Você está na página 1de 2

Segundo Juscelino Kubistchek narra em seu livro Por que construí Brasília, a

sua intenção quando construiu Brasília era a de romper definitivamente com a


estética vigente. O próprio Oscar Niemeyer disse que Brasília poderia até não ser
bonita, mas era (e continua sendo) única, em sua concepção.
Brasília, por sua vez, surgia do Cerrado e, segundo o próprio JK se integrava
a ele, sem que para isso tivessem que ser derrubadas as árvores. Segundo ele
Brasília foi talvez a primeira cidade do mundo a não se divorciar da natureza, pois
poder-se-ia ver o Cerrado a dois passos dos prédios residenciais. Essa visão
realmente é inovadora para a época. Combina ousadia com a premissa de se
valorizar o bioma Cerrado, não somente por constituir um terço da biodiversidade
do planeta, mas pelo fato de, até a constituição, de 1988 não ter sido tratado como
patrimônio ambiental, como fizeram com a floresta amazônica. Na sua concepção o
Cerrado deveria também ser preservado em suas formas, pelas características
singulares de suas árvores curvas, de todo um sistema de defesa criado ao longo
de muitos anos de adaptação às condições extremas de secas e de queimadas, para
as quais essa vegetação estava totalmente preparada. Somente depois de estudos
profundos pela Embrapa, é que essas características foram devidamente
desvendadas e catalogadas. Sabe-se hoje que o Cerrado tem árvores que “vestem
roupas” à prova de fogo, para manter as suas características. Sabe-se também que
o mesmo fogo que destrói, é o que estimula a produção de alguns frutos, como o
pequi e o Araticum. Essas pesquisas vão muito longe, e o nosso assunto aqui é a
concepção arquitetônica impressa no desenho do Palácio do Alvorada, que desperta
em nós a sensação de que já se poderia vislumbrar o valor da beleza rupestre do
bioma Cerrado, já em meados da década de 1950. Esse é um exemplo rico a ser
ressaltado, visto que muitos veem o Cerrado de maneira esteticamente pejorativa.
O inovador conceito aqui valorizado por Juscelino é o de construir uma
cidade, aproveitando suas características ecológicas naturais, procurando uma
integração que, até então fora totalmente negada ao se construir as cidades da
forma convencional, pelo menos no Brasil.
Em função do meu extenso trabalho como paisagista, e o fsto de ter morado
no Japão na década de 1990, aprendi que no país do sol nascente, quando querem
intervir em uma paisagem e não querem destruir o que já está naturalmente
compondo o cenário, chamam a isso de Shakkei. Assim, Shakkei é uma técnica de
incorporação da intervenção humana em um espaço, aproveitando-se o que já
existe no local.
Veja o que Juscelino fala sobre o que parece lembrar a técnica Shakkei
japonesa:

“A Natureza é, por excelência, pródiga em tudo.


Se há necessidade de que uma árvore seja curva, para
fazer frente ao azorrague do vento, ela a faz retorcida
desde as raízes. Comunica-lhe sua preocupação de
fechá-la sobre si mesma, quer no tronco que sustenta a
fronde, quer nas folhas, que se formam como conchas.
O artista, porém, estiliza a forma que a natureza lhe
oferece como inspiração. Poda os excessos. Suaviza os
contornos. Comunica harmonia e equilíbrio onde há
desordem. E, assim, transforma o barroco, criado como
uma defesa contra a intempérie, na diafanidade de um
estilo linear, tendo como objetivo um êxtase visual.
Dentro dessa lógica de raciocínio, é que fora concebido
o Palácio da Alvorada” (Kubistchek, 2000, pág. 184).

Essa concepção de intervenção na natureza é milenar na cultura japonesa, e


a minha maior surpresa, foi identificar essa virtude na concepção do palácio da
Alvorada, descrita por Juscelino, principalmente quando ele diz que o seu objetivo é
o “êxtase visual”. Nada mais sugestivo do que a técnica Shakkei para dar
fundamento às duas concepções, já que tanto uma quanto a outra quer preservar o
patrimônio natural da região, implementando uma forma de intervenção que busca
a harmonia entre dois elementos distintos, ditados por dois momentos distintos, a
natureza e suas formas, e a inspiração do artista em realizar obras arquitetônicas.
A busca da harmonia é um traço muito importante na concepção dos
projetos arquitetônicos japoneses, e nesse caso parece que foi isso que a
concepção do projeto do palácio da Alvorada intentou buscar, quem sabe inspirado
pela paz de espírito proporcionada pela beleza rupestre do bioma Cerrado, que
também o deve ter proporcionado em vários momentos uma sensação Zen, para
que a sabedoria de suas decisões fosse lapidada, e a milenar técnica japonesa fosse
reeditada de forma espontânea do outro lado do planeta.

Bráulio Antonio Calvoso Silva é professor de literatura, formado UnB e


pesquisador sem vínculo institucional em história e antropologia.
Está revisando o livro Cerrado: 11 mil anos em histórias – uma perspectiva
socioambiental da ocupação do Cerrado.
brauliocalvoso@hotmail.com

Você também pode gostar