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O conceito de infinito positivo na

Terceira Meditação de Descartes

THIAGO MENDANHA DO NASCIMENTO

Brasília, DF. 28 de Novembro de 2018.

Resumo

O infinito positivo é um conceito importantíssimo na Filosofia Moderna que a partir de


Descartes permite várias articulações e formulações por grandes filósofos modernos
em busca de uma fundamentação epistemológica e ontológica na Filosofia. Esse
artigo, portanto, tem por objetivo realizar uma análise do texto da Terceira Meditação
da grande obra “Meditações Metafísicas” de Descartes a fim de compreender
quando é formulada a ideia de infinito em Descartes a partir da prova da existência
de Deus, e como se deu a caracterização de Deus enquanto substância
absolutamente infinita, perfeitíssima, realíssima e causa de si e de todas as coisas.

Palavras-chave

Descartes;Deus;Infinito Positivo;Terceira Meditação.


Introdução

Diante do contexto da Revolução Científica no século XVII, o objetivo maior de


Descartes é legitimar a ciência pelo exercício metodológico da racionalidade. Para
isso, ele se utiliza da dúvida hiperbólica que se caracteriza por tomar metodicamente
por falsas todas as coisas a fim de buscar uma única certeza, de forma que,
segundo ele:

(...) era preciso empreender seriamente, uma vez em minha


vida, desfazer-me de todas as opiniões que até então aceitara
em minha crença e começar tudo de novo desde os
fundamentos, se quisesse estabelecer algo firme e constante
nas ciências. (DESCARTES, 2016, Meditação 1ª, par. 1).

Portanto, buscando a fundação da ciência e do sujeito de conhecimento, i.e.,


“substância pensante”, conforme conclui na Primeira Meditação, Descartes parte do
campo epistemológico e, ao longo da Segunda Meditação, transforma sua busca
numa proposição ontológica quando é preciso saber o que é essa substância
pensante, essa essência, que concebe como “eu sou, eu existo”. Será necessário,
portanto, perguntar “o que eu sou?”. Surge a questão, duvido, logo eu sou, logo eu
existo, mas o que eu sou? Qual a minha essência, qual minha natureza, minha
substância? Seguindo nessa reflexão, Descartes se perguntará o que acreditava ser
até aqui, antes de postular ​sou, existo​. Ele dirá que é um homem. Mas que é um
homem? Um animal racional. Mas, isso o levará a questionar o que é um animal
racional. Esses questionamentos irão levar a incontáveis encadeamentos de
conceitos fundamentais, como que sendo um esforço demasiado ele parte para a
questão de duvidar de sua matéria corporal. Antes pensava ser provido de rosto,
mãos, braços, pernas, mas isso não pode ser confirmado uma vez que as mesmas
constatações podem ser afirmadas na vida onírica, mesmo experimentando
sensações e sentimentos. De sorte, que Descartes não vai considerar os atributos
corpóreos como sendo sua constituição de existência. O que sobra? Ele perguntará,
então, se ​eu sou, eu existo,​ isto é certo, mas por quanto tempo? A saber, por todo o
tempo em que eu penso. Ele então, começa a conceber que sua existência e seu ser
são pensamento, uma vez que é por ele que se afirma, e uma vez sem ele, não se
pode afirmar nada. Nesse sentido, Descartes irá responder a questão da sua
constituição, sua natureza e essência como sendo substância de pensamento.
Assim, para responder ​O que sou? ele entende que é substância de pensamento,
incorpórea, indivisível, próprio de espírito. Desfazendo-se, portanto, do corpo e das
coisas do mundo como existentes, reduzindo-se à dúvida última que é sua própria
existência, ele conclui que o fato de duvidar de si mesmo, de sua realidade, mesmo
sendo enganado por um gênio maligno, não pode levá-lo a deixar de ter a certeza de
que duvida, pois se é enganado, é enganado por alguém, logo, existe para ser
enganado. Independentemente da assertividade e veracidade do que postula sobre
si mesmo e da realidade das coisas e do mundo, estando certo ou não, o ato de
duvidar o coloca como referência segura que procurava para fundamentar o mundo.
À exemplo do que fez Arquimedes com o globo, diante dessas reflexões, Descartes
ao desconstruir todas suas certezas encontra nessa única certeza, ​penso, logo
existo​, seu ponto fixo para iniciar sua missão de permitir um modo de fazer ciência
garantido pela razão. Logo, conclui-se: eu existo enquanto penso, i.e., eu sou coisa
pensante ou ​res cogitans​. Ou dito de outra forma por Ivan Domingues:

Demais, coube a Descartes a honra de nos ter oferecido as


figuras das ​essentiae ​mais conformes às exigências da
máthesis ​em sua variante essencialista: a alma e a extensão.
Separada do corpo e esvaziada das qualidades ocultas e
virtudes secretas que a povoavam, a natureza da alma e suas
qualidades aparecem logo no início da segunda Meditação:
sua natureza é a de um espírito - incorporeidade,
indivisibilidade, imortalidade, interioridade, espontaneidade - e
seu atributo principal, o pensamento: Mas o que sou eu,
portanto? - pergunta-se Descartes. E responde: Uma coisa que
pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida,
que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer,
que imagina também e que sente.” (DOMINGUES, 1991, p.
58-59).

Nesse sentido, para Domingues, em Descartes, há o projeto de uma ​mathesis


universalis que constitui-se numa ciência geral da ordem e da medida, que busca
nas matemáticas o novo padrão de racionalização do pensamento, na forma do
saber. Ou seja, aplicando a matemática à metafísica na medida em que se pensa o
mundo na perspectiva qualitativa e quantitativa. Contudo, para que isso seja
possível, antes, é necessário garantir a existência do mundo, sendo necessário lidar,
portanto, com a questão de que a coisa pensante enquanto substância por si só não
garante que as ideias claras e distintas permitam fazer ciência. Como substância a
coisa pensante só tem certeza que existe enquanto pensa, mas não pode ter certeza
se é enganada por um Gênio Maligno. O que leva Descartes, na Terceira Meditação,
à demonstração da substância infinita, também de cunho ontológico, ou, nos seus
próprios termos, a provar a existência de Deus. Segundo Scribano, portanto, o
principal problema das Meditações de Descartes é provar a existência de Deus, pois
o próprio Deus deve assegurar a ciência:

O problema central das Meditações é fornecer a garantia de


que a ciência humana é legitimada a falar com verdade do
mundo. Para ter essa certeza de que o que parece verdadeiro
à mente humana não é apenas aparência, incapaz de
descrever a verdade, é necessário saber muito de Deus.
(SCRIBANO, 2007, p. 19)

No início da Terceira Meditação, antes de começar sua reflexão sobre Deus e sua
existência, Descartes retoma brevemente essas conclusões a que chegou durante
as duas primeiras meditações com as seguintes palavras:
Agora fecharei os olhos, taparei os ouvidos, distrairei todos os
meus sentidos, até apagarei de meu pensamento todas as
imagens das coisas corporais, ou, pelo menos, porque é difícil
fazer isso, eu as reputarei como vãs e falsas; e assim,
entretendo-me somente comigo mesmo, e considerando meu
interior, tratarei de tornar-me pouco a pouco mais conhecido e
mais familiar a mim mesmo. Sou uma coisa que pensa, ou
seja, que duvida, que afirma, que nega, que conhece poucas
coisas, que ignora muitas, que ama, que odeia, que quer, que
não quer, que imagina também e que sente. Pois, assim como
observei anteriormente, embora as coisas que sinto e imagino
talvez não sejam absolutamente nada fora de mim e em si
mesmas, estou certo, não obstante, de que essas maneiras de
pensar a que chamo sentimentos e imaginações, somente na
medida em que são maneiras de pensar, residem e se
encontram certamente em mim. E, nesse pouco que acabo de
dizer, creio ter relatado tudo o que sei verdadeiramente, ou
pelo menos tudo o que até agora notei que sabia.
(DESCARTES, 2016, Meditação 3ª, par. 1)

Partindo, portanto, da única certeza que é a ​res cogitans Descartes, já na Terceira


Meditação concluirá que, como regra geral, todas as coisas que concebemos muito
clara e distintamente são verdadeiras. E com essa regra ele seguirá na
demonstração da prova da existência de Deus quando aparecerá, então, o conceito
de infinito positivo em Descartes, que é tido como o maior conceito articulado da
Filosofia Moderna.

Desenvolvimento

A Terceira Meditação de Descartes, logo, parte da única certeza de existência que é


a coisa pensante, cuja proposição “penso, sou” servirá de fundamento para o
trabalho de reapropriação do mundo. Nesse sentido, as mesmas características
dessa primeira certeza poderão ser usadas como critérios para distinguir as
proposições verdadeiras das falsas. A concepção clara e distinta da certeza da coisa
pensante, logo, será utilizada, como dito antes, como regra geral para definir as
ideias verdadeiras das falsas.

Descartes caracteriza as ideias distintas e claras chamando a atenção para a


questão de que nem toda ideia clara é também distinta, mas toda ideia distinta é,
necessariamente, clara. Portanto, a única ameaça para a regra geral para distinguir
ideias verdadeiras e falsas, quais sejam claras e distintas ou não, é o Deus
infinitamente poderoso. Nas palavras de Scribano:

Ao uso da clareza e da distinção das ideias como sinal da


verdade delas se opõe agora a ameaça do Deus infinitamente
poderoso evocado na primeira Meditação, que constitui o único
motivo pensável e ainda não debelado para pôr em dúvida até
mesmo as proposições de que não consigo duvidar quando
presto atenção nelas. (SCRIBANO, 2007, p. 78)

O dilema posto como empecilho para dar continuidade ao desenvolvimento da


identificação dessas ideias claras e distintas como verdadeiras, conforme percebe
Descartes, é que será preciso provar que Deus existe e que, se existe, que não é
enganador. Pois, se não puder atestar que Deus existe e que não é enganador,
jamais poderá estar certo de alguma coisa e a clareza e distinção das ideias não
poderão ser critério de verdade. Para isso, ele irá dividir seus pensamentos em
gêneros para empreender uma maneira de considerar em quais desses gêneros há
verdade ou erro. Dessa tarefa, Descartes concluirá que entre seus pensamentos, há
as ideias, as vontades ou afecções e os juízos. Quanto às ideias, ele dirá que
consideradas apenas em si mesmas e não relacionadas a outras coisas, não podem
ser falsas, pois se ele tem uma ideia ou imagina alguma coisa, é verdadeiro que ele
o faz. O mesmo raciocínio é utilizado para as vontades ou afecções. No entanto, em
se tratando de juízos, Descartes terá o cuidado de não se enganar, pois são
relacionadas às outras coisas que estão fora dele.

Descartes, então, começa a meditar sobre a origem e a natureza das ideias, e para
isso começa classificando-as em gênero segundo sua essência. Sobre essa
classificação analisa Scribano, “As ideias, de fato, parecem ter origem diversa:
“umas parecem ter nascido comigo [​innatae]​ , outras me ser estranhas e vir de fora
[​adventitiae]​ , e as outras feitas e inventadas por mim mesmo [​factitiae]​ .”

Logo, para Descartes, as ideias podem ter nascido com ele, sendo inatas; ou seriam
ideias vindas de fora, adventícias; ou seriam ideias criadas e inventadas por ele
mesmo, ficções ou quimeras. Contudo, nessa meditação, não se trata da questão da
veracidade dessas origens. Nesse sentido, as origens das ideias não seriam critérios
confiáveis para provar a existência do mundo externo e será necessário analisar a
natureza das ideias. Trata-se então, segundo Scribano (2007, p.80), de “analisar as
ideias sob um ângulo diferente, não mais segundo a sua pretensa origem, mas
segundo a sua natureza.”. Nesse ângulo, Descartes separa ideia, segundo sua
natureza, em ideia (1) restrita, representativa, ou seja, a imagem de alguma coisa; e
(2) ampliada, onde todo ato do pensamento é uma ideia. Sendo assim, ele usa o
termo herdado da escolástica, “realidade objetiva”, para designar o objeto
representado pela ideia. Ideia essa que, por enquanto, possui apenas realidade
objetiva, fruto do pensamento. Será preciso nas meditações seguintes verificar se
essa ideia coincide com sua realidade atual ou formal, ou seja, sua existência no
mundo material.

Mas, no escopo da Terceira Meditação, Descartes irá meditar sobre os objetos do


pensamento enquanto representações das ideias e de como esses objetos podem
representar o puro nada ou objetos inclinados à inexistência, como quimeras. Esse
raciocínio, irá deparar com uma aparente incoerência com a proposição de
Descartes quando diz que nenhuma ideia pode ser falsa, mas ao tratar de objetos
que não podem ser reais fora da mente, consequentemente tornam a ideia dessa
coisa falsa. Descarte responde a essa antonímia dizendo que uma ideia por si
mesma não pode ser falsa, a não ser no campo do juízo quando ideias
materialmente falsas induzem a considerar que a coisa representada pode existir
fora da própria ideia. Ou nas palavras de Scribano (2007, p.84), “a falsidade só se
encontra no juízo: as ideias materialmente falsas são todas as ideias obscuras e
confusas que induzem a considerar que o que é representado na ideia possa existir
fora da própria ideia, e portanto a pronunciar um juízo falso.”. A partir disso,
Descartes propõe que ideias claras e distintas são verdadeiras e representam
alguma coisa que tem uma realidade. A noção de ideia materialmente falsa e
verdadeira é importante no desenvolvimento da meditação, pois se uma ideia é
verdadeira na essência, logo é “alguma coisa”, portanto deve ter uma causa anterior.
Essa causa oriunda seria Deus uma vez que tudo aquilo que é finito e real depende
de Deus para garantir-lhe a realidade. Conforme conclui Descartes sobre essa ideia:

Ademais, aquela pela qual concebo um Deus soberano,


eterno, infinito, imutável, onisciente, onipotente e criador
universal de todas as coisas que estão fora dele; aquela, digo,
tem certamente em si mais realidade objetiva do que aquelas
pelas quais as substâncias finitas me são representadas.
(DESCARTES, 2016, Meditação 3ª, par. 15)

E continua:

Agora, é coisa manifesta pela luz natural que deve haver pelo
menos tanta realidade na causa eficiente e total quanto em seu
efeito; pois, de onde o efeito pode tirar sua realidade senão de
sua causa? E como esta causa poderia comunicá-la a ele se
não a tivesse em si mesma? (DESCARTES, 2016, Meditação
3ª, par. 16)
Descartes discorrerá em seguida sobre as causas das suas ideias de maneira que
não pode duvidar que a realidade dessas ideias esteja formalmente em suas causas,
mesmo que essa realidade seja objetiva.

E, ainda que possa acontecer que uma ideia dê origem a outra


ideia, isso não pode dar-se ao infinito, mas é preciso ao fim
chegar a uma primeira ideia, cuja causa seja como um padrão
ou um original, na qual toda a realidade ou perfeição esteja
contida formalmente e em efeito, a qual se encontre somente
objetivamente ou por representação nessas ideias.
(DESCARTES, 2016, Meditação 3ª, par. 17)

E após deliberar sobre as qualidades e composição de suas ideias ele conclui que
elas não estão formalmente nele, a coisa pensante, mas que parecem estar contidas
eminentemente dentro dele. Dessa maneira, restaria apenas a ideia de Deus para
considerar como sendo algo que não possa ter vindo da ​res cogitans.​ Pelo nome
Deus, Descartes (2016, Meditação 3ª, par. 22), entende “uma substância infinita,
eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente, e pela qual eu mesmo, e
todas as outras coisas que existem (se é verdade que há coisas que existem) foram
criadas e produzidas.”. Ele segue em sua meditação, então, após considerar quanto
mais atentamente essas vantagens tão grandes e eminentes que essa ideia não
poderia ter se originado apenas dele mesmo, concluindo, assim, por conta disso,
que Deus existe, pois, segundo ele,

ainda que a ideia da substância esteja em mim, pelo próprio


fato de eu ser uma substância, eu não teria, contudo, a ideia
de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não
tivesse sido posta em mim por alguma substância que fosse
verdadeiramente infinita. (DESCARTES, 2016​, Meditação 3ª,
par. 22​)
Seguindo nessa premissa, pode-se concluir que Descartes, propõe nessa meditação
duas elaborações ​a posteriori​ para provar a existência de Deus.

A primeira prova ​a posteriori​, portanto, como analisado até aqui, parte da análise da
ideia em sentido próprio. Ou seja, as ideias das coisas não são diferentes enquanto
atos de pensamento. Mas diferem na coisa representada da ideia. E esse conteúdo
representado é estruturado ontologicamente, i.e., em graus de ser. Dito de outro
modo, as representações das ideias possuem mais ou menos realidade objetiva. A
partir dessa proposição é introduzido o princípio de causalidade quando Descartes
postula que um ente não pode ter uma causa com menos realidade objetiva que seu
efeito. Logo, uma substância infinita não pode ter como causa uma substância finita.
Nesse sentido, Descartes quer provar a existência de Deus de uma forma disruptiva,
em oposição à tese tomista de que o conhecimento de Deus pelo homem é sempre
negativo, i.e., conheço pela falta ou por oposição. Em sua meditação, Descartes,
propõe que pelo princípio de causalidade é possível o conhecimento positivo de
Deus enquanto causa primária de todas as coisas. E que ele é a fonte de todas as
ideias claras e distintas. Junto a isso, ele ainda, acrescenta à sua reflexão que é
possível conceber ou entender o infinito mas não é possível compreendê-lo.
Novamente, com esse argumento, Descartes se opõe aos que dizem que a mente
humana não pode conceber a infinitude. Conclui-se, então, que não se pode dizer
que a ideia de infinito poderia ser alcançada através de acréscimo progressivo das
imperfeições do meditante. Ou seja, a ideia de Deus seria a ideia de infinitude em
potencial, enquanto que a ideia clara e distinta de Deus o representa como
atualmente infinito. Ou seja, se tenho em mim a ideia de finito, antes deve haver a
ideia de infinito. E se percebo que sou finito, deve haver uma substância infinita que
me causa.
Toda essa conclusão, para Descartes, é muito acessível para qualquer um que
quiser pensar cuidadosamente nisso, pois, segundo ele, certamente, nada vê em
tudo que disse que não seja de fácil de conhecimento pela luz natural..

Mas, a fim de evitar as críticas tomistas em relação a essa primeira prova da


existência de Deus, Descartes quer seguir em frente e considerar se a coisa
pensante mesma, que tem essa ideia de Deus, poderia existir, caso não houvesse
Deus. E, então, ele pergunta, “de quem eu teria minha existência? Talvez de mim
mesmo, ou de meus pais, ou então de algumas outras causas menos perfeitas do
que Deus; pois não se pode imaginar nada mais perfeito, nem mesmo igual a ele.”
(DESCARTES, Meditação 3ª, par. 30). Descartes tem preferência, nessa segunda
prova ​a posteriori da existência de Deus, também pelo princípio da causalidade, mas
tentará reformular dessa vez buscando a causa do ser pensante, o único ente do
qual pode provar a existência. Assim, Descartes continua se utilizando de
argumentos escolásticos na sua meditação, mas novamente de forma disruptiva. Ao
invés de tentar provar a existência de Deus pela causalidade do infinito, como se faz
no tomismo, ele irá buscar a causa do finito, utilizando-se da ​res cogitans para isso.
Para tanto, rejeita a hipótese da autocausalidade da ​res cogitans​, pois o eu
imperfeito não poderia ter atribuído a si mesmo perfeição. E se a coisa pensante
fosse independente de qualquer outra coisa, sendo portanto, autora de si, não
duvidaria de coisa alguma, não desejaria, não faltando para si nenhuma perfeição,
pois, segundo Descartes, “teria dado a mim mesmo todas aquelas de que tenho em
mim alguma ideia, e assim eu seria Deus.” (DESCARTES, 2016, Meditação 3ª, par.
31). E, portanto, conforme analisa Scribano, se a ​res cogitans pudesse atribuir a si
mesma perfeição e não o fizesse isso seria incoerente com o argumento de
Descartes em suas respostas às segundas objeções de que a vontade se dirige
sempre ao bem claramente conhecido.

Depois de rejeitada a autocausalidade do ser pensante, ele propõe a hipótese de


que o eu não tem causa, ou seja, o eu é eterno. Mas, irá perceber que essa
premissa não se sustenta em relação ao tempo do ser na existência. O eu existe e
não se sabe se continuará existindo.

Pois todo o tempo de minha vida pode ser dividido em uma


infinidade de partes, cada uma das quais não depende de
forma alguma das outras; e, assim, do fato de um pouco antes
eu ter existido, não se segue que eu deva agora existir, a não
ser que nesse momento alguma causa me produza e me crie,
por assim dizer, de novo, ou seja, me conserve.
(DESCARTES​, Meditação 3ª, par. 33​).

Ou seja, se o eu é eterno ele deveria ter consciência do seu poder de dar a si


mesmo os atributos de ser, mas isso não se percebe. Então, não será o eu que
sustenta o próprio ser no presente. Logo, o ser pensante não pode ser a causa de si
mesmo, pois a causa deve manter o efeito no presente. Portanto, da existência
presente não se segue a existência futura. Além desses argumentos, Descartes,
defende que mesmo que se chegue a causa primeira, que conserva e sustenta o eu,
não é possível dizer que essa causa é Deus se não tenho verdadeiramente a ideia
de Deus. Assim, para Descartes o infinito é entendível por meio da razão da ​res
cogitans,​ novamente, ao contrário da tese tomista de que a causa primeira é
incausada pois não se pode entender o infinito. Portanto, uma vez que tenho a ideia
de Deus, de perfeição e infinitude em mim, mas não posso compreender ou ser a
causa de perfeição e infinitude, logo, apenas Deus pode ser a causa primária de
todas as coisas e de si mesmo, por ter em si as realidades formal e objetiva e os
graus de ser dos atributos infinitos e perfeitos em maior grau na escala ontológica. E
isso posso conceber mesmo que não possa compreender.

Descartes dizia que o infinito pode ser concebido, mas não


compreendido, já que ele é incompreensível - então é possível
conceber clara e distintamente, mas não compreender. Assim,
há uma ​ratio cognoscendi do infinito que é distinta da ​ratio
essendi,​ pois se somos capazes de compreender a razão de
conhecer, não somos capazes de captar a razão de ser do
infinito. Como nosso entendimento é apenas finito, só
podemos conceber o infinito clara e distintamente. (ROCHA,
2009, p. 73).

Nesse projeto de legitimar a ciência por meio da razão empreendida de forma


metódica, Descartes lança mão do empirismo colocando em dúvida os sentidos para
garantir a veracidade ou realidade das ideias e das coisas do mundo. Seguindo
nessa linha, resta ao meditador examinar de que maneira adquiriu a ideia de Deus.
Pois, não foi pelos seus sentidos que a recebeu, tão pouco foi uma ideia que se
ofereceu contra sua expectativa, “assim como fazem as ideias das coisas sensíveis,
quando essas coisas se apresentam ou parecem apresentar-se aos órgãos
exteriores de meus sentidos.” (DESCARTES, Meditação 3ª, par. 38).

Tendo provado a existência de Deus por meio do princípio de causalidade a partir de


uma ideia e também a partir de uma coisa existente (a ​res cogitans)​ , Descartes
(2016, Meditação 3ª, par. 40) conclui sobre Deus ao final da Terceira Meditação que
é “evidente que ele não pode ser enganador, porquanto a luz natural nos ensina que
o engano depende necessariamente de algum defeito.” e Deus, conforme suas
meditações é absolutamente perfeito.

Percebe-se, portanto, o foco central da ideia de Deus nas duas provas ​a posteriori
apresentadas por Descartes. Ideia essa que seria inata, ou seja, nascida junto com o
ser pensante. Logo, seria uma ideia como marca do criador. Com isso, Descartes
tenta defender que é possível entender Deus, logo a substância infinita, porque essa
ideia está na ​res cogitans como inscrição do criador. O que permite ter o
conhecimento através das ideias claras e distintas. Assim, Deus não implicará
relação com a natureza ou com alguma iluminação sobrenatural. As ideias claras e
distintas são encontradas em outra ideia clara e distinta, inscrita na natureza finita do
ser pensante. O que deverá garantir a ciência sem dependência ou contato com o
divino sobrenatural, dependendo ainda de Descartes conseguir provar a existência
do mundo material nas meditações seguintes.

Conclusão

O conceito de infinito positivo, portanto, na Terceira Meditação de Descartes, se dá


pela prova da existência de Deus por meio da convergência da causa eficiente,
quando chego a existência de Deus por conta de seus efeitos, com a causa formal,
quando concluo sua existência por conta de sua essência.

Somente através da união dessas duas causas é possível conceber positivamente a


substância infinita, i.e., Deus conforme denomina Descartes. A causa eficiente, vale
ressaltar, entendida apenas como aquilo que produz o efeito, então aplicada a Deus,
não se diferencia somente temporalmente do efeito, mas também logicamente.

Dessa forma, pode-se resumir a prova da existência de Deus, ou a formulação do


conceito de infinito positivo, por Descartes da seguinte maneira:

● Deve haver na causa pelo menos tanta realidade quanto em seu efeito;
● Deve haver na causa pelo menos tanta realidade formal quanto há de
realidade objetiva na ideia;
● A res cogitans possui a ideia de uma substância infinita;
● A res cogitans não tem realidade formal suficiente para causar a realidade
objetiva de uma substância infinita uma vez que é substância finita;
● Logo, existe uma substância absolutamente infinita que causa a realidade
objetiva da ideia da substância infinita.

Sendo assim, a ideia de Deus, para Descartes, o representa objetivamente e


formalmente como absolutamente infinito no sentido positivo, e essa percepção
positiva do infinito não poderia ser produzida apenas pela mente finita da ​res
cogitans,​ que implica em deduções de noções negativas do infinito. Dito de outro
modo, Descartes, como analisado no texto, inverteu a lógica da tese escolástica
sobre o conceito de infinito. Ao contrário de dizer que a ideia do infinito deriva da
ideia do finito, dirá que a ideia do finito é que deriva da ideia do infinito. Dessa forma,
Descartes tenta sustentar sua argumentação de Deus como uma ideia de infinito
positivo. Ideia que será um conceito importante para o desenvolvimento da Filosofia
Moderna.

Para Merleau-Ponty, a ideia do infinito positivo é o segredo do que denomina o que


ele denomina grande racionalismo:

Descartes entrevira num lampejo a possibilidade de um


pensamento negativo. Descrevera o espírito como um ser que
não é ​nem ​uma matéria sutil, ​nem ​um sopro, nem alguma
coisa existente, e que permanece ele próprio na ausência de
qualquer certeza positiva. Medira com o olhar esse poder de
fazer e de não fazer que, dizia ele, não comporta grau, sendo
pois infinito tanto no homem quanto em Deus, e infinito de
negação, já que, numa liberdade que é tanto fazer quanto não
fazer, a posição nunca poderá ser senão negação negada. É
por isso que Descartes é mais moderno do que os cartesianos,
que antecipa as filosofias da subjetividade e do negativo. Mas,
nele, isso é apenas um começo, e ele supera a negatividade
sem volta quando formula afinal que a ideia do infinito precede
nele ao do finito, e que todo pensamento negativo é uma
sombra nessa luz. (MERLEAU-PONTY, 1991, p.163-164).

A ideia de infinito positivo em Descartes deverá encontrar alguns problemas na


medida em que, nas meditações seguintes, precisará a partir da prova da existência
de Deus, i.e., da substância absolutamente infinita, realíssima, perfeitíssima, causa
de si e de todas as coisas, garantir a existência e a conservação do mundo material.
Várias objeções e críticas serão feitas à Descartes em relação às características do
Ser infinito positivo de suas meditações. De maneira que ele precisará responder
essas objeções e mesmo assim, não impedirá de que outros grande filósofos, por
exemplo Spinoza, deem prosseguimento ao que Descartes iniciou na tentativa de
legitimar o Saber científico pela razão humana. As problemáticas e questões que
surgirão depois da formulação do conceito de infinito positivo na Terceira Meditação
de Descartes ficaram de fora do escopo desse artigo, mas podem ser tratados em
uma nova análise textual das meditações seguintes até o ponto em que se possa
comparar esses problemas com novas proposições filosóficas que levem em
consideração a fundamentação de um racionalismo em Descartes. Como se sabe,
Spinoza é quem proeminentemente dará cabo dos fundamentos cartesianos para
elaborar uma filosofia que também se lance na tarefa de fundamentar
epistemologicamente e ontologicamente a Ciência e os demais aspectos
relacionados ao sujeito em sociedade.
REFERÊNCIAS

DESCARTES, R. ​Meditações Metafísicas.​ [versão eBook Kindle]. São Paulo: WMF


Martins Fontes, 2016. Retirado em https://www.amazon.com.br

DOMINGUES, IVAN. ​O grau zero do conhecimento: O problema da


fundamentação das ciências humanas​. Loyola.1991.

MERLEAU-PONTY, Maurice. ​Signos​. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

ROCHA, MAURÍCIO. ​SPINOZA E O INFINITO – A POSIÇÃO DO PROBLEMA​.


Revista Conatus - Filosofia de Spinoza - Volume 3 - Número 5 - Julho 2009.

SCRIBANO, EMANUELA. ​Guia para leitura das Meditações metafísicas de


Descartes​. Loyola. 2007.

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