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QUEM ME LIV RAR? ? JC. PAILPOT EDITORA FIEL da MISSAO EVANGELICA LITERARIA QUEM ME LIVRARA? Traduzido do inglés: The Groaning Captive’s Deliverance And Resoluction Primeira edigdo em portugués — 1985 Traducao: Joio Marques Bentes Todos os direitos reservados. E proibida a reprodugdo deste livro, no todo ou em parte, sem a permissdo escrita dos Editores. EDITORA FIEL da MISSAO EVANGELICA LITERARIA Caixa Postal 30.421 01. 051 — Sao Paulo — SP Distribuido em Portugal por: EdigSes Peregrino Lda. Zona J de Chelas Lote 549 r/c-D 1900 — Lisboa — Portugal QUEM ME LIVRARA? “Desventurado homem que sou! quem me livraré do corpo desta morte? Gracas a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor. De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a car- ne, da lei do pecado” (Romanos 7:24,25). Quao grande foi a misericérdia para com a Igreja de Deus que o apéstolo Paulo tenha sido inspirado pelo Espirito Santo para registrar a sua propria experiéncia! Ele nao deixou meramente algum fragmento da mesma, mas explorou-a de tal modo que a encontramos com- pleta, no sétimo capitulo da epistola aos Romanos. De que alivio tem servido esse registro para milhares de so- fredores ¢ tristonhos dentre os da familia de Deus! Quan- ta luz ele tem lancado sobre as perplexidades e meandros do curso seguido por essas pessoas! Que consolo tem sido esse registro, em todos os séculos, para o mui testa- do e tentado povo de Deus. E, sem diivida, assim conti- nuaré sucedendo até ao fim dos tempos! Alguns tém afirmado que Paulo nao falava sobre “si mesmo”, embora ele tenha usado 0 pronome “eu” por muitas vezes. Outros tém asseverado que estd em pauta “o conflito que se debatia no peito do apéstolo, entre a natureza e a consciéncia, antes do Senhor havé- lo chamado por Sua graca”. No entanto, do principio 3 ao fim ele fala no tempo presente, mostrando-nos assim que descrevia um conflito presente de sua vida. Outros tém dito que essas palavras refletem “o conflito debaixo da lei, antes de ter ele recebido 0 livramento conferido pelo Evangelho”. No entanto, em face disso, ele excla- ma: “Desventurado homem que sou!” e nao “que eu era”. E também disse “vejo nos meus membros outra lei”, e nao “via nos meus membros outra lei”. E evidente que ele referia-se a um conflito que prosseguia nos momen- tos mesmos em que ele estava redigindo a epistola aos Romanos. O CLAMOR Que teria feito o apéstolo clamar com tanto senti- mento: “Desventurado homem que sou!”? (1) O conhecimento da abrangéncia e da espiritua- lidade da lei de Deus. \sso foi declarado por Paulo nos versiculos 9 e 10: “Outrora, sem a lei, eu vivia; mas, so- brevindo o preceito, reviveu 0 pecado, e eu morri. Eo mandamento que me fora para vida, verifiquei que este mesmo se me tornou para morte”. A introducdo da lei de Deus, em sua abrangéncia e espiritualidade, o amal- digoou e condenou. Antes dele familiarizar-se espiritual e experimentalmente com a condenagfo da lei em sua consciéncia, ele estava “vivo”, isto é, estava satisfeito com a sua propria justica, com o seu cumprimento dos deve- res, com as suas prdprias realizacées. Nao percebia que Deus requer a verdade no intimo; nao conhecia a pure- za e a santidade do carater divino; nao sentia que a lei amaldicoa cada transgressao cometida por pensamento, tanto quanto por palavra ou acdo. A luz ainda nao ha- via resplandecido em sua alma, a vida ainda nao havia chegado a sua consciéncia, o Espirito de Deus ainda nao havia iniciado Suas operagGes convencedoras dentro de- le. Portanto, devido a auséncia dessas operacdes em sua alma, ele se sentia vivo, pois ainda nao havia sido mor- 4 to. De fato, a espiritualidade e a abrangéncia da lei pre- cisava ser sentida, em menor ou maior grau, pela consciéncia de cada despertado pecador. Por quanto tem- po o pecador ficara sob essa impress4o, ou quao pro- fundamente ficara perturbado em face da mesma, Deus nao definiu, e nem nds podemos definir. Mas 0 efeito da lei se faz sentir obrigatoriamente na consciéncia de todo pecador salvo, porque “pela lei vem o pleno co- nhecimento do pecado” (Rom. 3:20). Se nunca senti a culpa do pecado pesando em minha consciéncia, se a convicedo de pecado nunca me traspassou 0 coracdo, que posso saber ou que posso desejar saber a respeito de um Emanuel que verteu o Seu sangue? Para os pecadores nunca assim atingidos, que pode significar o Seu amor perdoador, o Seu sangue expiatorio, a Sua rica miseri- cérdia, a Sua graga superabundante? Assim sendo, na propor¢do exata em que a culpa nos fere a consciéncia, comecamos a anelar, e entéo reconhecemos, valorizamos e desfrutamos do mistério do sangue expiatério e do amor que amou até 4 morte. (2) Porém, houve ainda uma outra causa, que produziu esse clamor saido da prépria alma do apdsto- lo, a saber, o reavivamento do pecado, Nao se manifes- tou meramente o senso de culpa, por causa do pecado passado, mas também o reavivamento e o tormento do pecado presente. Antes que a lei impusesse o seu poder a consciéncia dele, o pecado jazia dormente nele; era co- mo uma vibora no inverno — estava ali com todo o seu veneno, mas entorpecido. O individuo morto no peca- do, ou morto em sua profissao crista, vai sendo levado pela correnteza do pecado de modo tao suave, t4o in- sensivelmente, que, 4 semelhanca de uma embarcacao muito carregada, arrastada pela maré, flutua correnteza abaixo, sem ao menos desconfiar para onde esta sendo levado. Assim, quando estavamos mortos no pecado, a maré interna da nossa natureza corrompida nos fazia flu- 5 tuar ao longo de tudo quanto é maligno, de tal modo que as secretas operacdes do pecado nao eram percebi- das por nds. Estavamos entao inteiramente debaixo do poder e do dominio do pecado. Entretanto, quando a lei reaviva 0 pecado, insuflando-lhe vida, fa-lo despertar de seu torpor, acorda a serpente venenosa, e o pecado comeca a silvar na mente do individuo, e este comeca a gemer e a entristecer-se por causa das operagées do pecado presente, mais ainda, se possivel, do que no caso da culpa sentida pelos pecados passados. Qual é a nossa provacao mais pesada? Eu tenho pas- sado por muitas provas; e outro tanto tem sucedido a vocé, se é que vocé é um dos filhos de Deus. Nao faz parte de sua experiéncia didria (tal como se dé também comigo) gemer e suspirar diante do Senhor, por causa das operagdes do pecado em nossa mente carnal? Quan- do o pecado mais se esforca por assumir o controle, quando os maus desejos procuram obter a vitéria em Nosso interior, quando o orgulho e a infidelidade, bem como outras corrup¢des em grande numero lutam per- petuamente, como um vulcdo aceso em nosso ser, bus- cam conseguir o predominio, a fim de arruinarem as nossas almas — nao é essa a nossa carga mais pesada? Estou convicto, com base em minha propria experién- cia, de que quando o pecado é sentido em suas renova- das operagdes por uma consciéncia sensibilizada, isso faz um homem inclinar a cabeca. E, algumas vezes, tal ho- mem fica agoniado em sua alma e aflito em sua mente. Ora, o que nos faz sentir assim? E o temor de Deus, por parte de uma consciéncia sensivel. Alguns dizem que um homem pode viver acima do mundo, da carne e do dia- bo. Para eles, o pecado nao representa um fardo; as suas corrupg6es nao thes causam dor. O orgulho, a presun- ¢40, a lascivia e todas as operacées da natureza depra- vada deles jamais fazem os seus olhos derramarem uma lagrima, e nem conseguem arrancar um soluco de seus coragdes. Por qué? Porque lhes falta o temor de Deus 6 em uma consciéncia sensivel. Na exata proporcdo do te- mor piedoso e da ternura de nossa consciéncia da pre- senica de Deus, é percebido, é sentido, ¢ lamentado o pecado no intimo, e isso torna-se causa de nossos gemidos. (3) Entretanto, havia outra causa que levou 0 apés- tolo a exclamar: “Desventurado homem que sou!”, a sa- ber, o seu conflito intimo. Paulo descreveu esse conflito mediante as seguintes palavras: “..pois nao faco o que prefiro, e, sim, o que detesto” (v. 15). Que tremendo qua- dro daquilo que se passa no peito de um homem piedo- so! Ele encerra em si mesmo dois principios distintos, duas naturezas diversas. Uma delas é santa, celestial, es- piritual, anelante pelo Senhor, encontrando o seu elemen- to nas realidades divinas; mas, no mesmo peito manifesta-se um principio totalmente corrupto, total e definitivamente depravado, 0 qual se esforca perpetua- mente contra o santo principio no intimo, sempre suspi- rando pelo que é mau, oposto a toda orientagdo dada pelo Espirito de Deus a alma, nao procurando outra coisa sendo satisfazer, a qualquer custo e a qualquer prego, os seus imundos desejos! Sem duvida, ha um senso de mi- séria no peito de um ser humano que se da conta da exis- téncia desses dois exércitos que se entrechocam continuamente, Quando ele deseja praticar o bem, o mal esta presente dentro dele; quando ele quer ser santo e dotado de mente celestial, terno de corag&o, amoroso, alguém que busca a gloria do Deus Trino, desfrutando de doce comunhdo com o Yahweh, levanta-se um cora- ¢4o vil, sensual, terreno, que atua sem cessar, injetando © seu veneno destruidor em cada pensamento, contra- balangando cada desejo bom, arrastando o crente do céu para onde ele quer subir para o proprio inferno da car- nalidade e da sujeira! Ora, se ha um santo e celestial prin- cipio no peito de um homem (0 que sucede a todo coracdo reavivado) que conhece, que teme, que ama a 7 Deus e que nEle se deleita, ao mesmo tempo em que dentro dele se debate algo que faz oposicao cerrada a mente de Cristo, entdo isso deve infundir profunda tris- teza e melancolia, em face desse conflito perpétuo e in- cessante. Ora, os sentimentos sob os quais 0 apéstolo gemia séo experimentados por todos os membros da familia regenerada. Bendito seja 0 nome do Altissimo, o qual inspirou o apdstolo a deixar-nos 0 registro escrito de sua experiéncia, a fim de que dela derivassemos alivio e con- solo. Que mais poderiamos ter pensado? Teriamos ra- ciocinado como segue: Eis ai um apéstolo perfeitamente santo, ininterruptamente dotado de mente celeste, nao trazendo em si outra coisa senéo a imagem de Cristo, vivendo perenemente para a gloria do Senhor e desfru- tando de uma continua comunhéo com Ele! Se ele nao nos tivesse confessado a sua triste experiéncia, haveria- mos de considerd-lo um santo perfeito, volveriamos os olhos para nosso proprio mundo interior, contemplando um contraste tao terrivel com esse quadro que chegaria- mos a desesperar de que seriamos salvos! Porém, vendo 9 conflito de alma pelo qual passou o apéstolo, e sen- tindo uma certa medida desse conflito em nosso proprio interior, isso nos encoraja a alma, prestando-lhe apoio e impelindo-a a crer que é por esse caminho que os san- tos sdo convocados a palmilhar, embora seja um cami- nho agreste, 4spero e salpicado de perplexidades. Fique certo, pois, que se vocé nunca gritou do fun- do de sua alma: “Desventurado homem que sou!”, en- to é que vocé esta morto no pecado, ou morto numa fé apenas professa. Se o senso de culpa, de miséria e de condenacaéo nunca extrairam de seu peito esse clamor, ent&o tenha a certeza de que a vida e o poder de Deus nao estao presentes em sua alma. Porém, se esse clamor se tem manifestado no seu intimo, e de vez em quando se repete, forgado pela pressao do pecado e da culpa, en- 8 tdo isso serve de testemunho de que o mesmo Senhor que ensinou a Paulo também esta a ensinar-lhe. Perante o Senhor, qual é a sua experiéncia particu- lar? Nao se importe muito com as suas devocdes domi- nicais, que vocé pode vestir e despir como se fosse um terno de dia festivo. Mas, qual ¢ a sua experiéncia pes- soal? Que dizer sobre as suas horas solitarias? Nos mo- mentos solenes, como se sente o seu coracao, 14 nas suas maiores e mais tranquilas profundezas? Sai uma vez ou outra um lamentoso grito, espremido pelo senso de cul- pa, de vergonha e de tristeza: “Desventurado homem que sou!”? Ja significa alguma coisa alguém ser levado a sen- tir que nao passa de um desventurado. Para o tal ha aju- da, para o tal ha esperanca; pois esse é o testemunho de que 0 Espirito de Deus esta operando naquela cons- ciéncia, de que o préprio Senhor esta tratando pessoal- mente com essa alma. Observemos, porém, que 0 apdstolo nao se conten- tava (e quem ficaria contente so com isso?) com um gri- to e um gemido. Consideremos aqueles que padecem nos hospitais. Ficam eles contentes porque gemem em seu leito de enfermidade? Nao. Nao querem eles cura e sati- de? Nao desejam que se faca algo em favor deles? Ou- tro tanto ocorre no terreno espiritual. Ficar satisfeito por meramente ter exclamado: “Desventurado homem que sou!” assemelhar-se-ia mais a experiéncia de um hipd- crita do que a experiéncia de uma alma revivificada. O crente quer ser liberto de tal experiéncia, o crente quer que o Senhor lhe aparega, 0 crente anela por alguma ma- nifestacao da Sua graca. O conflito intimo, produzido por esses exercicios e perplexidades, forca-nos a clamar: “quem me livrara do corpo desta morte?” (v. 24). Onde encontrarei livramen- to? De onde me vira a libertacéo? Eis 0 embaraco! con- templemos a perplexidade de uma alma experiente! volvamos os olhos para um lado e para outro, para a 9 direita e para a esquerda. No entanto, sé ha uma dire- cao de onde nos pode chegar o auxilio. E assim, quan- do o apdstolo foi levado aquela situacéo premente, quando ele se afundara em uma cova profunda e volvia ansiosamente os olhos em todas as direcGes, para ver de onde She chegaria ajuda, Deus abencoou a sua alma com a visio de Seu preciosissimo Filho. O LIVRAMENTO “Gracas a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor.”’ Ora, por qual motivo Paulo agradeceu assim a Deus? ‘Terei interpretado erroneamente a mente do apéstolo, se disser que ele tinha motivos para agradecer a Deus pelo seu conflito intimo? Nao pretendo afirmar que esse foi o Unico motivo que a mente de Paulo ressaltava aqui. Admito pronta e alegremente que ele agradeceu a Deus pela sua vitoria. Mas, sera que ele também nao tinha ra- zAo para agradecer a Deus pelo conflito anterior? Esse conflito anterior nao tratava duma questdo sobre a qual nao poderia ser instruido de outra maneira qualquer? Vocé tem se sentido culpado. Esse senso de culpa nao seria demonstragdo da misericérdia divina? Vocé tem se sentido condenado. Aquele senso de condenacao nao se- ria demonstracao da misericordia divina? Vocé tem sido purificado de uma vazia profissao cristé. E nao teria si- do isso demonstragdo da misericérdia divina? A palha da justica propria e da fé simulada tem sido soprada para longe pelo vento sul do Espirito a soprar fortemente. E nao foi isso demonstracdo da misericérdia divina? Vocé tem afundado tanto em sua alma que somente o pré- prio Deus tem o poder de livra-lo. E nao é isso demons- tracdo da misericérdia divina? Sem duvida! Tudo quanto prepara a alma para receber a misericdérdia de Deus, de- ve ser causado pela misericordia; tudo quanto sopra pa- ra longe o po ea palha do egocentrismo deve ser causado pela misericérdia de Deus, pois ela prepara a alma para 10 0 bendito encontro com o Emanuel. Por conseguinte, te- mos razGes de sobra para agradecer a Deus por todo 0 sentimento de culpa que nos tem cercado, por toda a ten- taco que nos tem deixado atdnitos, por cada lagrima comtrita que nos brota do coracdo. Por todo sentimento de miséria, de culpa e de desventura temos razao de ben- dizer o nome do Senhor, pois os atos misericordiosos mais doces se derivam deles; as nossas béngados mais ri- cas sO servem de béncdo até onde esses dolorosos exer- cicios nos preparam a alma para desfrutarmos delas. Nao ha que duvidar, porém, que a mente do apds- tolo inclinou-se para agradecer a Deus principalmente pelo dom de Seu Filho amado: “Gracas a Deus por Je- sus Cristo, nosso Senhor”. Ora, se vocé me seguiu, nes- sa tentativa de desvendar a causa do clamor do apéstolo, entao vera que havia trés coisas que produziram seu gri- to: (Ll) a condena¢ao da lei; (2) o reavivamento do peca- do; e (3) 0 conflito entre a natureza e a graca. Ora, quando ele agradeceu a Deus por causa de Jesus Cristo, fé-lo por haver sido providenciado um remédio para ca- da uma dessas coisas, bem como para todas elas, na pes- soa, na obra e na mediacao de Seu Filho unigénito. (1) Consideremos a culpa do pecado. Como pode- mos ser livrados da culpa do pecado, da maldicao da lei, de sua santa condenacdo e de sua trovejante vingan- ca? Exclusivamente através do sangue do Cordeiro, aquele precioso sangue que nos “purifica de todo pecado”, a Unica propiciacao, o admiravel sacrificio que o Filho de Deus ofereceu no madeiro do Calvario. Nao ha outro modo de alguém obter 0 perdao. O sangue pacificador de Emanuel, uma vez aplicado a consciéncia, é 0 unico remédio para a alma que reconhece dolorosamente a mal- dic&o da lei e a condenagao por ela decretada. (2) Outro tanto no que se refere ao reavivamento do pecado. Que nos ensina o reavivamento do pecado? Porventura nao nos ensina isso (conforme ensina 0 apdés- il tolo, em Romanos 5:20): “...onde abundou o pecado, su- perabundou a graca”? Como poderei conhecer a graca superabundante — o comprimento, a largura, a profun- didade e a altura do amor que amou até a morte? Nao devo conhecer essas dimensdes da graca ao descobrir, do- lorosa e pessoalmente, a abundancia do pecado? E entdo, na propor¢ao precisa em que sou condu- zido diariamente ao conhecimento da profundidade da queda, e somente nessa proporcao, serei capaz de expe- rimentar a superabundancia da graca. Por conseguinte, é demonstracao de misericordia quando conhecemos as operacdes do pecado em nossos coragées. Os homens podem desprezar zombeteiramente aquilo que nds cha- mamos de “corrupgao”. Porém, tenho certeza de que a fim de darmos valor a graca e descobrirmos a preciosi- dade de Jesus Cristo, a fim de ama-lO como “alvo e ro- sado, o mais distinguido entre dez mil” (Can. 5:10), devemos conhecer pessoal e dolorosamente a abundan- cia do pecado e da corrupeao que se oculta em nds. Nao reconhecer essa corrup¢ao em suas horrendas operacdes, é desconhecer o perdao, a paz ou a superabundancia da graca soberana. (3) Pode-se dizer outro tanto no tocante ao nosso conflito interno. O apdstolo percebeu que “agora, pois, ja nenhuma condenac4o ha para os que estao em Cris- to Jesus” (Rom. 8:1). Ele percebeu que embora esses se- jam testados e tentados, embora sejam assaltados e assediados, nao ha qualquer condenacao a espera deles, pois esto firmados no amor e no sangue do Cordeiro. A RESOLUCAO Mas isso leva-me a solene resolugdéo a que Paulo chegou. Observemos que Paulo havia experimentado duas coisas em sua alma. Havia experimentado a mal- dicdo da lei e a bén¢gdo do Evangelho, a abundancia do pecado e a superabundancia da graca, o conhecimento 12 de si mesmo e o conhecimento de Cristo. Ora, 0 conhe- cimento sobre essas duas realidades levou-o a tomar cons- cientemente esta solene resolucdo: “..com a mente sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do pecado” (v. 25). Porventura o apdstolo pretendia justifi- car o pecado com essas palavras? Pretendia ele dizer que agora podia afrouxar a vigiléncia contra o pecado? ou que ele tinha uma natureza corrupta que amava o pecado, e€ que, por conseguinte, algumas vezes poderia satisfazé- la, e que também tinha uma natureza divina e santa que amava a santidade, e que, portanto, algumas vezes po- deria satisfazé-la? Nao posso pensar em tal coisa, e nem creio que essas palavras encerram uma expressao de con- tentamento. Pelo contrario, as palavras de Paulo, no to- cante ao conflito que ele precisava enfrentar, importam no seguinte: havia em sua alma o sentimento que ne- nhuma alterac&o poderia ser feita nesta vida, ele jamais poderia libertar-se de sua guerra intima, e enquanto es- tivesse vivendo neste mundo teria consigo um corpo de pecado e de morte — a lei co pecado continuaria atuan- do em seus membros e combatendo continuamente a lei de sua mente. Mas Paulo nao estava descansando sobre os seus louros, e nem estava se desfazendo de sua arma- dura espiritual. Nao era nada disso. Antes, estava che- gando a seguinte solene conclusdo: “Dois principios conflitantes existem dentro de mim”. Antes, ele ndo pu- dera reconhecer claramente esse fato. Mas depois, essa verdade lhe foi revelada; a luz brilhou sobre a sua alma, levando-o a ver que com a sua carne serviria a lei do pecado, embora com a sua mente ele serviria 4 lei de Deus. Examinemos, agora, essas duas questdes. Neste pon- to da exposicéo paulina, “mente” indica a nossa nova natureza, aquele santo principio que o Espirito de Deus implanta no coracéo de uma pessoa regenerada, Com a mente, pois, servimos a lei de Deus. Esse novo homem 13 é santo, celestial, puro, espiritual, deleita-se no Senhor, busca e anela pela comunhdo com Jesus. Ele suporta as injurias, submete-se a tratamento destituido de gentile- za, poe a boca no pé, e, até certo ponto, amolda-se a imagem de Cristo. Por isso mesmo, 0 apéstolo diz: Eu mesmo — eu, Paulo — eu, considerado como um cren- te, como quem confia em Jesus — eu, com a minha men- te, com a minha nova natureza, com aquele principio santo e celestial que Deus implantou em meu peito, sir- vo a lei de Deus. Reconheco que a Palavra de Deus é a minha regra e a minha diretriz. Desejo conhecer a von- tade do Senhor e ser-Lhe obediente. Procuro obedecé- 10 em tudo; esforco-me por agrada-IO, honrd-IO e glorifica-IO, A vontade dEle é a minha vontade, os man- damentos dEle séo os meus mandamentos, ~ aquilo pa- ra onde eu for guiado por Ele, isso farei alegremente. Ora, é precisamente esse 0 espirito e a tendéncia da “mente” de um homem, considerado em sua nova natureza. Lou- vor, oracdo, inclinagGes espirituais, amor aos santos do Senhor, o desejo de andar em piedade e temor, esse é © ser, esse € 0 elemento do novo homem, Com essa men- te, ou seja, com 0 novo homem, o crente serve a lei de Deus. Todos os sentimentos de-santa reveréncia e de te- mor piedoso; todos os atos de fé, esperanga e amor; to- da a contricao e humildade; todo o auto-desprezo e auto-abominacao; todos os desejos de conhecer a Deus, de agrada-lO em tudo e de desfrutar dEle; tudo quanto é espiritual e gracioso habita no novo homem. Sucede de vez em quando, por conseguinte, que sentimos (ndo é verdade?) que as realidades celestiais sao 0 nosso am- biente, que as realidades espirituais constituem a nossa principal alegria, que o sangue vertido pelo Cordeiro é © nosso principal deleite, e que a Palavra de Deus é a regra da nossa obediéncia. Assim, pois, “com a mente sou escravo da lei de Deus”. Porém, enquanto estivermos vivendo no corpo, te- 14 remos um outro principio, perfeitamente distinto do pri- meiro, € que 0 apdstolo denominou aqui de “carne” — nossa natureza caida e corrompida, nosso coracao de- pravado, Agora, “segundo a carne” — nossa natureza corrupta — servimos a lei do pecado. Nao de bom gra- do é fato, pois isso ja seria outra historia. A “lei do pe- cado”, aquele principio do pecado aninhado no peito (se é que posso usar a expressdo), € aquele “espirito pecami- noso”, aquele principio sutil que nunca cessa de operar. Cada pensamento infiel, cada imaginacao blasfema, ca- da idéia vil, cada desejo lascivo, cada cobica, cada alti- vez, cada movimento da hipocrisia no intimo, cada manifestacao de amor ao mundo, cada exaltacdo secre- ta do “eu” (e quem desconhece essas operacGes inter- nas?) fazem parte da “lei do pecado”. Tudo isso esta contribuindo para c dia de nossa morte, Mas, sera a escravidao um prazer? Porventura 0 escravo agarra-se as correntes que o tolhem? O pobre afri- cano, arrancado de sua terra nativa, e transportado pa- ra o outro lado do Atlantico, ficou satisfeito em estar no bojo do navio negreiro? Pelo contrario, nao ficou bra- dando por luz ¢ liberdade? Outro tanto acontece no ter- reno espiritual. Quando Paulo disse “segundo a carne sou escravo da lei do pecado”, ele referia-se a si mesmo como quem estava enredado contra os seus desejos — arrancado como aquele pobre africano, de sua terra e de seu lar, arrebatado cativo pelo pecado e por Satands, acorrentado no interior do navio negreiro, um escravo contra a propria vontade, um prisioneiro que gemia, que muito gostaria de ser libertado, mas que descobriu aquele sutil espirito pecaminoso e corrupto no intimo, procu- rando constantemente recuperar 0 dominio sobre ele. Fi- que certo disso, que se vocé é capaz de servir ao pecado sem lamentar-se, entdo é que o Espirito de Cristo nao reside em vocé. Em tal caso, vocé continua em fel de amargura e laco de iniqttidade” (Atos 8:22). Se a satis- 15 faco das suas paixGes secretas nao lhe causa dor, se as manifestagdes da sua natureza vil nunca lhe fazem der- ramar lagrimas, e nem arrancam um gemido sequer de seu peito, ent&o fique certo que vocé nao esta onde Paulo estava, A escravidio é uma algema amarga. Portanto, quando o apéstolo exprimiu sua solene resolucao: “com a mente sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a car- ne, da lei do pecado”, nem por um momento sequer ele pretendia encorajar a licenciosidade. Ele nao estava afir- mando que podemos viver no pecado, satisfazendo as nossas concupiscéncias, ao mesmo tempo em que somos, comprovadamente, filhos de Deus. Examinemos o sexto capitulo da epistola aos Romanos, onde todo o impacto do argumento é contra nos deixarmos arrastar pelo po- der do pecado. O que Paulo queria dizer, porém, é 0 se- guinte: enquanto ele estivesse vivendo neste mundo, teria um corpo de pecado e morte; enquanto ele continuasse na carne, teria de experimentar as dolorosas operacdes da corrupcao. E Paulo submetia-se a essa condigao, aguardando por aquele dia feliz em que seu corpo cor- rompido tombaria no pd, ¢ a sua alma entraria em uma indizivel bem-aventuranca, reservada exclusivamente para os membros da familia de Deus. APLICACAO Eu gostaria de perguntar, com toda a sincerida- de, 0 que vocé e eu sabemos acerca dessa experiéncia? Por qual motivo ela ficou registrada nas paginas da Bi- Dblia? Por que Deus a mandou gravar? Nao seria para que nos medissemos por meio dela, e assim féssemos submetidos a teste? Consideremos a experiéncia do apés- tolo, a fim de averiguarmos se realmente a conhecemos. (1) O que vocé sabe sobre ser um pobre, desgra- gado, culpado e miseravel pecador? Essa é a primeira li- cdo a ser aprendida na escola de Cristo. Ninguém pode ser dispensado dessa licdo. Seria mais tacil alguém ten- 16 tar aprender a ler sem primeiro aprender o alfabeto do que conhecer a Cristo sem conhecer o senso de culpa e de condenacdo. Porém, 0 que vocé conhece a respeito desse passo? “Desventurado homem que sou! quem me livrara do corpo desta morte?” Vocé afirma que tem co- nhecimento desse fato. Vocé é um bem-aventurado, se Deus Espirito ja fez raiar essa experiéncia em sua alma! Isso 0 conduzird a coisas melhores. Terminara em esplén- didas experiéncias. Na escola de Cristo, precisamos co- mecar pelas formas mais primitivas, para entéo sermos conduzidos, passo a passo, linha apos linha, as ligGes que o Espirito Santo ensina a toda a familia redimida. (2) Mas, pode vocé ir um passo além disso? “Gra- gas a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor’’? Nao ha um doce testemunho? Nao ha um precioso livramento? Nao ha subentendidos graciosos? Nao ha sinais de favor ce- lestial? O nome de Cristo nunca foi precioso para vocé? Seu amor é como o “ungtiento derramado” (Can. 1:3). O qué? Para vocé, o Filho de Deus é sem aparéncia e formosura? Quando vocé O contempla, nao ha nEle be- leza alguma que O torne desejavel? O qué? Nao ha ane- los pela Sua doce presenga? Nao ha desejos profundos pela manifectagéo de Sua graca? Nao ha em vocé cla- mor para sentir o poder de Seu sangue expiatério? Nao ha anseios secretos em sua alma, procurando descobrir a Sua misericdrdia e o Seu favor? Ora, se vocé conhece algo dessa experiéncia, entao vocé podera dizer junta- mente com 0 apdstolo, ao menos em certa medida: “Gra- ¢as a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor”. Uma porta de escape foi aberta para nds. Ha um caminho por on- de podemos fugir da miséria, da culpa e da condena- cao. Ha um caminho — o Senhor da vida e da gloria, o Mediador entre Deus e os homens, o grande Sumo Sa- cerdote que foi posto sobre a casa de Deus, Aquele que é capaz de salvar até todos os extremos, o Intercessor 17 perenemente vivo, o Amigo que é mais chegado que um irmao. (3) Em seguida, vocé tera de chegar aquela reso- lug&o que diz: “..com a mente sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do pecado”. Isso é o mes- mo que dizer: Desejo conhecer a vontade de Deus e cumpri-la, submetendo-me a Sua justa maneira de tra- tar comigo, andando 4 luz de Seu rosto e vivendo sob o resplendor de Sua graca. Nao obstante, em tudo isso, apesar de tudo isso e em meio a tudo isso, sinto e des- cubro em mim uma natureza contraria, um vil coracéo de incredulidade, um corag&o orgulhoso, hipdcrita, pre- suncoso, cobicoso; olhos cheios de concupiscéncia. E isso procura incansavelmente cativar os meus afetos, procu- ra enredar a minha alma, inflige cruéis ferimentos em minha alma e em minha consciéncia. A despeito disso, precisamos suportar a carga, nunca ceder debaixo do pe- so, aguardando ansiosamente pelo dia de nossa liberta- ¢do. Sim, em Sua misericérdia, Deus controla todos esses dolorosos exercicios da alma, visando ao bem de Seu po- vo, Onde ficaria a nossa humildade? onde ficaria a nos- sa auto-aversdo, onde ficaria a nossa contrigao, 9 nosso quebrantamento, o nosso temor piedoso? Onde ficaria a nossa vergonha e 0 aviltamento de alma perante um Deus santo, se nao trouxéssemos dentro de nds mesmos esses dolorosos testemunhos de que somos os piores den- tre os pecadores, os mais infimos dentre os menores san- tos? Em caso contrario, estariamos, de nossas mimisculas colinas de santidade, lancando pedras contra todos os nossos semelhantes. Portanto, que os homens digam o que bem enten- derem, e que mestres presuncosos lancem os seus dar- dos de amargo escarnio. Permanece de pé 0 fato que temos motivos suficientes para agradecer ao Senhor pe- lo conhecimento que possuimos sobre nossa propria cor- rupcdo. Temos motivos para bendizer o Seu nome, devido 18 ao fato que Ele nos humilhou, exibindo diante de nds a nossa corrupcao, E também temos motivos para Lhe sermos gratos por ter Ele derramado luz sobre as nossas almas, por ter Ele insuflade vida em nossa consciéncia, por meio do que o pecado, ao qual odiamos e do qual nos lamentamos e arrependemos, de alguma forma sem- pre é trazido a tona. Desse modo, haveremos de cami- nhar na presenca de Deus, todos os nossos dias, no amargor de nosso espirito. Somente assim n&o seremos devorados pelo desespero, por uma parte, e nem ficare- mos inchados de presung4o, por outra parte. Andar dessa maneira ¢ andar em seguranga. E entaéo poderemos che- gar a tomar esta solene resolucdo: Com a mente sou es- cravo da lei de Deus — esse ¢ o meu elemento. Contudo, com a carne, embora contrariado, sirvo a lei do pecado — e essa éa minha miséria. Servir a lei de Deus é a mi- nha alegria; servir 4 lei do pecado é a minha tristeza. Servir a lei de Deus em minha alma é 0 meu céu; servir a lei do pecado que esté em meus membros é uma amar- ga reliquia do inferno. Entretanto, tudo isso se faz ne- cessario para que a alma permaneca vigilante e humilde, capaz de aprender que a graca divina se manifesta supe- rabundante quando o pecado se manifesta abundante. Dessa maneira, somos conservados apequenados e vis em nossa propria estimativa, fazendo-nos cair prostra- dos aos pés da cruz, decididos a “nada saber... sendo a Jesus Cristo, e este crucificado” (I Cor. 2:2). J. C Philpot 19 QUEM Me LW RARA? “Quio grande foi a misericérdia para com a Igreja de Deus que o apostolo Paulo tenha sido inspirado pelo Espirito Santo para registrar a sua propria experiéncia: ‘Desventurado homem que sou! quem me livrara do corpo desta morte?’ ” Neste livreto o autor analisa o clamor de Paulo ao enfrentar o conflito intimo entre suas duas naturezas e a maneira abencoada e maravilhosa pela qual ele encontra conforto e forca para até agradecer por tal conflito.

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