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TQ 28 (2015) 11-43 Artigos Batismo e partilha de bens EDUARDO DALABENETA’ Resumo: Esta investigaco pretende mostrar que o batismo é o caminho pelo qual as vivéncias de Jesus (inclusive as de partilha] passam a serem lambém as oped vivenciais de seus discipulos e discfpulas. Ao mesmo tempo, pretende percorrer alguns elementos cristolégicos e demonstrar que estes sGo 0 fundamento sacra mental do batismo € 0 contetido de sentido da vida batismal daqueles que séo *mergulhados e renascem das éguas" Palavras-chave: Jesus Cristo; Vivéncias; Batismo; Partilha 1 Doutorando em Filosofia na UNIFESP — Universidade Federal de Sao Paulo (Bolsista CAPES). Mestre em Teologia pela PUC-SP. Graduado em Teologia pela Faculdade Dehoniana, Taubaté/SP e com formacao filosofica pela Fa- culdade Sao Luiz, Brusque/SC. Membro do Grupo de Pesquisa “O pensa- mento de Edith Stein” do PPG/Filosofia da UNIFESP e do Grupo de Traba- Iho “Edith Stein e 0 Circulo de Gotinga” da ANPOF (Associacao Nacional dos Programas de Pés-Graduagio em Filosofia). Professor na Faculdade Dehonia~ na, Taubaté/SP e no UNISAL — Centro Universitario Salesiano de Sao Paulo — Pio XI 10 Paulo/SP. 11 Dizimo e partilha de bens na Igreja Abstract: This research intend to show the baptism as a way where the life actions of Jesus [including sharing) aim to be also a life options for his disciples. At the same time, it wants to show some christological elements and to prove that they are the sacramental foundation of baptism and the content and meaning of baptism life for those “immersed and reborn trough the waters" Keywords: Jesus Christ; experiences; Baptism; Shoring, Em minha mao trago a vela Sua chama proclama Que Tua vida santa arde em mim? epois de reformar o espago da cozinha comunitiria, a co- munidade Sao Luis Gonzaga da Paréquia Espirito Santo achou por bem empreender a troca dos bancos da igreja em vista de proporcionar melhor aconchego aos membros da comuni- dade durante os momentos celebrativos. O investimento exigia um montante nao disponivel pela comunidade considerando os investi- mentos anteriores e a colaboracao permanente com a paréquia re- centemente erigida. Depois de muito se pensar e enumerar possibi- lidades, 0 formato acordado foi de um carné com pequenas parcelas e este ficaria disponivel para ser retirado ao final da celebragdo com a equipe organizadora, que poderia esclarecer davidas e mostrar imagens dos possiveis bancos. Assim, quem pudesse doar pouco po- deria fazé-lo e nao se sentiria excluido da vida da comunidade e quem pudesse doar mais poderia tomar dois ou trés carnés. O rece- bimento da contribuicao ficou decidido acontecer ao final das cele- brag6es junto 4 sala do dizimo onde o registro seria anotado no car- né ¢ no livro de controle da comunidade. Ainda durante a fase de preparacao muitas dtividas apareciam: sera que havera adesao ao projeto? Serd que as pessoas da comunidade perceberao a importan- cia e partilharao 0 pouco que tém com a comunidade? 2. Edith STEIN, Piezas teatrales y poesia — Noche Buena, in pletas V — escritos espirituales, 2004, p. 793. Obras com- 12 Batismo e partilha de bens A partilha de bens que se mostra na superficie tem suas raizes fixadas na profundidade da experiéncia de fé. Por isso, a partilha de bens espirituais e materiais numa comunidade crista acaba por ser sinal e instrumento de conhecimento da autenticidade da experién- cia de fé, de pertenca a Cristo e de adesao a vida discipular e missio- naria que se manifesta a partir da vida batismal. 1. Arqueologia dos atos de partilha As manifestagdes de partilha sao identificaveis evidentemente no cotidiano humano de modo que podem ser entendidas como fenédmeno constitutivo das suas vivéncias. Contudo, quando anali- sadas mais de perto, muitas das supostas manifestacdes de partilha nao deveriam receber este nome. Analisemos dois conjuntos distin- tos de vivéncias: Vivencias A Vivéncias B * vrias pessoas percorrem uma rua © um jovem erguerse de seu acento Go mesmo tempo; no énibus @ o cede para um idoso; * cinco pessoas eguardam en uma | @ uma senhora de 63 anos ofsrece fila para setem alendidas por um un biscoito ao porteito do prédio caixa de supermercado em que vive Um olhar desatento diria que todas as vivéncias acima indica- das séo manifestages de partilha, pelo fato de conterem espagos comuns, por pessoas estarem dispostas nestes espacos e por haver entre as pessoas € os espagos algum tipo de relacgdo. Olhando mais atentamente, nossa reflexdo comega a recusar-se a aceitar tal “con- clusio comum”. A primeira rejeigo aparece quando trocamos nas vivéncias acima as pessoas humanas “sem nome e sem rosto” e pomo-nos em seus lugares: imediatamente deixamos de ser expectadores e passa- mos a analisd-las em primeira pessoa e isto preenche-as com con- tetidos que nao permitem que aceitemos que estas vivéncias acima indicadas tenham origem em nés nos mesmos lugares e sigam os mesmos principios. 13 Dizimo e partilha de bens na Igreja A segunda rejeigio aparece quando tiramos o foco do espaco supostamente partilhado e das outras pessoas que nele estdo e con- centramos-nos na relacdo que se manifesta. Imediatamente percebe- mos que 0 elemento de coesdo em cada conjunto de vivéncias ante- riormente elencadas é diferente. No primeiro conjunto de vivéncias (A) 0 tipo de relagdo acontece e é mantido por elementos externos as pessoas ¢ esta relacdo subsiste pelo tempo necessario até que todos alcancem um objetivo que nao é comum, mas pessoal, pragmatico: neste caso diriamos que as pessoas se associam numa mesma rua, numa mesma fila, mas nao estabelecem uma auténtica vivéncia de partilha, porque falta corresponsabilidade e reina a indiferenca. Por sociedade, [entende-se] a vinculagao racional e mecanica [...] Quando uma pessoa se situa como sujeito ante outra pes- soa como objeto, a examina e a ‘trata’ segundo um plano esta- belecido baseado em conhecimentos adquiridos e obtém os efeitos pretendidos [...] Na sociedade cada um se faz absolu- tamente solitdrio, é uma ménoda sem janelas [...]*. No segundo conjunto de vivéncias (B) aparece outro tipo de relacao. Aqui também existem pessoas e lugares, porém, diferente do primeiro conjunto, existe originalmente uma percepgao de valor, que nao procede de fora, mas origina-se nas pessoas. E este reco- nhecimento de valor‘ que estabelece um processo de vinculagao e 3. Edith STEIN, Contribuciones a la fundamentacién filoséfica da la psicologia y de las ciencias del espiritu — Individuo y comunidad, in , Obras com- pletas I — escritos filosdficos (etapa fenomenolégica), 2005, p.344. 4, “Em fenomenologia, ao empregar-se o termo valor, temt-se em vista ndo apenas identificar coisas de valor (a justiga, um quadro, um emprego etc), mas princi- palmente mostrar que certas atos de consciéncia nao sio neutros, mas envolvem atragio ou repulsa por seus objetos [...] Os atos de valoragao (que envolvem valor) sio chamados de sentimentos em fenomenologia. Por exemplo, posso ter a emogio de apaixonar-me por alguém, mas 0 sentimento de amor sé vird se eu reconhecer 0 valor do amor ¢ escolher alimenté-lo. Posso inclusive continuar a amar alguém mesmo descobrindo seus defeitos, pois me fixo no amor, no nos defeitos. Assim, nao sou eu que decido sobre 0 que é 0 amor, mas apenas 0 reconhego” (Francesco ALFIERI, Pessoa humana e singularidade em Edith Stein — wma nova fundacao da antropologia filosofica, 2014, p. 68-70), 14 Batismo e partilha de bens que esclarece que aqui existe um tipo de relagao diferente do pri- meiro conjunto de vivéncias: trata-se de relagio valorativa e moti- vada. Aqui nao diriamos que as pessoas se associam por causa de “acentos ¢ de doces’, mas “compartilham-se”, ou seja, se dio e se recebem reciprocamente e€ os “acentos e os doces” sao simples indi- cadores externos de um mover-se ¢ de uma vitalidade mais profun- da e interna: “a comunidade é o alargamento da minha humanidade para incluir, fazer entrar outros. Desse modo, mesmo quando 0 ou- tro nao esta diante de mim, ele esta sempre comigo”>. Por comunidade se entende a vinculacgao natural e organica entre os individuos [...] Quando um sujeito aceita ao outro como sujeito e nio somente esta ante ele, mas vive com ele e é determinado por seus movimentos vitais, neste caso os dois sujeitos constituem uma comunidade [...] Na comunidade reina a solidariedade [...] Nao é possivel, em absoluto, conver- ter 0 sujeito em objeto sem té-lo aceitado primeiro e sensivel- mente como sujeito [. A terceira rejeigdo aparece quando olhamos para a pessoa em que manifesta o referido reconhecimento de valor. Comumente vin- culamos as vivéncias de partilha as coisas externas ¢ materiais que as pessoas trocam entre si, mas a percepgao de valor demonstrada an- teriormente ja desarticulou esse pseudo-fundamento. Estes elementos externos tém funcio de Index’, mas nao tém funcio de significagdo (por exemplo, quando uma planta transfere pdlen para outra nao es- tamos diante de um caso de partilha, mas apenas de um processo natural, de associacao, regulado por forca genética: nao ha motivacao, 5. Francesco ALFIERI, Pessoa humana e singularidade em Edith Stein — uma nova fundagiio da antropologia filosifica, 2014, p. 89. 6. Edith STEIN, Contribuciones a la fundamentacion filoséfica da la psicologia y de las ciencias del espiritu — Individuo y comunidad, in , Obras com: pletas II — escrtos filosificos (etapa fenomenolégica), 2008, p. 344 7. ‘Tomamos aqui a palavra Index (indice) do vocabulario alemio conforme expli- cado por Edmund Husserl: “em sentido proprio, algo s6 pode ser denominado indice quando e no caso de servir efetivamente como indicagéo de uma coisa qualquer para um ser pensante” (Edmund HUSSERL, Investigagies ligicas — investigagao para a Fenomenologia e a teoria do conhecimento, 2012, p. 22). 15 Dizimo e partilha de bens na Igreja nao ha valoragao etc.). Por isso, ¢ preciso adentrar ao sujeito para iden- tificar o fundamento e a estrutura que sustenta a vivéncia de partilha e que confere sentido a estes Indezes* Partindo da percepgao de valor ja indicada, sua existéncia re- vela que a pessoa humana se erige como um ser poroso e permed- vel?. Hé nela uma abertura originaria que possibilita a ela mover-se e percorrer-se ao mesmo tempo em que se move e percorre aquilo que se autodoa a ela presente em sua esfera. Por causa disso, é capaz de captar, acolher e ocupar-se com a esséncia destas realidades que se autodoam, pois estas nao lhe sao estranhas ou externas, mas exis- tem em seu mundo. Este “captar, acolher e ocupar-se com” num ato de partilha acon- tece envolvido em relacdes empaticas"’, porque o ato de partilha exige 8. Ver nota 6: Indezes é o plural de Index segundo a idioma alemao, que ainda exige que os substantivos sejam iniciados em maitisculo, 9. Na liturgia cristi 0 dleo de origem vegetal ¢ 0 Index dessa condicéo humana de porosidade e permeabilidade: o dleo nio invade, agride ou “rasga” a pessoa, mas “escorre e fhui” ao interno da pessoa quando administrado porque ela é constituida capaz. dele. Na ordem da Graca, ele é sinal visivel de uma realidade invisivel e, ao mesmo tempo, da permeabilidade humana (Capax Dei) diante da Graga de Deus:“O Cristo Salvador te dé sua forca. Que ela penetre em tua vida como este éleo em teu peito” (RITUAL DE BATISMO DE CRIANGAS, Rito para o batismo de uma crianca — ungdo pré-batismal). 10. Diferente da simpatia, que é uma vivéncia psiquica, a empatia é a intencio com a qual constatamos a existéncia de outro ser humano semelhante a nés: “A empatia designa precisamente 0 ato pelo qual alguém percebe o contetido do ato de consciéncia de outrem no exato momento em que ele o vivencia [...] Em outras palavras, pela empatia compreendo a esséncia implica no ato de consciéncia de outrem, pois eu mesmo conhego esta esséncia. Neste sentido, nao vivencio originariamente (em primeira pessoa) aquilo que 0 outro viven- cia (pois essa vivéncia é s6 dele), mas, pela minha consciéncia co-originaria, tettho a capacidade de captar o sentido da sua vivéncia. A empatia é 0 tema que mais oferece riscos de ma compreensao no estudo do pensamento de Edi- th Stein, pois se observa a tendéncia a associé-la com simpatia, generosidade, compreensio psicolégico-moral ou identificacdo afetiva com o outro. Edith Stein, porém, fala de empatia numa descrigdo precisa da percepcdo. Dito de outra maneira, a empatia é um conceito “epistemol6gico”, nao psicolégico ow ético-moral” (Favenal SAVIAN FILHO, Empatia/Intropatia: Einfithlung, in Francesco ALFIERI, Pessoa humana e singularidade em Edith Stein — uma nova fundacao da antropologia filoséfica, 2014, p. 125-126). 16 Batismo e partilha de bens uma simetria pessoal como elemento fundamental (sempre so “eus” que se dao, que convivem, que se pdem um diante do outro) e, ao mesmo tempo, a coexisténcia originaria de energias que se entrelagam gerando vinculos (a0 modo de um dangar). A energia reunida nesta ocasiaio pode envolver (expressar-se) aquilo que foi percebido como valor com zelo, protegao, cuidado, elevaco, restauragao, de forma que esta realidade profunda descrita anteriormente (0 todo, 0 uno) pode expressar-se por meio de diversos elementos indexadores conforme os contextos, culturas e realidades (em partes, em perfis), Portanto, somente nas relagdes onde se estabelece vinculos em- paticos, com reconhecimento de valor e ocorre sua expressao pode-se falar propriamente de “ato de partilha”: “Estou diante de vocé! Vocé existe em mim e para mim!”. 2. Adentrar ao Mistério de Cristo pela porta das suas vivéncias Oferecer algumas informacdes introdutérias sobre o sentido antropoldgico do que é 0 ato de partilha foi o primeiro passo de nossa jornada em dire¢ao ao esclarecimento dessa vivéncia ao in- terno da comunidade crista. Nosso interesse agora é investigar se para além destes primeiros esclarecimentos pode-se constatar na vivéncia de fé crista alguma contribuicdo que se associe a este dado antropolégico j4 demonstrado: o sentido cristao da partilha, além de conter este elemento antropoldgico, apenas 0 administra ou iden- tifica um fundamento originario para esta vivéncia? Nessa nova etapa precisamos manter por uma questao de rigor e cientificidade 0 mesmo principio metodolégico anterior, neste caso, partiremos do mesmo dado evidente que sao as vivéncias de um individuo cristao. Ordinariamente as vivéncias de um individuo cristao sio orga- nizadas em torno de uma dinamica discipular que tem como nucleo de sentido comum a pessoa de Jesus de Nazaré, Essa dinamica disci- pular aparece em elementos externos (ritos, comportamentos etc.) ¢ internos (fé, vida orante etc.). Estes vinculos internos e externos apa- recem por meio de uma dinamica de aderéncia que se inicia a partir 17 Dizimo e partilha de bens na Igreja do encontro com as vivéncias de Jesus de Nazaré. Destas vivéncias que se encontram torna-se possivel um ato de fé, e este inaugura um caminho de iniciagao: [...] apesar de nao ser visto, ndo captado por nenhum dos sen- tidos, 0 objeto da fé esta sem diwvida diretamente presente, nos toca, nos sustenta e nos faz possivel sustentar-nos nele [...] A fé éuma captacdo e ndo um conhecimento no sentido estrito. Nés a entendemos como ‘ser tocado pela mao de Deus’, de forma que aquele que nos toca esta presente quando o faz. O fato de ser tocado é algo do qual nao podemos nos subtrair de modo algum [...] Frente a essa primeira captag3o existe um ato livre. Se procuro a mao que me toca, encontro-a sustentando-me e amparando-me em absoluto [...] O amor nos inunda e nos sen- timos levados por seu amor. Colocar a nossa mao na mao de Deus e ai permanecer é 0 ato que constitui a fé". As vivencias de Jesus Cristo nos so dadas pelas narrativas con- tidas nos escritos evangélicos e pelas primeiras comunidades. Edith Stein ja indicara na obra A Oragéio da Igreja"? que as vivéncias de Jesus de Nazaré sao as portas para a reflexao teol6gica que nao pretenda ser mera especulaco, conjunto de opinides ou um modo de atributivismo académico porque estas vivéncias tém a capacidade de conduzir tan- to os estudos quanto os discipulos ao nticleo vital de seu Mestre. Assim, perguntamo-nos: podemos localizar nos escritos evan- gélicos narrativas que contenham atos de Jesus coerentes com a descrigdo antropoldgica sobre o que é um ato de partilha? Quando se olha atentamente os escritos evangélicos sob esta perspectiva comecamos a perceber que as narrativas esto alinhadas e costuradas justamente por uma comum memiéria dos atos de par- tilha de Jesus. Os Escritos tem em seu subterraneo uma mesma sustentagao comum, de que Jesus tem consciéncia de que diante 11. Edith STEIN, Naturaleza, liberdad y gracia, in , Obras completas Ill — escritos filosoficos (etapa de pensamiento cristiano), 2007, p. 120 e 123-124. 12. CE STEIN, Edith. La oracién de la Iglesia. In Obras completas V— escritos espirituales. Burgos; Madrid; Vitoria: Editorial Monte Carmelo; Edi- torial de Espiritualidad; Ediciones El Carmen, 2004. 18 Batismo e partilha de bens dele primeiro esta pessoas e depois 0 que elas fazem, dizem, que- rem, pedem etc. Recordemos da narrativa de Zaqueu (Lc 19,1-10), da mulher surpreendida em adultério (Jo 8,1-10), da escolha de Mateus (Le 5,27-31): em todas elas ha em Jesus gestos que decor rem dessa percep¢io empatica e os textos sinalizam tal consciéncia por meio de diversos elementos (Index): “olhar para cima” no caso de Zaqueu (Lc 19,5), “inclinar-se, escrever no chao” (Jo 8,6) na nar- rativa da mulher surpreendida em adultério, “sair e ver” no caso da escolha de Mateus (Le 5,27). As narrativas indicam que no subterraneo de Jesus, a empatia constitui o ponto de apoio e a forga que envolve todas as suas rela- cées. Esta percepcao empatica original da origem a um fluxo de vi- véncias sempre coerente com o mesmo nucleo vital, sem interrom- pimento, saltos ou desvios, muito diferente do que acontece normal- mente conosco, como j4 indicara Paulo: “Eu nao fago o bem que quero, mas pratico 0 mal que nao quero” (Rm 7,19). Progredindo em nossa escavacao teologica podemos perguntar: ja descobrimos que a percep¢ao empatica é uma “sustentagdo co- mum”, antropoldgica, aos diversos atos de partilha de Jesus, mas sera que existe uma “sustentacao singular”? O individuo é algo de singular, uma coisa tinica; isso pode ser fundado no que-coisa ele é uma vez que esse individuo no admite nenhuma repeticio'?. A irrepetibilidade como garantia da unicidade intangivel do individuo pertence somente a deter- minagao qualitativa do seu ser e nao a plenitude quantitativa (que por si é repetivel em mais individuos). Em outras palavras, nao € o preenchimento como contetido, mas a tonalidade qua- litativa do preenchimento que torna o individuo um ser singu- lar de modo tinico ¢ irrepetivel (a tonalidade, aqui, corresponde ao modo singular de cada ser operar ou possuir as mesmas ca- pacidades compartilhadas pelos outros seres)"*. 13. Edith STEIN, Acto y potencia—esttidios sobre uma filosofia del ser, in Obras completas III — escritos filoséficos (etapa de pensamiento cristiano), 2007, p. 266 14. Francesco ALFIERI, Pessoa humana e singularidade em Edith Stein — uma nova fundagao da antropologia filosofica, 2014, p. 59. 19 Dizimo e partilha de bens na Igreja quentemente os de seus dis Esta “sustentacdo singular” oferece-nos a possibilidade de en- tender o fundamento tiltimo dos atos de partilha de Jesus (conse- pulos e discipulas) e, a0 mesmo tempo, possibilita adentrarmos no mistério da singularidade e da conscién- cia do Cristo Mestre. 3. Omistério da singularidade de Jesus e sua constituigao 20 O mistério da singularidade de Jesus que queremos compre- ender obriga-nos a investigar a consciéncia que ele tinha de si para oferecer um fundamento tltimo aos seus atos de partilha. O terre- no da “autoconsciéncia” de Jesus exige daqueles que dela se apro- ximam alguns cuidados: [a] [b] Tal iniciativa é um caminho exigente, que tem de um lado um “abismo antropolizante” e do outro um “paredao de pedras divinizante”. Sempre hé o risco de inclinar-se para ima das duas direcdes e perder o foco do caminho que se tem em frente, que é 0 caminho das vivéncias de Jesus: evidente, autodoado, Ambos os extremos pressupdem ha- ver em Jesus um “problema” que precisaria ser resolvido, porém, na verdade nao ha “problema” a ser resolvido, mas um Mistério com o qual precisamos aprender a com-viver. Se quisermos resolver esta tensdo, se “aniquila em e para” nés 0 Mistério de Jesus; A consciéncia que Jesus tinha de si contém duas dimen- 6es: [i] interior — invisivel nao comunicavel e [ii] inte- rior — visivel comunicavel. A primeira dimensao [i] cons- titui algo somente dele, da sua intimidade, que nao é com- partilhado conosco; trata-se de uma “Reserva de Mistério” que sabemos existir, mas que ndo somos capazes de pe- netrar, ou seja, por mais que O conhec¢amos, convivamos com Ele, nao O esgotaremos ou O explicaremos por com- pleto, Querer investigar esta dimensio é¢ inclinar-se a um Batismo e partilha de bens jogo de atributivismo e perder a cientificidade (comecasse a “atirar no escuro”). A segunda dimensio [ii] constitui o que dessa consciéncia de si Jesus compartilhou com seus discipulos (interior — visivel comunicavel) e sobre isso podemos falar e é nesta dimensao de tensao que se en- contra os vestigios de sua divindade. Isso obriga-nos outra vez a ocuparmo-nos com as vivéncias de Jesus porque nelas sua interioridade (singularidade) nos é manifestada, epifanicamente nos é tornada disponivel: “Ele, no mistério do Natal que celebramos, invisivel em sua divindade, tor- nou-se visivel em nossa carne”. Consciente dos perigos, protegidos pelo rigor da inteligéncia (intus-legere) ¢ amparados pelo conselho de “retornar as préprias coisas”!®, percebemos que no arco das vivéncias de Jesus, do misté- tio da encarnagao a doagao do Espirito em Pentecostes, depois de ja situarmos a “sustentacéo comum’” na percepgio empitica, somos surpreendidos por novos contetidos quando concentrarmo-nos no que Jesus diz de si nestas vivéncias: Doute gragas, Pai, “O Espitito do Senhor ‘Aprendsi de mim que Senhor do céu e da esté sobre mim € me sou manso e humilde de terra [...]’ ungiu [...]" coragéo [...]" (Mt 11,25ss) (lc 4, 185s) (Me 11,29) Pai nosso, que eslais ‘Ninguém tira "J ndo chamo nos céus, santilicado minha vida, ev a vooés de servos [...], seja teu nome, assim dou livremente [...]". mas amigos [...] na terra como céu, venha Yo 10,18) (o 15,15) feu Reino, seja feita tua vontade, assim na terra como no céu [...]’ IM 6,9ss) 15. MISSAL ROMANO, Prefacio do Natal do Senhor — a restauragao universal na Encarnagéo. 16, Edmund HUSSERL, Investigagdes ligicas — investigagdo para a Fenomenologia ea teoria do conhecimento, 2012, p.5 21 Dizimo e partilha de bens na Igreja "Lu elevou ov "L...] O lugar € "Toad viv uma alhos para 0 céu, deserto ea hoa muito | grands mulidéo e se obengoou e patty os | avancada. Despede-os —_encheu de compaiio, pdes e eniregou a seus | para que possam ir porgue eram como discipulos pore que 205 compos ¢ vilaos__/ ovelhos sem postr. sorvissem eles [..J’. | vizinhos, © comprem E comegou 0 ensinarthes (Mc 6,41] | para si o que comer’ muitas coisos' Jesus Ihes respondeu: (Me 6,34) océs € que devem darlhes de comer™. [Mc 6,35b37a) A consciéncia de Jesus de si mesmo apareceri sob forma de tensdo e nao como uma decantacao, declinagao ou desdobramento de um “eu solipsista’. Nao sao afirmagdes vazias, projegdes ou for- mulacies de distingao dele em relacdo aos outros (nao sou aquilo, mas isso): trata-se de uma afirmagio positiva, porém ao inverso. Ele afirma a vivéncia e aponta para ela, para a tensio (visivel), para que dela se alcance seu sentido iiltimo (invisivel). As vivéncias de Jesus através dos textos indicados acima possi- bilitam depreender trés vibracSes constitutivas: relagées filiais, rela- ges livres e relagdes fraternas: [a] Da vivéncia filial de Jesus (visivel) decorrem duas afir macées positivas como realidades diferentes, mas partes nao independentes: o Filho e o Pai (invisivel); [b] Da vivéncia livre de Jesus (visivel) decorrem duas afirma- Ges positivas como realidades diferentes, mas partes ndo independentes: 0 Livre e 0 Libertador (invisivel); [c] Da vivéncia fraterna de Jesus (visivel) decorrem duas afir- macGes positivas como realidades diferentes, partes inde- pendentes, porém relaciondveis assimetricamente: o Irmao 0 irmio (invisivel)!”. 17. Nos dois outros casos anteriores, a vivéncia filial e livre afirma a consciéncia de Jesus e a existéncia das demais pessoas da Trindade. Nesta tltima nao se afirma junto com a consciéncia de Jesus outra pessoa da Trindade, mas a pes- 22 Batismo e partilha de bens As afirmages que Jesus faz de si revelam a nés sua consciéncia singular de Filho, Livre e Irmao!®: “Ele vive diante do rosto de Deus, no apenas como amigo, mas como Filho [...] A palavra ‘Filho’, com © seu correspondente Pai-Abba, permite-nos realmente lancar um. olhar para o interior de Jesus, sim, para o interior de Deus. A oragao de Jesus é a verdadeira origem desta expressao ‘o Filho’ [...] Existe a originalidade de Jesus. $6 Ele é‘o Filho”. Unidas pericoreticamen- te, a filialidade, a liberdade e a fraternidade como plenitude de sen- tido de seu ser é a “sustentacao singular”, o fundamento ultimo dos atos de partilha de Jesus alcangavel por nés, porque nos endereca ao coragdo da vida trinitaria: este é o nticleo vital de Jesus de Nazaré, 0 Cristo! E nesta certeza que Ele oferece, ao mesmo tempo revela 0 Mistério de Deus e revela 0 mistério do ser humano em Deus. Mas engana-se quem vé nesta descricao certa “divinizacao” das vivéncias humanas ou “antropologizacao” da vida divina (Monofisis- mo, Arianismo ou Pelagianismo). Na carta enderecada a comunidade de Colossas se afirma: “Ele é a imagem do Deus invisivel, o Primogé- nito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visiveis e as invisiveis: tronos, soberanias, principa- dos e autoridades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele exis- te antes de todas as coisas, e tudo nele subsiste” (Cl 1,15-17). A intuigSo presente neste escrito é de que Cristo, o Gerado naio criado”, é a imagem presente em toda criagio e isso obriga-nos a ado- tar o decorrente principio agostiniano dos Vestigios da Trindade”. Neste caso, estas vivéncias e vibragdes nao se manifestam em Jesus soa humana (o0 irm4o com “i” minusculo), ou seja, no mistério de Jesus esta a abertura da Trindade & pessoa humana e a indicagdo de uma “integracio”, de ‘um “lugar” para o mistério da pessoa humana neste Mistério, nao como um. apéndice, mas como algo querido por Deus em seu plano salvifico. 18. C£ MACANEIRO, Marcial. Apostila didatica do curso de Eclesiologia. Tauibaté: pro manuscripto, 2009. 19. Joseph RATZINGER, Jesus de Nazé 4 transfiguragéo, 2007, p. 25 ¢ 291 20. DZ 125 21. C£ AGOSTINHO DE HIPONA, A Trindade, VII, 10; IX, 1-5; IX, 10-12; XII,4 é —Primeira parte: do batismo no Jordéo 23 Dizimo e partilha de bens na Igreja porque fomos nés que lhe “passamos” ao ele encama-se. Na verdade, estas vivéncias ¢ vibracées nao so originariamente nossas (humanas), mas da Trindade (divino) e por dom e graca de Deus dados também a nés como Imago Dei. Na medida em que vivemos semelhantes a Jesus e-crescemos A sua estatura (Ef 4,13), a Sua filiadade, a Sua liberdade ea Sua fraternidade crescem em nés a medida da Imago Christi: so- mos filhos no Filho, livres no Livre, irmios no Irmao!22 Em seus escritos antropologico-teolégicos Edith STEIN afirma que o ser humano, por causa da Imago Dei — Imago Christi, “[...] leva ja em si o selo da Trindade: enquanto vida independente é a imagem do Pai; enquanto vida plena de sentido é uma imagem do Filho; e enquanto vida, exteriorizac4o de forga € irradiagao da essén- cia, é uma imagem do Espirito Santo”’. Ela reforga essa certeza afir- mando que “a vida divina que se desenvolve na alma que ama a Deus nao pode ser outra coisa senao a vida trinitaria da divindade. Certa- mente é o Deus Trinitario que se entrega a alma. Ela se entrega a vontade de Deus Pai que, pode assim, gerar outra vez a seu Filho nela [...] Se trata de uma auténtica filiagao divina”’. Por causa de Cristo é erigida em cada pessoa a imagem filial, livre e fraterna>. Essa Revelacao Salvagao feita por Jesus (a filialidade, a liber- dade e a fraternidade como nucleo vital da sua identidade e proje- to sobre o qual flui a salvacao) constitui o fundamento para diversos itinerdrios presentes ao interno da vida crista: [a] A vida orante e litargica (pessoal e comunitaria) organiza-se em tomo do Mistério filial, livre e fraterno de Jesus que é tornado disponivel e acessivel 4 comunidade de seus dis- 22. Cf. BENTO XVI, Discurso do Papa Bento XVI. Comunidade do Pontificio Instituto Litiirgico do Ateneu de Santo Anselmo no 50° Aniversdrio de Fun- dagdo. Disponivel em: . Acesso em: 20 de janeiro de 2016 23. Edith STEIN, Ser finito y Ser Eterno — ensayo de una ascensién al sentido del ser, in ,, Obras completas II — escritos filosoficos (etapa de pensamiento cristiano), 2007, p. 1016. 24. Idem, p. 1046. 25. Idem, p. 1051 24 26. 27 28. Batismo e partilha de bens cipulos nao apenas para uma contemplacdo objetificante, mas ao modo de coparticipago, ou seja, o didlogo filial, livre e fraterno de Jesus de Nazaré é constituido também naquele que dele se aproxima e este aprende a falar com © Pai do jeito de Jesus, na forga do Espirito, em primeira pessoa e em comunidade. Percebemos isso quando lemos atentamente as oracées litargicas que nos envolvem du- rante o Ano Liturgico: O Deus, que admiravelmente criastes o ser humano e mais admiravelmente restabelecestes a sua digni- dade, dai-nos participar da divindade de vosso Filho, que se dignou assumir nossa humanidade”®. O Deus, cujo Filho Unigénito se manifestou na rea- lidade de nossa carne, concedei que, reconhecendo sua humanidade semelhante a nossa, sejamos inte- riormente transformados por Ele’. Pai, vés nos amais tanto que nos destes vosso Filho Jesus para que ele nos leve até vés. Vos nos amais tan- to que nos reunis em vosso Filho Jesus, como filhos e filhas da mesma familia”. [b] As narrativas evangélicas nao fazem outra coisa senao mos- trar Jesus revelando este seu Mistério e, ao mesmo tempo, reconstituindo nas pessoas vivéncias filiais, livres e frater- nas. Recordemos da narrativa da mulher surpreendida em adultério (Jo 8, 1-10): a filiagdo lhe é constantemente ne- gada por aqueles que a acusam, como se ela tivesse perdi- do 0 vinculo com Deus (por isso, pensam em apedreja-la); nenhum dos presentes lhe dirige uma atitude de fraterni- dade (nao lhe possibilitam falar ou explicar-se); de todos os lados, inclusive internamente, ela esté constrangida, im- MISSAL ROMANO, Natal do Senhor — oragéo do dia da Missa do Dia. MISSAL ROMANO, Batismo do Senhor — oragéto do dia. MISSAL ROMANO, Prefacio da Missa com criangas IL 25 Dizimo e partilha de bens na Igreja 26 pedida de mover-se (as palavras, os gestos eo siléncio dos omissos so como correntes que fixam a mulher ao chao). Os gestos de Jesus reconstroem quem originariamente a mulher é e Ele faz isso diante dos presentes para que eles também refacam em si o mesmo itinerario: [i [i J] i Jesus permanece em siléncio; ele se abaixa; escreve no chao; olha para a mulher; dialoga com a mulher; dia- loga com demais presentes... A pessoa humana esta em primeiro lugar (percepco empitica, reconheci- mento de valor). Os que trazem a mulher querem retomar as polaridades (ela — nds), mas Jesus nao se encaminha para uma das extremidades (a favor dela —a favor dos que a trazem). Ele revela aos presentes a existéncia de uma terceira opcio (as possibilidades de resposta dos que trazem a mulher sao aniquiliza- doras). Ele se move a tensio, porque ali se manifesta quem realmente é a pessoa humana e seu mistério; Ao perguntar aos presentes “quem nao tem pecado, atire a primeira pedra’ (Jo 8,7), Jesus faz com que eles percebam que a mulher e os que a entregam estado no mesmo nivel, comungam de uma mesma capacidade em poténcia e em ato de errar — todos sio solidarios (fraternos) na bondade e na fraqueza. Ao mesmo tem- po Jesus enderega-os ao perdao de Deus que eles mesmos experimentam para os seus erros e pecados ¢, por isso, ndo podem negar que Deus também pos- sa perdoar os erros e pecados da mulher (condenar a mulher seria condenar a si mesmo). Ele nao “muda” as pessoas, 0 lugar ou 0 fato, mas encaminha todos para além das turvas e tumultuadas aguas em que estdo: ele move-se ao seu essencial e traz consigo a mulher e os presentes que a trazem a Ele. O gesto de soltar as pedras e sair ¢ Index da consciéncia fraterna, filial ¢ livre que novamente passou a imperar na vida daqueles que negavam 4 mulher sua dignidade filial, Batismo e partilha de bens livre e fratema. Ao final Jesus ergue-se ¢ a mulher ergue-se com Ele também. A condigio origindria os filhos de Deus é a posigao “em pe”, erguido””. A mu- lher € devolvida 4 comunidade para voltar a viver como irma, 20 mesmo tempo seus olhos saem da fi- xagio do chao, que lhe oferece apenas uma diregio, passa a viver como pessoa livre, capaz de outras di- recdes, e erguida a mulher manifesta sua identidade filial nunca perdida, apenas entorpecida: “‘Mulher, onde esto eles? Ninguém condenou vocé?”. Ela res- pondeu: ‘Nao, Senhor’. Entao Jesus disse: ‘Eu também nao te condeno, va e nao peques mais’” (Jo 8,10). [c] Edifica-se a compreensio das primeiras comunidades cris- tas sobre sua identidade, os vinculos que sustentam sua vida discipular e 0 compromisso missionario: Filialidade Uberdade Fraternidade Recebestes um espirito “V6s ndo sabeis que “Destinov-os a de filhos, que nos permite | sois templos do Espirito, | reproduzir a imagem clamar: Abba, Pai’ que recebeis de Deuse | de seu Filho, de (Rm 8,15) | reside em vase" modo que ele fosse 29. (1Cor 6,19) | © primogénito de muitos irmGos" [Rm 8,29) Nao € por acaso que nas narrativas da comunidade de Marcos muitas vezes se utiliza do verbo éyerpe (erguer): Me 1,29-31; 1,41; 2,11;3,3;9,26-27; 1048-52. Surpreende-nos quando nos dirigimos ao capitulo 16,5-7 e descobrimos que verbo usado para explicar a ressurreicao de Jesus (Mc 16,6) também é éyeipe (erguer) em forma aoristo #jyepy (foi erguido). Significa que durante toda sua vida Jesus realizou exatamente o que ele & o Erguido, ergue. Por isso, 0 “anjo” manda a comunidade voltar para a Galileia, pois foi lé que os discipulos o viram cerguer (Mc 16,7), logo, somente quem retoma esta meméria entende o que esti acontecendo agora (ressurreigio). Também nao é por acaso que em nossas celebragdes litirgicas ouvimos em pé, erguidos, ao menos o Evangelho, porque esti a “posicao” dos filhos de Deus e dos irmaos de Jesus que com ele e unidos nele cooperam na dilatagdo do Reino como discipulos missionérios 27 Dizimo e partilha de bens na Igreja "Graga e paz a "Agora, porém, nao "Amemse uns oo vocés, da parle de existe mois nenhuma outros com carinho Deus nosso Pai e do condense para agueles | de inméos, cada Senhor Jasus Cristo” que esiao om Crist. um considerando (1Cor 1,3), | Peis @ lei do Espirito em | os outros como mais Cristo libertou voc’ da lei | dignos de estima" do pecado ¢ da morte” (em 12,10) (Rm 8, 1-2} [d] A ciéncia teolégica (ao menos a sua dimensio sistemitica) tem aqui o fundamento do seu inteiro edificio e de sua harmonia constitutiva: nao ha “apéndices’, “improvisos” ou “puxadinhos” teoldgicos: TRINDADE Poi Fiho Espirito ECIESIOIOGIA EREVEACAO | THEOIOGA | CRSTOIOGIA | PNEUMATOIOGIA | E MISSIOLOGA PAS filloidade Acomunidade Liberdode “ig! e cnda Fratemidade no”, santa Imago Dei epecadora, z - - peregrina ANTROPOLOGA | Imago Paris Imago Chri | Imago Spirits eedebyava GRACAE geaem nés gera en és eta em rés dos flhos, SOTERIOLOGIA | um vineul fil um vinulafraferno | um vineul ive dos libertos ria, concede, ‘e dos irmios, restaura ¢ eleva, vive e anuncia os vineulos oReino, SACANENTOIOGA | Batsmo Evcarsio Confimaio | ‘consfitvi em nos constitul em nds consitui em nés Vidrio fla! | aVyéncohoena | anc lie (uma sé pia batismal} (um s6 alton) [um s6 omoéo| Peniéncia ¢ Ungio dos enfermos: cura en relagtio (00 que afasia desies vinculs iiciticos ‘Matriménio e Ordem: senvico aos vinculos iniciiicas VIRTUDES Fe Coridade Esperanga. ESPIRITUALIDADE ESCATOLOGIA EUTURGIA ‘A pessoa humane vive em Deus e dionte da sua face segundo si redlidade defnitva: iho, (sre ljméo 28 Batismo e partilha de bens ‘Ao mesmo tempo em que a filialidade — liberdade — frater nidade em Jesus revela sua identidade ao interno do mistério da Trindade (Filho — Livre — Irmo), por meio dele e de suas vivén- cias temos acesso também ao entendimento, embora parcial por causa nossa, da identidade de Deus Pai e de seu agir conosco. A Sa- grada Escritura enumera uma lista do seu agir e os substancializa: Clemente, Bondoso, Justo, Paciente (Ex 34,6; $1 103/102,3-4; SI 136; Sl] 146/145,7-9; Mt 5,7; Mc 5,19; Le 6,36; Le 7,15; Le 15,1- 32; Ef 2,4), de modo que para nao projetar esta mesma lista ao in- finito, adota como termo limite (fechado a nés e aberto para Ele) o Misericordioso, como também fara o Alcorio ao iniciar as suras com. a mesma invocagao basmalah**: “Em nome de Allah, O Miserior- dioso, O Misericordiador™". A misericérdia de Deus, portanto, nao é uma abstrac3o ou uma emogéo, mas uma presenga (“cheio de’ — Misericordioso) ativa (“que faz, que da” — Misericordiador) tanto na tradigdo judaica quanto islimica. Em Jesus de Nazaré, a misericordia “revela 0 mistério da Santissima Trindade, Misericérdia: é 0 ato ultimo e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro. Misericordia: é a lei fundamental que mora no coragao de cada pessoa, quando vé com olhos sinceros 0 irmao que encontra no caminho da vida. Misericérdia: ¢ 0 caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coragio a esperanga de sermos amados para sempre, apesar da limitaco do nosso peca- do”. Nele a misericordia retorna a sua origem, deixando as subs- tancializagdes e mostrando-se outra vez como verbo, como presenga ativa (acao, agir). Neste caso, 0 verbo originario (fontal) da miseri- cordia ¢ 0 “erguer”: ele é vazio de contetido, mas nao de qualidade. O verbo “erguer” possibilita todas as diversas e infinitas manifesta- des do Pai em seu Filho Jesus, porque sao sempre “erguimentos” em diversos preenchimentos: ao perdoar, Ele ergue; ao curar, Ele ergue; ao ser paciente, Ele ergue etc. 30. A unica sura nao iniciada com a basmalah é a IX — Siiratu at-Taubah (Sura do arrependimento). 31. ALCORAO, A sura da abertura, n. 1. 32. FRANCISCO, Misericordiae Vultus: Bula de Proclamagao do Jubilew Extraor- dinario da Misericérdia, 2015, n. 2. 29 Dizimo e partilha de bens na Igreja O “erguer” de Jesus, tao frequente nos evangelhos, é 0 rosto de- finitivo da misericérdia do Pai’ e 0 “fio condutor” que da sentido aos diversos mandatos de misericérdia proferidos por ele, por exemplo, na parabola do Bom samaritano (Lc 10,25-37), nas Bem-ayenturan- cas (Mt 5, 1-12), na narrativa do Juizo final em Mt 25,31-46. A misericordia de Deus entendida como “erguimento” nos en- derega ao mistério do Coracao aberto de Jesus. Aparentemente o Coracao transpassado sinaliza a tentativa de silenciamento do pro- cesso de erguimento que acontece na Revelacao em Jesus: 0 Coragio em si ja era suficiente, mas um gesto humano “tresloucado” tenta desfazé-lo, elimina-lo... Mas a atitude humana surte efeito contrario, nao s6 nao consegue desfazer e silenciar este Coracdo como desen- cadeia e acaba por oferecer a ele a possibilidade de mostrarse ainda mais: a tentativa de escondimento humano do amor divino torna este amor mais evidente (como querer apagar 0 fogo com alcool!). O coragio aberto sinaliza que existe um lugar para a pessoa humana no plano de Deus: a vida humana nao é desprezada, mas acolhida ao interno do mistério da Trindade. Viver em Deus segun- do o ritmo do Coragio do Filho nao é um “deixar-se de ser’, um “esquecimento de si, “um perdimento ou diluigao da singularidade”. Esta nova abertura e esvaziamento realizados no Coragao do Filho constitui um ato criador de Deus (semelhante ao Tzimtzum da mis- tica judaica Kabbalah): 0 Coracio do Filho é feito largo, comprido, alto, profundo (Ef 3,18) o suficiente para conter todos os filhos dis- persos (Jo 11,52):“E vontade daquele que me enviou é que eu nao perca nenhum dos que ele me tem dado, mas que eu ressuscite a todos no tiltimo dia” (Io 6,39). ‘Assim, o Pai, por meio do Filho, ergue a pessoa humana nfo para que permaneca ao externo da vida trinitaria, mas para que adentre em sua interioridade, para que todos participem da festa, do banque- te (Mt 22,1-14; Le 15,11-32). Isso para que o ritmo da Trindade ma- nifestado no Coragao do Filho seja vivido por aqueles de que dele se aproximam no de forma associativista a0 modo de causalidade (se- melhante a um contagio, de fora para dentro), mas ao contrario, como 33. Idem, n.1 30 Batismo e partilha de bens uma comunidade onde reina o principio de motivagao e em todos se manifesta um vibrar que é comum e, ao mesmo tempo, pessoal (ade- sao, de dentro para fora). A atitude humana desastrada desencadeia ainda a possibilidade de Deus revelar a irrevogabilidade de seu agir e de seu amor: 0 Coragio transpassado é “incosturavel” e permanecera sempre aberto como o sinal definitive da misericérdia divina. O que procede do Coragao do Filho nao “se perde”, mas se torna para nds em nosso fragil, contingente e existente “agora” um caminho entre 0 mistério da pessoa humana e 0 mistério de Deus. A Misericordia ergue a pessoa humana para que peregrinando pos- sa adentrar ao Coragio do Filho que ja a envolve e a atrai com sua beleza, ritmo e vida: “[...] ouviu mtisica e dangas. Chamou um dos servos € perguntou o que era aquilo. Ele lhe disse: ‘Seu irmao che- gou, € seu pai matou um bezerro gordo, porque o recuperou com satide [...]” (Le 15,25b-26). 4. Onmistério de Cristo em nés O mistério de Jesus é uma coisa sé com as suas vivéncias. Por isso, adesao e discipulado junto dele é comunhio com as suas vi- véncias. As vivéncias de Jesus nos libertam de um viver errante no labirinto da vida e constitui-nos como peregrinos e um povo: “Meus irmaos e minhas irmas, tendo iniciado solenemente esta vigilia, ou- camos no recolhimento desta noite a Palavra de Deus. Vejamos como ele salvou outrora seu povo € nestes tltimos tempos enviou seu Fi- Iho como Redentor. Pegamos que 0 nosso Deus leve a plenitude a salvagdo inaugurada na Pascoa”™. As vivéncias de Jesus com as quais comungamos nao siio uma escolha subjetivista de quem dele se aproxima, mas uma autodoa- ¢ao de Cristo Mestre a nds. Conviver com estas vivéncias é um ca- minho de iniciagao. Dentre as muitas vivéncias de Cristo, sua paixdo e morte nos so dadas como realidades com a qual necessariamente também pre- 34, MISSAL ROMANO, Domingo da Piscoa na Ressurreigéo do Senhor: na noite Santa (Vigilia Pascal) — Liturgia da Palavra (monicao de abertura). 31 Dizimo e partilha de bens na Igreja cisamos comungar (a adesio nao pode ser parcial, mas integral). Mas esta sua paixdo e morte repercute em nds, assustando-nos como ou- trora assustou os seus discipulos (Me 14,50.66-72; Le 23,49). Porém, é na paixdo e morte de Cristo que se mostra a agao de- finitiva de Deus: Ele O ergue, ressuscita (Mc 16,15ss). Embora a pessoa humana possa no curso da vida experimentar diversos “ergui- mentos divinos”, a experiéncia definitiva do erguimento humano acontece quando também nos unimos a paixdo, morte e ressurreigio de Jesus: 0 Pai realiza em nos semelhantemente o que realizou em Jesus, por isso, nao ha nenhum erguimento é a este comparavel. A morte pode ser entendida como um desfazimento e diluigio de vinculos. Diante disso, a primeira impressio que se tem é de que nada sobra a sua agiio e que a pessoa humana retorna a uma supos- ta “solidao originaria”. Sim, a morte desfaz os vinculos que a ela estao submetidos (corpéreos, psiquicos e espirituais), especialmen- te os artificiais, mas ela nao toca naquilo que excede a natureza vinculativa. Ela inclusive p6e ao chao 0 vinculo de emancipagao e de autossuficiéncia ao qual tao fortemente nos unimos durante nos- sas vidas, que nos associa ao pecado das origens (Gn 3—4: emanci- pacao/autossuficiéncia em relagao a Deus e ao outro). Desfeitos os vinculos antigos, a pessoa humana é tornada capaz de retornar nao a solidao, porque esta nao é sua origem, mas 4 “agua divina primordial” (Gn 1,1-2), fonte criadora. Esta “agua divina pri- mordial” concretamente nos é oferecida e nos alcanca no Coragao aberto de Cristo (Jo 19,34): “Vi a agua saindo do lado direito do templo, aleluia! E todos a quem chega essa agua recebem a salvagio e proclamam, aleluia, aleluia!”*’. A unido ao mistério de Cristo nao esta fechada a nés porque sua Pascoa esta disponivel em seu Coragao aberto: “Eis que fago nova todas as coisas” (Ap 21,5) — “Se alguem esta em Cristo, é nova criatura. As coisas antigas passaram, e eis que surgiram coisas novas” (2Cor 5,17) Quando participamos por um ato de fé e adesao discipular ao mistério pascal de Jesus (sua Paixao, Morte e Ressurreigao), somos erguidos pelo Pai a definitiva condigao de filho, livre e irmao. Este 35. MISSAL ROMANO, Domingo da Pascoa na Ressurreigéo do Senhor: na noite Santa (Vigilia Pascal) — Antifona da aspersao. 32 Batismo e partilha de bens “pericorético” erguimento acontece na comunidade dos discipulos e Jesus na celebragao da Iniciagio Cristi — no Batismo, na Confir- macio e na Eucaristia’®. Na celebracio batismal o filho de Deus é erguido a estatura do Filho Unigénito, torna-se imagem acabada de uma gestagao filial: o mistério de Cristo em sua Filiagao se manifesta em nés. “Cad Do coragiio aberto de vosso Filho fizestes brotar 0 sacramento do Batismo, primeira pascoa dos fiéis, porta de salvacio eterna, comeco de vida em Cristo, fonte de nova humanidade. No seio da Igreja, virgem e mie, gerastes, pela 4gua e pelo Espirito, um povo sacerdotal e régio, para viver a unidade e a santidade do vosso amor. Celebrando este novo nascimento, exaltamos vossa misericérdia e bendizemos vosso nome [...]””. A Filiagao batismal A filiacao batismal é a plenitude de um processo de gestago filial iniciada por Deus na criacao da pessoa humana. Esta gestacao fi- lial deve alcangar a Imago Christi, a filiacao segundo Jesus de Nazaré, © Cristo. O Batismo cristo é a insergao na vida de Cristo, ou seja, em seu Mistério Pascal. Se isso nao acontece, a filiagdo nao alcanga ordi- nariamente* sua plenitude gestacional. 36. 37 38. Cf RITUAL DO BATISMO DE CRIANGAS, A iniciagdo crista — observagies preliminares gerais, n. 1 MISSAL ROMANO, Preféicio do Batismo — batismo, comeco de vida nova Deus pode conceder a graca filial de Cristo por caminho extraordinério anco- rado no principio “Misericérdia” nos mimeros 80 a 87. Cf COMISSAO TEO- LOGICA INTERNACIONAL, A Esperanga da Salvagao para as criangas que 33 Dizit pora imo e partilha de bens na Igreja Num primeiro sentido, todas as criaturas sio chamadas ‘filhos de Deus’, por terem saido de suas maos criadoras. Um segundo sentido é aquele aplicado ao povo de Israel, povo eleito: Israel é ‘filho de Deus por eleicio’. Um terceiro sentido abrange a fi- liao adotiva pelo Batismo. Enfim, Cristo é chamado pela Es- critura, e de fato o é, Filho de Deus. Dele decorre todas as demais filiagdes e nele, Cristo Filho de Deus vivo, Unigénito do Pai, to- das as filiagSes tomam sentido, Somos filhos no Filho”. A ideia de adogao filial nao deve ser entendida ao modo contem- neo de um contrato social entre estranhos. A vida batismal nao é a constituicao de um vinculo ao modo de “um ausente que se torna presente”, mas, sim, de “um presente que se manifesta” e manifes- tando-se revela 0 outro, ¢ isso resplandece muito claramente na dou- trina da Igreja sobre o mistério da Epifania e sobre a Epiclese. RATZINGER esclarece que filiagdo em Deus é um conceito dinamico" porque sua paternidade se mostra e nos envolve deste a nossa origem e nos conduz ao nosso definitivo: 39. 40. 34 Deus é antes de mais nada nosso Pai, enquanto é nosso Criador. Porque ele nos criou, pertencemos-Lhe: 0 ser como tal vem d Ele e por isso é bom, é originalmente de Deus [...] Ele co- nhece cada um individualmente. Neste sentido, ja a partir da criagao, o homem é de um modo especial ‘filho’ de Deus, Deus & seu verdadeiro Pai: que o homem seja imagem de Deus é modo de expressar este pensamento. Isto nos leva 4 segunda dimensao da paternidade de Deus. Cristo é de um certo modo iinico ‘Imagem de Deus’ (2Cor 4,4; Cl 1,15). Os Padres afir- mam entio que Deus, quando criou o homem ‘A sua imagem’, olhou antecipadamente para Cristo e criou o homem segundo morrem sem o Batismo. Disponivel em: . Acesso em: 20 de janeiro de 2016. Valter M. GOEDERT, Teologia do Batismo: consideragdes teolégico-pastorais sobre o batismo, 1988, p. 104. Joseph RATZINGER, Jesus de Nazaré — Primeira parte: do batismo no Jordao 4 transfiguracao, 2007, p. 129. Batismo e partilha de bens aimagem do ‘novo Adao’, a verdadeira medida do homem. Mas principalmente: Jesus é num certo sentido o préprio ‘o Filho’ — de um mesmo ser que o Pai. Ele quer tomar-nos a todos na sua humanidade e assim na sua filiagao, na plena pertenga a Deus [...] Nao somos ainda de um modo acabado filhos de Deus, mas devemos tornar-nos e sermos sempre mais por meio da nossa mais profunda comunhao com Jesus. Ser filho torna- se assim o mesmo que seguir a Cristo‘). Na carta aos Galatas, Paulo informa que antes da celebragao batismal estamos envolvidos num processo de gestacao filial que se completa e se realizada plenamente em Jesus. O Batismo é justa- mente essa manifestacao sacramental da plenitude da filiacdo: somos filhos adotivos a imagem do Filho Primogénito: Digo mais: durante o tempo em que o herdeiro é menor de idade [gestacao filial], ainda que seja dono de tudo, em nada se difere de um escravo. Até que chegue a data fixada pelo pai [o evento batismal] 0 herdeiro permanece sujeito a tutores e administradores. Assim também nés, quando éramos menores, estavamos reduzidos a escravidao, debaixo dos elementos do mundo. E quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu filho, nascido de mulher, nascido debaixo da Lei, a fim de resgatar os que estavam debaixo da Lei, de modo que rece- bessem a adogao de filhos [na qual somos inseridos pelo mis- tério pascal de Jesus e ouvimos 0 Pai chamar-nos de filhos]. E porque vocés sao filhos, Deus enviou aos nossos coragdes 0 Espirito do seu filho, que clama: ‘Abba! Pail’. Portanto, vocé ja nao é escravo, mas filho, e se vocé é filho, é também herdeiro por causa de Deus (Gl 4 1-7). A filialidade de Jesus nao é “atribuida ou colada” em nés, mas declarada, erigida, gerada (Garungsproze) a partir da Imago Dei. A gestacao filial comporta um momento constitutivo em que o Pai declara ao filho sua identidade. Porém, este declarar nao é um ex- 41. Joseph RATZINGER, Jesus de Nazaré — Primeira parte: do batismo no Jordao 4 transfiguragao, 2007, p. 128-129. 35 Dizimo e partilha de bens na Igreja plicar ou demonstrar predicativo, mas uma descricdo da sua cons- tituicao essencial que o ser humano nao é capaz de por si mesmo realizar. Por isso, o Pai diz em toda celebragdo batismal quem é de- finitivamente a pessoa humana e qual é a sua imagem: “Tu és o meu filho amado” (Me 1,11). O “Tu és o meu filho amado” que ouvimos na celebragio batis- mal nunca fora antes proferido por Deus de modo compreensivel a nés, porque indica a completude do nosso processo gestacional filial, que é a filiacao de Jesus em nés. A auséncia deste pronunciamento nao significa que Deus se comportasse como um estranho em relac3o a nés:“Quando Israel era menino, et: 0 amei. Do Egito chamei o meu filho. E, no entanto, quanto mais eu chamava, mais eles se afastavam. de mim [...] Fui eu quem ensinei Efraim a andar, segurando-o pela mio, Mas eles nao perceberam que era eu quem cuidava deles, Eu os atrai com lacos de bondade, com cordas de amor. Fazia com eles como quem levanta até a altura do préprio rosto uma crianga. Para dar-lhes de comer, eu me abaixa até eles” (Os 11,1-4). Sem o “Tu és 0 meu filho amado” o mistério da Imago Dei pre- sente em nés corre o risco de permanecer envolvida em escuridio, “porque a inteira vida consciente [...] assemelha-se a uma superfi- cie iluminada de uma profundidade escura que se manifesta por meio dessa superficie””?, Na celebracdo batismal ha uma interven- cao, a Palavra de Deus € dada a nés, oferecida as nossas consciéncias como Luz, mas nfo na superficie 20 modo de outras “Iuminosida- des”, mas na profundidade escura constitutiva da pessoa, que pro- tege o mistério de Deus e 0 mistério humano. Na celebragao batismal Deus reclama por meio da sua Palavra a presenca do ett humano em sua profundidade mais singular, na “altima solitude”® e infunde ai Luz (“Tu és 0 meu filho amado”) que faz essa profundidade brilhar como nunca antes‘. O “Tu és 0 meu 42, Edith STEIN, Ser finito y Ser Eterno— ensayo de una ascensién al sentido del ser, in Obras completas Ill — escritos filosoficos (etapa de pensamiento cristiano), 2007, p. 960. 43. CE DUNS ESCOTO, Ordinatio I, d. 23, . un., 0. 15 4, Por isso, o batismo é chamado na Tradicéo de Iluminagio (Ef 5,8; 1Ts 5,5; Hb 6,4). CE RITUAL DE INICIAGAO CRISTA DE ADULTOS, Introdueao ao Rito da Iniciagao Crista de Adultos, n. 21-26 36 Batismo e partilha de bens filho amado" (novo) é luminosidade cristica infundida pelo Pai que transfigura a Imago Dei presente em nés (antigo): “Desperta tu que dormes [...] e Cristo te iluminara” (Ef5,14). O processo gestacional de filiacao (que esta se erigindo a partir dessa profundidade) iniciado a partir da Imago Dei, levado a cabo segundo a Imago Spiritus"’, por causa desta acdo de Pai, é tornada conhecivel, captavel, sensivel, manifestado a nds segundo as nossas capacidades ¢ 0 mistério da presenga luminosa de Deus revela que somos seus filhos e precisamos sé-lo segundo a estatura de Jesus (Imago Christi): 0 Pai torna a celebragao batismal uma Epifania de Jesus e, a0 mesmo tempo, uma Antropofania da pessoa humana. Esta luminosidade batismal com a qual somos envolvidos é uma “Presen- ca falante”, 0 que revela sermos originalmente “ouvintes da Palavra""® como ja indicara Rahner. Podemos dizer que no batismo acontece um despertar da cons- ciéncia para uma novidade original, porém, atengdo! O “Tu és o meu filho amado” é uma realidade objetiva dada por Deus a nés em nos- sas consciéncias (ela no é uma declinagao, um subjetivismo, uma evolucao ou uma emanagao da nossa propria consciéncia — o que poderia fazer deduzir ser ela uma invencio e uma “filiacio” elabora- da 4 medida das capacidades humanas). A consciéncia humana pre- cisa da Palavra e do Gesto dados a ela trinitariamente na Palavra do Pai, na aco do Filho e na forca do Espirito (por isso ninguém se ba- tiza, nenhuma consciéncia da a si mesma a Palavra e o Gesto sacra- mental batismal originario). A Palavra do Pai dada na celebracao batismal ao constitui-nos filhos acorda-nos para a fraternidade e para a liberdade e insere-nos numa comunidade de filhos, irmaos e libertos que podem se ajudar e compartilhar mutuamente suas vivéncias, seus esforcos, o empenho testemunhal e missionario e alcangar estes proximos e os distantes com express6es de caridade e partilha espiritual ou material. 45. A natureza e o objetivo deste artigo impedem que se demore nesta tematica specifica e pontual e remete tal aprofundamento ao leitor. Ao investigar in- ternamente a Imago Dei deparamo-nos com uma presenga comum e trinitiria em nés: Imago Patris, Imago Christi e Imago Spiritus. 46. Cf RAHNER, Karl. Oyente de la Palabra — fundamentos para una filosofia de la religion. Barcelona: Editorial Herder, 1967. 37 Dizimo e partilha de bens na Igreja A Iniciagio Cristi iniciada e presidida pela celebragio batismal éconstituida também pela celebragao crismal e pela celebraco eu- caristica. Na primeira o Pai constitui em nés a dimensao libertadora da Imago Christi e infunde em nés o Espirito. A presenga do Espirito Santo é simultaneamente uma presenca comunitaria (Pentecostes co- munitario — At 2,1ss) precedida por uma presenga singular (Pente- costes pessoal — Le 24,27-36). Na celebracao batismal o Pai “preen- che-nos” e “ocupa-nos” com sua Palavra Paterna, semelhante a uma Jamparina que é preenchida plenamente com 6leo — lacrada, selada, tornada inviolavel (para que “nao entre outros fluidos”). Na celebragio crismal esta lamparina é acessa (Pentecostes pessoal) e este fogo traz todo mistério presente ao interno da lamparina “para fora” ao modo de calor ¢ de luminosidade, construindo uma comunidade de ilumi- nados, a qual este mesmo Espirito a envolve com uma presenga co- mum em vista da missao e do antincio (Pentecostes comunitario). Na segunda o Pai constitui em nés a dimensao fraterna da Imago Christi: discipulos, seguidores e colaboradores de Jesus Cristo em sua missio de anunciar o Reino. A lamparina constituida e plenificada de sentido na celebracao batismal e crismal é 0 critério de ingresso na celebragao eucaristica — os filhos e os libertos adentram a festa do Pai com limpadas acessas nas maos: “A meia noite ouvi-se um grito: ‘Eis 0 noivo! Saiam ao seu encontro!’. Entao as virgens acordaram e prepararam suas lamparinas [...] As que estavam prontas entram com ele na festa [...]” (Mt 25, lss)*, Somos capazes de compartilhar bens espirituais e materiais em nossa superficie porque originalmente em nossa profundidade fomos feitos capazes de empatia e porque Deus nos ensina a fazé-lo do jeito de Jesus. A vida batismal é 0 caminho ordinario pelo qual as vivéncias de Jesus (inclusive as de partilha) passam a serem também Recordemos de quantas vezes ao longo de nossa vida crista, da origem ao fim, em nossas celebragées utilizamos ¢ é prescrito o uso de velas (a0 menos uma vez anualmente na Vigilia Pascal), inclusive na tradicao biblica, especialmente neste caso no Segundo Testamento (Le 8,16;Ap 4,5). O seu uso quer expres- sar justamente essa triple dinmica da Iniciagao Crista. Cf Claudio PASTRO, Guia do Espaco sagrado, 1999, p. 176-177. 38 Batismo e partilha de bens as opgdes vivenciais de seus discipulos e discipulas, daqueles que sio “mergulhados e renascem das aguas” Aqui nasce para o céu um povo de nobre estirpe O Espirito lhe da vida em aguas profundas Nestas aguas a mae Igreja gera virginalmente aqueles que coloa no mundo por virtude do Espirito Esta é a fonte da vida que banha todo 0 universo: brota da fe- rida do Cristo Esperai no Reino vés que nascestes nesta fonte’’, A partilha de bens na comunidade crista ¢ um gesto antropo- légico fundado na vida em Cristo ao qual somos inseridos pela Ini- ciago Crista, presidida originariamente pela celebracao batismal. Esmola, coleta, dizimo sao algumas das possiveis manifestagdes que aparecem na vida daquele que vive como discipulo, manifesta na superficie o mistério que existe em sua profundidade. A partilha de bens espirituais e materiais se desenvolvem e se intensificam na medida em que se amadurece a consciéncia de que em Cristo somos filhos, livres ¢ irmios. Embora possa se conseguir muitos fundos apostando em certo assistencialismo e excitagao das vivéncias psiquicas (uma caridade sustentada por questées racionais, euforia, medo, autossatisfacao), es- tes carecem de fundamento e de vinculos profundos e correm 0 risco de instaurar nas pessoas uma dinamica dualista ou de troca, recaindo em uma teologia maniqueista ou de retribuicio. Se isto se instala em. nossas comunidades, a gratuidade, sinal da misericordia divina e hu- mana, aos poucos vai desaparecendo e as pessoas podem fazer doacées apenas para se autoanestesiarem da inteira e verdadeira pertenga a comunidade dos discipulos de Jesus (da-se o dinheiro, mas nao par- ticipacdo, comprometimento, testemunho, missao etc.). O edificio teolégico construido ao longo deste artigo pode su- gerir que somente aos que foi dado uma sistematizagao apurada e académica da fé (da filialidade-fratenidade-liberdade de Cristo ce- 48. INSCRICAO NA ARQUITRAVE DO BATISTERIO DE SAO JOAO DO LATRAO apud Claudio PASTRO, Guia do Espaco sagrado, 1999, p. 234. 39 Dizimo e partilha de bens na Igreja lebrada em nés inicialmente a partir do batismo como fundamento ultimo do partilhar), a possibilidade de se chegar a partilha de bens segundo 0 espirito cristao. Porém, isso nao é verdade porque junto ao auditus e intellectus fidei existe o sensus fidei: Em todos os batizados, desde o primeiro ao tiltimo, atua a for- ¢a santificadora do Espirito que impele a evangelizar. O povo de Deus é santo em virtude desta uncao, que o torna infalivel ‘in credendo’, ou seja, ao crer, ndo pode enganar-se, ainda que nao encontre palavras para explicar a sua fé. [...] Como parte do seu mistério de amor pela humanidade, Deus dota a tota- lidade dos fiéis com um instinto da fé — 0 sensus fidei — que 0s ajuda a discernir 0 que vem realmente de Deus. A presenga do Espirito confere aos cristaos uma certa conaturalidade com as realidades divinas e uma sabedoria que lhes permite capté- las intuitivamente, embora nao possuam os meios adequados para expressé-las com precisio” A comunidade $40 Luis Gonzaga em sua maioria é constitui- da por pessoas que nao frequentaram os bancos universitdrios, po- rém, eles alcangaram a quantidade suficiente de recursos para a troca dos bancos porque se manifestou neles justamente este sensus fidei.A doagao feita mensalmente através do carné foi acolhida como uma possibilidade de testemunhar a fé e a esta se unem diversas outras iniciativas de partilha presentes na comunidade como o Café depois da missa do domingo, o Bazar da Pechincha, 0 dizimo, a con- fecgao semanal de doces e salgados etc. Estamos diante de uma co- munidade que nao espera que todos os seus membros se tornem “tedlogos” para depois exercitarem a caridade e a partilha em Cris- to segundo sua filialidade-fratenidade-liberdade, mas que enquanto esto aprendendo o sentido ¢ a inteligéncia da fé por meio dos cir- culos de estudo, formagées, encontros de oragao, creem e sabem ser guiados pelo Espirito e este os conduz e os envia a processos qua- litativos e cheios de sentido. 49. FRANCISCO, Exortagao Apostélica Evangelli Gaudium sobre 0 antincio do Evangelho no mundo atual, 2014, n. 119. 40 Batismo e partilha de bens O sensus fidei nio invalida ou torna sem sentido o auditus e 0 intellectus fidei, mas 0 plenifica porque revela que Deus se manifes- ta, salva e da a conhecer seu projeto salvifico a todos por meio de caminhos ordindrios e extraordinarios: “Ele quer que todos sejam salvos e cheguem a conhecer a verdade” (1T'm 2,4). A partilha de bens em Cristo, quer se manifeste em nds a par- tir do sensus, auditus ou intellectus fidei, tem na vida batismal e no correspondente mistério de Cristo que a preenche de sentido seu fundamento pleno. A fé cristd ndo enfraquece a percep¢io empati- ca constitutiva do ser humano, mas indica sua origem e aponta para seu definitivo: constitui-erige, liberta-ergue e integra-envia. Aqueles que sinceramente ingressam no caminho da Iniciagao Crista e vao aprendendo e vivendo como filhos, livres ¢ irmaos des- cobrem que tal jornada é exigente, cotidiana e trara consigo desafios porque deve provocar em nds aprofundamento, mudanga existen- cial, deslocamento as periferias, pois quem “pertence a Cristo deve viver a vida de Cristo em sua totalidade, deve alcangar a maturidade do Salvador’ como reza a oragio: “Nutridos pelo vosso sacramento, dai-nos, 6 Pai, a graca de ouvir fielmente 0 vosso Filho amado, para que, chamados de filhos, nés 0 sejamos de fato”. Sei muito bem que isso pode parecer para alguns um desejo radical demais, Na pratica significa para a maioria dos que co- mecam uma mudanga na vida interior ¢ exterior. E isto é 0 que precisamente deve ser! Em nossa vida temos de abrir espaco para o Salvador eucaristico, para que Ele possa transformar nos- sa vida em sua. Sera isso pedir demais? Se temos tempo para tantas coisas supérfluas, para ler muitos livros, revistas e diarios sem muita utilidade, para passarmos horas nos Cafés, quinze minutos ou meia hora de conversas na rua [...] Da satisfag’o propria de um ‘bom catélico’ que cumpre com suas obrigagdes, que 1é um bom jornal, que faz escolhas certas, porém, que sem- pre faz aquilo que gosta, ha ainda um longo caminho para co- 50. Edith STEIN, El misterio de la Navidad, in critos espirituales, 2004, p. 487 51. MISSAL ROMANO, Batismo do Senhor — oragéio depois da comunhéo. , Obras completas V — es: 41 Dizimo e partilha de bens na Igreja megar a viver nas mios de Deus, com a sensibilidade de uma crianga e a humildade de um publicano. Sem duivida, quem comecou a andar nesse caminho jamais o abandonara®, Referéncias AGOSTINHO DE HIPONA. A Trindade. 2’ ed. Sao Paulo: Paulus, 1995. ALCORAO. Al-Madinah Al Munauarah: Complexo de impressio do Rei Fahd, s/d. ALFIERI, Francesco. 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