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Introdução - Os arquétipos e o mito

Na segunda metade do século passado, ganhou notoriedade entre os pesquisadores


bíblicos, exegetas do novo testamento, aguçar o olhar sobre as escrituras como obra literária,
ao mesmo tempo em que críticos literários como Bloom, Todorov e outros, passaram também
a enxergar nestas redes textuais como literatura.
A partir destas premissas, o olhar sobre o texto do Evangelho de Marcos, no qual
Harold Bloom concorda ser o mais antigo dos relatos sobre a vida de Cristo, e que é
improvável que seu autor tenha conhecido pessoalmente Jesus. Bloom alerta que na
construção do texto as incompreensões são propositais, e que o Cristo narrado neste
evangelho é mais apressado que nos outros, é um Cristo, que ciente de sua morte, tem pressa e
precisa dar uma resposta imediata ao messianismo judeu da época1.
Para Rhoads, o relato marquino, não pode presumir um relato histórico, preocupado
2
em demasia com a veracidade ou com a facticidade. Não se trata desrelativizar o texto, e
sim, através das ferramentas que a moderna critica literária disponibiliza submergir a níveis
mais profundos que são propostos pela estória.
Para isso é necessário não só compreender a realidade que cerca estas narrativas
quando foram criadas, a quem se destinam, mas também quais os instrumentos que foram
utilizados em sua construção. As aspirações do povo e do lugar e quais métodos narrativos
eram bem vistos e utilizados, tanto nas camadas mais populares como nas elites, e
principalmente, no dialogo entre estas duas “classes sociais” e que podem ser nitidamente
vistos nas narrativas bíblicas, e precisamente em Marcos, o texto que trabalharemos como
base para esta pesquisa
A história comprova que a origem daquilo que nomeamos “teatro” ou arte dramática
provém sempre de uma ação litúrgica, seja no Egito antigo, na cerimônia do boi-fome, em que
um animal é sacrificado e colocado para fora das cercanias da cidade, para que leve consigo a
escassez de alimentos e traga boa colheita. O dramaturgo assume a característica de sacerdote.
(GASSNER, 1974). Antes mesmo do que é considerado como o nascedouro do teatro
ocidental, Gassner e Eduardo de Noronha, em suas pesquisas já denotam a existência de
narrativas teatrais antes do século V a.C. “O desejo de exprimir sentimentos e concepções é

1
BLOOM, Harold. Jesus e Javé – 0s nomes divinos. P.79
2
RHOADS, David. Mark as story
inseparável da humanidade. O homem exprime os seus pensamentos e emoções por meio de
gestos e da linguagem, ou pela combinação das duas coisas” 3
Existe uma causa primeira para a necessidade da imitação? Existe um sentimento
religioso por traz da necessidade de se imitar?
Para Jung a existência de um inconsciente coletivo, uma camada inferior ao
inconsciente individual, pode dar explicações sobre a necessidade de imitar:

Para o primitivo não basta ver o Sol nascer e declinar; esta observação exterior
deve corresponder - para ele - a um acontecimento anímico, isto é, o Sol deve
representar em sua trajetória o destino de um deus ou herói que, no fundo, habita
unicamente a alma do homem. Todos os acontecimentos mítologizados da
natureza, tais como o verão e o inverno, as fases da lua, as estações chuvosas, etc.,
não são de modo algum, alegorias destas experiências objetivas, mas sim,
expressões simbólicas do drama interno e inconsciente da alma, que a consciência
humana consegue apreender através de projeção - isto é, espelhadas nos
fenômenos da natureza.4

Este inconsciente coletivo, segundo Jung, possui características universais, respondem


aos anseios de todos, esta “existência psíquica só pode ser reconhecida pela presença de
conteúdos capazes de serem conscientizados”5. Esta consciência coletiva que, tomadas de
uma intimidade pessoal da vida anímica, é por Jung, chamadas de arquétipos.
A relação entre os arquétipos e a construção dos mitos é estudada por Junito de Souza
Brandão, que afirma:

Através do conceito de arquétipo, C. G. Jung abriu paraa Psicologia a possibilidade


de perceber nos mitos diferentes caminhos simbólicos para a formação da
Consciência Coletiva. Nesse sentido, todos os símbolos existentes numa cultura e
atuantes nas suas instituições são marcos do grande caminho da humanidade das
trevas para a luz, do inconsciente para o consciente. Estes símbolos são as crenças,
os costumes, as leis, as obras de arte, o conhecimento científico, os esportes, as
festas, todas as atividades, enfim, que formam a identidade cultural. Dentre estes
símbolos, os mitos têm lugar de destaque devido à profundidade e abrangência
com que funcionam no grande e difícil processo de formação da Consciência
Coletiva.6

O inconsciente coletivo se transforma em consciente através dos símbolos externados


nas construções míticas. Conhecimento que é transmitido de pai para filho, através das
histórias que contam, dos mitos que relatam. O mito abre a possiblidade para, como afirma
Brandão, delinear “a caminhada existencial” através da dimensão imaginária.
Para Eliade “o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido
no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’”. 7
O mito contribui na construção de
uma realidade que passou a existir. Através dos entes sobrenaturais narrados nos mitos, o

3
NORONHA, Eduardo. A evolução do Theatro. P.8
4
JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. P. 18
5
Idem. P.16
6
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega, vol.1. P.8
7
ELIADE. Mito e realidade. P. 11
humano desenha sua concepção de mundo e se define como hoje é conhecido. Na construção
destas narrativas, em que o sagrado e o profano se confundem, em que o real e o imaginário
não são distinguíveis, a narrativa se molda, e busca maneiras de fazer com a estória seja
conhecida, identificada e perpetuada.
A canonização dos mitos tira a vivacidade destes. O mito sempre tem respostas para o
“agora e para as urgências”. Quando escrito, este, segundo Brandão,

...desfigura o mito de algumas de suas características básicas, como, por exemplo,


de suas variantes, que se constituem no verdadeiro pulmão da mitologia. Com isso,
o mito se enrijece e se fixa numa forma definitiva. De outro lado, a forma escrita o
distancia do momento da narrativa, das circunstâncias e da maneira como aquela
se converteria numa ação sagrada. Um mito escrito está para um mito "em
função", como uma fotografia para uma pessoa viva 8

A Bíblia , tem sua força inicial na oralidade, os textos que chegaram até nós são,
quando muito, fotografias de uma estória contada. Estória essa que só chegou aos tempos de
hoje, porque, creio eu, em seus relatos originas, as cenas relatadas, que foram costuradas em
uma grande colcha de retalhos, continham elementos que identificavam o emissor do receptor.
Estórias que tinham um sentido comum, que pertenciam ao “inconsciente coletivo”de busca
de um herói que mitigasse os sofrimentos de um povo.
Para esta estória do herói mítico que vai ser contada, possa adquirir sentido no ouvinte,
é necessária a identificação, a qual Jung se referiu como sendo necessária para a vivência da
transformação, onde “também é importante a identificação com o deus ou herói que se
transforma durante o ritual sagrado.9” Jung mesmo afirma que o próprio Cristo é um
arquétipo, “símbolo supremo do imortal que está oculto no homem mortal”.10
O mito que vai ser transmitido, que na narrativa busca coesão e identificação, utiliza-
se de formas e gêneros literários na construção. Estas formas estão presentes seja na estória
transmitida oralmente, seja na escrita. A verossimilhança deve ser sentida, nem que seja no
mínimo. A estória deve ter certo encadeamento para que identificação ocorra. A compreensão
necessita de um começo, um meio e um fim.

A tragédia clássica e o evangelho de Marcos

O Evangelho de Marcos, ao contrario dos relatos de Lucas, Mateus e João, não se


utiliza de uma narrativa prévia, em que o personagem Cristo é apresentado. Fora uma pequena

8
BRANDÃO, Junito de Souza. Idem P. 25
9
JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. P.132
10
Idem, P.127
11
referencia a Isaias 40.3 , no que diz referenciando João Batista como aquele que anuncia o
Messias, do que propriamente, uma referencia à gênese de Jesus. Diferentemente dos outros
relatos dos evangelhos, não existe magnificat, nem prólogos, nem infância de Jesus. Cristo é
apresentado, no batismo, na epifania, como na entrada de cena de um herói trágico, que não
determina sua origem, nem sua casta, tampouco sua divindade. O leitor é levado a conhecer
isso no desenvolver da narrativa, não de maneira precipitada pelo texto.
A narrativa que se segue se prende a conceitos de linearidade para que haja a
compreensão da história narrada. A estória12 tem que ter certa coerência com a vida cotidiana,
tem que ser fruto de imitação ou ser imitada para que possa ter credibilidade, verossimilhança.
Para aquilo que Aristóteles definiu como mimesis.

Duas causas naturais parecem dar origem à poesia. Ao homem é natural


imitar desde a infância – e nisto difere ele dos outros seres, por ser capaz da
imitação e por aprender, por meio da imitação, os primeiros conhecimentos –; e
todos sentem prazer em imitar. 13

Assim, a estória de qualquer dos evangelhos possui, de certo modo, os elementos


narrativos a que se reportou o filosofo grego na Poética; Identificação; Catarse; Concepção do
herói; Encadeamento de ações; A intervenção externa à narrativa (Deus ex-machina) e o final
trágico.
Para Aristóteles, a encenação não era realmente necessária para que os elementos
narrativos fossem sentidos. Estes elementos, sabemos hoje, vem de um estágio mais profundo
da psique humana, são necessários para a construção dos mitos e da realidade que deles
surgem. A interferência do ator, pode produzir, seguindo a lógica aristotélica, um desconforto
de realidades, de aspirações e com isso, perder-se o objetivo primordial da tragédia que é de
identificação e purgação, a catarse.
Pelo contrário, a interferência dos gestos do ator para o filosofo grego influenciava de
maneira negativa na percepção do texto. O texto passa a ter importância maior, na medida em
que aquele que o decodifica, faz as relações psicológicas próprias. O universo externo trazido
pelo texto, fará as conexões com as expectativas geradas na compreensão deste com o a
realidade vivida pelo ouvinte/leitor. Seus traumas e anseios se identificarão com o herói
reportado na narrativa. Aquilo que é inconsciente, toma forma na figura do herói trágico. Os
medos e angustias são purgados na tragédia.

11
“Voz que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor; endireitai no ermo vereda a nosso Deis” (Is. 4.3)
12
Utilizaremos estória em detrimento da palavra historia, por acreditar que o texto de Marcos é um relato em
que a preocupação com a factividade fica em segundo plano à estória em si, assim como também se utiliza do
mesmo principio David Rhoads em “Mark as story”.
13
ARISTÓTELES. Poética. P. 40
Podemos elencar os seguintes traços existentes na concepção do herói aristotélico:
 O herói descobre que sua queda é resultado de suas próprias ações, não por causa dos
acontecimentos.
 O herói vê e entende o seu castigo, e que seu destino foi definido por suas próprias
ações.
 Um herói trágico é muitas vezes nobre, ou descendente de nobres.
 O herói é confrontado com uma decisão séria.
 O sofrimento do herói é significativo, porque, embora o sofrimento seja o resultado da
própria vontade do herói, não é inteiramente merecida e pode ser cruelmente
desproporcional.
Os traços do herói trágico também são vistos nas narrativas do NT no que se refere à
construção de um “salvador” arquetípico. Considerando-se, no caso do texto de Marcos, a
adição posterior a partir do 16.9, o Cristo como herói, fica mais evidente, e este traço se
evidencia no decorrer de todo o texto. A vida do Cristo narrado em Marcos vislumbra como
nas tragédias de Édipo Rei ou Prometeu Acorrentado um reconhecimento, por parte da
personagem de sua fatalidade e de sua tragicidade. Prometeu sabe que será castigado por ter
dado a centelha de inteligência ao homem, e isto é percebido no texto. Cristo é consciente de
seu trágico destino, de sua morte, e isto é mais evidente, considerando-se a adição, no texto de
Marcos, que nos outros três relatos dos evangelhos.
Existe coerência entre o personagem Cristo, o arquétipo que este representa, a relação
com a construção mítica, e o relato de Aristóteles na poética quando se refere a construção do
personagem trágico.
Para o crítico teatral Lionel Abel, personagens bem construídos, arquetípicos,
extrapola os limites do texto, se transformam em autor do próprio texto, já não podem ficar
encarcerados nos limites da narrativa original. Inspiram novos personagens, habitam novas
narrativas. São metateatrais.
O Evangelho de Marcos não se trata de uma tragédia. Não tem como único objetivo a
identificação do ouvinte com o herói para a purgação dos males. A narrativa marquina contém
elementos da tragédia, assim também, como da comedia, da ironia e do riso.

Que gênero ou tipo de história o compositor conta para gerar um impacto tãosignificativo
nos ouvintes? Mais uma vez, os estudiosos não estão de acordo. Alguns vêem semelhanças
com a literatura greco-romana - biografia antiga, tragédia grega, novelaspopulares ou
narrativas no modo da antiga retórica. Outros comparam o Evangelho com a literatura
judaica - um "apocalipse" revelando os segredos do tempo do fim, uma parábola
enigmática, um comentário midrashico sobre a Bíblia hebraica ou uma escrita no modo de
uma narrativa bíblica hebraica. O Evangelho de Marcos pode ser um gênero misto. Muitos
sugerem que Marcos criou um novo tipo de composição, um evangelho - uma aclamação
narrativa da "boa nova" do governo de Deus: o que Deus fez e fará através de Jesus de
Nazaré e daqueles que o seguem.14

Entre os elementos da tragédia que a crítica aristotélica pontua, o deux-ex-machina, o


evento externo à trama, como uma intervenção divina, que acelera a narrativa, pode ser visto
em diversas vezes no Evangelho de Marcos: são os milagres.

Na narrativa de Marcos os milagres têm, além de exaltar o poder do Messias, a


capacidade de acelerar a narrativa e mostrar as incompreensões dos outros personagens com a
mensagem do protagonista e elevar a compreensão a outro patamar. Aquilo que a fala não
explica, o milagre acelera a compreensão.

Como exemplo os relatos de milagres constantes no capitulo 7. Cristo cita Isaias para
alertar sobre a hipocrisia da critica dos escribas, utilizando-se dos hábitos ligados à tradição,
quando interpelam seus discípulos por não observarem os hábitos de limpesa e purificação.
Cristo no em sua resposta (vs. 15) afirma que nada que vem de fora pode contaminar o
homem, e sim o que sai dele. No vs 16, existe uma adição posterior que coloca ainda um
tempero extra se compreenderam a mensagem: “Se alguém tem ouvidos para ouvir que ouça”.
A resposta vem do próprio texto nos parágrafos seguintes: Não compreenderam.

Na seqüência, o milagre da cura da filha da mulher siro-fenícia é uma forma narrativa


para explicar aquilo que não pode ser compreendido no relato anterior, através da intervenção
mágica na expulsão do demônio. O demônio abandona a filha da mulher, mesmo sendo
impura, pois da sua boca, não saiu nada que a contaminasse. A narrativa pode seguir seu
caminho.

Aristóteles afirma que o Deux-ex-machina, não pode ser empregado sem critérios. Seu
uso é limitado, e não pode romper este limite, pois, apesar de ser um evento provocado por
forças externas, não está integrado à narrativa, e seu uso em excesso pode ocasionar em
quebra da verossimilhança, e com isso, do objetivo central da tragédia, que é a de causar
identificação.

Esta preocupação está presente no encadeamento da narrativa como mostra Rhoads:

Uma maneira de estudar o enredo é ver as formas em que as possibilidades


são reduzidas ou ampliadas enquanto a trama se desenvolve. A trama de
Marcos responde a definição de Aristóteles na qual a história tem um

14
RHOADS, David. DEWEY, Joanna. MICHIE, Donald. Mark as story. P. 3
começo, um meio e um fim : em primeiro lugar, muitas coisas são possíveis;
metade, as possibilidades são mais baixas; e, finalmente, parece ser
necessário e inevitável15

Abusar deste elemento pode romper com a tragicidade da trama, mesmo sabendo que
Marcos não é uma tragédia de maneira absoluta, mas corresponde a estes critérios na
construção de sua narrativa.

A tragédia e a sátira romana

Qual o gênero que Marcos se molda então. Poderia classifica-lo como uma grande
tragédia, na qual o herói da narrativa, Cristo, ciente de seu destino, conduz a audiência/leitor à
catarse? Realmente é necessária uma classificação para a compreensão da intenção do texto?
O texto só tem uma intenção? Nortrop Frye assegura que não:

Descobrimos que a teoria crítica dos gêneros parou precisamente onde Aristóteles a
deixou. A própria palavra "genre" (gênero) ressalta numa sentença em Inglês como
a coisa impronunciável e alheia que é. A maior parte dos esforços críticos para
trabalhar com termos tão genéricos como "epopeia" e "romance" são interessantes
principalmente como exemplos da psicologia do rumor. Graças aos gregos,
podemos distinguir no drama a tragédia da comédia, e, assim, ainda tendemos a
supor que cada uma delas é a metade do drama que não seja a outra metade.
Quando chegamos a cuidar de formas tais como a máscara, a ópera, o filme
cinematográfico, o "ballet", a peça de fantoches, o mistério, a moralidade, a
"commedia de l'arte" e o "ZauberspieI", damos conosco na posição dos médicos do
Renascimento, que se recusavam a tratar a sífilis porque Galeno não dizia nada
sobre ela.16

Victor Hugo, no seu prefácio a Cromwel, já antevia o que Frye escreveu. Para Hugo, o
cristianismo conduzia o fazer poético à verdade. Para o escritor francês a poesia moderna,
unia o que antes era impossível, o belo e o disforme, o grotesco e o sublime, pois a realidade
humana não confunde as coisas, mas permite a existência das forças consideradas contrárias
lado a lado, em perfeita coesão. E o cristianismo colabora decisivamente quando se sabe que
seu ponto inicial e sempre o ponto inicial da poesia.17
Não se pode desconsiderar que o período em que estórias de Cristo foram coletadas e
escritas, o universo cultural não era único. Não se pode “cravar” uma categoria, um gênero à
narrativa de Marcos. Assim como há que se considerar o cenário multicultural, multiétnico, de
várias línguas e de diversas linguagens. A narrativa se desenvolve em uma “esquina” do

15
Idem. P. 74
16
FRYE,Nortrop. A anatomia da crítica. P.21
17
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. P.27
mundo, que sofre as mais diversas influências, e se molda para poder influenciar outras
culturas.
O universo latino, onde a ironia e o riso e as sátiras, são gênerosevidenciados em
autores como Luciano ou Terencio Varrão, a quem Quintiliano se refere como “o homem
mais erudito entre os romanos”, que foi conhecido por suas Sátiras Menipéias, e ao qual
também se refere como “o mais versado, o maior conhecedor de toda a antiguidade não só
em relação às coisas gregas, mas também no que diz respeito às nossas coisas.” 18
A sátira, mesmo que não seja risível, tem posição de destaque na crítica de
Quintiliano. Para ele, a própria métrica utilizada pelos autores satíricos e sua composição em
cenas curtas, próximas ao que hoje chamamos de esquetes, contribui decisivamente para a
narrativa irônica e ou satírica.
Georges Minois não separa defensivamente a sátira do riso, para o autor francês, a
sátira latina é por excelência um exercício do riso. Para Minois Luciano traz ao público o riso
cômico sob uma certa majestade filosófica. Nem deuses são poupados. Minois. O riso é
resultante direta da sátira para Minois, e cita o próprio personagem criado por Luciano,
Menipo, como aquele “cuja sabedoria se exprime pelo riso; ele ri sempre e de tudo”19
Para Minois, a catarse, que para a crítica aristotélica só é possível através do espirito
trágico, também é atingível através do riso. Quando esta ataca, de maneira conservadora os
vícios e defeitos da sociedade romana, ela se iguala na sua característica moral as tragédias
gregas. As inversões propostas, como exemplo,o escravo que engana com o dono, se
igualando ao herói grego, que

...mimando, de forma lúdica, o que poderia ser uma autentica revolução social,
asseguram, na realidade uma função catártica do texto, de alivio coletivo, da qual a
ordem social saia afinal de contas, reforçada, pelo simples fato de que os desejos
revolucionários latentes eram enganados por esse simulacro de realização que lhe
servia de exutório20

Há que se considerar no texto de Marcos que suacaracterística, como dita


anteriormente de esquina do mundo, onde diversas influencias se fazem sentir, aquilo que
Lotman se refere como borda da semiosfera, um entre lugar onde a cultura dialoga, permeia-
se e transmuta-se.
Lotman ressalta que este espaço de periférico de fazer cultura é delimitado por uma
fronteira não artificial, e sim por

18
QUINTIALIAN. The institutio oratoria of Quintilian. Vol. IV. P.53
19
MINOIS, Georges. História do riso e do escarnio. P. 66
20
Idem. P. 101
...uma posição estrutural e funcional importante que determina a essência do
mecanismo semiótico dos mesmos. A fronteira é um mecanismo bilingue que traduz
mensagens externas para a linguagem interna do semiosfera e vice-versa.21

Se considerarmos o universo em que o texto foi produzido, poderemos identificar, não


só as mais diversas influencias presentes no relato, coma a diversidade de gêneros literários
utilizados para se narrar a estória. Rhoads, assim como Bloom, sempre buscaram ver em
Marcos o seu caráter ficcional, não com isso diminuindo a importância do relato, mas
evidenciando a qualidade narrativa, mesmo quando suas incompreensões são demasiadas.

O riso e a ironia em Marcos

Buscar evidências do riso e do irônico na literatura marquinha esbarra, de antemão, no


preestabelecimento do Cristo como personagem trágico, e de uma narrativa jornalística. Não
existe a possibilidade de riso em um ambiente factível de um herói que se entrega ao sacrifício
para a salvação do mundo.
Berger assegura que

O que nós frequentemente descartamos como ingenuidade ou crença em lendas e


milagres ou o que compreendemos errado, de modo fundamentalista-físico, é, na
verdade, um trato muito diferenciado da facticidade que não se encaixa
absolutamente em nossa alternativa dualista de “ou -ou”.22

Para Berger, a factividade de um acontecimento está na potência ou poder da pessoa


que age, a historicidade possui, portanto, uma orientação mais pessoal. Neste caso o relato
ganha em importância mais do que a veracidade daquilo que é relatado, contrariando nossa
expectativa:

A equiveracidade (a ideia de que tudo deveria ser uniformemente verdadeiro) e a


equidistância são entre nós o resultado de uma compreensão iluminista, segundo a
qual a realidade é um ato contínuo, de maneira correspondente, uniformemente
pública, obrigatória e reivindicável – da mesma maneira como também todas as
pessoas são iguais perante a lei.23

Para encontrar os traços de ironia e riso existentes no texto do evangelho de Marcos é


necessário, para tanto, compreender esta característica do factível como concepção básica da
narrativa, adicionando para isto os elementos mencionados antes, da diversidade cultural, da
do ambiente periférico em que a ação se desenvolve, a pluralidade de gêneros literários que
são encontrados no texto.

21
LOTMAN, Iuri.M. La semiosfera I. Semiotica de la cultura y del texto. P. 14
22
BERGER. Klaus. Psicologia histórica do Novo Testamento. P.38
23
Idem P.39
Bergson, ao definir o riso afirma que não existe comicidade fora do que é
propriamente humano, e que o ser humano,além da clássica afirmação de que o homem é um
animal que ri, ele é, acima de tudo, um animal que faz rir. 24 Tanto Bergson, quando Hugo ou
Rhoads, contribuem para evidenciar os traços risíveis no texto do evangelho de Marcos,
quando se predispõe a entende-lo como estória de relações humanas, e que, sendo a vida
como na justificativa de Hugo, um emaranhado de ações grotescas e sublimes que coexistem,
natural que o riso e a ironia tenham espaço na narrativa.
Minois, ao refletir que o riso também provoca, de certa maneira, o mesmo objetivo da
tragédia na catarse, iguala em condições a narrativa literária. Já não existe um escalonamento
entre atmosfera trágica e cômica. Ambas competem ao espirito humano, e pode, devem e saõ
utilizadas nas construções narrativas. Logo, para se atingir a identificação, o autor pode se
utilizar de elementos trágicos ou cômicos, juntos ou separados.

Gênero hibrido: a cultura popular e a elitizada no texto de Marcos

Aonde podemos chegar com estas considerações? Aplicar métodos de crítica literária
não pode, de certa maneira empobrecer o texto? Teriam consciência o/s redator/es do relato de
Marcos?
Para isso, voltemos à Berger no que diz respeito à factividade. É necessário romper
com o conceito de factível que se construí na exegese tradicional do texto. Sendo como afirma
Paulo Nogueira, a própria religião um texto, que pode ser lido e decodificado de acordo com o
seu tempo.25 O ato criativo humano vai se mostrar em toda a sua amplitude, não sendo
possível isolar a criação religiosa das outras obras que buscam, na acepção clássica: a
imitação da vida e a compreensão do belo.
Não e possível, a partir de uma leitura enviesada da Poética de Aristóteles, atribuir ao
trágico uma caráter sublime, mais afeito às classe sociais elevadas, e colocar a comedia e o
riso como substrato cultural, condicionado às classes inferiores. Hugo, nega estas
características no prefacio a Cromwel, e afirma que em Shakespeare tudo isso, o ambiente
cômico e a atmosfera trágica, é possível dentro de uma mesma narrativa, pois o autor inglês
do século XVI, imitou a vida com tamanha exatidão, que demonstrou em suas peças a
convivência destas.
Bakhtin, afirma que grande parte das Sagradas Escrituras foram travestidas de espírito

24
BERGSON, Henri, O riso. P.7
25
NOGUEIRA, Paulo A. S. Linguagens da religião. P.25
carnavalesco, parodias cômicas como na Coena Cypriani. Estas paródias eram autorizadas
pela tradição do “riso pascal”, onde se ecoava as longínquas saturnais romanas.26 Minois
afirma que a Idade Média, contribui para que o riso fosse colocado de lado, demonizado até.
Mas, este dualismo medieval, que moldou a religiosidade ocidental, nem sempre foi
predominante. Bakhtin assegura que nas etapas primitivas, em que não se conheciam classes
sociais, o trágico e o cômico eram igualmente sagrados.
A suspensão do tempo que a carnavalização provoca, retoma a ideia primitiva, onde as
trocas de saberes são possíveis, e o grotesco e o sublime coexistem produzindo cultura:
literatura, imagens, música e também religião.
A cultura popular, e sua capacidade de produzir tanto a atmosfera trágica como a
cômico, também foi analisada por estudiosos da origem do teatro grego. Noronha afirma que
de uma mesma procissão litúrgica ao deus Dioniso, as ditirâmbicas, foram sementes para o
espírito trágico e o espírito cômico. Uma parte dos participantes, entoavam cantigas e poemas
de atmosfera trágica, onde o deus que fora oferecido em holocausto na criação do mundo,
mortos pelos titãs, era reverenciado pelos seus seguidores. Atrás, vestidos em peles de bode,
assemelhando-os aos sátiros (Σάτυρος — Sátyros), como forma de homenagear o deus do
vinho e da fertilidade, da galhofa e da alegria que se fazia presente entre seus seguidores pela
embriagues.
A cultura popular, anárquica, dera origem ao teatro, este ambiente propicio ao culto às
divindades pagãs também pode ser percebido nos relatos bíblicos, nos quais, aquilo que
convencionamos denominar de gênero literário, e que a pureza ansiada delimita de trágico ou
cômico, não é realidade compatível com o ambiente em que as estórias forma ouvidas e
redigidas. A vida é arte, e não cabe em uma definição de trágico ou cômico, erudito ou
popular.

26
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento. P. 12
JUSTIFICATIVA

Os textos sagrados, principalmente os canônicos, são envoltos em uma


atmosfera que por vezes não permite a leitura do relato como narrativa, como estória
que foi contada e merece ser contada novamente. Durante muito tempo, poucas
contribuições da critica literária foram colocadas a serviço da narrativa bíblica, ao
contrário, o texto bíblico por sua profundidade, de certa maneira pautou a critica e a
produção literária, o que ocorre até hoje.
As tentativas de aproximação da critica literária e da criação do dialogo entre a
exegese tradicional e a crítica literária “comum” vem ocorrendo há certo tempo. O texto
de Marcos serve ao propósito de mostrar que mesmo aquele texto que é considerado por
muitos como pobre, sem o mesmo vigor e rigor literário das cartas paulinas, do
Evangelho de Lucas ou de João, mostra, na sua leitura, riquezas não só na construção do
relato, nos traços estilísticos demarcados no texto, como também desnuda o dialogo
profundo entre uma cultura popular e uma chamada cultura de elites.
O texto de Marcos, a que Bloom comparou a literatura de Edgar Alan Poe, pode
não ter as mesmas e elevadas características encontradas, por exemplo, no texto de
Lucas, com sua linguagem mais sofisticada, a língua grega mais rica, e imagens bem
construídas, mas pela navega por uma estória cativante, que mescla atmosferas trágicas
e cômicas e que acaba por criar um estilo literário: o Evangelho.
Estilo forjado na cultura popular, que para contar uma “boa estória” se apropria
dos elementos da oratória, da tragédia clássica, da ironia dos cínicos, da filosofia,
considerados sempre como elementos da chamada cultura das elites. Todos os recursos
podem e devem ser utilizados para se narrar a estória daquele que mudou o mundo e
criou, a partir de ressignificações e releituras destes textos, a cultura ocidental.
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Aguçar o olhar sobre o texto bíblico como literatura não é uma concepção
recente, mas não é uma forma tão antiga assim. Vários são os estudiosos que abordam
os textos bíblicos como literatura, existindo neles, segundo estes críticos, literatura de
excelente qualidade e literatura de qualidade duvidosa para os padrões da crítica.
Estudar o texto bíblico a partir da critica literária leva a novas descobertas e a novas
interpretações que podem ser vistas a partir do ponto de vista que o texto, como
literatura pode trazer.
David Rhoads realça isso em sua pesquisa, é preciso enxergar no relato bíblico,
como o de Marcos, tanto objeto deste trabalho como de Rhoads, a construção da
narrativa como processo essencial para a construção do sentido, tratar o texto como
estória e não historia. A construção da narrativa para Rhoads passa então a ter
coerência se considerada a premissa da construção literária, e os índices que esta
construção pode ter. Não se trata, pois de uma forma de narrar um fato acontecido, de
maneira jornalística, e sim, que o objetivo do relato é, no caso de Marcos, anunciar o
Cristo como o messias tão aguardado. O objetivo da narrativa se sobrepõe ao fato
jornalístico, e passa a buscar coerência com a estória a ser contada, do que o fato em si.

Aristóteles e a concepção trágica.


Para Aristóteles toda a forma de expressão humana se dá por meio da imitação.
Através desta se aprende, por exemplo, a falar e a andar, mas aprende-se também a se
relacionar com aquilo que se desconhece.

...imitar é natural nos homens desde a infância e nisto diferem dos outros
animais, pois o homem é o que tem mais capacidade de imitar e é pela
imitação que adquire os seus primeiros conhecimentos; a outra é que todos
sentem prazer nas imitações.27

Aristóteles ao elaborar a Poética elenca alguns traços que podem ser notados na
construção da narrativa. Tendo como base a literatura teatral, Aristóteles faz um longo
estudo sobre os elementos que são encontrados no texto trágico, ao qual é dada primazia
no texto que chegou até os dias de hoje.
Na sua analise sobre a construção dos elementos trágicos, Aristóteles, demonstra
que o encadeamento, a forma como a narrativa se desenvolve deve ser sempre uma
evolução. O fim, mesmo que possa ser pressentido durante todo o texto, é a justificativa
de existência deste, e para isso, alguns elementos como a verossimilhança, aquilo que
apesar de não ser fato, possa ser factível é elemento a ser respeitado para se atingir ao
objetivo do trágico: a catarse.
Outro traço que segundo o filosofo grego é essencial é que o herói que é narrado,
seja portador, a partir da perspectiva psicológica de elementos que levem o leitor à
identificação. Ao herói compete esta identificação com a audiência para que a purgação
possa ser atingida. No sentido de que eu sofro quando o herói sofre, eu me compadeço
deste porque ele espelha a minha vida e meus anseios.
O elemento mágico, aquilo que não tem explicação do ponto de vista humano,
pode ser utilizado na tragédia, desde que não em demasia, e que não coloque a
verossimilhança em cheque, a ponto de não mais poder ser observada.

Ao deus ex machina, pelo contrário, não se deve recorrer senão em


acontecimentos que se passam fora do drama, ou nos do passado, anteriores
aos que se desenrolem na cena, ou nos que ao homem é vedado conhecer, ou
nos futuros que necessitam ser preditos ou prenunciados – pois que aos
deuses atribuímos nós o poder de tudo verem.28

27
ARISTÓTELES. Poética, P.42
28
ARISTOTELES. Poética. P. 254
É possível encontrar estes elementos no relato de Marcos, e talvez seja possível
evidenciar alguns aspectos se considerarmos como adição posterior a partir de 16.9. O
herói que tem consciência de seu destino passa a ser mais visível m todo o texto. O
relato apressado de Marcos, sem preocupação de longas narrativas e sim de uma
seqüência de ações, muitas vezes incompreendida pela audiência, tem relação direta
com o final do relato. A tragicidade passa a ser evidenciada, mas também, como afirma
Harold Bloom, o relato de Marcos aproxima o Cristo da perspectiva do AT.
Tem-se urgência no falar, ele é profeta e sabe do seu destino. Para Bloom, este é
um diferencial do relato de Marcos dos outros dois evangelhos sinóticos. O Cristo de
Marcos, segundo Bloom utiliza-se do silencio como força dramática. O silencio tem a
força do grito. Em que palavra “imediatamente” tem posição de destaque, não se
importando com relatos de transito. Se o personagem precisa estar em uma localidade
ele estará lá, de maneira quase que imediata. Segundo Bloom, há uma atmosfera
apocalíptica sobre o texto:

O apocalipse paira ao longo do Evangelho: os eventos finais são iminentes. Não


nos é informado se a Guerra Judaica está transcorrendo, ou se, Jerusalém foi
destruída, mas Marcos acredita que está vivendo no fim dos tempos. 29

Nesta perspectiva, podem ser compreensíveis as atitudes do personagem, sua


inexatidão geográfica em alguns pontos, e principalmente sua narrativa entrecortada por
incompreensões e que prenunciam sua tragicidade final
.
A origem mítica do trágico.

Para o critico Martim Esslin, a arte dramática é uma necessidade essencial para a
humanidade. A origem do drama para Esslin existe porque o sentimento que move a
criação dramática seja a do ator, ou a doa autor, é o mesmo que origina o criar religioso.

E no ritual, assim como no drama, o objetivo é sempre um nível


intensificado de conscientização, uma percepção memorável da natureza da
existência, uma renovação das forças do indivíduo para enfrentar o mundo.
Em termos dramáticos, catarse; em termos religiosos, comunhão,
esclarecimento, iluminação.30

29
BLOOM, Harold. Jesus e Javé – os nomes divinos. P. 79
30
ESSLIN, Martin. Uma anatomia do Drama. P. 30
O agir da criação, tanto religioso como da arte, partem, portando do mesmo
ímpeto humano. A força motriz da criação artística e ou religiosa, trafega entre a busca
do belo e daquilo que constrói sentido, e isso é inerente ao humano. Para Junito Brandão
estes mitos ganham lugar de destaque devido à profundidade e abrangência com que
funcionam no grande e difícil processo de formação da Consciência Coletiva. Brandão
se utiliza do conceito elaborado por C.G. Jung para exemplificar a importância do mito
na origem da arte, e também do sentimento religioso.

Nesse sentido, todos os símbolos existentes numa cultura e atuantes nas suas
instituições são marcos do grande caminho da humanidade das trevas para a
luz, do inconsciente para o consciente. Estes símbolos são as crenças, os
costumes, as leis, as obras de arte, o conhecimento científico, os esportes, as
festas, todas as atividades, enfim, que formam a identidade cultural. 31

Jung ao tratar da construção do inconsciente coletivo, das aspirações que


humanas que corresponde a um tempo e lugar, dá novas cores aos motivos que levam o
ser a compor a sua história através de estórias. Sua capacidade de imaginação e de
criação rompe fronteiras entre o factual e o imaginário, entre o verdadeiro e o ficcional.
O inconsciente coletivo se torna consciente quando se exterioriza, na literatura, na arte,
na religião.
Os arquétipos, que segundo Jung, são componentes essenciais do inconsciente
coletivo, e que se relacionam com aspirações, de um tempo e de um espaço, de um
contexto da psicologia social.

O inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele


consiste de formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem
tomar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da
consciência.32

Unindo a critica aristotélica de construção da personagem e a teoria junguiana de


arquétipos como fornecedores de material essencial ao desenvolvimento do inconsciente
coletivo, talvez possamos elucidar mais o Jesus narrado no evangelho de Marcos.
Para Lionel Abel, critico teatral inglês, os personagens, quando bem construídos
extrapolam os limites do texto, o autor já não possui controle sobre o personagem, são
metateatrais. Abel inclui na lista destes personagens os personagens de Willian
Shakespeare, que acabam por corresponder a arquétipos, não sendo possível determinar

31
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega – Vol. I. P. 9
32
JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. P.54
se estes foram construídos a partir de arquétipos pré-constituídos ou se forma origem de
novos.

Quase todos os personagens importantes agem em um momento ou outro


como um autor dramático, utilizando-se a conscientização do drama que tem
o dramaturgo, para impor determinada postura ou atitude a algum outro 33

Este encontro com o “personagem” Cristo que corresponde às necessidades de


um inconsciente coletivo só pode ser visto a distancia. Berger afirma que tanto o
inconsciente como a repressão deste andam juntos, e que o autor não tem realmente
consciência de onde vem o relato da tradição, se é não conhecimento ou inconsciente.
Berger questiona a existência de uma disputa entre psicólogos e historiadores, e se esta
pode ser resolvida pelo meio termo

Neste contexto, o discurso moderno sobre o inconsciente tem pelo menos o


seguinte conteúdo: elementos inconscientes devem ser definidos
negativamente como tudo o que não é consciente. Não posso constatar em
mim algo que não é consciente, são apenas outras pessoas que podem
constatá-lo em mim.34

A perspectiva de Bloom, na qual o Cristo relatado por Marcos corresponde mais


às aspirações messiânicas dos judeus que viviam sob o domínio romano, fazendo com
que o Deus narrado nos Evangelho de Marcos mais próximo ao dos relatos do Antigo
Testamento.
Para Bloom, o evangelho de Marcos está inserido no contexto da rebelião contra
os romanos (66 a 70), e isto pode ser percebido na construção da personagem, na
urgência do relato, nas incompreensões da mensagem do herói e na confirmação do
apocalíptica. Para o critico literário americano, o Cristo narrado por Marcos voltaria tão
logo, que não eram necessárias as narrativas de ressurreição. Todos o veriam em breve.

As estruturas literárias: o trágico e o cômico.

33
ABEL, Lionel. Metateatro - Uma visão nova da forma dramática P.69
34
BERGER, Klaus. Psicologia histórica do novo testamento. P.42
No livro III da Republica, Platão firma que tanto a tragédia como a comedia são
originadas inteiramente por imitação, o ditirambo pela exposição do poeta, e a epopéia
combina as duas formas.
Sendo o texto de Marcos, livro inaugural do gênero evangelho, teria ele que ser
observado apenas pela critica jornalística, como um relato fiel aos fatos ocorridos, e que
inexistem traços de humor, traços cômicos?
Henri Bergson, em seu ensaio O riso, não procura definir taxativamente o que é
o riso em si, mas sim denotar o que pode evidenciar os traços risíveis nos textos. Para o
autor Frances o riso é unicamente humano, pois o homem é um animal que ri e que faz
rir, e que a critica literária desconsiderou a importância do riso no seu trabalho.
A carga emocional no evangelho de Marcos não é uma constante, não existe
uma atmosfera trágica única, que permeia todo o relato sem que haja sequer um alivio
cômico. O relato se tornaria insuportável, e de certa maneira o objetivo deste não seria
atingido pela exacerbação de uma única atmosfera.
O maior inimigo do riso é a emoção. Isso não significa negar, por exemplo,
que não se possa rir de alguém que nos inspire piedade, ou mesmo afeição:
apenas, no caso, será preciso esquecer por alguns instantes essa afeição, ou
emudecer essa piedade. Talvez não mais se chorasse numa sociedade em que
só houvesse puras inteligências, mas provavelmente se risse; por outro lado,
almas invariavelmente sensíveis, afinadas em uníssono com a vida, numa
sociedade onde tudo se estendesse em ressonância afetiva, nem conheceriam
nem compreenderiam o riso. 35

Se o objetivo central do autor do evangelho de Marcos, é conforme Bloom,


transmitir a mensagem do Messias esperado, que é o Cristo, este objetivo suplanta o
gênero literário. Todos os recursos serão utilizados para se atingir o objetivo.
O riso possui uma forma única de pedagogia. Para Georges Minois, a ironia e o
riso são formas de transmissão de conhecimento que atingem pontos que a emoção não
pode chegar. A ironia é uma forma de sabedoria, a que Minois percebeu ser utilizada em
larga escala nos textos socráticos.
Minois relata que Luciano colocou o sério a serviço do cômico, e Menipo,
exprime toda sua sabedoria pelo riso: ele ri sempre e ri de tudo. Menipo não poupa
deuses, filósofos, imortais, todos são zombados, não se perdoa ninguém.36

35
BERGSON, Henri. O riso. P.7
36
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio.
A abordagem do riso não é tão nítida no Novo Testamento. Em quase todos os
relatos que tratam do riso no Novo Testamento é para condená-lo. Minois percebe mais
a presença do riso, abertamente declarado mais nos textos apócrifos do que nos
canônicos, mas mesmo nos canônicos existem referencias de fina ironia que foram
deixadas de lado a partir da diabolização do riso na idade média.
Mas este riso, excluído pela leitura oficial do texto bíblico é visto como
influência em alguns relatos. Não há outra forma de compreender, no caso do evangelho
de Marcos as incompreensões das palavras de Cristo pelos seus interlocutores ou o caso
dos porcos que foram tirados do corpo de um homem e atirados ao mar, senão pela ótica
do riso. O relato da cura do endemoniado geraseno, está inserido geograficamente
próximo de Gedara, local onde o mais conhecido dos cínicos, pelo menos no relato de
Luciano era reconhecido.
Quintiliano no livro X da Institutio Oratoria, discorre longamente sobre a arte
da fala, seus atributos e como o orador deve construir seu discurso e como deve se
portar. Para Quintiliano, ao orador compete utilizar-se de todos os meios possíveis para
comunicar e atingir seus objetivos. Deve lançar mão da identificação catártica da
tragédia, mas não deve menosprezar o poder da ironia e do riso. Sugere ainda que a
forma de contar uma estória é dividi-la em pequenas unidades de conteúdo, para que o
todo seja observado ao final. Quintiliano alerta com freqüência um orador prepara,
dissimula, cria armadilhas, e que há coisas que ele diz numa primeira parte do discurso,
mas que somente no final haverão de ter seu proveito.37 Partindo da tradição oral, é
certo que estes atributos naturais que foram percebidos por Quintiliano, foram
empregados na construção da narrativa marquina. Levando também em conta que para o
pensador romano, que tem seus escritos como paradigmáticos na pedagogia, a arte da
oratória é a arte de ensinar, ao que podemos traçar paralelo com David Rhoads e Harold
Bloom, de que o evangelho de Marcos tinha também como objetivo, alem de contar a
estória do Messias, ensinar. Rhoads tem a mesma opinião de Quintiliano ao afirmar que
a veracidade não pode ser vista como uma questão pétrea na construção da narrativa.
La historia puede también dar alguna substancia á la oración con su jugo
suave y gustoso. Pero de tal manera se ha de leer esta, que no se nos olvide
que las más de sus virtudes las debe evitar un orador. Porque se acerca mucho
á los poetas, y es en cierta manera verso suelto; y se escribe para referir
sucesos, no para dar pruebas de ellos, y que es una obra que se compone no

37
QUINTILIANO. Instituiciones oratoria
para lo actual de lo sucedido y para la pelea que se propone como una cosa
presente, sino "para la memoria de la posteridad y para la fama del ingenio. Y
por esta causa hace que sea menos fastidiosa la narración. 38

Quintiliano não coloca o riso em um patamar de igualdade o espírito mais


elevado, “mas reconhece seus méritos em desarmar os espíritos” 39
. Pode-se até
afirmar que a sociedade romana tinha muito mais afeição ao riso irônico e bufão do que
a judaica, mas não se pode desconsiderar que a dominação do Imperio Romano exerceu
influencia também sobre a construção de narrativas.

O fantástico em Marcos.

Para Todorov toda narrativa é uma escolha e uma construção, é um discurso não
um relato de uma série de acontecimentos. O autor faz opções na escolha do que entra
no seu texto, e estas nem sempre são aleatórias.
Não existe uma narrativa “própria” em face das narrativas “figuradas”
(como, aliás, não há sentido próprio); todas as narrativas são figuradas. 40

Assim, as opções feitas pelo compositor da narrativa, não se atem


necessariamente a busca de um relato “jornalístico”. Os recursos empregados na
construção literária dialogam mais com estruturas culturais, do que com a “realidade” a
ser retratada.
Todorov apresenta um esquema básico para a delimitação da literatura
fantástica. Para o autor ela tem duas extremidades e uma zona interna de diálogo:
Estranho puro. Fantástico estranho Fantástico Maravilhoso Maravilhoso puro

Harold Bloom faz uma aproximação deste evangelho com outros autores, por
suas características sobrenaturais, pois

Marcos é ao mesmo tempo, mau escritor e ótimo escritor: vem-me à mente


Edgar Alan Poe, outro exemplo raro desse paradoxo, por mais ensandecida
que possa parecer a comparação. Será a estranha conclusão do Evangelho
de Marcos um índice (por assim dizer) de inaptidão ou de genialidade? O
momento brusco ali descrito promove a nossa identificação com as

38
QUINTILIANO. Instituiciones oratoria. P.153
39
MINOIS, Georges. Historia do riso e do escárnio. P.86
40
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. P. 108
mulheres diante do sepulcro; nós também, fugimos porque sentimos
medo.41

Todorov aponta que a literatura fantástica é um mundo que é bem o nosso, tal
qual o conhecemos, sem diabos, demônios ou outros seres atemorizantes, mas no qual
se produz um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mundo. Para
tanto, o personagem do acontecimento narrado deve optar por uma das soluções
possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, um produto da imaginação, e nesse
caso, as leis do mundo continuam a ser o que são. Ou então esse acontecimento se
verificou realmente, é parte integrante da realidade; mas nesse caso ela é regida por leis
desconhecidas para nós.
A crítica literária de Todorov contribui para ampliar os horizontes na leitura dos
elementos fantásticos no Evangelho de Marcos. Considerando o ambiente imaginário ao
qual se refere Todorov, que pode ser provocado por uma mente super-excitada, a
literatura fantástica coloca a maior parte de um texto como pertencente ao real, ou mais
exatamente, como provocada por ele.
Todorov usa em sua análise também a obra de Edgar Alan Poe, em que as
fronteiras do mundo considerado real são confrontadas com outra realidade.

Ou o diabo é um ser imaginário, uma ilusão, ou então existe realmente, como


os outros seres vivos, só que o encontramos raramente, O fantástico ocupa o
tempo dessa incerteza; assim que escolhemos uma ou outra resposta, saímos
do fantástico para entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O
fantástico é a hesitação experimentada por um ser que não conhece as leis
naturais, diante de um acontecimento aparentemente sobrenatural. 42

Tanto Todorov como Bloom, ao se referirem a obra de Poe, evidenciam os


traços do fantástico existente na obra do escritor norte-americano, e que podem ser
perfeitamente aplicados às narrativas fantásticas e de milagres constantes no texto de
Marcos.
Para Todorov a relação do sobrenatural com a narração torna-se então clara:
todo texto fantástico é uma narrativa, pois o elemento sobrenatural modifica o equilíbrio
anterior, e isto é a própria definição da narrativa; mas nem toda narrativa pertence ao
maravilhoso, se bem que exista entre eles uma afinidade, na medida em que o
maravilhoso realiza essa modificação de maneira mais rápida. Torna-se claro, nesta
perspectiva, que a função social e a função literária do sobrenatural são uma única:

41
BLOOM, Harold. Jesus e Javé. P.80
42
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. P.148
transgredir uma lei, e a intervenção do elemento maravilhoso constitui sempre uma
ruptura no sistema de regras preestabelecidas.
Para o crítico literário a literatura extrapola os limites da palavra através da
linguagem. A literatura é, no interior da linguagem, o que destrói a metafísica inerente
a toda linguagem. Esta propriedade do discurso literário de ir além da linguagem,
transforma, para Todorov a literatura em uma arma assassina pela qual a linguagem
realiza seu suicídio.
O universo marquino, que para Rhoads, resulta em um texto impregnado de
incompreensões e urgências, pode ser considerado retrato fiel deste posicionamento
autoral. O resultado das opções feitas pela construção narrativa se evidencia quando o
texto aborda grandes problemas
a vida e a morte, o bem e o mal, Deus e Satanás, o triunfo e o fracasso, a
moral humana e o destino humano e a natureza da autoridade na vida de
uma nação. Não é uma história simples em que a virtude triunfa facilmente
sobre o vício, nem é uma coleção de instruções morais para a vida. A
narrativa não oferece respostas simples, mas desafios difíceis repletos de
ironia e paradoxo: para sermos mais importantes, devemos ser menos; nada é
escondido a não ser para se tornar conhecido; aqueles que querem salvar
suas vidas devem perdê-las. 43( tradução nossa)

Rhoads aponta no Evangelho de Marcos, que o texto entrecortado, que se torna


até incompreensível em certos momentos, se dá, na maioria das vezes porque as
expectativas são frustradas: aqueles que seguem Jesus esperam glória e poder e são
apenas chamados para servir e a sofrer perseguição; os que julgam Jesus para preservar
suas tradições e autoridade, mas só trazem juízo sobre si mesmos e as mulheres que
vêm para ungir o Jesus morto, apenas encontram um tumulo vazio. (Rhoads, 2012).
O compositor faz amplo uso de ironias, de figuras de linguagem. Usa do
suspense, da surpresa e do inusitado como forma eficaz de contar a estória, objetivando
as respostas a serem dadas pela audiência. O narratário é o objetivo principal do texto,
buscando que tenha um toque surpreendente para levar o público a refletir sobre sua
própria relação com o drama.
Rhoads, neste sentido, aponta que o Evangelho de Marcos pode ser considerado
verdadeiramente um drama, empregando dessa maneira, teoria literária de Victor Hugo,
que no seu prefácio a Cromwell, fundamenta que o drama, é a obra literária em que o
grotesco e o sublime coexistem de maneira harmônica.

43
RHOADS, David; DEWEY, Joanna; MICHIE, Donald. Mark as Story – An introduction to the narrative of
a gospel. P.1
Como um todo, a estória procura quebrar o modo de ver o mundo e convida os
ouvintes a abraçar outro, impelindo-os assim à ação.
Rhoads parte do princípio que pouco sabemos sobre o compositor do Evangelho
de Marcos ou sobre os primeiros ouvintes. Não foi assinado e nem datado e não contém
nada que ateste explicitamente ou à sua localização geográfica ou às circunstâncias
específicas de suas primeiras performances ou mesmo ao gênero de seu autor. Para
Rhoads, isto é elementar para a leitura, ao passo que “O Evangelho de Marcos” deixa de
ser uma narrativa literária (Evangelho) de um autor (Marcos) e passa a ser o título de
uma obra cujo autor é desconhecido. No entanto, Rhoads mantém a conveniência e
continua a se referir ao compositor como "Marcos".

O encontro do grotesco e do sublime.

Para Victor Hugo, o homem moderno é o resultado da co-existência do grotesco


e do sublime no agir humano, surgido do paradoxo entre corpo e alma, que faz emergir
uma infinidade de possibilidades artísticas. Dessa forma, o drama romântico, por
coexistir com o grotesco, deveria caracterizar-se pela mistura de gêneros, abandonar as
fronteiras entre a comédia e a tragédia para produzir a síntese do homem moderno,
cômico em meio à tragédia. Estas abordagens de Hugo podem ser percebidas nos textos
por ele citado no prefacio à Cromwell. Hugo percebe a existência dos contrastes em
Shakespeare, Moliere e nos textos bíblicos. Nestas obras Hugo aponta a existência da
dualidade bem e mal, possível graças à duplicidade (corpo/alma) descoberta pelo
homem graças ao cristianismo, que permite a existência do celestial, o belo, o sublime,
ao tempo em que coexiste com o feio, o inferno, o grotesco.
O cristianismo conduz a poesia à verdade. Como ele, a musa moderna verá as
coisas com um olhar mais elevado e mais amplo. Sentirá que tudo na criação
não é humanamente belo, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto
do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra
com a luz.44

A criação poética para Victor Hugo parte da mesma premissa aristotélica, a


imitação. Porém, quanto aos gêneros, Hugo propõe que não sejam utilizados de maneira
isolada, pois na vida não se mostram desta maneira.

44
HUGO,Victor. Do grotesco e do sublime. P. 26
Ela se porá a fazer como a natureza, a misturar nas suas criações, sem
entretanto confundi-las, a sombra com a luz, o grotesco com o sublime, em
outros termos, o corpo com a alma, o animal com o espírito, pois o ponto de
partida da religião é sempre o ponto de partida da poesia. Tudo é
profundamente coeso.45

Hugo afirma que o sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e


que existe a necessidade de descansar de tudo, até do belo. Para o dramaturgo francês,
parece, ao contrario, que o grotesco é um tempo de parada, um tempo de comparação,
um ponto de partida, de onde nos elevamos para o belo, com uma percepção mais fresca
e mais excitada. É necessário este “alívios cômicos” para que a mensagem principal da
estória não seja perdida, não se transforme em um melodrama, que traz a tona emoções
impensadas e que não leva a quase nenhuma reflexão. Para o objetivo do Evangelho de
Marcos seja atingido, não se pode lançar mão de certa ironia, de certa dose de humor,
sem exagero, mas presente.
Mikhail Bakhtin também aborda este contexto. Os ambientes mais promissores
da criação não respeitam gêneros delimitados pela critica. Para Bakhtin a suspensão de
tempo e espaço provocado pelo carnaval, permite, dentro do processo criativo, imbricar
o grotesco e o sublime dentro de uma mesma obra.
O riso e a ironia podem até não ser compreendido dentro de sua época, somente
o tempo consegue desvendá-los. As grandes obras ganham mais consistência conforme
o tempo, e compreenderão este “misturar-se” de gêneros que podem ser estranhos ao
seu tempo.

A sobrevivência de uma grande obra nas épocas que lhe sucedem, próximas e
distantes, parece, como estava dizendo, um paradoxo. No processo de sua
vida póstuma, a obra se enriquece de novos significados, de um novo sentido;
a obra parece superar a si mesma, superar o que era na época de sua
criação.46
A cultura popular na analise de Bakhtin tem protagonismo na criação das
narrativas. O caráter cômico da visão popular do mundo que Bakhtin chama de
“realismo grotesco” inclui as ações mais sublimes e as mais grotescas na sua

45
Idem. P.26
46
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal P.365
construção. O mundo não deixa de ser um grande organismo vivo, um caldo cultural
gigantesco, em que busca se explicar sua existência através do rebaixamento de tudo
que é elevado, espiritual, elevado, para o plano material e corporal. Neste movimento a
unidade da vida se mostra mais clara e indissolúvel.
Para Bakhtin não se deve individualizar a questão.
O porta-voz do principio material e corporal não é aqui nem o ser biológico
isolado nem o egoísta individuo burguês, mas o povo, um povo que na sua
evolução cresce e se renova constantemente. Por isso o elemento corporal é
tão magnífico, exagerado e infinito.47

Adquire, portanto, destaque a cultura popular na construção das narrativas. A


narrativa diz muito do seu tempo, e ganha significado no futuro. Apesar da visão
clássica, de certa maneira elitista, desconsiderar a produção de arte e de sentido por
parte das classes populares, o certo é que elas, de uma maneira direta ou indireta,
contribuíram decisivamente na produção cultural em todos os tempos.
O dilema existente entre os conceitos de cultura popular e cultura de massa tem
que ser abordados na leitura bíblica. O Evangelho de Marcos é impregnado de cultura
popular em sua totalidade. Esta cultura popular pode ser vista na necessidade de se
possuir uma característica elevada como a dos grandes escritores trágicos, mas também
possui elementos consideráveis da mais fina ironia, do riso que pode até ser sutil, mas
não pode ser descartado. O texto bíblico adquire as características de cultura de massa
na posterioridade. Na idade média, esta cultura de massa e de controle, submerge os
elementos do riso existentes no texto, para controlar a sociedade através do medo. Medo
que só podia ser burlado no carnaval. Tempo de riso e de liberdade.
Ecléa Bosi fundamenta basicamente a cultura popular como acultura dos pobres.
Visão que, segundo a autora, cria graves problemas na busca por estes elementos da
cultura popular, em primeiro lugar porque, as elites não consideram cultura aquilo que
não segue a norma culta; em segundo lugar, as camadas populares vivem uma realidade
e anseiam outra. Vive uma cultura e aspira outra.48
Não há como se desconsiderar a origem popular do relato de Marcos, tampouco
os elementos populares presentes nele, mas, a partir da redação e canonização, os

47
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na idade média. P. 17
48
BOSI, Ecléa. Cultura de massa e cultura popular.
aspectos mais populares, mais grotescos, submergem, são envernizados para ganhar o
estofo da norma culta.
Encontrar estes elementos no texto canônico é uma agradável tarefa, que vê nos
medos e incertezas narrados o reflexo do povo e da sua época.
Na raiz da compreensão da vida do povo está a fadiga. Não há compreensão
possível do espaço e do tempo do trabalhador manual se a fadiga não estiver
presente e a fome e a sede que dela nascem. E as alegrias que advêm desta
participação no mundo através do suor e da fadiga: o sabor dos alimentos, o
convívio da família e da vizinhança, o trabalho em grupo, as horas de
descanso.49

A transformação no âmbito da cultura, de transformação do texto, e de sua


adaptação para uma norma culta obscurece certos elementos que podem ser visto nas
entrelinhas. O ócio que era brinde e regozijo passa a ser visto como falha e má conduta.
É possível enquadrar o relato de Marcos dentro desta perspectiva, englobando os
elementos de cultura popular e da pretensão de se atingir a norma culta na sua redação.
Mas, não se pode desconsiderar que esta construção, feita a partir da oralidade, traz
consigo elementos da cultura popular. Traz no seu relato aspectos do grotesco e do
sublime que se amalgamam em um hibridismo cultural.

49
Idem. P. 15
REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO

Abordar o texto de Marcos como literatura não é de modo algum, algo inédito ou
inovador. Não são poucos os teóricos como Rhoads, que buscaram retratar o texto
marquino como literatura. Mas um grande número de teóricos evita sobremaneira este
enfoque, principalmente quando, no caso desta pesquisa, se optou por elencar os
elementos de literatura dramática presentes no texto, e seu hibridismo. Por este motivo,
a bibliografia se tornou um grande obstáculo a ser transposto.
Esta limitação bibliográfica foi a porta de entrada para o estudo da construção do
religioso através dos arquétipos e do inconsciente coletivo, e a partir da origem em
comum do teatro como liturgia de um deus grego, e a correlações existentes entre as
expressões religiosas de Dionísio e Cristo, buscar a critica da literatura dramática como
forma de abordagem ao Evangelho de Marcos.

Sendo a origem do teatro uma celebração cúltica, em que o semideus cultuado se


assemelha em muitos aspectos ao Cristo, e a sua forma de expansão, é possível, em
tentativa e erro, aplicar ao texto do evangelho o mesmo aparato crítico utilizado para a
literatura dramática, tendo em vista que a teoria de Jung não é de forma alguma datada,
ou restrita a qualquer grupo cultural. Partir de Jung para compreender a construção da
narrativa religiosa e enxergar que tanto a religião como a arte tem a mesma origem.
Berger e sua pesquisa sobre a psicologia histórica, será essencial para construir a ponte
entre o arquétipo junguiano e a construção religiosa.
Aristóteles e Quintiliano colaboram de maneira decisiva par compreender o
pensamento da época, para tentar se aproximar do inconsciente coletivo do tempo da
narrativa. Os medos, as angustias e a expectativas e as alegria do tempo apresentado no
relato podem ser observados através da forma como se construiu a narrativa, quais
recurso foram utilizados, quais gêneros estão presentes no texto.
Os traços do risível e da ironia que mesmo sutis estão presentes no evangelho,
podem ser evidenciados com amoderna critica de Minois, Bergson e Mary Beard que na
suas propostas de estudo do risível, denotam os elementos que constituem o risível,
onde eles podem ser percebidos e de que maneira são encontrados. Beard contribui no
estudo do riso na Roma antiga, o que contribui de maneira decisiva para o estudo desta
característica no período. Seguiremos o caminhos destes teóricos para buscar os traços
do riso e da ironia que podem ser encontrados em uma camada inferior no texto.
Colabora decisivamente na construção da pesquisa o texto de Hugo que abordam
a presença tanto do grotesco como do sublime na criação literária. A pesquisa optou por
ter este hibridismo apontado por Victor Hugo como forma elementar da narrativa no
evangelho de Marcos
Para nos ajudar neste desafio, seguiremos também o caminho da abordagem
da religião como elemento de cultura, teoria proposta por Paulo Nogueira, onde
podemos perceber religião como construtora de sentidos, e que para isso leva em conta
estudos de semiótica da cultura e cultura popular.
Para o trabalho da exegese dos textos do evangelho de Marcos contamos com a
obra de David Rhoads, Mark as story , com a obra de Helmut Koester, Introdução ao
Novo Testamento: história e literatura do cristianismo primitivo, e também com a obra
de Gerhard Hörster, Introdução e síntese do Novo Testamento.
A cultura popular é o espaço para a constrição do hibridismo apontado por
Hugo, para isso utilizamos a abordagem teórica de Bakhtin e Ecléa Bosi, que mostram
a cultura popular como forma de construção de sentido, de ressignificação da cultura
dita elitizada e da suspensão de gêneros na carnavalização.
Concluímos afirmando que a presente pesquisa está inserida no campo do
Cristianismo Primitivo, a construção literária dos textos bíblicos, sua evidencias trágicas
e cômicas, bem como a integração destes elementos em uma narrativa que parte da
cultura popular, buscando para isso apoiar-se em referenciais teóricos que trabalham
com temas no campo da religião, da crítica literária e da literatura dramática.

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