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A FUNÇÃO DOS CONTOS DE FADAS NA CONSTITUIÇÃO DO

SUJEITO PSICANALÍTICO: UMA ANÁLISE A PARTIR DO CONTO DE


CHAPEUZINHO VERMELHO

THE FUNCTION OF FAIRY TALES IN THE INDIVIDUAL’S PSYCHOANALYTIC


CONSTITUTION: AN ANALYSIS BASED ON THE TALE OF LITTLE RED RIDING HOOD

Francielle Mayumi Sakamoto Claro Araújo1


Fabio Nader Amari2
Ana Maria Moreno de Oliveira3

ARAÚJO, F. M. S. C.; AMARI, F. N.; OLIVEIRA, A. M. M. A Função


Dos Contos De Fadas Na Constituição Do Sujeito Psicanalítico:
Uma Análise A Partir Do Conto De Chapeuzinho Vermelho.
Akrópolis Umuarama, v. 19, n. 3, p. 187-202, jul./set. 2011.

Resumo: Este artigo apresenta um estudo sobre contos de fadas e sua


respectiva importância na constituição subjetiva da criança sob a ótica
da Psicanálise. Para alcançar este objetivo resgata historicamente a
1
Acadêmica do 4º ano de Psicologia da Uni- forma como a criança era vista no passado e a mudança nessa manei-
versidade Paranaense – UNIPAR, Campus ra de se entender a criança, não vista mais como um adulto em minia-
Cascavel, Paraná. Contato: Rua Sete de tura, mas sim como um sujeito em formação. O artigo traz o conceito
Setembro, 4249, A13. Cascavel, Paraná. de sujeito na visão psicanalítica, e sua constituição a partir da infância
Endereço eletrônico: francielleclaroaraujo@ no encontro com o outro. Os contos de fadas provindos da tradição
hotmail.com oral em que inicialmente destinavam-se aos adultos passaram a ter
um valor inestimável na formação da subjetividade infantil, trazendo
2
Acadêmico do 4º ano de Psicologia da Uni-
conteúdos importantes, que falam diretamente ao inconsciente. Este
versidade Paranaense – UNIPAR. Campus
Cascavel – Paraná. Contato: Avenida Brasil,
artigo analisa a estória de Chapeuzinho Vermelho, revelando como os
987, Cascavel, Paraná. Endereço eletrôni- contos de fadas se constituem em fontes de satisfação a desejos in-
co: fabioamari@hotmail.com conscientes, e ao mesmo tempo, trabalhando na elaboração de confli-
tos comuns a todas as crianças, que estão em processo de formação
3
Orientadora. Psicóloga. Especialista em de seu sujeito.
Psicanálise pela Universidade de Marí- Palavras-chave: Psicanálise, Infância, Constituição do Sujeito, Contos
lia, São Paulo. Especialista em Psicologia de Fadas.
da Educação pela Universidade Severino
Sombra, Rio de Janeiro. Docente do curso
Abstract: This article presents a study on fairy tales and its importance
de Psicologia da Universidade Paranaen-
se – UNIPAR, Campus Cascavel, Paraná.
to the subjective constitution of an infant under Psychoanalysis. In or-
Contato: Rua Vicente Machado, 1350. Cas- der to reach this objective, the way an infant was seen in old times and
cavel, Paraná. Endereço eletrônico: anama- the shift occurred on the way society understands them, lo longer seen
ria@unipar.br as small adults but as individuals growing up, is historically recalled in
this study. The article is based on the psychoanalytic concepts toward
the individual and its constitution since infancy, along with their con-
tact with the other. The fairy tales which come from oral traditions and
were initially aimed to adults have become valuable to the formation
of subjectivity, bringing up important subjects which affect their uncon-
sciousness directly. The article analyzes the story of Little Red Riding
Hood, revealing how fairy tales represent sources of satisfaction for
unconscious desires, and at the same time, working on the elabora-
tion of conflicts that are common to all children who are forming their
individuality.
Recebido em março 2011 Keywords: Psychoanalysis, Infancy, Individual’s Constitution, Fairy
Aceito em junho 2011
Tales.

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ARAÚJO, F. M. S. C; AMARI, F. N.; OLIVEIRA, A. M. M. A

INTRODUÇÃO raneidade é produto de uma longa trajetória de


busca e reconhecimento e é surpreendente fa-
“Não é surpreendente descobrir que a psica- zer esse retrocesso e imaginar a subjetividade
nálise confirma nosso reconhecimento do lu- da época. A segunda parte refere-se à constru-
gar importante que os contos de fadas popu- ção da criança como sujeito psicanalítico. Sua
lares alcançaram na vida mental dos nossos psique, sua subjetividade, como se constituem
filhos. Em algumas pessoas, a rememoração
dentro da abordagem psicanalítica. E na tercei-
de seus contos de fadas favoritos ocupa o lu-
gar das lembranças de sua própria infância: ra parte, abordam-se como os Contos de Fadas
elas transformaram esses contos em lem- ocupam um lugar fundamental para a criança,
branças encobridoras” Freud, S. [1913] 1996. falando de medo, final feliz e maldade de uma
forma tão sutil e maravilhosa. Para ilustrar con-
O presente estudo de pesquisa tem teúdo pesquisado, a escolha pelo Conto de Cha-
como principal objetivo ampliar o olhar para a peuzinho Vermelho ocorre em virtude de sua in-
criança por meio de um elemento fundamental tensidade de narrativa, popularidade e também
na infância que é a companhia dos maravilhosos por ser um clássico conhecido por todos.
contos de fadas. Mas, como começar? Desen-
volver este artigo mediante do estudo acerca da O OLHAR SOBRE A CRIANÇA
importância dos Contos de Fadas para as crian-
ças leva a um questionamento sobre o universo Historicamente, até a Idade Média, a so-
dos adultos, como são constituídos, e como são ciedade via a criança como um adulto em mi-
influenciados. niatura; ela participava das atividades do mundo
Esta pesquisa limita-se ao olhar que a social, se confundia na vida adulta participando
Psicanálise direciona aos Contos de Fadas, e de jogos, brincadeiras, profissões, no uso de ar-
para realizá-la, utiliza como método de pesquisa mas, assistia a enforcamentos, decapitações e
a revisão bibliográfica e analítica, já que toma até mesmo em práticas sexuais com os adultos.
por base o clássico conto de fadas “Chapeuzi- Para Ariès (1978, p. 99), “o sentimento de infân-
nho Vermelho”. cia não existia” na Idade Média. Se uma criança
É preciso compreender que na infância não podia participar do mundo adulto, ela sim-
reside grande parte do que é determinado no plesmente não contava. Uma criança demasia-
adulto. Esta é uma maneira de perceber uma do pequena podia desaparecer sem despertar
realidade nos sentimentos e pensamentos da preocupação nos adultos, as condições de hi-
criança de forma real, sem devaneios, sem ilu- giene precárias favoreciam o aparecimento de
sões, afinal, um dia, todo adulto já foi criança, e doenças, o que justificava o alto índice de morta-
as lembranças evocam verdades que somente lidade ocorrido na época (ARIÉS, 1978).
por outras palavras podem ser ditas, somente Dolto (2005) ressalta que no período
por identificações podem ser revividas. É como Medieval, quando a criança sobrevivia à primei-
um clichê estereotípico que se repete, que im- ra idade, deveria se dispor sempre a defender
prime na vida adulta aquelas questões tão fun- os interesses da casa, deveria ser útil não só à
damentais da infância. Os contos de fadas são sua família como também à sociedade; aos sete
essenciais por sua verdade, clareza e simplici- anos, se pertencesse a uma família de posses,
dade. Como uma obra de arte que se reflete de já poderia ser colocada em condição de apren-
maneira única em cada criança, e como cada diz em casa de outras pessoas: saber servir para
criança em si é também uma obra de arte, única ser servido, era a premissa da época. Em se
e essencial. tratando de crianças pobres, após os 14 anos,
Para falar dos Contos de Fadas como um continuavam servindo as casas dos senhores,
elemento constitutivo da vida de uma criança, é afinal, de todo ainda era mais interessante ser
necessário inicialmente situar a criança em um aprendiz da casa que poderia prover-lhe o co-
complexo que envolve tanto uma visão histórica nhecimento para o futuro.
quanto sua formação como sujeito psicanalítico. Porém, essa hostilidade em relação à
O presente artigo organiza-se em uma criança começou a desmoronar. Um sentimento
primeira parte no modo como a criança é vista novo e inevitável começou a aparecer: a presen-
hoje e como seu histórico sofre mudanças ao ça da criança passou a provocar um certo prazer
longo do tempo. Sua importância na contempo- em tê-las, cuidá-las, amá-las, a criança por sua

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ingenuidade, gentileza e graça, constituía uma da criança-indivíduo” (DOLTO, 2005 p.13). Po-
fonte de distração e relaxamento. Um tratamen- rém, ainda a sociedade reconhecia esse indiví-
to diferencial em que a criança passa a ser vis- duo como ser capaz de fazer um trabalho útil. A
ta como entretenimento para os adultos, o que escola teria substituído a aprendizagem tradicio-
Ariès (1978) denominou como “paparicação”. nal e se tornado o principal meio de educação
A maneira como a criança é vista hoje de maneira que a criança não mais estaria mis-
começou a surgir a partir do século XVII quando turada à vida dos adultos (MELLO NETO, 1994).
se procurou preservar uma inocência infantil e Na Idade Média, a criança era “sepulta-
a educação tornou-se uma preocupação das fa- da sob suas roupas, seu corpo aprisionado; os
mílias, dos educadores e da Lei (COSTA, 2007). botões na frente ou nas costas de suas roupas
Crianças começaram a ser agrupadas por idade, eram o único elemento que supunham o sexo.
tomando a condição de alunos: foi a multiplica- Esta verdade anatômica foi julgada indigna dos
ção das escolas onde surgiu a preocupação em filhos de Deus” (DOLTO, 2005, p.13). Somente
separá-las por idade, disciplinas e nível de ins- no século XIX a criança se distinguiu, a expres-
trução. Um processo que começou pelas cama- são na arte fugiu às convenções, mostrando as
das mais pobres, constituindo uma única opor- diferenças, surgiram novos valores; os meninos
tunidade de promover-se socialmente (DOLTO, usavam cabelos compridos; meninas usavam
2005). cabelos presos, vestidos e aventais. A sexua-
No século XVIII, a preocupação com a lidade começou a despontar como identidade
higiene e a saúde física se tornou importante, (DOLTO, 2005).
não tanto pelo objetivo de manter um corpo sau- Os valores individuais ganharam mais
dável, mas sim por uma questão moral, por se importância, a burguesia revelou novas ideias, a
acreditava que um corpo não saudável conduzia ascensão do capitalismo produziu uma nova for-
aos maus hábitos como os vícios, a preguiça, a ma de vida; um novo olhar sobre a criança, ela
moleza e concupiscência. A Igreja passou a se então se transformou numa força de produção,
preocupar com a moralidade, procurando pre- “um investimento lucrativo para o Estado em lon-
servar a criança afastando-a da sordidez da vida go prazo” (COSTA, 2007, p. 12). Um novo mode-
e especialmente da sexualidade dos adultos lo pedagógico tratou de prepará-la no intuito de
(ARIÈS, 1978). Esse grande movimento mora- assegurar um homem bom e produtivo que sus-
lista, promovido pelos reformadores católicos ou tentasse o futuro da civilização, principalmente
protestantes ligados à Igreja e ao Estado, con- por meio das novas escolas e a responsabilida-
tava com a cumplicidade sentimental da família, de que as famílias começaram a manifestar, não
com o moralismo ocupando o lugar da afeição só na moralização, como com a higiene e a saú-
(MELLO NETO, 1994). de física. A criança neste momento já ocupava
Ainda no século XVIII, o pensamento ilu- um lugar central na família.
minista inspirou toda a educação até o século No século XIX, uma característica mar-
XX. Jean-Jacques Rousseau, um dos represen- cante foi o angelismo, um movimento em que a
tantes desse momento histórico, defendeu uma criança se sobressaiu numa posição frágil, como
natureza inocente, pura da criança, desprovida evocasse uma origem divina do homem fazen-
de toda sexualidade; originalmente, ela tinha do-o recordar a pureza primitiva como o aspecto
maneiras de pensar e agir próprias à sua ida- mais nobre e carismático da condição humana.
de. Em razão disso, a criança precisava de uma Esse movimento fez da criança vítima da socie-
educação apropriada para ela, priorizando o de- dade, a dramatização da infelicidade (DOLTO,
senvolvimento de suas potencialidades, cujas 2005).
regras foram elaboras por Rousseau num Manu- Uma ambivalência apareceu colocando
al para Educadores e deveria ser seguido para novamente a bondade da criança em questão:
que se formassem bons adultos. Tal manual foi afinal, a criança se adaptava com facilidade em
tão bem aceito pelos pedagogos da Europa que situações em que está em perigo, ela revelava
foi fundamental para a mudança da mentalidade esperteza, seus dons de imitações, seus vícios,
da época (COSTA, 2007). suas simulações, eram astutos, eram capazes
O ano de 1789 representou um marco, de conviver na violência social e muitas vezes se
uma nova sociedade priorizou a aprendizagem revelavam amorais. Uma nova visão naturalista
como um rito de passagem: era “o nascimento pretendeu mostrar a criança como ela era, em

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ARAÚJO, F. M. S. C; AMARI, F. N.; OLIVEIRA, A. M. M. A

carne e osso, nem boa nem má, mas apenas cem com garantias e benefícios que a superpro-
viva (DOLTO, 2005). teção contemporânea não pode competir. O dis-
Tais mudanças na concepção do infante curso científico se colocou a serviço da ordem, a
podem ser ilustradas com a passagem a seguir: criança está submetida a uma instrução pública;
a compreensão sobre a criança não mais está
Jules Vallès (A Criança) rompe com o melo- envolvida em seu potencial ou no que ela sente
drama naturalista sobre a criatura fraca, eter- ou expressa, mas sim na minúcia de pesquisas
na e pequena vítima. Vítima sim, mas não experimentais como se fossem animais de labo-
resignada nem passiva. Em idade de defesa. ratório. Cada vez mais confinadas, o recurso da
Soa a hora da revolta. A insurreição da juven-
contemporaneidade para as crianças é ampliar
tude tem seus primeiros sobressaltos duran-
te a trágica utopia da Comuna. A criança de seus relacionamentos por meio da rede de in-
Vallès nas barricadas continua a escalada da ternet, o brinquedo eletrônico tido não como um
qual Gavroche havia lançado a primeira pe- amigo, mas um instrumento (DOLTO, 2005).
dra (DOLTO, 2005, pg. 32).
A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO PARA A PSI-
A ciência, a pedagogia, a pediatria, todas CANÁLISE
as especializações que surgiram em torno da
criança passaram a imperar na sua formação, “A psicanálise sente-se à vontade no terreno
cuja normatização acabava por desqualificar a das narrativas, afinal, trocando em miúdos,
família de conduzir a educação de suas crian- uma vida é uma história, e o que contamos
dela é sempre algum tipo de ficção; sempre
ças, obedecendo aos ditames de um conheci-
será uma trama, da qual parcialmente escre-
mento científico (DOLTO, 2007). As instituições vemos o roteiro”(Corso & Corso).
produziam a criança contemporânea (MELLO
NETO, 1994). Sem dúvida, a psicanálise ocupou e ocu-
Hoje a condição de ser da criança está pa até hoje um papel fundamental neste novo
subordinada a um espaço limitado, a casa e a olhar lançado para a criança; inicialmente a
escola delimitam as proibições, a criança é pri- criança é tida como um ser sem importância,
vada do contato com a natureza e com a vida imaturo e assexuado que perpassa pela não
dos adultos; não tem mais o direito de observar admissão do seu desejo; e foi somente a partir
ou de se distrair. Dolto (2005) diz ainda que a de Freud que esta concepção se atualiza, com-
criança contemporânea não sente mais o mun- preendendo a criança como um ser de natureza
do: o frio, o calor, a chuva, vento, neve; não brin- infantil, cuja sexualidade não mais poderia ser
cam na terra nem ouvem o barulho dos animais. confundida com a sexualidade adulta (COSTA,
Ela está à mercê dos perigos e do confinamento; 2007).
tudo é mobilizado e restrito, destruindo a pos-
sibilidade da criança de descobrir seu próprio Esse foi um momento teórico muito impor-
esquema corporal, a observar, imaginar e correr tante no desenvolvimento da teoria psicana-
riscos e prazeres. A cultura não inscreveu a libi- lítica, no qual o relevante não são mais os
do. Ao chegar em casa, é hipnotizada pela ima- fatos da infância, mas a realidade psíquica,
gem da televisão: constituída pelos desejos inconscientes e
pelas fantasias a ela vinculadas, tendo como
essa boca grande que vomita imagens e pano de fundo a sexualidade infantil (COSTA,
informações pode impunemente chocar a 2007, p. 14).
criança para quem não temos mais tempo de
explicar as coisas... é submetida a um bom- Freud, que primeiramente não se interes-
bardeamento quantitativo; ela não seleciona sava em estudar as crianças, nas suas obser-
e os pais não tem tempo para fazê-lo com ela vações sobre as neuroses, acaba por encontrar
(DOLTO, 2005. p.52). um infantil que se mantinha no adulto. E é deste
infantil da realidade psíquica e não da realidade
O trágico da nossa sociedade é que factual que se ocupa a lógica do inconsciente.
crianças com vivências e experiências da vida Em sua teoria, Freud apresenta ao mundo sua
não são as mesmas que estão nas escolas. A posição revolucionária em que a criança é do-
identidade de grupo e as relações sociais fortale- tada de características sexuais, que seu corpo

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é um corpo pulsional, um corpo de desejo, e em está regida por um sistema simbólico: o objeto
muito se assemelha ao adulto em suas angús- materno é proibido e quem sustenta esta lei é o
tias e fantasias. Com o caso de Pequeno Hans, pai – o detentor do falo, a Cultura de uma Socie-
Freud estabeleceu as bases teóricas de análi- dade patriarcal, o suporte da função simbólica
se com crianças, abrindo as portas para o de- identifica a pessoa à figura da lei.
senvolvimento da psicanálise infantil (COSTA, Então, há um campo Simbólico, consti-
2007). tuído por leis, por um código de comunicação
Na primeira infância, o complexo de Édi- específico para cada povo e cultura sustentada
po revela-se como o fenômeno central do perío- por uma estrutura de linguagem mediada por um
do sexual. Freud (1924) diz que o complexo de sistema de representações no qual se nomeiam
Édipo ofereceu às crianças duas possibilidades pessoas, objetos, fenômenos distanciando-os
de satisfação, uma ativa e outra passiva, ocu- da sua realidade. O homem será capaz de signi-
pando o lugar do pai (e ter relações com a mãe) ficar-se a si mesmo, os outros e o mundo que o
ou da mãe (e ser amada pelo pai). Na verdade, rodeia, mesmo que não seja possível simbolizar
a criança tem apenas vagas noções quanto ao tudo.
que é uma relação erótica satisfatória, mas sabe A castração é o processo de simboliza-
que o pênis faz parte desta relação, por meio ção do ser humano. Boukobza (2006) citando
das sensações que seu próprio órgão oferece. Françoise Dolto, entende que não há apenas
O conflito que ocorre nas crianças é o medo de uma castração, mas várias, que ao longo da vida
uma castração como forma de punição ao Édi- são representadas pela castração do cordão
po. Se a satisfação do amor custa-lhe o pênis, o umbilical (nascimento), castração oral (desma-
ego narcísico opta por abrir mão da catexia libi- me), a castração primária (assunção pela crian-
dinal de seus objetos parentais. As catexias são ça de seu sexo), e a castração edípica (interdito
abandonadas e substituídas por identificações, do incesto). Quando finda a castração edípica,
a autoridade dos pais é introjetada no ego, for- se constrói o narcisismo secundário da criança.
mando o núcleo do superego, a lei é representa- As castrações modelam a imagem do corpo e
da pela severidade do pai, perpetuando assim a dão acesso à simbolização.
proibição contra o incesto. Foi a partir de Lacan que o termo sujei-
to ganha espaço, tratar da questão do que é o
A angústia da castração vem daquilo que sujeito implica tratar do processo da sua consti-
fragmentamos para engolir. Há uma repre- tuição. Em geral, as diversas abordagens da psi-
sentação inconsciente desse fato. É uma an- cologia definem personalidade como um resul-
gústia de divisão que se fixa particularmente tado interativo de fatores genéticos, ambientais
sobre o que “ultrapassa” as partes protube-
e comportamentais do indivíduo. A psicanálise
rantes do corpo. Os egípcios apertavam os
braços dos mortos para que o corpo chegas- se opõe radicalmente a essas concepções, pois
se inteiro ao reino das sombras. Para que a o campo psíquico não é um efeito interativo e
criança continue a evoluir integralmente, é secundário de ordens positivas. A noção central
preciso que ela tenha consciência de preser- do campo psíquico é justamente a de sujeito. O
var a integridade do próprio corpo (DOLTO, sujeito, portanto, se constitui, não “nasce” e não
2005, p. 17). se “desenvolve”, e sim, se constitui do campo da
linguagem (ELIA, 2004). Enquanto não encontra
Para Bernardino (2006), Freud mostrou seu próprio sentido, ao humano recém-nascido
como o ser humano revive, no seio de sua famí- resta corresponder ao sentido que lhe dão, pro-
lia e nos primeiros anos da infância, esse pro- cesso que Lacan denomina alienação. É preciso
cesso de inserção da humanidade na cultura. alienar-se no desejo e nas palavras de um outro
Isso ocorreu mediante a Lei básica que o fun- da espécie para poder ter existência simbólica,
dou: a Lei da Proibição do Incesto. Lacan então e é no contato com o outro que o organismo vai
faz uma releitura de Freud para esclarecer que sendo aos poucos simbolizado (BERNARDINO,
esta Lei é tão fundamental por reger uma ‘alian- 2006).
ça’ que está acima do reino da natureza e do rei- Lacan ampliou a importância do sentido
no da cultura, pois retira o homem de um campo dado desde a família ao complexo de castração,
animal e instintivo. Assim, uma “Lei da Cópula” colocado no centro do vir a ser do ser humano
o regula para sua sobrevivência, e a reprodução como um limite universal, que podemos dizer da

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relação do bebê e da mãe, do homem e a na- desejo algo que podemos denominar demanda,
tureza, da cultura e do animal humano. Dessa ou seja, dizer de uma busca de saciar o desejo e
forma, o acesso à linguagem se dá na forma de a necessidade de amor provenientes do Outro,
perda, de amputação e de alienação no Outro que, fragmentados pelos significantes, se trans-
genérico. (MELLO NETO, 1994). Dolto (2005) forma em pulsão (ELIA, 2004).
diz que a psicanálise nos mostra importância da
transmissão dos valores da família como poten- OS CONTOS DE FADAS
cialidades estruturais, exercendo um lugar fun-
damental nessa constituição. “Agora começamos também a compreender
Então, a psicanálise vê um sujeito em a “magia” das palavras. É que as palavras
sua raiz social (que não deve ser desconside- são o mediador mais importante da influencia
rada), e um sujeito do inconsciente que por este que um homem pretende exercer sobre o ou-
tro; as palavras são um bom meio de provo-
é gerado, compreendendo melhor: a dimensão
car modificações anímicas naquele a quem
social é essencial à constituição do sujeito do são dirigidas, e por isso já não soa enigmá-
inconsciente. Como condição a priori de sobre- tico afirmar que a magia das palavras pode
vivência, o humano necessita de uma família ou eliminar os sintomas patológicos, sobretudo
de substitutos sociais e jurídicos, é o desampa- aqueles que se baseiam justamente nos es-
ro fundamental denominado por Freud como a tados psíquicos.” Freud, S. [1905] 1996.
condição humana de exigir a intervenção de um
adulto próximo que perpetre a ação específica e Os Contos de Fadas surgem historica-
necessária para a sobrevivência do ser humano mente por volta do século XIV e perduram até
desamparado. Lacan propõe chamar de Outro a contemporaneidade. Essas estórias contadas
(com ‘o’ maiúsculo) para designar não apenas o hoje são resultado de diversas reelaborações da
adulto próximo de que fala Freud, mas também sociedade europeia do século XVIII e XIX, mui-
a ordem que este adulto encarna para o bebê tas vezes condensadas ou confundidas umas
recém nascido num mundo humano, social e com as outras (CHAUÍ, 1984), ou mesmo modifi-
cultural: o Outro Simbólico (ELIA, 2004). cadas conforme os problemas especiais de cada
Elia (2004) elucida que é o representan- época (BETTELHEIM, 2007).
te materno que transmite uma estrutura signifi- Os Contos nem sempre foram destinados
cante e inconsciente para o bebê, esta estrutura às crianças. Essas narrativas eram feitas para
como um conjunto de marcas materiais e simbó- um público coletivo que se emocionava com o
licas que denominamos significantes. Estes sig- Contador de Histórias. Com o passar do tempo,
nificantes introduzidos pelo Outro materno sus- a forma dessas narrativas foi se adequando a
citam no bebê, um ato de resposta que se cha- novas formas de linguagem, os livros se popula-
ma sujeito; mas não podemos dizer que o Outro rizam e seu uso se destina à crescente alfabeti-
determina completamente o sujeito, mas sim o zação da sociedade; como a alfabetização cada
trabalho de significação que por este é feito. An- vez mais foi realizada entre os infantes, houve
tes de supor o Outro, temos que supor o prévio este deslocamento dos Contos populares para
ao sujeito, ou seja, muito antes do bebê surgir os Contos de Fadas, destinado ao público infan-
na cena do mundo, ele já se encontra constituí- til (CORSO, 2006).
do não só pela cultura, sociedade e família, mas Para Corso (2006), contos de fadas po-
com todos os elementos complexos, inclusive a dem evoluir, identificando-se com situações mo-
linguagem. O sujeito é sujeito da linguagem. dernas, buscando novas formas que a fantasia
Podemos dizer que Freud precisou falar encontrou de se conjugar, representando famí-
deste objeto de necessidade do bebê humano lias, crianças, pessoas de nosso tempo. Velhas
para poder dizer do objeto de desejo relacionado tramas vestindo novos trajes.
à satisfação; o psiquismo procurará reencontrar Bettelheim (2007) elucida as diferenças
o objeto segundo as linhas em que foi registrado entre os Contos de Fadas e os mitos populares,
psiquicamente e esta busca é o desejo. Mas foi ainda que inicialmente ambos representem as
Lacan quem introduziu entre a necessidade e o experiências cumulativas de determinadas so-

3
Falar de capital específico é dizer que o capital vale em relação a um certo campo, portanto dentro dos limites deste campo, e que ele
só é convertível em outras espécies de capital sob certas condições (Bourdieu, 1983, p. 90).

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A função dos contos de fadas...

ciedades, eles discordam entre si por suas ca- algo que oferece a segurança de que a criança
racterísticas próprias. O mito é majestoso, trans- muitas vezes busca para atenuar suas fantasias
mite força espiritual mediante da figura divina e do cotidiano, com as quais tem que lidar com de-
heróica, muitas vezes, sobre-humana. O conto saparecimentos e reaparecimentos, com as mu-
de fadas é apresentado de uma maneira simpli- danças que se apresentam na sua rotina. Bette-
ficada e despretensiosa, nenhuma solicitação é lheim (2007) diz ainda que muitas vezes, para a
feita ao ouvinte; a esperança para o futuro ofere- criança, o mundo real é desconcertante; ela tem
ce a promessa de um final feliz. a necessidade que lhe seja dada uma oportuni-
Dolto (2005) compreende que os mitos dade de entender a si própria e como deve lidar
e os contos inicialmente surgem de um folclore com seu meio. Por meio dos contos de fadas,
comum, com a intenção de ajudar as crianças ela pode compreender mais sobre seus proble-
na passagem para o mundo adulto, falando dos mas íntimos do que qualquer outra história para
riscos de da autodefesa. Porém, enquanto os crianças. A criança necessita de ajuda para en-
mitos trazem em seus personagens idealizações contrar sentido no turbilhão de sentimentos que
do Superego, os Contos de fadas evocam uma vivencia, precisa de ideias de como irá colocar
integração do Ego que permite a satisfação dos ordem na sua subjetividade, e com base nisso
desejos do Id; “... essa diferença destaca o con- ter ordem na sua vida. Necessita de uma educa-
traste entre o pessimismo penetrante dos mitos ção moral que, de modo sutil e implicitamente, a
e o otimismo fundamental dos contos de fadas” conduza as vantagens do comportamento mo-
(DOLTO, 2005. Pg. 38). ral, não por meio de conceitos abstratos, mas de
Contos de Fadas nem sempre tem fadas uma maneira que lhe pareça tangível e, portanto
presentes em sua narrativa. Então, porque cha- significativa, a criança encontra esse tipo de sig-
mamos Contos de fadas? Corso (2006) cita um nificado nos contos de fadas.
importante estudioso russo, Vladimir Propp, um Tradicionalmente, os Contos de Fadas
estruturalista dos contos populares, que, visan- foram transmitidos para as crianças de forma
do identificar seus elementos narrativos, deno- oral, foram contadas e recontadas inúmeras ve-
minou então os contos como “Contos Maravilho- zes, e exigiam da criança todo um complexo de
sos” pela presença de um elemento mágico ou organização que a levava a imaginar cada cena
fantástico nessas estórias. As fadas não neces- de forma única e subjetiva. A linguagem contem-
sariamente estão presentes, mas sim algum ele- porânea conta com diversos recursos, e a ima-
mento extraordinário, surpreendente, encanta- gem representa o “carro-chefe” na vida infantil.
dor. O tradicional começo “Era uma vez” assegu- Não podemos dizer que as crianças perdem ele-
ra a entrada para um mundo com possibilidades mentos essenciais para a imaginação, mas po-
e lógicas (como a encontrada no inconsciente ) demos dizer que elas perdem um recurso essen-
diferentes, em que os fatos surpreendentes são cial: o Contador das histórias. Contar histórias
garantidos. às crianças não é apenas um jeito de dar prazer
Não se pode dizer que um determinado à elas, mas também é um modo de ampará-las
conto de fadas se destina a um tipo específico em suas angústias, ajudá-las a nomear o que
de criança ou mesmo uma idade adequada. So- não podia ser dito, ampliar o espaço da fantasia
mente o ouvinte poderá determinar a força com e do pensamento. A ficção acaba representando
que reage emocionalmente, como subjetiva os uma saída para que certas verdades se impo-
problemas apresentados, como faz suas iden- nham. Sem contar ainda com o espaço dos pais
tificações e enfrentamentos constituindo uma junto à seus filhos, diga-se de passagem, um lu-
oportunidade única de sentir que ele, por conta gar que hoje os adultos relutam em ocupar no
própria, por meio de repetidas audições e rumi- afã de se conservar eternamente adolescentes.
nações acerca da história, galgou êxito numa si- As narrativas são uma maneira de dizer coisas
tuação difícil (BETTELHEIM, 2007). significativas aos filhos, dia após dia, até perce-
É muito comum que as crianças exi- ber que eles estão deixando de lhes dar ouvidos,
jam que lhe contem as estórias repetidas ve- o que significa que o poder sobre eles acabou –
zes; essa relação quase maníaca e obsessiva mas o amor continua (CORSO, 2006).
da criança com a narrativa é essencial. Chauí Os elementos assustadores presentes
(1984) corrobora que há um sentido de estabi- nos contos de fadas ensinam os pequenos a en-
lidade – o fato de permanecer sem alteração, frentar o medo. Crianças procuram e desejam o

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ARAÚJO, F. M. S. C; AMARI, F. N.; OLIVEIRA, A. M. M. A

medo; elas exigem que os adultos repitam várias que seus filhos acreditem que os homens são
vezes os trechos mais amedrontadores dos con- inerentemente bons, sem contar que elas pró-
tos de fadas; o medo é uma das sementes privi- prias reconhecem em si tais sentimentos, con-
legiadas da fantasia e da invenção, é um senti- tradizendo o que lhes é dito pelos pais e, des-
mento vital que nos protege dos riscos da morte. se modo, a criança acaba se vendo como um
Em função dele, incitamos também o sentido de monstro (BETTELHEIM, 2007).
curiosidade e coragem, possibilitando a expan- Para Chauí (1984), os adultos ficam
são das pulsões de vida. O medo, o prazer do chocados com essa violência apresentada pelos
mistério e o desafio respondem o máximo de contos de fadas, e ficam surpresos com o fato
suas fantasias de onipotência (CORSO, 2006). de que não a percebiam quando eram crianças,
Bettelheim (2007) diz que a criança pre- comprazendo-se nela – pois se apoiavam na cer-
cisa entender o que está se passando dentro de teza do tradicional “e foram felizes para sempre”
seu eu consciente, para que possa também, en- cumpridos no final dos contos. O temor do adulto
frentar o que se passa em seu inconsciente; a está relacionado ao seu medo inconsciente de
criança pode atingir esse entendimento, e, com que a criança o identifique com o “mau”, porém,
ele, a capacidade de enfrentamento, não pela a criança contrabalança sua identificação com o
compreensão racional da natureza e do conte- “bom”, discriminando, por meio da fantasia, mo-
údo de seu inconsciente, mas familiarizando- mentos que lhe seriam difíceis sem o material
-se com ele graças à fabricação de devaneios, imaginário.
ruminando, reorganizando e fantasiando sobre Procura-se ensinar que o lado obscuro
elementos externos dentro dos contos de fadas do homem não existe, retratando um otimismo
apropriados em resposta a pressões inconscien- irreal. A psicanálise foi criada para capacitar ao
tes. Ao fazer isso, a criança adapta o seu con- homem aceitar a natureza problemática da vida
teúdo inconsciente às fantasias conscientes, e e não ser derrotado por ela, só se lutando contra
isso a ajuda lidar consigo mesma. o que aparenta ser desvantagens esmagadoras
O inconsciente é um determinante pode- o homem consegue encontrar sentido em sua
roso do comportamento humano, e se ele é re- existência (BETTELHEIM, 2007).
calcado e nega-se a entrada de seu conteúdo à Um dia as crianças terão de enfrentar si-
consciência, eventualmente a mente consciente tuações difíceis; os contos de fadas funcionam
será dominada por derivativos desses elemen- como antecipações que lhes permitem dominar
tos inconscientes, caso contrário, esta se verá o medo do “mundo cruel” que mais cedo ou mais
forçada a manter um controle de tal forma rígido tarde certamente terão de enfrentar. Os contos
e compulsivo sobre eles que sua personalidade de fadas ajudam-nas a elaborar seus conflitos
poderá vir a ser gravemente danificada. Mas, mais íntimos (CORSO, 2006). Os contos de fa-
quando o material inconsciente tem permissão das transmitem essa mensagem para a criança
de aflorar à consciência e ser trabalhado na ima- de forma variada, que uma luta contra dificul-
ginação, seus danos potenciais ficam reduzidos dades graves na vida é inevitável, faz parte da
(BETTELHEIM, 2007). existência humana, mas que se a pessoa não se
Ouvir histórias é um dos recursos das intimida e se defronta com as provações ines-
crianças que lhe situam num lugar, família e no peradas e muitas vezes injustiçada, dominará
mundo. Essa linguagem possibilita aos peque- todos os obstáculos e ao fim emergirá vitoriosa
nos um contato com a realidade que lhes oculta- (BETTELHEIM, 2007).
mos quando não queremos dizer o quão pesada Para Corso (2006), não existe infância
é a vida e que tememos que percam as esperan- sem fantasia. É nesse aspecto que reside uma
ças (CORSO, 2006). Bettelheim diz ainda, “os das relações mais importantes entre os Contos
contos de fadas têm um valor inigualável, pois de Fadas e a Constituição do Sujeito Psicanalíti-
oferecem novas dimensões à imaginação da co. A fantasia se alimenta da ficção, Contos de
criança que ela seria incapaz de descobrir por si Fadas representam a ficção com elementos
só de modo tão verdadeiro” (2007, p.13). clássicos que não mudam nunca: são temas de
Há uma tendência nos pais de afastar amor, relações familiares e a construção de iden-
os filhos de suas angústias, fantasias raivosas tidades do ser humano que se inspiram nessas
e violentas, como se a natureza humana não narrativas. A maneira como cada um subjetiva o
fosse a própria fonte; ao invés disso, pretendem conto, como podem evocar leituras de seus con-

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A função dos contos de fadas...

teúdos inconscientes e trabalhar seus conflitos seu sangue numa garrafa e cortou sua carne em
íntimos diz como a simbolização é fundamental fatias, colocando tudo numa travessa. Depois,
na infância para a passagem no mundo adulto. vestiu sua roupa de dormir e ficou deitado na
Segundo Chauí (1984), crianças também cama, a espera.
experimentam sentimentos de temor e ódio, in- Pam, pam !.
clusive pelos adultos. Torcer pelas “bruxas”, Entre, querida.
“ogros” ou “dragões” é uma boa maneira de dar Olá vovó. Trouxe para a senhora um pouco de
vazão à agressividade, que, de outro modo, se- pão e leite.
ria punida se fosse manifestada. Não podemos Sirva-se também de alguma coisa. Há carne e
desconsiderar que muitas vezes o “bom” parece vinho na copa.
estar tão longínquo, enquanto o “mau” lhe pa- A menina comeu o que lhe era oferecido e, en-
rece tão próximo e tão poderoso, não é isento quanto o fazia, um gatinho disse:
de atrações. Bettelheim (2007) fala deste prazer Menina perdida! Comer a carne e beber o
que sentimos ao podemos falar da morte, do en- sangue da sua avó!
velhecimento, do desejo da vida eterna, dos lim- Depois o lobo disse:
ites da existência. É básico. É humano. Mas não Tire a roupa e deite-se na cama comigo.
é o fato de o malfeitor ser punido no final que Onde ponho o avental?
imprime moral à estória; nos contos de fadas, Jogue no fogo. Você não vai mais precisar dele.
como na vida, a punição ou o medo é apenas Para cada peça de roupa – corpete, saia, anágua
um fator para inibir o crime. O herói é atraente e meias – a menina fazia a mesma pergunta. E
para a criança porque passa a convicção que o cada vez, o lobo respondia:
crime não compensa; ela sofre junto com o herói Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dela.
em todas as suas provas e atribuições, e triunfa Quando a menina se deitou na cama, disse:
com ele quando a virtude sai vitoriosa. As identi- Ah, vovó! Como você é peluda!
ficações da criança são feitas por conta própria É para me manter mais aquecida, querida.
e as lutas interiores e exteriores do herói lhe im- Ah, vovó! Que ombros largos você tem!
primem moralidade. É para carregar melhor a lenha, querida!
(...) Até que ela perguntou:
ANÁLISE DA ESTÓRIA “CHAPEUZINHO Ah, vovó! Que dentes grandes você tem!
VERMELHO” É para comer melhor você, querida!
E ele a devorou”.
(Usina de Letras)
Esta análise utilizará a teoria psicanalí-
tica como fundamentação teórica, como forma Chapeuzinho Vermelho
de ilustrar melhor o conteúdo de análise, apre- Irmãos Grimm
senta duas versões da estória de Chapeuzinho
Vermelho, de Charles Perrault e dos Irmãos Era uma vez...
Grimm. Uma menina tão doce e meiga que todos gos-
tavam dela. A avó, a adorava, e não sabia mais
Chapeuzinho Vermelho que presente dar à criança para agradá-la. Um
Perrault dia ela presenteou-a com um chapeuzinho de
veludo vermelho. O chapeuzinho agradou tanto
“Certo dia, a mãe de uma menina mandou que a menina e ficou tão bem nela, que ela queria
ela levasse um pouco de pão e de leite para sua ficar com ele e o tempo todo. Por causa disso,
avó. Quando a menina ia caminhando pela flo- ficou conhecida como Chapeuzinho Vermelho.
resta, um lobo aproximou-se e perguntou-lhe Um dia, sua mãe lhe chamou e disse:
aonde ia: -Chapeuzinho, leve este pedaço de bolo e essa
Para a casa da vovó – ela respondeu: garrafa de vinho para sua avó. Ela está doente e
Por que caminho você vai, o dos alfinetes ou o fraca, e isto vai fazê-la ficar melhor. Comporte-se
das agulhas? no caminho, e de modo algum saia da estrada,
O das agulhas. ou você pode cair e quebrar a garrafa de vinho,
Então o lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e e ele é muito importante para a recuperação de
chegou primeiro à casa. Matou a avó, despejou sua avó.

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ARAÚJO, F. M. S. C; AMARI, F. N.; OLIVEIRA, A. M. M. A

Chapeuzinho prometeu que obedeceria sua mãe me levantar pois estou muito fraca. — respon-
pegando a cesta com o bolo e o vinho, despediu- deu a vovó.
se e partiu. O Lobo entrou na casa e foi direto à cama da
Sua avó morava no meio da floresta, distante vovó, e a engoliu antes que ela pudesse vê-lo.
uma hora e meia da vila. Logo que Chapeuzinho Então ele vestiu suas roupas, colocou sua touca
entrou na floresta, um Lobo apareceu na sua fr- na cabeça, fechou as cortinas da cama, deitou-
ente. Como ela não o conhecia nem sabia que se e ficou esperando Chapeuzinho Vermelho.
ele era um ser perverso, não sentiu medo algum. E Chapeuzinho continuava colhendo flores na
-Bom dia Chapeuzinho – saudou o Lobo. mata. E só quando não podia mais carregar ne-
-Bom dia Lobo –ela respondeu. nhuma é que retornou ao caminho da casa de
-Aonde você vai assim tão cedinho, Chapeuz- sua avó.
inho? Quando ela chegou lá, para sua surpresa, en-
Vou à casa da minha avó. controu a porta aberta.
E o que você está levando aí nessa cestinha? Ela caminhou até a sala, e tudo parecia tão es-
— Minha avó está muito doente e fraca, e eu tranho que pensou:
estou levando para ela um pedaço de bolo que a — Oh, céus, por quê será que estou com tanto
mamãe fez ontem, e uma garrafa de vinho. Isto medo? Normalmente eu me sinto tão bem na
vai deixá-la forte e saudável. casa da vovó...
— Chapeuzinho, diga-me uma coisa, onde sua Então ela foi até a cama da avó e abriu as cor-
avó mora? tinas. A vovó estava lá deitada com sua touca
— A uns quinze minutos daqui. A casa dela fica cobrindo parte do seu rosto, e, parecia muito es-
debaixo de três grandes carvalhos e é cercada tranha...
por uma sebe de aveleiras. Você deve conhecer — Oh, vovó, que orelhas grandes a senhora
a casa. tem! — disse então Chapeuzinho.
O Lobo pensou consigo: — É para te ouvir melhor.
— “Esta tenra menina é um delicioso petisco. — Oh, vovó, que olhos grandes a senhora tem!
Se eu agir rápido posso saborear sua avó, e ela — É para te ver melhor.
como sobremesa.” — Oh, vovó, que mãos enormes a senhora tem!
Então o Lobo disse: — São para te abraçar melhor.
— Escute Chapeuzinho, você já viu que lindas — Oh, vovó, que boca grande e horrível a sen-
flores há nessa floresta? Por quê você não dá hora tem!
uma olhada? Você não está ouvindo os pássa- — É para te comer melhor — e dizendo isto o
ros cantando? Você é muito séria, só caminha Lobo saltou sobre a indefesa menina, e a engo-
olhando para a frente. Veja quanta beleza há na liu de um só bote.
floresta. Depois que encheu a barriga, ele voltou à cama,
Chapeuzinho então olhou a sua volta, e viu a deitou, dormiu, e começou a roncar muito alto.
luz do sol brilhando entre as árvores, e viu como Um caçador que ia passando ali perto, escutou e
o chão estava coberto com lindas e coloridas achou estranho que uma velhinha roncasse tão
flores, e pensou: alto, então ele decidiu ir dar uma olhada.
— Se eu pegar um buquê de flores para minha Ele entrou na casa, e viu deitado na cama
avó, ela vai ficar muito contente. E como ainda é o Lobo que ele procurava há muito tempo.
cedo, eu não vou me atrasar. E o caçador pensou:
E, saindo do caminho entrou na mata. E sem- — Ele deve ter comido a velhinha, mas talvez
pre que apanhava uma flor, via outra mais bonita ela ainda possa ser salva. Não posso atirar nele.
adiante, e ia atrás dela. Assim foi entrando na Então ele pegou uma tesoura e abriu a barriga
mata cada vez mais. do Lobo.
Enquanto isso, o Lobo correu à casa da avó de Quando começou a cortar, viu surgir um chapeu-
Chapeuzinho e bateu na porta. zinho vermelho. Ele cortou mais, e a menina pu-
— Quem está aí? - perguntou a velhinha. lou para fora exclamando:
— Sou eu, Chapeuzinho - falou o Lobo disfar- — Eu estava com muito medo! Dentro da barriga
çando a voz - Vim trazer um pedaço de bolo e do lobo é muito escuro!
uma garrafa de vinho. Abra a porta para mim. E assim, a vovó foi salva também.
— Levante a tranca, ela está aberta. Não posso Então Chapeuzinho pegou algumas pedras

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A função dos contos de fadas...

grandes e pesadas e colocou dentro da barriga parece ser outra, ele deve antes eliminar a avó,
do lobo. que representa a figura materna. Isso nos traz a
Quando o lobo acordou tentou fugir, mas as pe- ideia de que enquanto a mãe estiver por perto, o
dras estavam tão pesadas que ele caiu no chão lobo não terá êxito em sua empreitada. Mas, tão
e morreu. logo a mãe não esteja perto, o lobo poderá agir
E assim, todos ficaram muito felizes. de acordo com seus desejos, que até então não
O caçador pegou a pele do lobo. podiam vir à tona; nesse nível a estória lida com
A vovó comeu o bolo e bebeu o vinho que Cha- desejos inconscientes de a filha ser seduzida
peuzinho havia trazido, e Chapeuzinho disse pelo pai, aqui representado pelo lobo (BETTE-
para si mesma: LHEIM, 2007).
— Enquanto eu viver, nunca mais vou desobe- Ainda para Bettelheim (2007), Perrault
decer minha mãe e desviar do caminho nem an- tira muito do valor de um conto de fadas, quan-
dar na floresta sozinha e por minha conta. do lhe confere explicações detalhando seus sig-
(MiniWeb) nificados. Todos os contos de fadas têm vários
níveis de significado e só a criança pode saber
As versões mais famosas deste Conto quais são importantes para ela naquele momen-
clássico são as de Charles Perrault e dos Irmãos to. Este é o sentido: a criança deve descobrir de
Grimm. Desde Perrault, essa história vem sendo forma espontânea e intuitiva seus significados
suavizada. Na primeira versão escrita de que te- ocultos, e essa descoberta faz com que uma es-
mos notícia, datada de 1697, Perrault concede tória passe de algo dado a criança para algo que
à Chapeuzinho um final nada feliz. Esse diálogo ela cria para si própria. De qualquer modo, os
mundialmente famoso acima citado é escutado dois caminhos representam o sofrimento, o das
há incontáveis gerações e faz parte do clímax agulhas e o dos alfinetes; seja qual for a esco-
de Chapeuzinho Vermelho. A criança, ao ouvir lha da criança, ela vai saber que não será tarefa
a estória, fica eletrizada, ansiosa com o destino fácil.
da menina que será devorada, capaz de prever Em 1857 os irmãos Grimm, escreveram
cada frase, pois já sabe de cor e quer ouvi-la a sua versão, que passa a ter um caráter de
todas as vezes sem nenhuma modificação. contos de fadas. Esta versão adquire diferenças:
Nesta versão, que começa como todas após Chapeuzinho ter sido devorada, um lenha-
as outras, a estória adquire um caráter de fábu- dor que passava por perto escutou o ronco do
la moral, ensina que quem transgride as regras lobo, e entrou na casa da avó, cortou a barriga
se expõe ao perigo, é punido e fim de estória. do lobo, retirando a avó e Chapeuzinho, ambas
Chapeuzinho é devorada pelo lobo. Perrault traz vivas, de seu ventre; então encheram a barriga
um poema expondo a moral a ser extraída da do lobo com pedras, e quando este foi beber
estória, alertando as meninas ingênuas sobre água, acaba afundando e morrendo (CORSO,
os perigos dos lobos de fala mansa. A mãe de 2006).
Chapeuzinho lhe dá a tarefa de levar guloseimas Em sua casa, Chapeuzinho está segura,
para a avó que está doente, mas não a alerta encontra-se protegida pelos pais, é a criança
sobre os perigos da floresta. A menina encontra sem preocupações que é perfeitamente apta a
o lobo no caminho e lhe diz que vai à casa da enfrentar as situações, o que não ocorre na casa
avó. O lobo corre para lá, consegue entrar na da avó, onde ela se encontra fragilizada e inca-
casa fingindo ser Chapeuzinho e devora a avó pacitada em decorrência de seu encontro com o
(CORSO, 2006). lobo. Em seu lar, há fartura de alimentos, e Cha-
Nesta versão de Perrault, não há disfar- peuzinho irá partilhar sua fartura com a avó. Aqui
ces com a roupa da avó, o lobo simplesmente se podemos dizer que ela já havia ultrapassado a
deita na cama, onde aguarda a menina, que ao fase da angústia oral. O mundo externo não lhe
chegar é convidada pelo lobo a se juntar a ele, parece nada ameaçador, ela conhece o caminho
onde se dá o famoso diálogo, e então devora a para a casa da avó e sua mãe lhe previne que
menina e fim (BETTELHEIM, 2007). dele ela não se afaste. Chapeuzinho sai de sua
Uma questão interessante sobre a es- casa voluntariamente – coisa que não aconte-
tória versa sobre o porquê o lobo não devora ce com João e Maria, que foram “empurrados
Chapeuzinho na floresta, em uma versão fala- para o mundo”; não teme o mundo externo, pelo
-se que havia lenhadores por perto, mas a razão contrário, vê nele sua beleza e aí reside o peri-

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ARAÚJO, F. M. S. C; AMARI, F. N.; OLIVEIRA, A. M. M. A

go: um mundo demasiado atraente poderá atrair sabe, e ainda não suporta saber sobre o sexo,
Chapeuzinho a ter um comportamento regido mas tem a intuição que há algo mais que anima
pelo Princípio do Prazer, em lugar do Princípio os seres humanos. Apesar de levar doces para a
de Realidade que sua mãe presume ter ensina- avó, parecendo que na vida comer é a maior sa-
do para a menina. Se Chapeuzinho se deixar le- tisfação e uma solução para todos os males, já
var pelo Princípio do Prazer, eventos destrutivos que a avó ficará boa da doença ao comer os do-
podem ocorrer (BETTELHEIM, 2007). ces, no caminho Chapeuzinho encontra outros
Nesta versão do Conto, este dilema entre encantos, como as flores, borboletas, a lábia do
o Princípio do Prazer e o Princípio de Realida- lobo e o prazer de brincar (CORSO, 2006).
de é explicitado na seguinte fala do lobo: “Veja Chapeuzinho representa a transição da
como são belas as flores ao seu redor. Porque aparente inocência infantil para o conhecimento
não dá uma olhada por aí? Acho que nem ouve da existência de práticas sexuais adultas; essa
como os passarinhos cantam bonito. Caminha estória nos atinge de maneira forte em seu ape-
atenta e concentrada como se fosse para a es- lo quando se identifica no adulto essa posição
cola, enquanto que aqui na floresta tudo é ale- de Chapeuzinho Vermelho, pois descobrimos
gria”. Essa passagem representa o conflito entre que as demandas sexuais existem, e, curiosos,
fazer o que se gosta de fazer e o que se deve passamos a tentar descobrir no que ela nos diz
fazer, a respeito do qual a mãe de Chapeuzinho respeito (CORSO, 2006). Chapeuzinho é uma
a avisara, ao aconselhá-la a não sair da estrada criança que luta contra dificuldades pré-púberes,
para a casa da avó. Dessa forma, a mãe está para as quais ainda não se encontra prepara-
ciente das tendências de Chapeuzinho se des- da emocionalmente por não ter dominado seus
viar do caminho e olhar pelos cantos a fim de conflitos edipianos, trazido de maneira simbó-
tentar descobrir os segredos dos adultos (BET- lica por meio dos perigos da floresta. Quando
TELHEIM, 2007). Chapeuzinho se desvia do caminho, e deixa de
Pode-se dizer que esta ambivalência en- cumprir sua tarefa, ela abandona as virtudes de
tre o Princípio do Prazer e o Princípio de Reali- obediência que se espera de uma criança em
dade é um tema latente no conto; Chapeuzinho idade escolar, e reverte a criança edipiana em
quer colher as flores, tantas que nem pode car- busca do prazer; e ao ceder a conversa do lobo
regá-las; quer realizar seus desejos, mas lembra e lhe dizer o caminho para a casa da sua avó,
da avó e segue seu caminho. Somente quando ela cria a oportunidade para que o lobo devore
colher flores deixou de ser prazeroso ao Id que sua avó. Nesse nível, a estória fala das dificul-
recua em sua busca de prazer, é que Chapeu- dades edipianas mal resolvidas na menina, e o
zinho volta a se dar conta de suas obrigações fato de ela depois ser devorada, representa um
(BETTELHEIM, 2007). castigo por ter arranjado as coisas de modo que
A criança é dominada pelo que Freud o lobo eliminasse uma figura materna, no caso a
(1920) denominou Princípio do Prazer, uma avó (BETTELHEIM, 2007).
tendência inata do organismo de busca de sa- A figura materna da mãe, que tem impor-
tisfação imediata; essa tendência busca uma tância vital em outros contos de fadas, encontra-
descarga de energia psíquica, não importando -se reduzida quase à nulidade em Chapeuzinho
nada, nem o real, nem o outro nem mesmo sua Vermelho, pois nem a mãe e tampouco a avó po-
própria sobrevivência. Visa evitar a dor e buscar dem fazer algo para proteger a menina. Em con-
o prazer. Este princípio se opõe ao Princípio de traste, o macho é de importância capital, que se
Realidade, um princípio adquirido pelas funções mostra de duas formas opostas: o perigoso se-
do Ego, que pressiona o Id adiando esta gra- dutor que, se permitido, será o destruidor da avó
tificação, o indivíduo aprende a suportar a dor e da menina; e o caçador, representando a figu-
impondo limites internos e externos. São princí- ra paterna boa e responsável, forte e salvadora.
pios antagônicos que, segundo Freud, são fun- É na figura desses dois machos representativos
damentais para haver uma civilização. da estória que encontramos as tendências ego-
Pois bem, quer seja pelas flores do ca- ístas, antisociais, violentas e potencialmente
minho, quer seja pelo prazer de uma corrida, o destrutivas do Id - na figura do lobo; e as ten-
certo é que Chapeuzinho não leva sua tarefa a dências altruístas, sociais, amáveis e protetoras
sério, ela a cumpre brincando (CORSO, 2006). do Ego - na figura do caçador (BETTELHEIM,
Chapeuzinho é uma criança ingênua, que não 2007).

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A função dos contos de fadas...

A estória de Chapeuzinho Vermelho aler- que se estabelece entre a sua vontade de fazer
ta para os perigos que as crianças correm em a coisa e o desejo inconsciente de sair vitoriosa
razão de sua ingenuidade, diante da maldade de sobre a mãe, aqui representada pela avó, é o
lobos perversos, ilustra também que as crianças que torna esta estória tão humana e universal
podem se expor em demasia, em função de sua (BETTELHEIM, 2007).
curiosidade sexual e dos desejos eróticos que Chauí (1984) esclarece uma questão so-
se encontram confusos em seu interior. No con- bre a sexualidade, simbolizada por diversos fa-
to, Chapeuzinho tem a atitude de dar confiança tores, como a cor vermelha, muito utilizada não
a um estranho, demonstrando não só aspectos só em contos de fadas, mas um dos símbolos
de sua ingenuidade, como também uma clara mais utilizados em nossa cultura para referir-se
conotação erótica. Perante a sexualidade velada ao sexo. Para Corso (2006), a sexualidade nesta
no amor familiar, a criança pequena é ingênua estória trabalha o tema dentro do território infan-
como Chapeuzinho, mas é ousada como ela. til, possível e necessário para as crianças pe-
Logo pode não saber que jogo está sendo jo- quenas. Importante distinguir que ter uma sexu-
gado, mas é claro o seu interesse em participar alidade, saber dela ou exercê-la são três coisas
(CORSO, 2006). bem distintas. O conto é útil para aqueles que
Ainda para Corso (2006), no Conto de ainda não estão prontos para explicitar o conhe-
Chapeuzinho Vermelho encontramos vários ele- cimento acerca de sua sexualidade.
mentos que tem a incumbência de auxiliar nas Na puberdade são reativados antigos an-
sequelas psíquicas do desmame, ajudando a seios edipianos, o desejo da menina por seu pai,
organizar as fobias necessárias, mas é funda- sua inclinação em seduzí-lo e o seu desejo de
mentalmente evocativa de uma corrente erótica ser seduzida. A menina sente então que merece
que marca a relação da criança com os adultos. ser castigada por sua mãe, por seu desejo de
Também se revela uma Chapeuzinho virtuosa, tirá-lo dela (BETTELHEIM, 2007).
porém, suas virtudes não a impedem de ser ten- Chapeuzinho Vermelho exterioriza os
tada. A mensagem aqui é que confiar nas boas processos interiores da criança púbere, em
intenções dos outros pode nos deixar sujeitos à que o lobo é a exteriorização da maldade que
armadilhas; a maldade de ‘lobos perversos’ po- a criança sente quando contraria os conselhos
dem se expor em função da curiosidade e dos maternos, e permite ser seduzida. Ao desviar-se
desejos eróticos confusos das crianças. do caminho traçado pela mãe, depara-se com
A sexualidade nascente de Chapeuzi- a maldade e teme que esta venha a lhe engolir
nho se constitui em um perigo, pois ela não está (BETTELHEIM, 2007).
emocionalmente madura o suficiente para isso; Seria subestimar o papel do pai na figu-
por outro lado quem se encontra psicologica- ra do lobo se pensarmos apenas no sentido de
mente pronto para ter experiências sexuais pode colocar as coisas no lugar e impor as leis. Corso
dominá-las e amadurecer com elas. No entanto, (2006) elucida ainda que as meninas se furtam
uma sexualidade prematura é uma experiência de diversas artimanhas para atrair a atenção dos
regressiva que desperta tudo que ainda é primiti- pais (aqui bem situado, a figura paterna). Elas
vo em nosso interior e que nos ameaça engolir. A possuem suas armas, cativam diálogos com ele
criança imatura que não se encontra pronta para e desobedecem as mães. O pai deve ser temível
o sexo, mas é de alguma forma exposta a uma como o lobo, mas para a menina é importante
experiência que suscita sentimentos sexuais, li- fantasiar que ele também a deseja e a corteja.
dará com isso da mesma maneira que lida com O Lobo Mau trava com Chapeuzinho um diálogo
seus conflitos edipianos. E uma das maneiras de que certamente não ocorreu com a vovozinha.
fazer isso, é eliminando competidores mais ex- Na figura do caçador, temos a impor-
perientes, vem daí as instruções específicas da- tância de um ego fortalecido, diferentemente
das por Chapeuzinho Vermelho ao lobo, sobre de Chapeuzinho que cede às tentações do Id,
o local da casa da avó; ao mesmo tempo essa traindo a mãe e a avó. O caçador ao encontrar
atitude pode revelar uma ambivalência, pois ao o lobo, não permite que suas emoções o domi-
guiar o lobo até a casa da avó, pode estar dizen- nem, apesar de num primeiro momento desejar
do “vá ter com a vovó, que é uma mulher ma- atirar no lobo, mas seu ego (razão) se afirma,
dura, ela deverá ser capaz de lidar com aquilo e ele controla sua raiva (provinda do Id), perce-
que você representa; eu não sou”. Este conflito bendo que é mais importante tentar salvar a avó

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ARAÚJO, F. M. S. C; AMARI, F. N.; OLIVEIRA, A. M. M. A

e a menina. É em razão de salvar os bons e pu- do lobo não é a solução adequada, pelo contrá-
nir os maus que faz com que ele seja uma figu- rio, ela reflete que, “Enquanto viver, jamais se
ra atraente, tanto para as meninas, quanto aos afastará do caminho que mamãe indicou”, de-
meninos, já que a maior dificuldade das crian- monstrando que o encontro com sua sexualida-
ças aqui representada no conto está em obede- de terá um resultado diferente, certamente com
cer ao princípio da realidade, na dificuldade de a aprovação de sua mãe. De sua experiência,
perceber seus conflitos. A violência existente na fica a lição de que não se deve ceder aos de-
ação do caçador em abrir a barriga do lobo é jus- sejos edipianos, é melhor não se rebelar contra
tificada pelo propósito elevado de salvar a avó e a mãe, nem tentar seduzir ou se deixar sedu-
a menina; esta ‘cesariana’ insinua uma ideia de zir aos aspectos sedutores do macho. Ainda, é
gravidez e nascimento, em que a mãe “engole” melhor que pese seus desejos ambivalentes,
algo (como o lobo), e como a criança renasce decidir-se pela proteção do pai, introjetando va-
simbolicamente, após dominar a transição da lores que representem, em seu superego, para
sua sexualidade. Crianças devem ser capazes lidar com os perigos da vida. O seu futuro agora
de acreditar que, se dominarem as fases de de- ela mesma é capaz de decidir por conta própria:
senvolvimento, poderão alcançar uma forma de ela perdeu sua inocência infantil e a substituiu
existência mais elevada. É possível mostrar para pela sabedoria que só os “renascidos” possuem,
as crianças que essas transformações interiores adquirindo um plano mais elevado de existência,
são possíveis (BETTELHEIM, 2007). no qual se relaciona de forma positiva com seus
Ainda para este autor, quando Chapeuzi- pais, e retorna para a vida como uma jovem don-
nho é engolida pelo lobo, ela sabe por intuição zela.
que a estória não acabou, que isso é apenas
uma parte necessária da estória, e a mágica do CONSIDERAÇÕES FINAIS
conto de fadas se dá, quando a criança que foi
tentada pelo lobo, e engolida, o caçador corta A realização do presente estudo traz
a barriga do lobo e ela retorna como uma pes- um novo olhar sobre a constituição subjetiva
soa diferente. O fato do lobo não morrer nesta da criança sob a ótica psicanalítica, a partir dos
‘cesariana’ protege a criança de uma angústia estudos dos contos de fadas, estórias ricas em
desnecessária de temer matar a mãe no ato do representação simbólica.
nascimento. É interessante observar certas seme-
É curioso questionar a escolha da figura lhanças presentes nos contos de fadas: eles
de um lobo para desempenhar este papel, afi- falam do cotidiano, seus personagens princi-
nal, os lobos não são tão grandes nem sequer pais não têm sequer um nome, têm sempre um
atacam o homem. Para Corso (2006), esse ani- final feliz que encoraja as crianças ao esforço,
mal acaba representando uma versão maligna identificando-as nas dificuldades da vida e dan-
do cachorro: tem a mesma aparência, mesma do a certeza do triunfo de todos os obstáculos.
carga genética, mas enquanto o cachorro é do- Não só as crianças, mas como qualquer pessoa
méstico, o lobo é selvagem, e ambos são perfei- de qualquer idade, podem se identificar com os
tamente propícios a suportar a metáfora de um Contos de Fadas: dificuldades, dores e doenças
amor incestuoso, típico do Complexo de Édipo estão ali representadas por metáforas (DOLTO,
vivido pelas crianças. O pai está presente como 2005).
caçador, pois ela espera que ele a salve de to- Na contemporaneidade, é possível per-
das as dificuldades, em especial as emocionais, ceber que os Contos de Fadas sofrem diversas
que são consequências de seu desejo de sedu- adaptações à linguagem do seu tempo. Nas
zi-lo e de ser seduzida por ele, representadas últimas décadas, o poder das comunicações
pela figura do lobo. no mundo globalizado acelerou um trabalho
Bettelheim (2007) observa que não é o de transmissão de histórias que durou séculos
caçador quem dá um fim no Lobo Mau. Chapeu- de tradição oral. Hoje conta-se com diversos
zinho é quem deve planejar o que fazer com o recursos nos quais a tradição oral é represen-
lobo, já que deve sentir-se capaz de vencer sua tada por imagens. Não se pode dizer que não
fraqueza, dominar os sentimentos que lhe opri- evocam as mesmas emoções de outrora, mas
mem, então não é mais preciso temer o lobo. “pode-se lamentar que esses substitutos para
Isso é reforçado ao final da estória na qual fugir a contemporaneidade, a televisão, os filmes e

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A função dos contos de fadas...

a ficção científica não possam mais contar com fantasia infantil.


aquela pessoa amada que traduza em palavras Chapeuzinho Vermelho é um conto clás-
as emoções suscitadas que as crianças criam sico, e seu valor para a criança está em dizer
nos momentos de solidão” (DOLTO, 2005, p. simbolicamente a ela que, ao deparar-se com
41). Contudo, tem-se a impressão de que os seu Complexo de Édipo, vai ter dificuldades para
“mistérios” das antigas narrativas maravilhosas realizar suas escolhas; as interpretações possí-
parecem superados pela tecnociência, mas não veis que partem da história são uma alusão ao
se pode afirmar que a zona estranhamente fami- potencial de sedução contido nas relações com
liar das manifestações do inconsciente tenha se os adultos, que muitas vezes revelam seu lado
reduzido ao discurso científico, pois as crianças obscuro, mostrando sua face “selvagem” no lu-
continuam interessadas em seu próprio universo gar de sua face “doméstica”; as crianças correm
de mistérios que sobrevive à transparência da riscos por sua ingenuidade, pois existe a mal-
modernidade (CORSO, 2006). dade de alguns lobos perversos à solta por aí...
Mas, não lhe é negada a verdade de que sua
É importante resgatarmos que as “crianças curiosidade e seus desejos eróticos confusos re-
ainda são crianças e que a infância é um presentam um perigo ainda maior.
tempo necessário de preparação para a re- Afinal, há algo em nós que nos aproxi-
alidade tal qual ela é, que as crianças ainda ma do Lobo Mau, há algo que nos encanta, caso
não nascem prontas e necessitam de certas
contrário ele não teria poder sobre nós. É im-
condições para se tornarem sujeitos falantes,
desejantes e futuros cidadão criativos”. (Ber- portante saber o que torna o Lobo Mau atraente
nardino, 2006, p. 11). (BETTELHEIM, 2007).

A formação do sujeito psicanalítico está REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


na impressão de um inconsciente representado
pela figura materna e paterna. Esta relação hoje ARIÈS, P. A história social da criança e da fa-
já não está presente em todas as famílias. Na mília. Tradução Dora Flaskman. Rio de Janeiro:
atualidade, a necessidade do capital faz com LTC, 1978.
que a criança se depare com um amadureci-
mento precoce da separação que nem sempre é BERNARDINO, L. M. F. (Org.). O que a psica-
satisfatória para a constituição da subjetividade. nálise pode ensinar sobre a criança, sujeito
em constituição. São Paulo: Escuta, 2006.
Todos os profundos conflitos íntimos que tem
origem em nossas pulsões primitivas e emo- BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de
ções violentas são negados em grande parte fadas. 21. ed. Tradução Arlene Caetano. São
da literatura infantil moderna, e desse modo Paulo: Paz e Terra, 2007.
não se ajuda a criança a lidar com eles. Mas
a criança está sujeita a sentimentos deses- BOUKOBZA, C. Saber científico e saber incons-
perados de solidão e isolamento, e com fre- ciente. In: BERNARDINO, L. M. F. (Org.). O que
qüência experimenta uma angústia moral. Na a psicanálise pode ensinar sobre a criança,
maioria das vezes ela é incapaz de exprimir sujeito em constituição. São Paulo: Escuta,
seus sentimentos em palavras ou só pode 2006.
fazê-los indiretamente: medo do escuro, de
algum animal, angústia acerca de seu corpo. CHAUÍ, M. Repressão sexual: essa nossa (des)
(BETTELHEIM, 2007, p. 18). conhecida. São Paulo: Brasiliense, 1984.

Os contos de fadas são importantes pelo CORSO, D. L.; CORSO, M. Fadas no divã: psi-
valor das representações simbólicas, as crian- canálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Art-
ças os aceitam e os compreendem intuitivamen- med, 2006.
te, enquanto adultos tendem a tomar as coisas
literalmente. O poder da fantasia faz com que COSTA, T. Psicanálise com crianças. Rio de
os Contos de Fadas não envelheçam, eles so- Janeiro: Zahar, 2007.
brevivem a diversas adaptações pela qualidade
de fazer-se realidade no mundo maravilhoso da DOLTO, F. A causa das crianças. Tradução Ivo

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pensamento adulto sobre a criança sob um enfo-
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LA FUNCIÓN DE LOS CUENTOS DE HADAS


EN LA CONSTITUCIÓN DEL SUJETO
PSICOANALÍTICO: UN ANÁLISIS BASADO EN EL
CUENTO DE CAPERUCITA ROJA

Resumen: Este artículo presenta un estudio sobre


cuentos de hadas y su respectiva importancia en la
constitución subjetiva del niño bajo la óptica del Psi-
coanálisis. Para lograr este objetivo rescata histórica-
mente la forma como el niño era visto en el pasado y
el cambio en esta forma de entender el niño, no vista
más como un adulto en miniatura, pero sí como un
sujeto en formación. El artículo trae el concepto de
sujeto en la visión psicoanalista, y su constitución a
partir de la infancia en el encuentro con el otro. Los
cuentos de hadas procedidos de la tradición oral en
que inicialmente se destinaban a los adultos, pasa-
ron a tener un valor inestimable en la formación de
la subjetividad infantil, y trae contenidos importantes,
que hablan directamente al inconsciente. Este artícu-
lo examina la historia de Caperucita Roja, mostrando
como los cuentos de hadas se constituyen en fuentes
de satisfacción a deseos inconscientes, y al mismo
tiempo, trabajando en la elaboración de conflictos co-

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