sérica está diretamente relacionada com a
concentração de ferritina intracelular e, portanto, com o estoque
corporal total. Deficiência de ferro é a única condição que gera
ferritina sérica muito reduzida, o que torna a hipoferritinemia
bastante específica deste diagnóstico. No entanto, valores
normais ou elevados de ferritina não excluem a presença de DF,
pois a ferritina é uma proteína de fase aguda, tendo sua
TRATAMENTO
concentração sérica aumentada na presença de inflamação,
O tratamento da DF consiste na reposição oral ou venosa. No
infecção, doença hepática e malignidade, mesmo na presença de
entanto, é mandatória a investigação da causa e sua pronta
DF grave.
correção; do contrário, a reposição é paliativa e tende a ser
Ferro sérico é a fração do ferro corporal que circula
ineficaz no longo prazo.
primariamente ligado à transferrina, e encontra-se reduzido na
DF. Varia com o ritmo circadiano e a alimentação e, por isso, a
Oral
coleta de sangue para sua dosagem deve ter horário e jejum
A dose ideal para tratamento é de 180 a 200 mg de ferro
padronizados. Está também reduzido na presença de inflamação,
elementar/dia para adultos e 1,5 a 2 mg de ferro elementar/dia
não devendo, desta forma, ser utilizado isoladamente para
para crianças, dividida em 3 a 4 tomadas, preferencialmente com
avaliação de DF.
o estômago vazio, ou 30 minutos antes das principais refeições. A
Transferrina, proteína transportadora específica de ferro, tem
forma ferrosa é mais bem absorvida que a férrica. Para pacientes
capacidade de ligar simultaneamente duas moléculas de ferro.
em uso de antiácidos e inibidores da bomba de prótons
Sua produção é regulada pelo ferro corporal, aumentando quando
recomenda-se a reposição com doses maiores e por mais tempo.
os estoques estão exauridos. Pode ser dosada diretamente ou por
A prevalência de efeitos colaterais é de até 30%, notadamente do
meio da avaliação da Capacidade Total de Ligação de Ferro (Total
TGI: pirose e dor epigástrica, náuseas, vômitos, empachamento,
Iron Binding Capacity – TIBC), ensaio que permite a estimativa dos
dor abdominal em cólica, diarreia e obstipação. O paciente deve
sítios de ligação de ferro disponíveis. A transferrina sérica se eleva
ser informado de que é esperada mudança da cor das fezes, e que
em condições como gestação e uso de contraceptivos orais,
os efeitos colaterais melhoram com o tempo. Redução das doses
estando reduzida na presença de inflamação, infecção,
diárias e ingestão do medicamento junto com alimentos
malignidade, doença hepática, síndrome nefrótica e desnutrição.
diminuem a eficácia, porém diminuem os efeitos colaterais. Pode-
Transferrina ou TIBC, juntamente com o ferro sérico, permitem o
se tentar ainda administrar doses mais altas à noite e modificar o
cálculo do Índice de Saturação de Transferrina (IST). O IST é
sal prescrito, já que algumas formulações estão menos associadas
calculado a partir da razão [Ferro sérico/TIBC] ou [Ferro
a efeitos colaterais. Recomenda-se manter doses terapêuticas por
sérico/Transferrina × 0,71], variando de 20 a 45%.
cerca de quatro meses após a resolução da anemia. A persistência
O último passo na síntese de Hb é a inserção de um átomo de
é a pedra angular no tratamento.
ferro na protoporfirina para formação do heme. Na DF, zinco é
incorporado no lugar do ferro, formando a Zincoprotoporfirina
Sais de ferro para reposição oral disponível no Brasil interfiram na absorção intestinal, persistência do sangramento,
perda maior que a capacidade de absorção, má adesão e, se
constatada a impossibilidade de uso da via oral, partir para a
reposição parenteral.
Várias metanálises mostraram que a erradicação do H. pylori
associada à ferroterapia oral é mais efetiva que a ferroterapia oral
isolada, e há evidência de que a presença dessa bactéria é causa
de resistência à ferroterapia; assim, há correntemene
recomendação de que se investigue a presença e se trate a
infecção pelo H. pylori após exclusão de sangramento pelo trato
gastro-intestinal.

PROFILAXIA
Em alguns países já foi implantada a suplementação universal de
Parenteral ferro na farinha de trigo, visando a reduzir as estatísticas de DF.
A reposição parenteral de ferro é efetiva, cara, trabalhosa, não Além disso, recomenda-se reposição profilática com ferroterapia
isenta de efeitos colaterais, e deve ser indicada em situações oral durante a gestação, nas lactantes, e nas crianças até cinco
especiais. Existem formulações para administração intramuscular, anos de idade. Especificamente na gestação, as estratégias
praticamente proscrita, e intravenosa. A via intramuscular está recomendadas pela OMS para prevenção de ADF mostraram
associada à dor local, pigmentação irreversível da pele e redução na prematuridade em até 50%, mortalidade neonatal em
linfonodomegalia. A infusão venosa pode estar associada a até 55%, nascituros de baixo peso em 16% e mortalidade infantil
irritação, dor e queimação do sítio de punção, náuseas, gosto em até 31%. A dose recomendada é de 100 mg de ferro
metálico na boca, hipotensão e reação anafilactoide, sendo que o elementar/dia para gestantes e lactantes, 30 mg de ferro
principal fator no aparecimento dessas reações é a velocidade de elementar/dia para pré-escolares e 30-60 mg de ferro elementar/
infusão. dia para crianças em idade escolar, em períodos de duas a três
semanas, várias vezes ao ano.
• Indicações de reposição de ferro parenteral:
- Intolerância, má adesão, ausência de resposta ao ferro oral, a
despeito de modificação de dose, sal, posologia, ingestão com
alimentos. „
- Anemia por deficiência de ferro a partir de segundo trimestre de
gestação. „
- Má absorção intestinal (ex.: doença inflamatória intestinal). „
- Doença intestinal que pode ser agravada pela ferroterapia (ex.:
retocolite ulcerativa). „
- Sangramento que excede a capacidade de absorção.
- Necessidade de elevação muito rápida dos estoques de ferro
para evitar descompensação clínica. „
- Doação de grande quantidade de sangue (ex.: autotransfusão). „
- Pacientes com insuficiência renal crônica recebendo
eritropoetina. „
- Pacientes com insuficiência cardíaca congestiva e DF: estudos
recentes demonstraram aumento da capacidade funcional e
melhora dos sintomas de baixo débito.

Sais de ferro para reposição parenteral disponíveis no Brasil

Com doses adequadas de ferro suplementar observa-se


recuperação rápida da anemia por deficiência de ferro na maioria
dos pacientes. O sinal mais precoce de resposta é o aumento na
contagem de reticulócitos, que atinge seu pico entre o 5 o e o 10o
dias de tratamento. Observa-se, também, aumento médio de
1g/dL por semana na Hb. Considerável proporção dos pacientes
tratados apresenta má resposta, recaída precoce ou resistência.
Nesses casos, deve-se investigar: presença de fatores que

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