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As mediações da paisagem

Lucrécia D´Alessio Ferrara


Livre-docente (USP) e doutora em
Literatura Brasileira (PUCSP)
Professora de Pós-graduação em
Comunicação e Semiótica da PUCSP
E-mail: ldferrara@hotmail.com

Resumo: Fazendo parte de uma pesquisa mais ampla que tem


como objeto empírico o fenômeno urbano nas suas singulari- Paisagem e natureza
dades mediativas e interativas, este artigo estuda o papel desen-
volvido pela paisagem que constrói a imagem da cidade e, na Inúmeros olhares distintos, informados
atualidade, sua mediatização. Os dois processos não dispensam pela sociologia, filosofia, geografia, história,
os dispositivos de reprodutibilidade técnica que criam a dú-
bia tensão entre capital social e simbólico. Nesses registros, é arte e, naturalmente, pela arquitetura, se
possível surpreender uma retórica metonímica da cidade que a ocuparam do estudo da paisagem que, en-
apresenta como fetiche ou valor, propondo questões que desa-
fiam a investigação científica. quanto fenomenologia, se transforma con-
Palavras-chave: paisagem, mediação, interação, comunicação, forme as óticas e interesses que a analisam.
epistemologia
Essas diversas óticas salientam o interesse
La mediación del paisaje e a dificuldade de definição da paisagem e
Resumen: Haciendo parte de una pesquisa más amplia que Simmel é radical quando denuncia essa di-
tiene como objeto empírico el fenómeno urbano en sus sin-
gularidades mediatizadas e interactivas, este artículo estudia el ficuldade:
papel desarrollado por el paisaje que construye la imagen de la
ciudad y, en la actualidad, su mediatización. Los dos procesos “Le materiau du paysage que livre la nature
no dispensan los dispositivos de reproductibilidad técnica que brute est si infinement divers, si changeant
crean la incierta tensión entre capital social y simbólico. En de cas en cas, que les points de vue et les
esos registros, es posible sorprender una retórica metonímica
formes qui, avec les éléments composent
de la ciudad que la presenta como fetiche o valor, proponiendo
cuestiones que desafían la investigación científica. l´unité de l´ímpression, seront très varia-
Palabras clave: paisaje, mediación, interacción, comunicación, bles aussi” (Simmel, 1988:235)
epistemología
Embora a citação denuncie certo “a prio-
The mediation of the landscape
Abstract: As part of a broader study whose empiric object is ri” perceptivo que, se não confunde, ao me-
the urban phenomenon and its mediative and interactive sin- nos procura tomar a paisagem como parte
gularities, the present article examines the role played by the
landscape, which constructs the image of the city and, at pre-
ou metonímia figurativa da natureza, o autor
sent, its mediatization. Neither process is exempt from techni- é claro quando, ao relacioná-las, aponta para
cal reproductibility devices, which create the dubious tension a imprecisão que nos leva a perceber a pai-
between social and symbolic capital. In such registries, it is
possible to uncover a metonymic rhetoric which presents the sagem enquanto objeto da natureza. Nesse
city as a fetish or value, posing questions that stimulate scien- sentido e enquanto percepção fenomênica,
tific investigation.
Keywords: landscape, mediation, interaction, communication,
as sensações ou sentimentos que a paisagem
epistemology desperta, só podem ser entendidos ou perce-

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bidos, se forem aproximados da matriz que mentos que a distinguem da natureza. Esse
lhes dá origem, a natureza. imperativo é claramente anunciado também
Nesse sentido, o conhecimento da paisa- por Simmel, em seu célebre estudo sobre a
gem parece decorrer da ontologia que, pelo natureza cultural do sentido de paisagem:
menos no ocidente, foi demarcado para a na-
“La nature, qui dans son être e son sens
tureza e a distinguiu do ambiente material, profond ignore tout de l´individualité, se
trouve remaniée par le regard humain – que
la divise et recompose ensuite des unités
perticulières – em ces individualités qu´on
A paisagem precisa baptise paysage.” (Simmel, 1988:233)
distinguir-se da nature-
Entretanto, se a exigência dessa distinção
za, mas também deixar
impõe considerar a diferença entre nature-
evidente aquele modo za e paisagem a fim de superar a projeção da
de ser que lhe permite totalidade da primeira sobre a construção da
singularizar-se, históri- segunda, é imprescindível, também, superar
ca e culturalmente a paisagem como hábito de ver, a fim de ser
possível observar a distinção entre paisagens
que, em se fazendo, se distinguem e, por-
tanto, apresentam características próprias a
social e culturalmente construído. Para essa
considerar.
ontologia, concorreu a filosofia grega dos
pré-socráticos a Aristóteles quando opõem a Nesse sentido, a percepção da paisagem
ordem da natureza entendida como cosmos como síntese reprodutora da completude da
ao acaso da matéria que exige ser formaliza- natureza, é apenas aparente. Ao contrário, a
da para ser conhecida. pretensa indefinição de traços fenomênicos
No Século XVII, Espinosa propõe a dis- ou perceptivos que decorre daquela percep-
tinção entre a dinâmica natureza naturali- ção não aponta para a pobreza ou para a im-
zante, do seu reflexo estático e entendido propriedade da paisagem como questão de
como natureza naturalizada. Por similarida- investigação, mas salienta seu interesse, em-
de, essa distinção é constantemente retoma- bora não esconda as precipitações ou equí-
da e atua como base para a caracterização vocos que nos levam a relacionar paisagem
de todo determinismo na leitura ou inter- e natureza.
pretação de várias manifestações culturais. Entretanto, autores como Giulio Carlo
Bourdieu (2001:58-59) recupera a mesma Argan (História da Arte como História da
dicotomia, ao distinguir a atividade cientí- Cidade), George Simmel (La Tragédie de
fica que atua entre a opus operatum como La Culture), Bruno Zevi (Paesaggi e Città),
obra consumada, da opus operandi como Aldo Rossi (A Arquitetura da Cidade), Mil-
obra em se fazendo e sujeita às imprevisi- ton Santos (A Natureza do Espaço), Marc
bilidades do próprio objeto em estudo. Para Bloch (Apologie pour l´Histoire ou Métier
Boudieu, essa distinção surge como base d´Historien), Pierre George (L´Ère des Téch-
para a formulação do seu célebre conceito niques: Constructions ou Destructions), são
de habitus, entendido como parâmetro para unânimes em considerar a paisagem, na me-
definição e distinção da prática científica lhor consideração de Aristóteles, como for-
enquanto exercício aplicativo de um saber ma que decorre de uma materialidade natu-
instituído e instituinte da ciência. ral que permite torna evidente a relação que
Para desenvolver o estudo da paisagem se estabelece entre ambas e o modo como a
enquanto realidade instituinte, é indispen- primeira se congrega à segunda, ou seja, a
sável operar/produzir a evidência dos ele- paisagem existe através das suas formas que

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preservam origens históricas diferentes, mas d) portanto, a paisagem não se confunde


sempre denunciando a materialidade que lhe com espaço, território, meio ou acidentes
origem e a torna admirável na sua imagem e geográficos naturais e, muito menos, com
identificável na sua visualidade. marcas históricas, por mais proeminentes
Nessa identificação, paisagem é um índi- que sejam como sinalizadores do fazer
ce do todo natureza que só se faz conhecer transformador do homem;
e se identifica através da forma que a atu- e) em síntese, e embora em fronteiras de
aliza como paisagem. A natureza se faz ver sentido, não se pode confundir natureza,
na sua forma/paisagem, porém, por sua vez, espaço, território, campo ou cidade como
sua singularidade formal só será perceptível sinônimos de paisagem, ou seja, o concei-
se deixar explícita sua diferença em relação à to de paisagem denuncia mais um daque-
matriz que lhe dá origem; sem atualizar essa les nomes que empregamos alegremente
diferença que a torna presente, a paisagem como simples termo sem limite semânti-
não se faz observar e pode ser confundida co ou conceitual;
com elementos destruídos da história, seu f) nesse sentido, a semiótica surge como ati-
lixo ou seus resíduos. vidade epistemológica e metodológica que
Para ser vista, a paisagem precisa, não só, nos possibilita discriminar os fenômenos
distinguir-se da natureza que lhe dá origem, e perceber a justa relação que se estabelece
mas também deixar evidente aquele modo de entre eles e os nomes que os designam.
ser que lhe permite singularizar-se, histórica e
Prosseguindo na necessidade daquela
culturalmente a fim de não perecer no tempo.
discriminação, observa-se que paisagem se
distingue de espaço porque, se ele é materia-
A semiótica na semiótica da paisagem lidade da natureza, ela é forma dessa mate-
Entre todos os autores citados, observa- rialidade. Entretanto, apenas a visualidade
se a ausência de enfoques que privilegiam a confere à paisagem sua característica de con-
semiótica. Essa ausência não está isenta de figuração semiótica e relevância comunicati-
intenções e, nesse caso, duas hipóteses são va: a paisagem é aquela porção do espaço que
possíveis: foi proposital para não validar a não se confunde com a totalidade da natu-
paisagem como campo específico de estu- reza e que só é possível abarcar com a visão.
do semiótico ou, e essa hipótese parece ser Mas, a paisagem se torna habitual e não se
a mais provável, aqueles autores pensam de deixa perceber, porque nos habituamos à sua
modo semiótico, mesmo que nunca tenham visualidade. Esse hábito impede a observação
assumido essa dominante. e a discriminação da complexidade comuni-
Mas o que é pensar a semiótica da paisa- cativa subjacente à semiótica da paisagem e,
gem? Nesse sentido há algumas premissas a como consequência, a paisagem é percebida
ponderar. Se considerarmos que semiótica é apenas pelo seu impacto visual que a faz cir-
configuração, é necessário ponderar que: cunscrever-se à estesia e à fruição.
Portanto, é indispensável a atenção epis-
a) a principal e indispensável atuação epis- temológica que nos faz ver com disponibi-
temológica da semiótica é discriminar os lidade de enxergar ou de estranhar, para ser
constituintes de configurações; possível descobrir as dimensões semióticas
b) a paisagem surge como uma configura- da paisagem, seus signos e textos, suas espa-
ção do espaço; cialidades e transformações. Ou seja, a sim-
c) a paisagem surge como uma configura- ples estesia do mar, montanha, flores, aveni-
ção da natureza e é entendida, portanto, das, arquitetura, monumentos, se tomados
como representação da natureza, seu sig- isoladamente, não constituem a semiótica da
no e sua espacialidade; paisagem campestre ou urbana.

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A semiótica da paisagem supõe conside- ço. São as diversas dimensões tecnológicas


rar as formas da sua materialidade e as trans- de dispositivos de reprodutibilidade da ima-
formações que entre elas se processam, su- gem que substituem o espontâneo visual, é
põe considerar a evolução dos sentidos que, visualidade que dá origem a outra e especial
se são por ela estimulados, não assinalam o dimensão da imagem e a torna capaz de me-
fluxo da sua evolução demarcada pela passa- mória e comunicação, é fragmento que pode
gem interminável do tempo. Na sua densida- revelar ou esconder o todo.
de visual, a paisagem só pode ser apreendida Entretanto, sem essas fragmentações, não
na fugacidade de um instante; portanto e en- há paisagem, pois ela não se dá a conhecer
quanto espacialidade que a comunica, a pai- senão nas suas partes e nas dimensões que a
sagem não tem tempo ou seu tempo é falso registram. Se de um lado, a paisagem é ma-
porque está sempre presente. nifestação da atualidade de um cotidiano
Desse modo, aquela atenção que supõe que, enquanto tempo vivido, utiliza os dis-
a intenção semiótica de discriminar, exige o positivos técnicos do registro para se tornar
registro que torna evidentes as configurações memorável; de outro lado, as tecnologias
visuais mas, além disso, é capaz de superá- contemporâneas que se concretizam em fo-
lo a fim de ser possível perceber a paisagem tografias, cinema, vídeo, televisão ou digita-
como acontecimento comunicativo. lização lhe permitem apresentar-se como es-
pacialidade tecnológica que lhe concede um
A construção visual da paisagem tempo de permanência.
Porém, essa paisagem é sempre registro
Se aquele registro não se propõe apenas
como recurso que facilita a discriminação de imagem vendida como mercadorias e fe-
dos constituintes semióticos da paisagem, é tiches que se apresentam como estereótipos
indispensável identificar sua natureza téc- do todo do qual fazem parte: tal é o caso da
nica ou tecnológica, que permite recortar a paisagem urbana que, na dimensão fenome-
visualidade, para salientar no todo da paisa- nológica das cidades mundiais, é reconhe-
gem observada a parte e, desse modo, cons- cida como metonímia turística nas distin-
tituir uma retórica metonímica sem a qual tas dimensões que vão dos preparativos da
a paisagem parece não se fazer perceptível e, viagem aos registros das paisagens visitadas.
mais que isso, notável. Graças às possibilidades tecnológicas de re-
Distinguir a natureza técnica ou tecno- gistro, a paisagem é manifestação da cultura
lógica do dispositivo que a registra constitui urbana; nasce e se desenvolve com a cidade
uma característica da semiótica da paisagem, e, hoje, é sua extensão ou sua dimensão am-
ou seja, ela parece alterar-se, conforme o pliada, na dinâmica dos registros flagrados
registro que permite sua identificação e lhe nos deslocamentos ou fruição dos espaços
confere sentido. A fenomenologia da paisa- públicos e privados.
gem é construída pelas partes que, registra- A metonímia sustenta uma retórica da
das visualmente, lhe conferem sentido. Vê-se cidade e o registro da paisagem é sua for-
a paisagem, através dos seus registros. ma constitutiva. No mundo contemporâ-
A vocação metonímica demarca a retó- neo, não há paisagem sem a cidade, porém
rica da paisagem desde sua ancestral relação não há paisagem além das possibilidades
com a natureza, mas muito mais do que fi- oferecidas pelo registro tecnológico que se
gura persuasiva, ela é condição de superação transforma em expansão do corpo, da sen-
daquele hábito de ver ou imaginar. Portanto, sibilidade, dos olhos, das mãos ou das pos-
toda paisagem é construção, é parte valendo sibilidades econômicas, sempre prontos a
pelo todo, é registro fixo que substitui o fluxo apressadamente consumir e adquirir, em
fenomênico, é imagem que substitui o espa- qualquer “free shop”, o último dispositivo

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de registro, capaz de mais fielmente reter a paisagem se transforma em “lugar ilumina-


paisagem . Se a tecnologia é filha da compe- do”, concreta e metafòricamente. Concreta,
tência que se desenvolve como resposta ao porque seus registros tecnológicos só se fa-
desafio da vida urbana, a paisagem registra- zem e se apresentam com forte caráter per-
da é a forma como se manifesta a visualida-
de da cidade.
A paisagem como
A semiótica da paisagem da cidade função-valor social da
A paisagem corresponde a uma forma
cidade vive das suas
visual da materialidade urbana, mas cons- dimensões concretas
truída pelo imaginário que se amplia em e metafóricas que se
múltiplos contornos. Nessa expansão, atin- traduzem em
ge a complexidade de um espaço qualifica- construção identitária
do como ambiente, onde toda informação
se organiza através de técnicas, tecnologias,
produções, trocas, sentimentos e vida que,
sem distinção, se misturam e permitem pen- suasivo quando, à noite, são efetivamente
sar em uma ecologia da cidade através das iluminados feericamente como no caso de
mídias que a registram. Paisagem enquanto S. Paulo, ou quanto os raios solares esque-
forma, a imagem corresponde a uma seleção cem toda economia e se apresentam abun-
perceptivo-estética que, de modo espetacu- dantes e irreprimíveis, como no caso do
lar, produz manifestações autoidentitárias da Rio de Janeiro. Metafòricamente, porque as
cidade, até transformá-las em seus registros luzes concretas serão tanto mais eficientes,
emblemáticos. Nesse sentido, a paisagem quanto mais contribuírem para superar o
transformada em imagem da cidade, consti- hábito de ver e permitir distinguir as cida-
tui elemento visual que nutre a cultura urba- des mundiais.
na e a torna inconfundível. A paisagem como função-valor social da
Entretanto, essa complexa operação cons- cidade vive das suas dimensões concretas e
titutiva da cultura da cidade não ocorre ime-
metafóricas que se traduzem em eficiente
diatamente, ao contrário, é lenta e plena de
construção identitária: desse modo, todas
artifícios para os quais as estratégias turísticas,
as cidades do mundo, desde as minúsculas
combinadas com a aceleração patrocinada pela
tecnologia contemporânea, têm contribuído. cidades medievais, transformadas em atra-
Quando emblemática, a paisagem apre- ção turística, até as celebradas megalópoles
sentada e divulgada como imagem da cida- se colocam, atualmente, à procura da paisa-
de, se torna moeda de troca entre as mega- gem que pode equivaler ao valor econômi-
lópoles, constituindo capital assumido como co que as projetam no cenário econômico
função-valor social ou simbólico. mundial.
Desse modo, a paisagem urbana depende
A paisagem da cidade como função- do valor subjetivo e sentimental que a con-
valor social tamina; porém, quando é apropriada pelos
Ao evidenciar sua matriz comunicativa, veículos de comunicação, seus fragmentos
aquela paisagem é signo e texto da cultu- assumem uma espécie de função econômica
ra que se faz presente nos meios de massa e o valor da imagem pode ser análogo àquele
e, muitas vezes, é transformada em adesão do solo urbano, obedecendo a similares es-
subjetiva ou sentimental. Nessa dimensão, a tratégias comerciais e persuasivas.

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A paisagem da cidade como capital pressiva altura do Edifício Martinelli ou do


simbólico Banco do Estado.
Além da escala do biggness, neologis-
Embora persuasiva e publicitária, a mo criado por Rem Koolhass ( 2002:81), a
função-valor da paisagem não é capaz de paisagem de São Paulo se rotaciona entre a
desvencilhá-la da atração imaginária que a verticalidade e a horizontalidade. Se a ver-
transforma em poder mediativo. É essa for- ticalidade não pode prescindir dos registros
ça que permite, à cidade, ultrapassar a sim- fotográficos qua a fazem visível na impessoa-
plicidade da troca imposta pelo mercado da lidade das páginas impressas ou nas capturas
imagem urbana e alcançar expressivo capital eletrônicas que nos fazem surpreendê-la e
simbólico que impõe uma dialética entre a reconhecê-la no monitor televisivo, a hori-
zontalidade se torna marcante quando nos
defrontamos com distintas manifestações
Que cidade é essa onde da paisagem como capital simbólico que nos
a paisagem a esconde lançam no conflito de saber em que consiste
como espaço de vida o fenômeno cidade.
feito de convergências Essa é a dimensão semiótica da paisagem
e divergências, mas que encontra, na cidade, um laboratório cien-
sempre prontas a serem tífico notável, não só, pela diversidade das
manifestações registradas, como sobretudo,
revistas e reescritas?
pela possibilidade de estimular a investigação
que, através da paisagem, chega ao objeto que
a concretiza e instiga a curiosidade.
Através do registro da paisagem de São
cidade e sua paisagem, entre a sedução pu-
Paulo, nos perguntamos, que cidade é essa?
blicitária e a imagem, entre a razão que cons-
Essa questão orienta esse trabalho que tem
trói a imagem e a imaginação que permite a
autonomia de produzir outras identificações. como objeto empírico a cidade e sua paisa-
Nesse sentido, a paisagem da cidade é, sobre- gem e como interesse epistemológico saber
tudo, de natureza comunicativa e interativa como podem atuar, cognitiva e culturalmen-
porque, se não se faz sem registros, também te, os dispositivos de reprodutibilidade téc-
não dispensa vínculos afetivos. nica quando interagem com a complexidade
Esse é o sentido que nos faz entender que mediática de um objeto como a cidade.
a paisagem da cidade tem uma ação dúpli- É essa a questão que a complexidade de
ce: enquanto “lugar iluminado” aquela pai- uma cidade como São Paulo nos coloca,
sagem pode surgir como cenário do poder quando nos surpreendemos com sua pai-
que nela se desenvolve quando dela se apro- sagem. Que cidade é essa que vive das con-
pria; mas é também personagem quando se tradições que a fazem destruir, para recons-
faz reconhecida nos desenhos emblemáticos truir-se, sem jamais saber-se completa? Que
que, inicialmente, surgem como estranhos cidade é essa, onde a verticalidade não per-
e improváveis. Há paisagens que imediata- mite as perspectivas do conjunto e passa a ser
mente se tornam personagens das cidades reconhecida apenas nos registros impressos,
que as agasalham, como o Cristo Redentor televisivos ou videográficos? Que cidade é
ou a Baia da Guanabara, no Rio de Janeiro essa que, de um lado, evidencia as oposições
ou, em São Paulo, a Ponte Estaiada da Aveni- entre as torres de aço e fachadas de vidro e,
da Nações Unidas ou, sobretudo, a vertica- de outro, exibe as apropriações indevidas
lidade que caracteriza a cidade embora, no das favelas que se concentram em margens
início, só se fizesse notável pela hoje inex- opostas de uma mesma avenida? Que cida-

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de é essa que dispersa nas suas regiões, não que a riqueza de hoje pode trazer escondi-
pode dispensar obrigatórios espaços de con- da a degradação de amanhã? Que cidade é
centração que são os mesmos nas zonas de essa que espanta pela crueza e perigo do seu
elevada hierarquia econômico-social e na gigantismo e, ao mesmo tempo. agasalha a
periferia porque, nos dois casos, se desti- imigração que, distinta, é incessante e a tor-
nam ao consumo e ao entretenimento? Que na endereço e horizonte de vida e trabalho
cidade é essa que, como uma cibercidade para todos? Que cidade é essa onde a paisa-
conectada wireless, torna possível se tornar gem que a comunica, a esconde como espaço
pequena e suficiente em todos os seus pon- de vida feito de convergências e divergências,
tos, ao mesmo tempo em que se confronta mas sempre prontas a serem revistas e re-
e se redescobre em outras paisagens de ci- escritas? Que cidade é essa, onde a imagem
dades que lhe conferem dimensões globais? que a registra, pode esconder a paisagem que
Que cidade é essa de múltiplas centralidades nos poderia levar a redescobri-la? Será que é
próprio da paisagem registrar e esconder ao
e descentrada, histórica e geograficamen-
mesmo tempo ou é sua função comunicar,
te? Que cidade é essa onde convergências e ao mostrar a incompletude da cidade con-
divergências econômicas, sociais e culturais temporânea e global?
são múltiplas e polivalentes, e não escondem (artigo recebido fev.2012/ aprovado mai.2012)

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