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Coordenaۥo Editoria
Editoriall
Irma Jacinta Turolo Garcia
Assessoria
Assessoria Admini
Administrativ
strativa
a
Bruno Latour
Irm€ Teresa Ana Sofiatti
TRADU‚ƒO
Sandra Moreira
Coordenaۥo
Coordena€•o da Cole€•o Filoso/ia e Pol‚tica
Luiz Eugƒnio V„scio
FILLOSOFIAOPOLfTICA
E
D I
~ i SC
Editora da U niversidade do Sagrado Cora•io
Reflex€o sobre o culto
moderno dos deuses
fe(i)tiches
6
b RAbR€BMesRReeeeeao8•RAbRqqaBb
Coordenaۥo Editoria
Editoriall
Irma Jacinta Turolo Garcia
Assessoria
Assessoria Admini
Administrativ
strativa
a
Bruno Latour
Irm€ Teresa Ana Sofiatti
TRADU‚ƒO
Sandra Moreira
Coordenaۥo
Coordena€•o da Cole€•o Filoso/ia e Pol‚tica
Luiz Eugƒnio V„scio
FILLOSOFIAOPOLfTICA
E
D I
~ i SC
Editora da U niversidade do Sagrado Cora•io
Sum…rio
Pref…cio
Pr‚logo
Nota do tradutor >69 Como obter, gra†as aos migrantes de periferia, as divindades de
contrabando
faitiche. Este termo, sem equiva-
O original francƒs grafa faitiche. Como se privar da interioridade e da exterioridade
lente em portuguƒs, condensa duas fontes etimol‚gicas que Como estabelecer o "caderno de encargos" das divindades
apresentam, ao mesmo tempo, fonemas quase idƒnticos: fait Como transferir os pavores
adj. feito; s.m. feito,
feit o, fato e f„tiche s.m. fetiche.
fetiche. Isto permite
que se estabele†a, em francƒs, um jogo sutil entre os sentidos e
1-44 Como compreender uma a†€o "superada pelos acontecimentos"
as sonoridades das palavras faitiche
faitiche e fƒtiche. O termo aqui suge-
fƒtiche.
rido, fe(i)tiche, busca conservar tais sutilezas, condensando,
igualmente, os sentidos dos termos em portuguƒs, "feito" e "fe- * No original: objets f€es,objets faits. Os termos se valem dos diferentes
tiche", tomados na acep†€o proposta pelo autor, onde o primei-
sentidos de dois fonemas quase idƒnticos, em francƒs: fie adj. aquilo
que ƒ encan tado, que possui poderes m…gicos; s.f. fada, feiticeira, e fait
ro "parece remeter ‡ realidade exterior", e o segundo, "‡s cren- adj. feito; s.m. feito, fato. A tradu†€o n€o consegue captar a sutileza
†as absurdas do sujeito". A grande dificuldade, em portuguƒs, desta rela†€o. (N.T.)
consiste em reproduzir a sonoridade do termo em francƒs. ** No original: trans frayeurs. Termo que condensa os sentidos de
transferƒncias [transferes] e pavores [frayeurs] conforme designado pela
Psicologia. O termo original estabelece urn duplo sentido sonoro en-
tre transferts [transferƒncias] e trans frayeurs [trans-pavores]. (N.T.)
Pref€cio
Tobie Nathan
Na than e sua equipe
e quipe receberam-me
rec eberam-me durante tr•s m e-
ses em suas consultas de etnopsiquiatria. Isabelle Stengers pe-
diu-me que viesse explicar em seu semin€rio o efeito desta expe-
ri•ncia, que tento definir h€ alguns anos, sobre a antropologia
dos modernos. Philippe Pignarre prop‚s-me acolher esta refle-
xƒo, muito provis„ria no …mbito de sua cole†ƒo, a fim de acele-
rar o di€logo entre aqueles que falam dos fatos e aqueles que fa-
lam dos fetiches. Aceitei a oportunidade que me ofereceram de
comparar certos efeitos da sociologia das ci•ncias com alguns
tra†os da etnopsiquiatria.
Escolhi centrar minha compara†ƒo na no†ƒo multiforme de
cren†a. De fato, nossos antepassados, adeptos do pensamento li-
vre, ao zombarem
zombar em de nossas c ren†as extravagan
e xtravagantes
tes e, ao mesmo
tempo, das dos outros, nos legaram a ironia ‡ qual Voltaire, ap„s
tantos, soube dar o tom. Mas para ridicularizar assim todos os
cultos, para derrubar todos os idolos, seria preciso acreditar na ra-
zƒo, ˆnica for†a capaz de refutar todas essas loucuras... Como fa-
lar simetricamente de n„s como dos outros sem acreditar nem na
razƒo nem na cren†a, respeitando, ao mesmo tempo, os fetiches e
os fatos? Esforcei-me para realizar isso, de forma um tanto desa-
jeitada, definindo o agnosticismo como uma forma de nƒo acre-
ditar, em absoluto, na no†ƒo de cren†a.
Por meio de seus prudentes conselhos, Isabelle Stengers,
Antoine Hennion,
Hennion, Emilie Hermant,
Hermant, Tobie
Tobie Nathan,
Nathan, tentaram
tornar este texto menos bizarro, mas como eu os assessorei mal,
eles quase nƒo conseguiram realizar tal tarefa, donde esse "ob-
jeto compacto" que fala de outros objetos compactos.
Agrade†o igualmente aos pesquisadores do Cresal,
Cresal, de
Saint-Etienne, por suas ˆteis sugest‰es.
2.
Como os modern fabrica fetiches entre
aqueles com q u e m entram em contato
. ............. ...
se estes caŠam diretamente do c‹u. Œ "Cinzelados com arte por zelo indignado de Mois‹s contra o veado de ouro. "Os Šdolos t•m
nossos ourives", teriam respondido orgulhosamente. Œ "E por olhos e nƒo v•em, ouvidos e nƒo escutam, bocas e nƒo falam."
isso eles sƒo sagrados?", teriam entƒo perguntado os negros. Quanto aos guineenses, eles nƒo percebem bem a diferen†a en-
"Mas claro, benzidos solenemente na igreja Nossa Senhora dos tre o fetiche derrubado e o (cone colocado em seu lugar e espa-
Rem‹dios, pelo arcebispo, na presen†a do rei". -- "Se voc•s reco- †o. Relativistas avant la lettre, pensam que os portugueses agem
nhecem entƒo, ao mesmo tempo, a transforma†ƒo do ouro e da como eles. Ž justamente essa indiferen†a, essa incompreensƒo
prata no cadinho do ourives, e o car€ter sagrado de seus (cones, que os condena aos olhos dos portugueses. Esses selvagens nƒo
por que nos acusam de contradi†ƒo, n„s que nƒo dizemos outra discernem nem mesmo a diferen†a entre "latria" e "dulia", entre
coisa? Para feiti†o, feiti†o e meio." Œ "Sacril‹gio! Ningu‹m pode seus fetiches e os (cones santos de seus inv asores; recusam-se com-
confundir Šdolos a serem destruŠdos com (cones a serem louva- preender o abismo que separa a constru†ƒo de um artefato feito
dos", teriam respondido os portugueses, indignados, uma se- pelo homem e a realidade definitiva daquilo que ningu‹m ja-
gunda vez, com tanta imprud•ncia. mais construiu. Mesmo a diferen†a entre a transcend•ncia e a
Podemos apostar, contudo, que eles teriam apelado a um iman•ncia parece escapar-lhes... Como nƒo v•-los como primi-
te„logo para livr€-los do embara†o no qual os mergulhara um tivos, e o fetichismo como urna religiƒo primitiva, visto que es-
pouco de antropologia sim‹trica. Teria sido necess€rio um s€bio ses selvagens persistem diabolicamente no erro?
sutil para ensin€-los a distinguir "latria" e "dulia". "As imagens
religiosas", teria pregado o te„logo, "nƒo sƒo nada por si pr„prias,
j€ que apenas evocam a lembran†a do modelo que deve ser, so- 3. Pietz resume de maneira exce ente a inven†ƒo do presidente de
l
mente ele, objeto de uma adora†ƒo legŠtima, enquanto que seus Brosses: "Fetishism was a radically novel category: it offered an
Šdolos monstruosos seriam, segundo suas declara†‰es, as pr„prias atheological explanation of the origin of religion, one that accoun-
divindades, que voc•s confessam fabricar impunemente." Por ted equally well with theistic beliefs and nontheistic superstitions;
it identified religious superstition with false ca,]c2l reasoning
que se comprometer, ali€s, com discuss‰es teol„gicas com sim-
about physical nature, making people's relation to material ob-
ples primitivos? Envergonhado por tergiversar, tomado po r um jects rather than to God the key question for historians of reli-
zelo sagrado, o te„logo teria derrubado os Šdolos, queimado os fe- gion and mythology; and it reclassified the entire of ancient and
tiches e consagrado, em seguida, nos casebres desinfetados, a Ver- contemporary religious phenomema (...). In short the discourses
dadeira Imagem do Cristo sofredor e de sua Santa Mƒe. about fetishism displaced the great object of Enlightenment cri-
Mesmo sem a ajuda deste di€logo imagin€rio, compreen- ticism Œ religion Œ into a causative problematic suited to its own
demos bem que os negros id„latras nƒo se op‰em aos portugue- secular cosmology, whose "reality principle" was the absolute
split between the mechanistic-material realm of physical nature
ses sem imagens. Vemos povos cobertos de amuletos ridiculari- (the blind determnisms of whose events excluded any principle
zar outros povos cobertos de amuletos. Nƒo temos de um lado of teleological causality, that is, Providence) and the end-oriented
icon„filos e do outro iconoclastas, mas de iconodˆlios e mais human realm of purposes and desires (whose free intentionality
iconodˆlios. Entretanto, o mal-entendido persiste, pois todos se distinguished its events as moral action, properly determined by
recusam a escolher os termos que lhes sƒo pr„prios. Os portu- rational ideals rather than by the material contingency of merely
gueses recusam-se em hesitar entre os verdadeiros objetos de pieda- natural beings). Fetishism was the definitive mistake of pre-en-
lightened mind: it superstitiously attributed intentional purpose
de e as m€scaras patibulares cobertas de gordura e de sangue dos and desire to material entities of the natural world, while allowing
sacrificios. Cada portugu•s, na Costa do Ouro, ‹ tomado pelo social action to be determined by the (clerically interpreted) wills
~>~
Trƒs s„culos mais tarde, no Rio de Janeiro contempor‰neo, Eu fui raspado (iniciado) para Osala em Salvador m as preci-
mesti†os de negros e de portugueses obstinam-se em dizer, no sei assentar Yewa (que pediu atrav„s da divina†€o para ser assen-
mesmo tom, que suas divindades s€o, ao mesmo tempo, cons- tada) e m€e Aninha (sua iniciadora) me mandou para o Rio de
truŒdas, fabricadas, "assentadas" e que s€o, por conseq†„ncia, reais.
Janeiro porque j… na „poca Yewa era por assim dizer um Orisa
Vejamos como a antrop‚loga Patricia de Aquino compila e tra-
em via de extin†€o. Muitos j… n€o conheciam mais os oro [Yo-
ruba para palavras e ritos] de Yewa.
duz o testemunho dos iniciados dos candombl„s:
Eu sou de Oba, Oba quase que j… morreu porque ningu„m
sabe assentar ela, ningu„m sabe fazer, ent€o eu vim para c… (nes-
te candombl„) porque aqui eu fui raspada e a g ente n€o vai es-
quecer os awo [segredos em Yoruba] para f azer ela."*
5
Como definir um antifetichista? Ž aquele que acusa um ou- nada senƒo aquilo que o homem faz dele, ele acrescenta, contudo, al-
tro de ser fetichista. Qual • o conteˆdo desta denˆncia? O fetichis- guma coisa: ele inverte a origem da a†ƒo, ele dissimula o trabalho hu-
mo, segundo a acusa†ƒo, estaria enganado sobre a origem da for†a. mano de manipula†ƒo, ele transforma o criador em criatura.e
Ele fabricou o Šdolo com suas mƒos, com seu pr„prio trabalho hu- Mas o fetiche faz ainda mais: ele modifica a qualidade da
mano, suas pr„prias fant asias humanas, mas ele atribui este traba- a†ƒo e do trabalho humanos. Entretanto, ao revelar que s„ a
lho, estas fantasias, estas for†as ao pr„prio objeto por ele fabrica- a†ƒo do homem d€ voz e for†a aos objetos, o pensador critico
do. O fetiche, aos o lhos do menor dos antifetichistas, age, se as- deveria inverter a origem inversa da for†a e, colocar fim, de
si m podemos dizer, ‡ maneira de um retroprojetor. A imagem ‹ uma vez por todas, ‡ ilusƒo dos fetiches. Aquele que acreditas-
produzida pelo professor que colocou sua transpar•ncia no vidro se (ingenuamente) escutar vozes, se transformaria em ventrŠlo-
fosco da l…mpada, mas ela "parece" jorrar da tela em dire†ƒo ao au- quo. Ao tomar consci•ncia de seu jogo duplo, ele se reconcilia-
dit„rio, como se nem o professor, nem o retroprojetor tivessem ria consigo mesmo. Aquele que acreditasse depender das divin-
nada a ver com isso. Os espectadores, fascinados, "atribuem ‡ ima- dades, perce beria que est€, na verdade, sozinho com sua voz in-
gem uma autonomia" que ela nƒo possui. Derrubar o fetichismo terior, e que aquilo que as divindades possuem, foi dado apenas
equivale, portanto, a inverter a inversƒo, a retificar a imagem e por ele. Enfim desenganado, ele veria que nƒo h€ nada a ser vis-
restituir a iniciativa da a†ƒo ao seu verdadeiro mestre. No cami- to. Ele teria dado fim ‡ sua aliena†ƒo Œ mental, religiosa, eco-
nho, contudo, o verdadeiro mestre desapareceu no trajeto! O ob- n‚mica, polŠtica -- visto que nenhum alien viria mais parasitar
jeto que nƒo era nada realiza algo. Quanta ‡ o rigem da a†ƒo, eis a constru†ƒo de suas mƒos calejadas e de seu espirito criador.
que ela se perde em uma disputa terrivelmente emaranhada. Entusiasmado pela denˆncia crŠtica o homem se encontraria,
Assim que o antifetichista desvenda a inefic€cia do Šdolo, ele enfim, ˆnico senhor de si pr„prio, em um mundo para sempre
mergulha, na verdade, em urna contradi†ƒo da qual nƒo sai mais. esvaziado de seus Šdolos. O fogo que Prometeu furtara aos deu-
No momento em que se quer que o fetiche nƒo seja nada, eis que ses, o pensamento crŠtico furtaria ao pr„prio Prometeu. O fogo
o mesmo come†a a agir e a deslocar tudo. Ele ‹ capaz, em particu- teria origem apenas no homem, e somente nele.
lar, de inverter a origem da for†a. Melhor ainda, j€ que, segundo os Somente nele? Nƒo totalmente, e ‹ aŠ que as coisas se co m-
antifetichistas, o efeito do fetiche s„ tem efic€cia se seu fabricante plicam novamente. Tal qual um escrivƒo que tem que dividir a
ignorar a origem do mesmo, ele deve ser capaz de dissimular total- heran†a de um intestado, o pensador crŠtico nƒo sabe jamais a
mente sua pr„pria fabrica†ƒo. Gra†as ao fetiche, com um s„ golpe quem restituir a for†a, atribuŠda, por erro, aos fetiches. E neces-
de condƒo, seu fabricante pode se metamorfosear de manipulador s€rio devolv•-la ao individuo, senhor de si como do Universo, ou
cŠnico em enganador de boa f‹. Assim, ainda que o fetiche nƒo seja a uma sociedade de indivŠduos? Caso responda-se que ‹ preciso
devolver ‡ sociedade o que a ela pertence, perde-se novamente o
dominio. A heran†a dos fetiches, agora recuperada, dispersa-se
em uma nuvem de herdeiros, todos eles, legŠtimos. Ap„s ter in-
nas mƒos do Cristo morto, a enorme chaga em seu flanco, as vertido a inversƒo da ido latria, ap„s ter "retroprojetado" a retro-
marcas de lan†as ou de pregos cravados com martelo, diferem
dos ferimentos infligidos a martelo sobre a face de m€rmore da
mƒe de m€rmore, por um louco perigoso, no domingo de Pente-
costes de 1972, ou do golpe desferido em Mois‹s pelo pr„prio es- 8. Retomo aqui o argumento esbo†ado por Hennion, Antoine;
cultor, lan†ando sobre ele o martelo e cinzel, ordenando-o a fa- Latour, Bruno (1993). "Objet d'art, objet de science. Note sur
lar? Ou dos golpes que o talharam?", p.203. les li mites de l'anti-f‹tichisme". Sociologic de tart, v. 6, p. 7-24. 4
7
proje†ƒo da for†a, nƒo • comigo, o individuo trabalhador, que se O mundo sem fetiche ‹ povoado por tantos aliens quanto o
pode deparar de imediato, mas com um grupo, urna multidƒo, mundo dos fetiches. A inversƒo da inversƒo d€ acesso a um uni-
uma coletividade. Sob a fantasia do fetiche, agora dissipada, o verso tƒo inst€vel quanto o mundo pretensamente invertido pela
humano esclarecido percebe que, por isso, nƒo est€ mais sozi- cren†a ilus„ria nos fetiches. Os antifetichistas, tanto quanto os fe-
nho, que divide sua exist•ncia com uma multidƒo de agentes. O tichistas, nƒo sabem quem age e quem se engana sobre a o rigem
alien que se acreditava eliminado, retorna sob a forma terrivel- da a†ƒo, quem ‹ senhor e quem ‹ alienado ou possuŠdo. Assim,
mente complicada da multidƒo social. O ator humano nada fez longe de ser esvaziado de sua efic€cia, mesmo entre os modernos,
senƒo trocar uma transcend•ncia por outra, como se v• bem em o fetiche parece agir constantemente para deslocar, confundir, in-
Durkheim, nas mƒos do qual, o social aparece um pouco menos verter, perturbar a origem da cren†a e a certeza de um domŠnio
opaco que a religiƒo que explica e que ofusca. Marx, em sua cƒ- possŠvel. A for†a que se quer retirar ao fetiche, ele a recupera no
lebre defini†ƒo do fetichismo e da mercado ria, ilustra, primoro- mesmo instante. Ningu‹m acredita. Os brancos nƒo sƒo mais an-
samente, como prolifera aquilo que, entretanto, nada faz: tifetichistas do que os negros sƒo fetichistas. Acontece que, so-
mente os brancos estabelecem Šdolos por toda parte, entre os outros,
somente uma determinada rela†€o social dos homens entre para em seguida destrui-los, multiplicando por toda parte, entre
si que assume a forma fantasmag‚rica de uma rela†€o entre as
coisas. Para encontrar uma analogia para este fenˆmeno, temos
eles mesmos, os operadores que disseminam a origem da a†ƒo. Sim, os
de ir busc…-la na regi€o nebulosa do mundo da religi€o. Aqui, os antifetichistas, como o s fetichistas, prestam aos idolos um culto
produtos do c„rebro humano tƒm o aspecto de figuras autˆno- bastante estranho, que precisamos esclarecer."
mas, dotadas de vida pr‚pria, que mantƒm rela†‹es entre si e
com os homens. D…-se o mesmo com os produtos da m€o huma-
na no mundo da mercadoria. o que chamo por fetichismo, que
adere aos produtos do trabalho, tƒo logo se apresentam como I1. Ao fazƒ-lo, dou continuidade ao movimento iniciado por
Boltanski Luc; Thevenot, Laurent. De la justification, les Economie s
mercadorias, fetichismo insepar…vel deste modo de produ†€o. 9
de la grandeur, Paris: Gallimard, 1991, que conduz da sociologia
critica ‡ sociologia da crŒtica. Pode-se dizer mesmo que estendo
A antropologia econ‚mica ‹ testemunha disso de forma bas- a an…lise reflexiva feita por alguns antrop‚logos, sobre o pr‚prio
tante eloqente; as rela†‰es entre os homens, fetichizadas ou nƒo conceito de fetiche. A palavra traz aos antrop‚logos m…s lem-
por interm‹dio das mercadorias, nƒo parecem mais simples nem bran†as, e n€o aparece nem mesmo em Bonte, Pierre; Izard, Mi-
mais transparentes que as rela†‰es entre as divindades. 10 Se as mer- chel (Org.). Dictionnaire de l'e thnologie et de 1'anthropolo gie, Paris:
cadorias perdem sua aparente autonomia, ningu‹m recupera, em PUF, 1991. 0 pequeno livro, de Alfonso Iacono, Le Fe tichisme.
Histoire d'un concep t, Paris: PUF, 1992, reconstr„i a hist‚ria do fe-
fun†ƒo disso, o dominio, muito menos o trabalhador incans€vel. tichismo em torno da no†€o de recusa do outro e desconstr‚i em
detalhes o livro de Charles de Brosses. Contudo, como na obra de
Pietz, William (1993). op.cit., ele n€o saberia nos guiar muito
longe, visto que ele nunca questionou as virtudes do antifetichis-
9. Marx, Karl. le Capital, Paris: p. 69. t, 1. Garnier-Flammarion. mo. Se ambos criticam, com raz€o, o mito racista de uma reli-
10. Ver, por exemplo, Thomas, Nicholas. Entang led O bjects gi€o primitiva e as extravag‰ncias sistem…ticas de Auguste Com-
Exchang e, Mate rial Culture and Colon ialism in the Pac ific. Univer- te, esses dois livros tomam com a maior seriedade e sem o menor
sity Press, Cambridge, Mass: Harvard 1991, e sobretudo o cl…s- distanciamento, o partido de Marx e de Freud. N as m€os destes,
sico Polanyi, Karl. la Grande Transformation. Aux origines politi- as ciƒncias sociais, Šnicas livres das fantasi as da cren†a, julgam
ques et ƒconomiques de noire temps. Paris: Gallimard, 1983. (1945). todos os outros, negros e brancos.
cap†tulo 3
Como osmodernos r
zn~ s o
m-se para distinguir
os fatos e os fetiches , contudo, consegui-lo
i
mentos separados. A partir do momento em que o antifetichis- plo jogo do ator que, "na verdade", projeta sobre um objeto iner-
ta denunciou a cren†a ing•nua, com o intuito de revelar o traba- te a for†a de sua pr„pria a†ƒo. 13
lho do ator humano, projetado, por erro, sobre Šdolos de madei- Poderiamos acreditar que o trabalho de denˆncia termina-
ra e de pedra, denunciar€, por conseguinte, a cren†a ing•nua que ra. S„brio, liberado e libertado, o sujeito agora retoma a energia
o ator individual humano acredita poder atribuir ‡ sua pr„pria que lhe pertencia e recusa, ‡s suas c onstru†‰es imagin€rias, a au-
a†ƒo. Nada f€cil, aos olhos dos antifetichistas, comportar-se tonomia que elas nunca souberam possuir. Entretanto, o trabalho
como um ator comum! No seu ritmo, nƒo se consegue jamais de denˆncia nƒo p€ra por aŠ, e ‹ retomado em seguida, mas, no
acompanhar a dan†a. Se voc•s acreditam ser manipulados pelos outro sentido. O sujeito humano livre e aut‚nomo se vangloria um
‘dolos, vamos m ostrar-lh es que voc•s os criaram com suas pr„- pouco r€pido demais de ser a causa primeira de codas as suas pro-
prias mƒos; mas se voc•s se vangloriam orgulhosam ente de po- je†‰es e manipula†‰es. Felizmente, aqui ainda, o pensador crŠti-
der acreditar tƒo livremente, vamos mostrar-lhes que voc•s sƒo co, infatig€vel, revela, desta vez, o trabalho da determina†ƒo sob
manipulados por for†as invisŠveis e organizados ‡ sua pr„pria re- as ilus‰es da liberdade. O sujeito acredita-se livre, quando "na
velia. O pensador crŠtico triunfa duplamente sobre a ingenuidade verdade" ‹ levado de um lado para outro.
consumada do ator comum: ele v• o trabalho invisŠvel que o ator
projeta sobre as divindades que o manipulam, mas v• tamb‹m Den‡ncia cr†tica: a forˆo ‰ projetada
as for†as invisŠveis que movimentam o ator quando ele acredita pelo ator sobre um objeto que n€o faz nada
33
PSIC€LO€IA - UFK[sA
Para explicar tais determina†‰es, recorreremos aos fatos sujeito; quatro listas que nƒo devem se confundir sob hip„tese al-
objetivos tais como nos sƒo revelados pelas ci•ncias naturais, hu- guma. Dito de maneira brutal, o pensador crŠtico colocar€ na lista
manas ou sociais. As leis da biologia, da gen‹tica, da economia, de objetos-encantados tudo aquilo em que ele nƒo acredita mais † a
da sociedade, da linguagem, vƒo calar o sujeito que se acredita- religiƒo, • claro, mas tamb‹m a cultura popular, a moda, as supers-
va senhor de seus atos e ge stos. ti†‰es, a mŠdia, a ideologia, etc. Œ e, na lista dos objetos-causa, tudo
aquilo em que acredita convictamente † a economia, a sociologia, a
Crenˆa ing‹nua no forˆa do ator
humono, capaz de projetar livremente
lingŠstica, a gen‹tica, a geografia, as neuroci•ncias, a mec…nica,
etc. Reciprocamente, ele vai compor seu p„lo sujeito, inscrevendo
no cr‹dito todos os aspectos do sujeito pelos quais tem considera-
†ƒo Œ responsabilidade, liberdade, inventividade, intencionalidade,
Ator humano
Objeto tomado
como causalidade
etc. Œ e no d‹bito, tudo o que lhe parece inˆtil ou male€vel Œ os es-
manipulado pelas
determinaˆŒes
objetiva tados mentais, as emo†‰es, os comportamentos, as fantasias, etc.
objetivas Segundo os pensadores, a extensƒo, como o conteˆdo das listas, irƒo
variar, mas nƒo essa quadriparti†ƒo.
Den‡ncia critica: a forˆo cujo ator humano acreditava-se
dotado, prov‰m das determinaˆŒes reconhecidas pelas ci‹ncias P“LO Primeiro denˆncia
Figura 2: a flecha da cren†a como a da denˆncia mudaram de senti- SUJElTO critica
posi†ƒo dos dois diagram as, haveria de ser a pr„pria denˆncia, j€ S e g u n d a d e n ˆ n c ia critica P“LO
que ela inverte novamente a o rigem da for†a, da qual ela preten- OBJETO
dia anteriormente reverter a origem invertida! Mas se trata tan-
to da denˆncia feita pelos pensadores crŠticos quanto da cren†a Figura 3: o duplo jogo das duas denˆncias criticas seu duplo reper- e
35.
figura 3); ela se atribui uma liberdade que lhe ‹ concedida por capŠtulo 4
um grande nˆmero de determina†‰es causais, que agem em des-
peito do que isso lhe provoca, revelando-lhe, de forma compla- Como fatos e fett e~,,Q onfundem suas
t F~Ž
cente, a segunda denˆncia crŠtica (parte inferior da figura 3). virtudes, mesmo eftre os modernos
Mas a semelhan†a entre as duas formas de procedimento nƒo
surpreende jamais o espirito, pois o objeto-feito, que serve ‡ se-
gunda crŠtica, prov‹m de urna lista de s„lidas caus as objetivas,
enquanto que o objeto-encantado, que ‹ denunciado na primei-
ra, ‹ apenas a proje†ƒo de uma miscel…nea de cren†as mais ou
menos vagas sobre um substrato sem import…ncia. Inversamen-
te, o sujeito ativo que serve • primeira denˆncia se v• confiado Portanto, a cren†a, longe de explicar as atitudes dos feti-
ao papel de um ator humano em revolta contra a aliena†ƒo, e que chistas, longe de justificar as atitudes d os antifetichistas, permi-
reivindica corajosamente sua plena e inteira liberdade, enquan- te manter ‡ dist…ncia dois repert„rios de a†ƒo opostos, e mesmo
to que aquele da segunda denˆncia, constituiu uma marionete contradit„rios, que estƒo encarregados de dissimular o ponto
despeda†ada por todas as determina†‰es causais que a mecani- transposto, desde sempre, pela tranqila afirma†ƒo dos negros
zam em todos os sentidos. Com a condi†ƒo de manter uma estri- da Costa do Ouro, segundo a qual eles c onstroem aquilo que os
ta separa†ƒo entre a parte superior e a inferior da figura 3, o pen- supera. Ora, os modernos, mesm o para produzir as ci•ncias exa-
samento crŠtico nƒo ter€, portanto, nenhuma dificuldade em tas, nƒo se utilizam jamais desta diferen†a, sobre a qual parecem,
pretender que o ator humano livre e aut‚nomo crie seus pr„prios contudo, realmente insistir. A partir do momento em que se
fetiches e que, ao mesmo tempo, seja completamente definido suspende o aparato da cren†a, percebe-se que todos os cientistas
pelas determina†‰es objetivas reveladas pelas ci•ncias exat as ou falam como os negros, condenados ao sil•ncio, pelos portugue-
sociais. ses, um pouco r€pido de mais.
Podemos agora chamar por cren†a o conjunto da opera‚ao es- Escutemos, por exemplo, Louis Pasteur, um cientista de la-
tabelecida pela figura 3. Tornamos a compreender que a cren†a borat„rio, defensor daquilo que ‹ demonstr€vel pela prova; falar,
nƒo remete, de modo algum, a uma capacidade cognitiva, mas a nƒo de fatos e fetiches, m as daquilo que toma forma em seu la-
uma configura†ƒo complexa pela qual os modernos constroem a borat„rio. Ao aplicar a defini†ƒo que damos sobre a cren†a, deve-
si pr„prios ao proibirem, com o objetivo de compreender suas rŠamos intim€-lo a escolher entre construtivismo e realismo. Ou
a†‰es, o retorno aos fetiches, os quais, como veremos, todavia bem ele construiu socialmente seus fatos e acrescenta ao repert„-
eles utilizam. rio do mundo apenas suas fantasias, preconceitos, h€bitos e me-
m„ria, ou bem os fatos sƒo reais, mas entƒo, ele nƒo os fabricou
em seu laborat„rio. Esta contradi†ƒo parece tƒo fundamental que
ocupa, ininterruptamente, h€ tr•s s‹culos, a filosofia das ci•ncias.
Ora, ela ocupa muito pouco Pasteur, que se obstina, como
o bom negro, a nƒo compreender a intima†ƒo, a nem mesmo ver
a dificuldade. Ele afirma, no mesmo tom que os negros, que o
fermento de seu €cido l€tico ‹ real porque montou com precau-
†ƒo, com suas pr„prias mƒos, a cena onde ele Œ o fermento Œ se Ora, suponho que no ponto em que se encontram meus co-
nhecimentos a respeito da questƒo, todo aquele que julgar com im-
revela por si s„. Indigna†ƒo dos realistas: "Voc• concede muito parcialidade os resultados deste trabalho e daqueles que publica-
aos construtivistas ao confessar que fez tudo sozinho!" Sim‹trica rei em breve, reconhecerˆ, como eu, que a fermenta†ƒo se mostra
indigna†ƒo dos construtivistas sociais: "Como pretender que o aqui, correlativa da vida, da organiza†ƒo dos gl„bulos, nƒo da
fermento do €cido l€tico exista por si s„ e sem voc•, enquanto morte e da putrefa†ƒo destes gl„bulos, tanto quanto tal fermen-
voc• maneja seus fios!". E Pasteur obstina-se tranqilamente, ta†ƒo nƒo surge como fen‚meno de contato, onde a transforma-
como a velha senhora raspada entrando no candombl‹ para "as- †ƒo do a†ˆcar se faria na presen†a do fermento, sem lhe dar nada,
sentar" ou para "fazer" sua divindade: sem lhe tomar nada. Estes ˆltimos fatos, veremos em breve, s‡o
contestados pela experi€ncia.
No decorrer desta lembran†a, refleti sobre hip„tese de que a
nova levedura est€ organizada, que se trata de um ser vivo e que
sua a†ƒo quŠmica sobre o a†ˆcar • correlativa de seu desenvolvi- Trai†ƒo! Ele mudou com um s„ golpe sua filosofia das
mento e de sua organiza†ƒo. Se me dissessem que nestas conclu- ci•ncias. O construtivismo tornou-se realista, e da esp‹cie mais
s‰es vou al•m dos fatos, responderia que isto ‹ verdade, ‡ medida rasa, mais comum. Os fatos falam por si s„ aos olhos dos cole-
que me posiciono francamente em uma ordem de id•ias que, falando gas imparciais!
rigorosamente, ado podem ser irrefutavelmente demonstradas. Eis Pasteur se contradisse? Sim! aos olhos do pensamento criti-
minha maneira de ver. Toda vez que um quŠmico ocupar-se destes co. Nƒo! aos seus pr„prios olhos e, portanto, aos nossos. Para ele
fen‚menos misteriosos, e se tiver a felicidade de dar um passo
construtivismo e realismo sƒo termos sin‰nimos. Os fatos sƒo fatos,
importante, ele ser€ instintivamente levado a colocar as causas pri-
meiras de tais fen‚menos em uma ordem de rea†‰es em relaf‡o sabemos desde Bachelard, mas o pensamento crŠtico nos prepara-
aos resultados gerais de suas pr„prias pesquisas. E o movimento ra para ver nesta etimologia ambŠgua, o fetichismo do objeto.
l„gico do espŠrito humano em todas as quest‰es controversas Enquanto fabricamos os fatos em nossos laborat„rios, com nossos
(sem grifo no original). 14 colegas, nossos instrumentos e nossas mƒos, eles se tornariam,
por um efeito m€gico de inversƒo, algo que ningu‹m jamais fa-
Nƒo se poderia ser mais construtivista. Thomas Kuhn ou bricou, algo que resiste a toda varia†ƒo de opini‰es polŠticas, a to-
Harry Collins poderiam ter redigido e stas frases, onde se revela, das as torment as da paixƒo, algo que resiste quando se bate vio-
com primor, o trabalho do cientista para construir seus fatos, ne- lentamente com a mƒo sobre a mesa, exclamando: "Aqui estƒo os
les projetando seus h€bitos profissionais, seus pressupostos, at‹ fatos imut€veis!"." Ap„s o trabalho de constru†ƒo, os antifeti-
mesmo seus preconceitos, os h€bitos do grupo ao qual pertence, chistas sustentam que os fatos "conquistariam sua autonomia".
os instintos de seu corpo, a l„gica do espŠrito humano. Infeliz- Ainda que a mesma palavra queira dizer na realid ade, no mesmo
mente, para os soci„logos d as ci•ncias, Pasteur acrescenta, sem tom, aquilo que foi fabricado e aquilo que nƒo foi fabricado por
nenhuma solu†ƒo de continuidade, a seguinte frase: ningu‹m, deveriamos ver aqui uma contradi†ƒo recoberta por
3 ,
kY'
.
,
,
uma opera†ƒo m€gica, depois dissimulada na cren†a, antes de ser, †ƒo de se prender pelos p‹s ‡s piruetas da dial‹tica, tudo ocorre
enfim, soterrada sob a m€ f‹?' 6 Nƒo necessariamente. Uma outra no interior do repert„rio nƒo-moderno, no momento crucial
solu†ƒo nos ‹ oferecida, mas ela sup‰e o abandono do pensamen- quando Pasteur, por ter trabalhado bem, p‚de deixar seu fermen-
to crŠtico, a renˆncia das no†‰es de cren†a, de magia, de m€ f‹, to, enfim aut‚nomo e visŠvel, agir, alimentando-se com prazer da
de autonomia, a perda desse fascinante domŠnio que nos transfor- cultura que acabava de ser inventada para ele. Enquanto a no†ƒo
mara em modernos e, orgulhosos por s•-los." de fato est€ quebrada em duas partes no alto do diagrama, ela ser-
O novo repert„rio surge tƒo logo se contorna o antifetichis- ve, na parte inferior, de passe para estabelecer o que se chama jus-
mo para dele fazer, nƒo mais o recurso essencial de nossa vida in- tamente por "uma solu†ƒo de continuidade" entre o trabalho hu-
telectual, mas o objeto de estudo da antropologia dos modernos. mano e a independ•ncia do fermento. O laborat„rio aciona o faz-
O primeiro repert„rio nos obriga a escolher entre dois sentidos fazer. A dupla articula‚‡o do laborat„rio de Pasteur permite ao
da palavra fato: ele ‹ construido? Ele ‹ real? O segundo, acompa- faz-fazer de fazer-falar, reencontrando assim as duas etimologias
nha Pasteur, quando ele toma por sin‚nimo as duas frases: "Sim, da palavra fetiche e da palavra fato. O laborat„rio torna-se, se nos
‹ verdade que eu o construŠ no laborat„rio", e "por conseguinte, o atrevemos a dizer, o aparelho de fona†ƒo do fermento do €cido
fermento aut‚nomo surge por si s„, aos o lhos dos observadores l€tico assim como de Pasteur, da articula†ƒo de Pasteur e de "seu"
imparciais".1 e Enquanto o repert„rio moderno Œ alto da figura 4 fermento, do fermento e de "seu" Pasteur.
Œ impede que aconte†a, seja o que for no seu meio, sob a condi-
Repertƒrio moderno
FATO = Fabricado FATO . n€o-Fabricado
0
16. Eu mesmo utilizei essa met€fora em la Vie de laboratoire. Pa- quebra
ris: La D‹couverte, 1988. Nesta ‹poca, em 1979, o fracasso da ex-
plica†ƒo social nƒo se mostrava ainda. S„ tirei conclus‰es disso
mais tarde, ao suprimir a palavra "social" da reedi†ƒo do livro, e Constru†do pelo homem Real e, portanto, n€o
depois, ao desenvolver com Michel Callon o princŠpio da simetria e, portanto, irreal constru†do pelo homem
generalizada, em les Microbes, guerre et paix, seguido de Irw•ductions,
Repertƒrio n€o-moderno
A.-M. M‹taili‹, col. Paris: Pandore, 1984 e em seguida, em la
Science em action. Paris: La D‹couverte, 1989. J€ havia detectado Articula•€o
FATO
tal fen‚meno, mas foram necess€rios vinte anos para eu com-
preender a sinonŠmia destes dois verbos: construir-superar. Fermento aut•nomo
40
Compreende-se a import…ncia decisiva das "science stu- P“LO
Primeira den‡ncia cr†tica
dies" ou da antropologia das ci•ncias. Elas agem como um ver- SUJEITO
dadeiro clinamen, quebrando a simetria invisŠvel que permitia ‡ I: Ator humano livre I: Objeto-encantado
cren†a exercer seus direitos.' De fato, ao for†ar a teoria a levar
em conta a pr€tica dos cientistas, a analise social das ci•ncias
combina os dois repert„rios e for†a a explicar os fatos incontes-
Felix culpa
tes das ci•ncias por meio de recursos elaborados para dar conta das 'science studies"
dos fetiches!=” Ela certamente fracassa. Nƒo se pode explicar os
buracos negros por meio da primeira denˆncia crŠtica inventada II: Ator humano II. Objete-Feito
determinado
contra os fetiches e contra os deuses. Mas o fracasso mesmo des-
P“LO
tas explica†‰es deixa desamparado, pouco a pouco, todo o pen- Segundo den‡ncia cr†tica
OBJETO
samento crŠtico. Descobre-se entƒo, claramente, ao aplic€-las so-
bre "objetos verdadeiros", a fraqueza cong•nita da primeira de- Figura 5: por um erro de manipula†ƒo as "science studies" cruzam as
duas denˆncias e tornam visŠveis suas simetrias perfeitas, suspendendo,
de repente, o conjunto da opera†ƒo que permitiria a cren†a na cren†a.
19. Pouco importa o momento exato deste clinamen. Quanto a
mim, o situo na exemplar antropologia d as ci•ncias que Michel nˆncia, mas se compreende simetricamente a impot•ncia dos
Serres conduziu de LucrŠce ƒ Statues assim como no livro sŠmbo- objetos controversos, socializados, enredados em suas condi†‰es
lo de Bloor, David Socielogie de la logique ou les limites de 1'•pist•mo- (sociais?) de produ†ƒo, que servem de bigorna e de martelo na
logie. Paris: Pandore, 1976 (1982), mesmo se outros preferem re- determina†ƒo causal das vontades humanas. A explica†ƒo social
conhecer tal distin†ƒo no trabalho de Kuhn, Thomas la Structu- nƒo valeria talvez nada, mas a causalidade objetiva nƒo valeria
re des r•volutions scientifiques, Flammarion, Paris [1962] (1983). 0
que importa ‹ a virada pela qual as humanidades e as ci•ncias so- mais tampouco. Era preciso retomar tudo do zero, e escutar no-
ciais retomam as ci•ncias exatas ao abandonar as quatro postu- vamente os prop„sitos do ator comum.
ras: da reconstru†ƒo racional, do ceticismo, do irracionalismo e Felix culpa, que permite nƒo mais acreditar na diferen†a es-
da hermen•utica, que as haviam guiado at‹ entƒo na rela†ƒo des- sencial, radical, fundadora dos fatos e dos fetiches. M as entƒo,
tas com o saber reconhecido como tal. Exagero, evidentemente, para que serve esta diferen†a se ela nƒo permite nem mesmo jus-
a import…ncia de minha disciplina ao afirmar que nƒo consegui- tificar a produ†ƒo cientŠfica?-' Porque insistir tanto sobre uma
riamos superestimar a import…ncia hist„rica! Na verdade, ela distin†ƒo absoluta que nƒo se pode jamais aplicar? Porque ela
coincidiu com a imensa reviravolta do modernismo, que lhe deu serve justamente para completar as vantagens da pr€tica atrav‹s
sentido e energia.
20. Para uma apresenta†ƒo do fracasso da explica†ƒo social afron-
tada com objetos demasiadamente complexos, ver Callon, Mi-
chele Latour, Bruno les Scientifiques et leurs alli•s. Pandore, Paris 21. Paradoxalmente, as "science studies", longe de politizar a ci•n-
(1985), Callon, Michel; Latour, Bruno (Org.). la Science telle cia, permitiram ver a que ponto todas as teorias do conhecimento,
qu'elle se fait. Anthologie de la sociologie des sciences de la langue an- desde os gregos at‹ nossos dias, estƒo sob o jugo de uma defini†ƒo
glaise. Paris: La D‹couverte, 1991. (Edi†ƒo revista e amplianda). polŠtica que obriga ‡ separa†ƒo dos fatos e dos fetiches. Liberadas da
O fracasso possui virtudes filos„ficas superiores ao sucesso, con- polŠtica, as ci•ncias voltam a ser apaixonanres e abertas a uma des-
tanto que se possa tirar dali conclus‰es. cri†ƒo antropol„gica que resta ainda ser amplamente feita.
2,' 4,
das vantagens da teoria. O duplo repert„rio dos modernos nƒo capitulo 5
pode ser desvendado pela distin†ƒo dos fatos e dos fetiches, mas Como a pr„tica dot fi`l'hes escapa „ teoria
pela segunda distin†ƒo, mais sutil, entre a separa†ƒo dos fatos e
dos fetiches, feita, teoricamente, por um lado, e a passagem da
pr€tica, que difere totalmente desta, por outro. A cren†a toma
um outro sentido entƒo: ‹ o que permite manter ‡ distancia a
forma de vida pr€tica Œ onde se faz fazerŒ e as formas de vida
te„ricas Œ onde se deve escolher entre fatos e fetiches. Ž o meio
de purificar indefinidamente a teoria, sem arriscar, entretanto,
as conseq•ncias desta purifica†ƒo.
Desde que come†amos a avaliar a pr€tica, percebemos que
o ator comum, moderno o u nƒo, pronuncia exatamente as mes-
mas palavras dos negros da Costa e dos adeptos do candombl‹, na
companhia dos quais iniciei esta pequena reflexƒo. O ator co-
mum afirma, diretamente, aquilo que ‹ a evid•ncia mesmo, a sa-
ber, que ele ‹ ligeiramente superado por aquilo que construiu. "So-
mos manipulados por for†as que nos superam", ele poderia dizer,
cansado de ser sacudido de todos os lados e de ser acusado de in-
genuidade. "Pouco importa se as chamamos divindades, genes,
neur8nios, economias, sociedades ou emo†‰es. N„s nos engana-
mos talvez sobre a palavra que designaria tais for†as, mas nƒo so-
bre o fato que elas sƒo mais importantes do que n„s." O ator co-
mum poderia continuar a dizer, ao contr€rio, "remos razƒo em di-
zer que fabricamos nossos fetiches, j€ que estamos na origem des-
sas for†as diversas das quais voc•s querem nos privar, nos fazen-
do de marionetes manipulad as pelas for†as do mercado, da evo-
lu†ƒo, da sociedade ou do intelecto. Talvez nos enganemos sobre
o nome a ser dado ‡ nossa liberdade, mas nƒo sobre o fato que agi-
mos de acordo com outros, que os chamemos divindades ou aliens.
O que fabricamos jamais possui ou perde sua autonomia".
A palavra "fetiche" e a palavra "faro " possuem a mesma eti-
mologia ambŠgua Œ ambŠgua para os portugueses como para os fi-
l„sofos das ci•ncias. Mas cada uma das palavras insiste simetrica-
mente sobre a nuance inversa da outra. A palavra "fato" parece re-
meter ‡ realidade exterior, a p alavra "fetiche" ‡s cren†as absurdas
45
44 .
do sujeito. Todas as duas dissimulam, na profundeza de su as raŠ- como Pasteur, atrav‹s de uma de suas admir€veis f„rmulas, cujo
zes latinas, o trabalho intenso de constru†ƒo que permite a verda- sentido corre sempre o risco de ser perdido: "Somos os fios de
de dos fatos como a dos espŠritos. Ž esta verdade que precisamos nossas obras". E que nƒo venham nos dizer que eles estƒo se va-
distinguir, sem acreditar, nem nas elucubra†‰es de um sujeito psi- lendo da dial‹tica, e que o sujeito, ao se autoposicionar no obje-
col„gico saturado de devaneios, nem na exist•ncia exterior de ob- to, revela a si pr„prio, alienando-se atrav‹s dele, pois o s artistas,
ao zombarem do sujeito assim como do objeto, passam justa-
jetos frios e a-hist„ricos que cairiam nos laborat„rios como do c‹u. mente entre os dois, sem tocar, em nenhum momento, nem o su-
Sem acreditar, tampouco, na cren†a ing•nua. Ao juntar as duas jeito, senhor de seus pensamentos, nem o objeto alienante.23 To-
fontes etimol„gicas, chamaremos fe(i)tiche a firme certeza que per- dos aqueles que se sentaram na frente de um teclado d e compu-
mite ‡ pr€tica passar ‡ a†ƒo, sem jamais acreditar na diferen†a en- tador, sabem que tais romancist as tinham consci•ncia do que
tre constru†ƒo e compila†ƒo, iman•ncia e transcend•ncia.` pensavam sobre aquilo que estavam escrevendo, m as que nƒo se
Tƒo logo come†amos assim a considerar a pr€tica, sem pode, por isso, confundi-los em um jogo de linguagem ou ima-
mais nos preocuparmos em escolher entre constru†ƒo e verdade, ginar que um Zeitgeist lhes diria o que esc re ver ‡ sua pr„pria re-
todas as atividades humanas, e nƒo somente aquelas dos adeptos velia, pela excelente razƒo que esses manipuladores de segunda
do candombl‹ ou dos c ientistas de laborat„rio, come†am a falar categoria nƒo teriam maior controle sobre tal Zeitgeist do que o
sobre o mesmo passe, sobre o mesmo fe(i)tiche. Os romancistas autor possui sobre o texto. Experi•ncia banal, tornada incom-
nƒo dizem tamb‹m que sƒo "levados por seus personagens"? N„s preensŠvel pela dupla suspeita da critica e remetida, por esta ra-
os acusamos, ‹ verdade, de m€ fƒ, submetendo-os primeiramen- zƒo, ao meio-sil•ncio da "simples pr€tica".
te ‡ questƒo: "Voc•s fabricam seus livros? Voc•s sƒo fabricados Por que exigir dos negros que escolham entre a fabrica†ƒo
por eles?" E eles respondem, obstinadamente, como os negros e humana dos fetiches e suas verdades transcenden tes, enquanto que
n„s, os brancos, os modernos, jamais escolhemos, exceto se nos
submeterem a essa questƒo e nos for†arem a quebrar a passagem
22. Seria necess…rio acrescentar aqui o artefato ˆ em um sentido contŠnua que, na pr€tica, acabamos de explorar? Em cada uma de
24
emprestado do inglƒs • e que designa, nos laborat‚rios, um pa- nossas atividades, aquilo que fabricamos nos supera. Do mesmo
rasita, tomado erroneamente como um novo ser • como quando
Tintin (a despeito das leis da ‚tical) tomou uma aranha que p as-
seava sobre o telesc‚pio do observat‚rio por uma estrela que 23. Cada pintor poderia dizer que sua tela ƒ "acheiropoeitos" (n€o
amea†ava a Terra. Ao contr…rio do fato, o artefato surpreende, feita pela m€o do homem), entretanto, ele n€o espera ingenua-
porque descobrimos ali a a†€o humana quando n€o esper…vamos mente, vƒ-la cair do c„u inteiramente pronta.
por isso. A palavra assegura, portanto, a transi†€o entre a surpre- 24. Explicarei, mais adiante, o sentido dessa ruptura. A fabrica-
sa dos fatos e a dos fetiches. N€o h… mais raz€o para abdicar da †€o t„cnica, apesar das aparƒncias, n€o escapa ‡ quest€o comina-
palavra "fetiche" como da palavra "fato", sob o pretexto de que t‚ria, visto que os tecn‚logos dividem-se consideravelmente en-
os modernos teriam acreditado na cren†a e quiseram desacredi- tre os que seguem os determinismos materiais da fun€•o e os que
tar os fatos para ater-se aos fetiches. Na verdade, ningu„m nun- se ligam ao arbitr…rio do capricho humano ou social da forma. So-
ca acreditou nos fetiches, e cada um preocupou-se, astuciosa- bre este dualismo ver Latour, Bruno; Lemonnier, Pierre (Org.).
mente, com os fatos. As duas palavras continuam, portanto, in- De la p rƒhistoi re aux missile s balistiq ues ˆ l'Intelli ge nce so ciale d es
tactas. Como a diferen†a entre os fonemas 'fƒ" e ' fait" nem sem- techniques. Paris: La D„couverte, 1994 e a disputatio entre os dois
pre „ audŒvel, poderiamos preferir "factiche", entretanto menos autores em Ethnologie fran€aise . v. XXVI, n. 1, p. 17-36, 1996.
elegante (factish , em ingl•s). e
4
modo que os romancistas, os cientistas ou feiticeiros e os polŠticos sua import…ncia. Se antes s„ podŠamos nos alternar violentamen-
sƒo intimados a se deitar na mesma cama de Procusto, sob pena de te entre os dois extremos do repert„rio moderno Œ ou "super€-
passarem por mentirosos. "Voc•s constroem a representa†ƒo nacio- los" por meio da dial‹tica, como o Barƒo d e Mnchhausen "su-
nal?" Œ "Sim, diriam eles, necessariamente e completamente." - pera" as leis da gravidade Œ podemos, agora, escolher entre dois
"Voc•s inventam, portanto, atrav‹s da manipula†ƒo, da propagan- repert„rios: aquele onde somos intimados a escolher entre constru-
da e do conchavo, aquilo que os representados devem dizer?" - †ƒo e verdade, e aquele onde constru†ƒo e realidade tornam-se si-
"Nƒo, somos fi‹is a nossos mandatos porque construŠmos justa- nŠnimos. Por um lado, estamos paralisados como um asno de Bu-
mente a voz artificial que eles nƒo teriam sem n„s." Œ "Eles blasfe- ridan, que deveria escolher entre fatos e fetiches; por outro, pas-
mam!", exclamariam os crŠticos. "Por que temos que ouvi-los por samos gra†as aos fe(i)tiches.
mais tempo? Eles nƒo conseguem nem mesmo, no seu illusio, per- Assim, o ator comum quando por n„s interrogado, mul-
ceber suas pr„prias mentiras!."25 Ent retanto, do mesmo modo que tiplicar€ explicitamente, e com uma intelig•ncia absurda, as for-
os politicos, condenados ao sil•ncio h€ dois longos s‹culos, se mas de vida que permitem passar, gra†as aos fe(i)tiches, sem ja-
acham todos os dias, de manhƒ ‡ noire, entre essa constru†ƒo arti- mais obedecer ‡ escolha cominac„ria do repert„rio moderno. En-
ficial e essa verdade precisa; os cientistas, obrigados a escolher en- tretanto, essas teorias refinadas continuarƒo encobertas, visto que
tre constru†ƒo e verdade (ao menos nos manuais), levam dias e o ˆnico meio de represent€-las oficialmente situa-se na escolha a
muitas noites, para construir no laborat„rio a verdade verdadeira. ser feita entre constru†ƒo e autonomia, sujeito e objeto, fato e fe-
A escolha proposta pelos modernos nƒo se d€, portanto, en- tiche. Tenhamos o cuidado em nƒo simplificar a situa†ƒo: nƒo se
tre realismo e construtivismo, ela se d€ entre a pr‡pria escolha e a pode ignorar nem a multiplicidade dos discursos que falam do
exist•ncia pr€tica, que nƒo compreende nem seu enunciado nem passe, ao se desviar da escolha moderna, nem a import…ncia da
teoria dos modernos que o briga a uma escolha, que parece nun-
ca servir para nada. Existe algo de sublime na c ompara†ƒo desta
25. Pode-se ler em Bourdieu "La delegation et le f„tichisme po- colcha de discursos, de dispositivos, de pr€ticas, de reflex‰es re-
litique". In Choses dites. Paris: Minuit, 1987. p. 185-202, a ex-
posi†€o desse desprezo pela representa†€o politica na qual o an-
finadas, pelas quais os "zatoreszelesmesmos" declaram a evid•n-
*
48 49.
Avancemos um pouco . Ž a no†ƒo mesmo de pr€tica que cap†tulo 6
prov‹m da exig•ncia imposta pelos modernos. Na falta de po- Como estabelecer o •l de um antifetjchjsta
dermos nos exprimir segundo os termos cominat„rios do pensa-
mento crŠtico, somos obrigados a continuar fazendo o que sem-
pre fizemos, mas, clandestinamente.27 A pr€tica ‹ a sabedoria dis-
si mulada do passe que insiste em dizer (mas como e la nƒo pode
mais diz•-lo, ela se contenta justamente em faz•-lo, em murmu-
r€-lo ‡ meia voz) que constru†ƒo e realidade sƒo sin‚nimos. Es-
tranha clandestinidade, dirŠamos, j€ que ela ‹ tamb‹m, na expe-
ri•ncia comum, um segredo de polichinelo, confessado de mil
maneiras e segundo mil canais. Sim, mas a teoria continua, e por
raz‰es tƒo boas que precisamos agora compreender e nƒo levar a Para compreender a efic€cia misteriosa desta separa†ƒo en-
tre teoria e pr€tica, seria preciso poder dispor de descri†‰es de an-
s‹rio essas mˆltiplas confiss‰es. Chamaremos agora cren†a, a
opera†ƒo que permite manter uma teoria oficial o mais longe
tifetichistas. PoderŠamos, entƒo, co ntra-analisar os modernos fa-
possŠvel de uma pr€tica oficiosa, sem nenhuma rela†ƒo entre as zendo a descri†ƒo etnogr€fica de seus 28
gestos iconoclastas. Como
duas al‹m desta preocupa†ƒo apaixonada, ansiosa, meticulosa, nƒo dispomos ainda desses escudos, pelo que sei, escolhi junto a
um romancista da ndia contempor…nea uma anedota esclarece-
para manter a separa†ƒo. Chamaremos agnosticismo a descri†ƒo
dora." Jagannath era um br…mane do tipo modernizador. Ele
antropol„gica desta opera†ƒo.
queria destruir os fetiches e liberar da aliena†ƒo os p€rias empre-
gados por sua tia, for†ando-os a tocar a ped ra sagrada das nove
cores, o shaligram de seus ancestrais. Um fim de tarde, ap„s o tra-
pensamento crŠtico, as form as de vida comuns, que vƒo desde a balho, ele agarrou a pedra do altar, depois, diante de sua tia e do
sala dos fundos at‹ a vitrine de uma loja. Donde, as no†‰es de
media†ƒo, de ator-rede, de tradu†ƒo, de modos de coordena†ƒo,
de simetria, de nƒo-modernidade, no†‰es infrate„ricas, que nƒo
visam nem a expressƒo Œ muito bem mantida pelos atores Œ nem 28. A. hist„ria da arte ofereceria, contudo, um
rico repert„rio
a explica†ƒo Œ igualmente nas mƒos dos atores Œ m as somente para esta antropologia hist„rica da iconoclasia antiga e moderna.
sua compila€ao Œ que os atores pod eriam de fato encon trar, gra†as Ver Christin, Olivier. Une rƒiolution symbolique. Paris: Minuit,
ao leve excedente que lhes ‹ oferecido pel as humanas ci•ncias. O 1991; Koerner, Joseph Leo. "The Image in Quotations: Cra-
soci„logo comum se encontra, portanto, no mesmo nŠvel dos ato- nach's Portraits of Luther Preaching", In Shop Talk. Studies in Ho-
res comuns, como os negros e os brancos e, pelas mesmas raz‰es. nor of SeymourSlive. Mass: Cambridge, Harvard University Press,
27. Coisa curiosa; o pragmatismo, que poderiamos acreditar ser 1995. p. 143-6, assim como os trabalhos de Dario Gamboni
a filosofia da pr€tica, continua de tal modo intimidado pela po- (1983). "M„prises et m„pris. l„ments pour une „tude de 1'ico-
si†ƒo de autoridade de seus advers€rios que ‹ obrigado a descre- noclasrne contemporain", Actes d e la re cherche en sciences sociales,
ver a pr€tica sob urn aspecto modesto, limitado, utilit€rio, hu- vol. 49, p.2-28. Ver tamb‹m Heinich, Nathalie (1993). "Les ob-
manista, c‚modo, ocupando assim, sem questionamento, o lugar jets-personnel. F„tiches, reliques et oeuvres d'art". Sociologic de
que lhe foi preparado pela filosofia crŠtica. A mod‹stia s„ ‹ uma Part, v. 6, p. 25-56.
virtude filos„fica se ela decide, por si pr„pria, a maneira pela 29. U.R. Anantha Murthy Bharathipura, In:
Anoth er In dia . Pen-
qual se privar€ de fazer seu dever ou de propor fundamentos. guin, Harmondsworth: 1990. p. 98-102. (tradu†ƒo do autor).
sacerdote, horrorizados, quis lev€-la aos servos, reunidos em um sinar-lhes n€o servira para nada. Ele amea†ou trƒmulo: "Toquem,
canto qualquer. Mas, no meio do p€tio, Jagannath hesitou a res- toquem, vocƒs VAO TOCA-LA!" Foi como se o grito de um lou-
co animal enfurecido o dilacerasse por inteiro. Ele era s‚ violƒn-
peito do que estava fazendo, entƒo parou e se indagou. cia; ele n€o sentia nada al„m disso. Os p…rias o achavam mais
amea†ador que Bhutaraya [o espirito demˆnio do deus local]. O
As palavras pararam na sua garganta. Esta pedra n€o „ nada, ar exalava um odor infecto de seus gritos. "Toquem, toquem, to-
mas meu cora†€o se ligou a ela e peguei-a para vocƒs: toquem- quem!" Para os p…rias, a tens€o era muito forte. Mecanicamente,
na, toquem aquilo que se tornou o ponto vulner…vel de meu es- eles avan†aram, tocaram de leve aquela coisa que Jagannath lhes
pirito. Toquem-na! Aqueles que est€o atr…s de mim [minha tia e apresentava e partiram no mesmo instante.
o sacerdote] procuram me deter atrav„s das inumer…veis liga†‹es Esgotado pela violƒncia e pela decep†€o, Jagannath lan†ou o
de obriga†€o. Bom, o que vocƒs est€o esperando? Qual „ o pre- shalig ram para o lado. Uma grande angŠstia terminara de modo
sente que eu lhes trago? N€o sei ao certo: isto se tornou um sha- grotesco. Mesmo a tia podia continuar humana quando tratava
ligram porque o apresento como uma
pedra. Se voc•s o tocarem, os p…rias como i ntoc…veis. Ele, por sua vez, perdera sua huma-
entƒo ele se tornar… uma pedra tamb„m para minha tia e para o nidade, por um instante. Ele tomara os p…rias por coisas despro-
sacerdote. Porque eu a ofereci , porque vocƒs a tocaram, porque vidas de significa†€o. Ele meneava a cabe†a sem perceber que os
todos foram testemunhas deste acontecimento, ao cair da noite, p…rias haviam partido. A noite caŒra quando compreendeu que
que esta pedra se tr an sforma em shaligram! Que este shaligram estava sozinho. Desgostoso de sua figura come†ou a andar sem
se transforme em pedra! (p. 101) rumo. Ele se indagava: "quando os parias cocaram a pedra, per-
deram, tanto quanto eu, sua humanidade? Estamos mortos?
Mas, para grande surpresa de Jagannath, destruidor de Onde est… a falha nisso tudo, em mim ou na sociedade?" N€o
Šdolos, libertador, antifetichista, os p€rias recuaram, aterroriza- havia resposta. Ap‚s uma longa caminhada, ele voltou para
casa, aparvalhado. (p. 102)
dos. Ele ficou sozinho, no meio do p€tio, com u m objeto meio-
pedra, meio-divindade; o sacerdote e a tia gritando de vergonha
atr€s dele, enquanto aqueles que ele queria libertar se amontoa- O golpe que Jagannath destinou ao fetiche, ao Šdolo, ao
vam o mais lo nge possŠvel do sac rificador sacrŠlego . passado, ‡s correntes da servidƒo, foi desviado. O que jaz agora,
destruido, disperso, n€o „ o fetiche, mas a sua humanidade,
Jagannath tentou seduzi-los. Ele proferiu em seu tom profes- como a dos p€rias, de sua tia e do sacerdote. Ele acreditou ter
soral: "E s‚ uma pedra Toquem-na e vocƒs ver€o bem. Se vocƒs destruŠdo o fetiche, e foi o fe(i)tiche que se rompeu. De repente,
n€o a tocarem, ser€o sempre pobres homens". ele se tornou um "animal selvagem", e o s p€rias, "criaturas hor-
Ele n€o compreendia o que acontecia com os p…rias. Todo o riveis". A objetividade estˆpida da pedra, aquela que Jagannath
grupo amontoava-se o mais longe possŒvel, assustado, sem ousar queria faz•-los verificar com suas pr„prias mƒos, passou pelos
fugir ou ficar. Como ele desejara, contudo, este momento sagra- servos, eles pr„prios transformados em "coisas desprovidas de
do! Este momento quando os p…rias tocariam, enfim, a imagem
de Deus. Ele falou-lhes corn u rn a voz raivosa: "V€o! Toquem-na"!
significa†ƒo". Invertendo os dons m€gicos do rei Midas, Jagan-
Jagannath avan†ou em dire†€o a el es. Eles recuaram. Ele se sen-
nath fez do shaligram algo que transforma em pedra aqueles que
tiu tomado por uma crueldade monstruosa. Os p…rias lhe parece- o tocam para dessacraliz€-lo. Ele queria dissipar a ilusƒo dos
ram como criaturas horrŒveis que rastejavam sobre seus ventres. deuses e, amarga ironia!, aqui est€ ele, mais " amea†ador que
Ele mordeu seu l…bio e ordenou com uma voz firme e inflexŒvel: Bhutaraya". Se ele conseguiu enfim, que os p€rias lhe obedeces-
"Pilla! Toque-a, sim, toque-a!". sem, ‹ porque eles cederam ao terror desta coalizƒo de divinda-
Pilla to contramestre] continuva em p„, piscando os olhos. des amea†adoras, aquelas de seu senhor, acrescentadas ‡s do es-
Jagannath sentiu-se esgotado e perdido. Tudo o que tenta ra en-
pŠrito-dem‚nio. E ainda, os servos s„ lhe obedeceram "mecani- cobre ao falhar seu golpe: nƒo se trata absolutamente de cren†a,
camente". Animais, coisas, m€quinas, eis que eles passam por mas de atitude. Nƒo se trata da pedra-fetiche, mas de fe(i)tiches,
todas as nuan†as do inumano. Mais grave ainda, o senhor e os esses seres deslocados, que nos permitem viver, isto •, passar con-
servos "estƒo mortos", porque o fe(i)tiche, uma vez destruŠdo, tinuamente da constru†ƒo ‡ autonomia sem jamais acreditar em
nƒo consegue mais manter, externamente, o que os tornava hu- uma ou em outra. Gra†as aos fe(i)tiches, constru†ƒo e verdade per-
manos. "Onde est€ a falha?", pergunta-se Jagannath. O humano manecem sin‚nimos. Uma vez quebrados, tornam-se ant‚nimos.
nƒo residiria mais no sujeito liberado de suas correntes, rio des- Nƒo se pode mais passar. Nƒo se pode mais criar. Nƒo se pode
truidor de Šdolos, no mode rnizador que possui um martelo, mas mais viver. Ž preciso, entƒo, restabelecer os fe(i)tiches.
em outro lugar, ligeiramente em outro lugar? Ž preciso real- Gra†as a Jagannath a efic€cia dos fe(i)tiches torna-se agora
mente manter-se ‡ sombra dos fe(i)tiches para nƒo morrer? Para mais clara. Partimos da escolha cominat„ria que impunha deci-
nƒo se tornar bicho, pedra, animal, m€quina? E preciso uma dir se construŠamos os fatos e os fetiches ou se, ao contr€rio, eles
si mples pedra para nƒo se tornar duro e frio como uma pedra? nos permitiam atingir realidades que ningu‹m jamais cons-
Ao se e nganar de alvo, o indiano modernizador nos ensina truiu. Percebemos que essa escolha jamais ‹ obedecida na pr€ti-
muito sobre ele pr„prio, mas, sobretudo, sobre os brancos. Ž esta ca, cada um passa por outro lugar, discretamente, sem dificulda-
li†ƒo que precisamos seguir. 30 Para que sejam cientistas, criado- des, atribuindo, no mesmo tom e aos mesmos seres, a origem
res, politicos, cozinheiros, sacerdotes, fi‹is, o peradores, artesƒos, humana assim como a autonomia. Para falar de filosofia, nin-
salsicheiros e fil„sofos, ‹ preciso que os modernos passem, como gu‹m nunca soube distinguir entre iman•ncia e transcend•ncia.
todos, da constru†ƒo ‡ autonomia. Se vivessem sem os fe(i)ti- Mas essa obstina†ƒo em recusar a escolha, compreendemos ago-
ches, os brancos nƒo poderiam viver, eles seriam m€quinas, coi- ra, sempre existiu, como uma simples pr€tica, como aquilo que
sas, animais ferozes, mortos. nƒo pode ser acolhido nem com palavras, nem na teoria, mesmo
Nƒo lhes ‹ pedido, por isso, que "acreditem" nos fetiches, se os "zatoreszelesmesmos" nƒo param de diz•-lo e de oferecer a
que atribuam almas ‡s pedras, segundo a horrŠvel cenografia do sua descri†ƒo com grande luxo de precis‰es."
antifetichismo. Justamente, o shaligram • uma pedra, apenas uma O golpe em falso do destruidor de Šdo los, como a felix cul-
pedra; todos concordam com isso, s„ o denunciador, o destruidor pa dos estudos sobre as ci•ncias, nos permitirƒo examinar defi-
de Šdolos nƒo o sabe. Ele aprendeu isso muito tarde. Ele equivo-
ca-se com os gritos do sacerdote e de sua tia. Jagannath acredita
que eles assistem, horrorizados, a um sacril‹gio libertador. Ora, •
31. Isto torna a generalizar, como Michel Callon e eu freqen-
por ele, somente por ele que os dois se sentem cobertos de vergo- temente mostramos, a virada etnometodol„gica, estendendo-a,
nha. Como ele pode conferir-lhes sentimentos tƒo terrŠveis; como por interm‹dio da semi„tica, ‡ metafisica, como ˆnico organon ƒ
ele pode atribuir-lhes a adora†ƒo das pedr as, a idolatria monstruo- nossa disposi†ƒo que pode conservar, sem assombro, a diversida-
sa? O sacerdote, a tia e os p€rias j€ sabiam o que J agannath des- de dos modos de exist•ncia Œ ao pre†o, ‹ verdade, da transposi-
†ƒo para uma forma textual e para uma linguagem; restri†ƒo que
procuramos contudo superar, estendendo ‡s pr„prias coisas as
defini†‰es demasiado restritivas da semi„tica. RecaŠmos, entƒo,
30. Sobre os p€ri as, ver o admir€vel livro de Viramma, Racine, sobre as entidades que nos interessavam desde o inŠcio Œ sob o
Josiane, Racine, Jean-Luc Une vie de paria. Le rire des asservis. bide vago nome de ator-rede Œ e que sƒo, a um s„ tempo, reais, so-
du Said, Paris: Plon-Terre Humaine, 1995. ciais e discursivas.
nitivamente o antifetichismo, a fim de descrever, do exterior, o capitulo 7
aparato da cren†a. A antropologia sim‹trica possui agora um Como representar
~
~
~e(i)tiches clivados
operador, o fe(i)tiche, que vai ajud€-la a retomar o trabalho de
compara†ƒo, mas sem se perder nos d‹dalos do relativismo cul- dose~' nos
tural e sem mais acreditar na cren†a. Ao levar o agnosticismo a
este ponto, nƒo temos mais que nos opor aos modernos sem fe-
tiches, revelando aos olhos dos negros e dos p€rias, ora a realida-
de exterior, sem disfarces, ora o abismo de suas pr„prias repre-
senta†‰es interiores. Nƒo temos mais que ridicularizar os mo-
dernos que acreditariam no antifetichismo tƒo ingenuamente
quanto os negros acreditavam em seus fetiches e as velhas tias Zomba-se, ‡s vezes, do car€ter grosseiro dos fetiches, tron-
em seus shaligrams. Os modernos t•m tamb‹m um fe(i)tiche,
32
cos mal esculpidos, pedras mal talhadas, m€scaras caricatas.
apaixonante, sutil, trickster astucioso. Resta esbo†ar rapidamen- Desculpem-me, portanto, propor uma descri†ƒo sobre os fe(i)ti-
te sua forma e compreender sua efic€cia. ches modernos tamb‹m desajeitada, um esquema sobre Macin-
tosh muito pouco desbastado. A particularidade interessante de
nossos fe(i)tiches reside no fato que n„s os quebrantos duplamen-
te, uma primeira vez verticalmente, uma segunda vez lateral-
mente. A primeira ruptura permite separar, violentamente, o
p„lo sujeito e o p„lo objeto, o mundo das representa†‰es e o das I,b
coisas. A segunda, separa obliquamente, de modo mais violento
ainda, a forma de vida te„rica, que leva a s‹rio esta primeira dis-
tin†ƒo dos objetos e dos sujeitos e, uma forma de vida pr€tica,
completamente diferente, atrav‹s da qual conduzimos nossa
exist•ncia, muito tranqilamente, confundindo sempre o que ‹
fabricado por nossas mƒos e o que est€ al‹m de nossas mƒos."
77
preparados para a morte do homem desde o DEUG". Felizmen- mo um empurrƒozinho, para que ele aparecesse como um ser
te, tais procedimentos nos sƒo interditados desde o pequeno es- vivo. Entretanto, Pasteur pe de que se ide ntifique a esse fermen-
to toda autonomia da qual ele • capaz. Os adeptos do candombl‹
c…ndalo assinalado anteriormente: a felix culpa da antropologia nƒo pretendem, de modo algum, que su as divindades lhes falem
das ci•ncias. Seria preciso, com efeito, falando s‹rio, acreditar diretamente por uma voz caŠda do c‹u, j€ que confessam, tam-
em uma ou nas v€rias ci•ncias sociais ou naturais, importadas,
b‹m ingenuamente, que suas divindades arriscam se tornar, na
no todo ou em parte, para calar os faladores. Mas passar brutal- falta de uma t‹cnica, uma "esp‹cie em via de extin†ƒo". Entre-
mente dos sujeitos aut‚nomos aos objetos cientificos que o s de- tanto, em suas bocas, essa confissƒo refor†a, ao inv‹s de enfra-
terminam, prolongaria o antifetichismo ao inv‹s de livrar-se quecer, a pr„pria exist•ncia da divindade que lhes fala. A tia de
dele. Nƒo queremos confundir Pasteur, atento aos gestos preci- Jagannath nƒo pede que a pedra seja outra coisa al‹m de uma pe-
sos que revelam seu fermento, canto como nƒo desejamos perder dra. Ningu‹m jamais manifestou, concretamente, uma cren†a
nosso adepto do candombl‹, que fabrica sua divindade, ou igno- ing•nua em um ser qualquer.4 Se existe cren†a, ela ‹ a atividade
rar como os ancestrais de Jagannath fizeram de uma simples pe- mais complexa, mais sofisticada, mais critica, mais sutil, mais
dra aquilo que os mant•m vivos. Nossa teoria da a†ƒo de ve reu- reflexiva que h€. Mas esta sutileza nƒo pode jamais se manifes-
5
nir exatamente o que eles produzem como alga particular, no mo- tar caso se procure, em primeiro lugar, fragment€-la em objetos-
mento em que sƒo ligeiramente superados por suas a†‰es. causa, em sujeitos-fonte e em representa†‰es. Privar a cren†a de
Curiosamente, a via dos fe(i)tiches (parte de baixo da figura sua ontologia, sob o pretexto que ela tomaria lugar no interior do
8) parece muito mais simples, mais econ‚mica, mais razo€vel, sim, sujeito, ‹ desconhecer, ao mesmo tempo , os objetos e os atores
mais razo€vel. Ao inv‹s de dedicar-se, primeiramente, a objetos- humanos. E nƒo conseguir atingir a sabedoria dos fe(i)tiches.
causa, que preenchem inteiramente a totalidade do mundo exte-
rior; em segundo lugar, a sujeitos-fonte, dotados de uma interiori-
dade e abarrotados de fantasias e emo†‰es; em terceiro lugar, a re- 4. A cada ano, cada um dos exemplos can‚nicos e revirado pela
presenta†‰es mais ou menos arbitr€rias, que tateiam, com maior ou historiografia moderna, como no admir€vel exemplo estudado
por Russel, Jeffrey Burton Inventing Flat Earth. Columbus and
menor sucesso, para estabelecer uma liga†ƒo fr€gil entre as ilus‰es Modern Historians, New York: Praeger, 1991. Entretanto, como
do eu e a dura realidade conhecida somente pelas ci•ncias; em se zombou desses monges, bastante ing•nuos, por acreditarem
quarto lugar, a nov as determina†‰es causais, a fim de explicar a ori- literalmente na terra plana! O autor prova, com brio, que essa
gem arbitr€ria destas representa†‰es; pot que nƒo abandonar a du- cren†a na cren†a ing•nua data do s‹culo XIX, quando ela nƒo ti-
pla no†ƒo de saber/cren†a, e povoar o mundo com as entidades de- nha, ali€s, nada de ing•nuo, j… que ela participava da bela ceno-
senfreadas3 que saem da boca dos "zatoreszelesmesmos"? grafia das Luzes, que emergia dos periodos obscuros.
5. Uma obra para mim decisiva, a de Darbo-Peschanski, Claude
Pasteur nƒo pede que seu fermento de €cido T€tico seja ex-
terior a ele, j€ que disp‰e do mesmo no laborat„rio e, em fun†ƒo le Discours du particular. Essai stir 1'enqu€te herodot•enne. Paris: Le
Seuil (des Travaux), (1987), pode servir de m‹todo geral para
de seus preconceitos, confessa ingenuamente, que lhe deu mes- reunir a diversidade de posi†‰es que a no†ƒo de cren†a destruŠa.
Para exemplos que nos sƒo mais pr„ximos, ver Gomart, Emi-
lie(1993). Enqu€te s tir le travail des hom•opathes. DEA-Ecole des
haures „tudes en sciences sociales; Remy, Elizabeth (1992), Des
* Diploma de estudos universit€rios gerais. ( N.T.)
3. Sobre esta no†ƒo ver (1994), "Note sur certains objets cheve- vipŠres ldch•es par helicoptŠre, anthropologie d'un ph•nom•ne appel• ru-
rneur. (doutorado). Universir„ Paris-V.
lus". Nouvelle revue d'ethnopsychiatrie, v. 27, p. 21-36.
79
O prov‹rbio chin•s, "Quando o s€bio mostra a Lua, o im- das, que eles existam sob a forma de fatos brutos, continuos, obstina-
becil olha para o dedo", se aplica primorosamente ‡ atitude de- dos, inflexŠveis. Quando Elizabeth Claverie segue em peregrina†ƒo
nunciadora do pensamento crŠtico. Ao inv‹s de olhar para o que a Medjugorje para ver a apari†ƒo da Virgem Maria, ao mei o- dia em
chama a aten†ƒo apaixonada dos atores, o antifetichista se cr• ponto, ela nƒo se comporta como o idiota do prov‹rbio chin•s, e nƒo
muito astucioso, porque denuncia, com um dar de ombros, o ob- come†a a se dizer, pavoneand o-se de sua superioridade cientŠfica:
jeto da cren†a Œ que sabe, pela ci•ncia infusa, ou antes, confusa, "Como bem sei que a Virgem nƒo existe e nem aparece, vou tentar
que ele nƒo existe Œ e dirige sua aten†ƒo para o dedo, depois para somente compreender como os humildes trabalhadores franceses
o punho, para o cotovelo, para a medula espinhal, e, de l€ para o podem acreditar na sua exist•ncia e por quais raz‰es". 7 Ela segue o
c‹rebro, depois para o espŠrito, de onde torna a descer, em segui- dedo que indica a Virgem, atitude extremamente sensata, e sobre-
da, ao longo das causalidades objetivas oferecidas pelas outras tudo, extre mamente s€bia. Sim, claro, a Virgem aparece, todo mun-
ci•ncias, na dire†ƒo da educa†ƒo, da sociedade, dos genes, da evo- do a v•, toda a multidƒo, no crepitar das Polaroids, obt‹m a prova
lu†ƒo, em suma, do mundo pleno, que as fantasias dos sujeitos dessa apari†ƒo. Elizabeth tamb‹m a v•: como nƒo v•-la? Mas caso
nƒo conseguiriam amea†ar. Uma hip„tese muito mais simples, agora se escute as vozes mˆltiplas que se elevam na multidƒo em
mais inteligente, mais econ‚mica e, finalmente, por que nƒo prece, assim como o murmˆrio emocionado no trem que reconduz
diz•-lo, mais cientŠfica, consiste em dirigir o olhar, como o pro- os peregrinos para Paris, percebe-se, com surpresa, que em nenhum
v‹rbio nos convida a fazer, nƒo apenas em dire†ƒo ‡ Lua,' mas momento os fot„grafos esperavam ver a Virgem se fixar, como uma
tamb‹m na dire†ƒo dos fermentos de €cido l€tico, das divindades, est€tua de Saint Sulpice, no papel fotogr€fico. A Virgem nƒo exige,
dos buracos negros, dos genes desordenados, das Virgens apare- de modo algum, ocupar a posi†ƒo de coisa a ser vista Œ ou de ilusƒo
cidas, etc. Que temos a perder? Do que temos medo? Que o a ser denunciada; o fermento de Pasteur nƒo exige, em momento al-
mundo seja demasiado populoso? Ele nƒo ser€ jamais o suficien- gum, para que possa realmente existir, o papel de objeto construŠ-
re. Ž provavelmente o vazio destes espa†os que nos aterroriza. As- do Œ ou de objeto descoberto; o shaligram nƒo exige jamais ser ou-
si m como o mundo escol€stico tinha horror ao vazio, o mundo tra coisa al‹m de urna simples pedra. O envolt…rio ontol…gico criado
das explica†‰es sociais e causais tem horror a essas ontologias de pela Virgem salvadora, seu "caderno de encargos", pode-se ousar di-
geometria variˆvel, que obrigariam a redefinir tanto a a†ƒo como os zer, obedece a exig•ncias que nƒo recortam, em nenhum momento,
atores, e que se estenderiam pelo espa†o intersideral como os pla- os dois p„los da pobre exist•ncia e da pobre representa†ƒo. 8 Ela fa z
netas e as gal€xias, irredutŠveis, umas ‡s outras.
O medo de nƒo restringir suficientemente a popula†ƒo desses
seres, abandonando a diferen†a ent re epistemologia e ontologia, * Pequena localidade ao sul da B„snia-Herzegovina. Local de in-
cren†a e saber, vem apen as , felizmente, do alarido feito pelo pensa- tensa peregrina†ƒo, desde 1981, quando seis jovens declararam
mento crŠtico. Ž o barulho do pistƒo da bomba aspirante e refluen- ter visto a Virgem Maria que, segundo relatam, lhes envia men-
te e, somente ele, que nos impede de perceber que os "zacoreszeles- sagens diariamente.
7. Claverie, Elizabeth (1990). "La Vierge, le d‹sordre, la criti-
mesmos", raramente exigem dos seres com quem dividem suas vi- que". Terrain, v. 14, p. 60-75, e (1991), "Voir apparaitre, regar-
der voir". Raisons Pratiques, v. 2, p. 1-19.
8. Ver o modelo proposto em "Did Ramses II Die of Tuberculo-
6. Sabe-se do sofrimento necess€rio a Galileu e a seus pares para sis? On the Relative Existence of Existing and Non-existing Ob-
dirigir para a Lua o dedo e a ocular do telesc„pio. jects". In Daston: Lorraine (ed.), no prelo. ˜
soas que Pierre Lagrange estuda com a aten†ƒo apaixonada de versalidade de to dos os contra-e xemplos, que derrubam assim o
um colecionador, procuram efetivamente fixar entidades que te- princŠpio da indu†ƒo, determina um objeto exagerado, interes-
riam aparentemente as mesmas propriedades de exist•ncia, o sante e muito! Existem boas raz‰es polŠticas para acreditar na di-
mesmo caderno de encargos, que as entidades que, segundo os feren†a entre razƒo e polftica. 10
epistem„logos, saem dos laborat„rios.' Coisa curiosa, eles sƒo
chamados de "irracionalistas", quando seu maior defeito prov‹m
antes da confian†a apaixonada que manifestam em um m‹todo
cientifico que data do s‹culo XIX, na explora†ƒo do ˆnico modo
de exist•ncia que eles conseguem imaginar: o da coisa j€ l€, pre-
sente, esperando ser fixada, conhecida, inflexŠvel. Ningu‹m ‹
mais positivista que os criacioniscas ou os uf„logos, visto que s„
conseguem imaginar outras maneiras de ser e de falar descreven-
do matters of fact. Nenhum cientista ‹ tƒo ing•nuo, ao menos no
laborat„rio. De modo que, paradoxalmente, o ˆnico exemplo de
cren†a ing•nua que possuŠmos parece vir dos irracionalistas, que
pretendem constantemente derrubar a ci•ncia oficial com fatos
obstinados, encobertos por um compl‚.
86
gem tradicional da ci•ncia nos descrevera este baixo mundo re- capitulo I I
pleto de causalidades eficazes), e nƒo podendo tampouco nos re- Como transferis pavores
signarmos em aloj€-las no …mago do nosso eu, transformando-
as em fantasias, complexos ou jogos de significantes, s„ tŠnha-
mos como recurso inventar um outro mundo, preenchido por
deuses, diabos, espŠritos que, nas sess‰es de espiritismo se ma-
nifestam com golpes sobre um objeto ou sˆcubos, bricabraque
ex„tico, abrigo da gnose, celeiro de toda mercadoria ordin€ria
New Age. Falar de mist‹rio, ou pior, falar ‡ meia-voz com uma
tonalidade misteriosa, seria blasfemar contra todos os fe(i)ti-
ches, contra aqueles das divindades, certamente, mas tamb‹m
contra aqueles dos laborat„rios. Dividir o mundo em alto e bai- Uma vez que as divindades estejam instaladas na exist•ncia,
xo, em natureza e sobrenatureza, seria impedir que se com- podemos registrar no caderno de encargos que se pode descrev•-
las com uma linguagem exata e precisa, sem utilizar nenhuma
preendesse, ao mesmo tempo, P asteur e seu fermento, o pacien- das cenografias do exotismo e, sem ter necessidade de acreditar
te e suas divindades, o peregrino e sua Virgem, Jagannath e sua
pedra. Nƒo existe outro mundo senƒo o baixo mundo. Nƒo se que elas vieram de um outro mundo, diferente do nosso Œ supos-
tem tampouco que sucumbir ‡s fantasias cio eu. Uma vez exa- to, por contraste, plano, baixo, pleno, causal e razo€vel. O que ‹
minadas estas tr•s concep†‰es, nƒo existe mais mist‹rio parti- preciso acrescentar ainda para que o modo de exist•ncia dessas di-
cular, ou, ao menos o mist‹rio torna-se, como o bom senso, a vindades seja distinguido do modo de exist•ncia dos outros? De-
coisa mais bem partilhada no mundo. Somos todos, como foi paro-me aqui com uma nova dificuldade. Devo acreditar no que
os ernopsiquiatras dizem sobre o que fazem, ou seguir suas pr€-
mencionado, "superados pelos acontecimentos". ticas? Nƒo esque†amos que, entre os modernos, as partes alt as e
baixas dos fe(i)tiches se op‰em completamente. O que • verda-
deiro para os fil„sofos das ci•ncias pode ser tamb‹m para os et-
nopsiquiatras. Ora, a consulta da qual participei realizou-se na
periferia, ela reuniu etnias diversas que jamais teriam se encon-
trado fora do solo da Repˆblica, ela foi feita em v€rias lŠnguas, foi
gravada em video, foi reembolsada pela previd•ncia social, al-
guns migrantes que ali vƒo, estƒo h€ muito tempo integrados ‡
sua nova terra de acolhida, enfim, sƒo tratados ali tamb‹m, aque-
les que v•m da Beauce e da Borgonha`. DifŠcil imaginar um dis-
boras, de em pedras. O melhor que que emprego nƒo sƒo terrivelmente inadequados, curar equivale a
o Be rem-
shaligrams d e f r
domŠnio de tais for†as, ‹ persistir por um pouco
opo, tomando algumas precau†‰es a mais, "tomando cuidado". fazer passar o pavor, vindo de lugar nenhum, de outro lugar, mais
distante, nƒo importa de onde, mas sobretudo, sobretudo que o pa-
Michel Serres definiu a religiƒo como "o contr€rio da neglig•n- vor nƒo se detenha, que ele nƒo se fixe no paciente, tomando-o por
cia'. Existe efetivamente religiƒo na constante aten†ƒo em rela- um outro, e o leve, substituindo-o por outros, em sua louca s‹rie
†ƒo aos perigos que nos amea†ariam, porque aqueles a quem de- de substitui†‰es, sempre diferentes. Para isso ‹ preciso valer-se de
vemos nossa exist•ncia nƒo poderiam vir em nosso socorro. artimanhas. A artimanha reside neste modo de ser, de um lado a ou-
Arrisquemos um termo, enfim, para definir tais divinda-
retomando bela explica†ƒo tro. Ž preciso enganar o pavor, ‡s cust as de uma complicada nego-
des. Proponho cham€-las pavores, cgem cia†ƒo, da qual se d€ conta, com frequ•ncia, por termos empresta-
dada por Tobie Nathan para esta palavra, que tel a
2 Os pavores nƒo neces- dos das transa†‰es, das negocia†‰es, das trocas. Tomemos antes a
de nƒo supor nem ess•ncia, nem pessoa: palavra encantamento, dando-lhe novamente o sentido vigoroso que
"II pleut' ("chove").
sitam mais do sujeito pessoal do que a frase a lŠngua perdeu. O encantamento permite ser astucioso para com
Lembremos que o caderno de encargos q ue procuro estabelecer o pavor, segundo a f„rmula bastante geral: "Se voc• pode me tomar
e que define os modos particulares de ser dos pavores nƒo con- por um outro qualquer, voc• tomar€ talvez este outro por mim".
duz ‡ exist•ncia bruta e obstinada da subst…ncia. Os pavores
lcode- ArtifŠcio necess€rio, cuja mitologia oferece centenas de exemplos.
vem, nƒo somente inverter bruscamente o sentido p~a
mal‹ az r u
Imaginemos entƒo, a forma provis„ria deste quase-sujeito d as di-
ben‹fico de suas rela†‰es, mas devem tamb‹m rov‹m do fz o e
vindades, que substituiria o sujeito-da-psicologia: cercado por pa-
passar. Sua principal particularidade, com efeito, p vores que podem possuŠ-lo, por e ngano, apelando para os contrapa-
que eles nƒo se det•m jamais no sujeito que devem absoluta- vores que sƒo objeto de uma preocupa†ƒo contŠnua, o paciente cria
mente ignorar, para que ele permane†a salvo, um momento a
mais. Os pavores passam, atravessam, saltam sobre o sujeito;
caso eles se prendam a este Ultimo, ser€ por engano, quase por 24. Ou melhor, "transpavores" (em franc•s, "transfrayeurs"). Nƒo
inadvert•ncia; caso eles o possuam, ser€ porque se enganaram de h€ tanto perigo quanto se acredita, na reutiliza†ƒo da antiga lingua-
alvo. S‹rie de substitui†‰es sem lei, os pavores podem tr ansmu- gem da psican€lise pois, no final das contas, urna vez reintroduzi-
tar, a todo instante, qualquer ser em outro ser. Donde o terror do o divƒ, o consult„rio, o dinheiro, as associa†‰es profissionais, as
que, com razƒo, suscitam." controv‹rsias, as obras, o estilo, os ancestrais, isso termina por criar
um dispositivo tƒo artificial, tƒo pouco psicol„gico e, portanto, tƒo
interessante quanto o da etnopsiquiatria. Vantagem da simetria, to-
dos os "redutores de cabe†a" podem ser estudados da mesma forma.
A etnopsiquiatria en trega sua cultura material e coletiva a uma pr€ti-
ca psicanalitica cuja teoria pretendia que ela repousasse sobre o s su-
jeitos e que ela fosse uma ci•ncia sedenta de verdade! E importan-
Nathan, Tobie. 1994. op.cit.
22. A te notar que a simula†ƒo, como os fe(i)tiches, recusa obedecer a es-
livre associa†ƒo apenas mant‹m o eco longŠnquo destas
23. colha cominat„ria: ‹ real, ‹ simulado? No laborat„rio, como sobre
substitui†‰es ontol„gicas que sƒo uma forma, entre v€rias outras,
de explora†ƒo do ser-enquanto-outro. E uma outra versƒo da ar- o divƒ, a simula†ƒo recusa justamente escolher entre o artificial e a
ticula†ƒo que "faz-falar" no laborat„rio artificial do divƒ. verdade. V er Borch-J acobsen, 19 95. op .cit.
9
invisiveis porque sua subst…ncia incluiria algum mist‹rio, as
um envolt„rio bastante frouxo, revolvido, caso se possa dizer, por transfer•ncias de pavores mant•m tal invisibilidade pela clareza
urna quantidade de encantamentos, onde cada um afasta as for†as mesmo de suas condi†‰es de satisfa†ƒo. O mist‹rio, dito de outra
por meio de uma artimanha. Nƒo se trata de um sujeito. Ele nƒo- forma, nƒo reside nas transfer•ncias de pavores, m as somente na
tem nem interioridade, nem consci•ncia, nem vontade. Papai-ma tor†ƒo que lhes ‹ imposta, ao aplicar a este veŠculo particular, as
nƒo o definem mais. Se ele delira,
mƒe, sabe-se desde o Anti-Ždipo, que explora por s‹ries de subs- condi†‰es de satisfa†ƒo pr„prias a outros veŠculos, mais freqente-
‹ com o mundo, o cosmos, o socius mente, aquelas dos transportes de informa†ƒo. 27 Intimadas a trans-
titui†ƒo." Nenhuma identidade o designa ainda; submete a ema portar formas e refer•ncias, ess as palavras parecem tƒo pobres
pode erigi-lo em uma pessoa ; nenhuma intera†ƒo a na- u quanto os "abracadabras" que desesperam os amantes do exotis-
pr€tica; nenhuma liga†ƒo sujeita-o a um direito; nenhum pe mo. Os encantamentos, como os anjos, sƒo maus mensageiros.
gem vem habit€-lo por meio de uma obra; nenhuma transa†ƒo vem Ao reformular na minha pobre linguagem a travessia des-
acrescentar-lhe valor. Mas esse envolt„rio existe, at‹ certo ponto, ses invisŠveis, nƒo pretendo ter compreendido a etnopsiquiatria,
que se pode dizer desse
apesar de tudo. "Nƒo antisujeito", ‹ tudo nem ter feito sua teoria. Foi somente por mim, ‹ claro, que me
possui estofo suficiente para nƒo ser possuŠdo, para interessei, ou antes, por esses infelizes brancos, os quais se quer
envolt„rio. Ele
resistir um pouco mais, contanto que se "zele" por ele, noite e dia. privar de sua antropologia, encerrando-os em seu destino mo-
nƒo prov‹m, compreendemos
A invisibilidade desses pavores derno de anrifetichismo. A consulta recria, no seu pr„prio arti-
isso agora, de uma aus•ncia de exist•ncia. Ela nƒo prov‹m tam- fŠcio, as condi†‰es de laborat„rio pr„prias ‡ detec†ƒo dos invisŠ-
, sobrenatural, me-
pouco da origem extraterrestre, extra-sensori al trocar veis entre n„s, na periferia. Ela exp‰e, sessƒo ap„s sessƒo, gestos
tafŠsica dos pretendidos espŠritos. Aquilo que deve poder ela terap•uticos h€beis e objetos bem feitos que parecem escapar ao
rapidamente de sentido, transformando-se, em um golpe, pela discurso, mas cujo discurso, ao contr€rio, parece-me suscetŠvel
das rela†‰es de for†a, de bem em mal ou de m le
possessƒo ; be
de uma descri†ƒo precisa, contanto que se estabele†a o caderno
aquilo que deve passar em outro lugar, sob pena p dede uma forma de encargos das entidades mobilizadas, assim como as condi†‰es
de loucura; aquilo que subsiste sem interrup†‰es> de satisfa†ƒo referentes ao engajamento das mesmas na a†ƒo."
para outra, explorando, por livre associa†ƒo, as co mbina†‰es do
cosmos; aquilo que pode ser desviado pela interven†ƒo de um en-
cantamento astucioso: tudo isso nƒo pode permanecer visŠvel, con-
27. Ž o que chamo, em meu jargƒo, "o m„bil imut€vel e combi-
tinuamente, obstinadamente. Os fatos imut€veis servem para ou- n€vel". Sobre as transforma‚es de informa‚es, ver, por exemplo,
efeito, v€rias outras intera†‰es, outras rela†‰es exi- "Le 'P‹dofil' de Boa Vista". In: (1993). op.cit.
tros usos. Com 26 Esta aqui nƒo exige. Lange de serem
gem a continuidade no ser. 28. Nƒo esque†amos que a id‹ia mesmo de uma pr€tica inef€vel,
era proveniente apenas da ilusƒo dos epistem„logos sobre o forma-
lismo explŠcito do discurso cientifico. Eu e meus colegas aprende-
l'Anti-Edipe. Capitalisme et mos, ‡s nossas expensas, a dificuldade de exprimir em palavras o
25. Deleuze, Gilles; Guattari, Felix.
1972. trabalho das ci•ncias. Mas, por causa disso, nenhuma pr€tica ‹
schizophr•nie. Paris: Minuit, transforma‚es de intera‚es, que mais f€cil ou dificil de explicitar que outra. Sobre o trabalho do
26. $ o caso, em particular, das esta
chamamos, um pouco precipitadamente, "t‹cnicas"" Sobre T
i
formalismo, ver o fascinante ensaio de Bryan Rotman, cujo tŠtulo
forma muito particular de media†ƒo, ver (1994)."64 e (1994),
c hnical
sozinho, j€ • um programa por completo, Ad Infinitum. The Ghost
Mediation". Common Knowledge, v. 3, n. 2, p. - in Touring Machine.Taking God out of Mathematics and Putting the
"Une sociologia sans objet? Note th‹orique sur l'interobjecti Body Back In. Stanford: Stanford University Press, 1994.
36, n. 4, p. 587-607.
vit‹". Sociologie du travail, v.
Apenas escolho com cuidado os termos, para que eles possam
passar de um lado a outro da antiga "grande divisƒo", varrendo cap†tulo 12
um tipo de fen‚meno que nem a psicologia Œ sem objeto Œ nem Como compreen urna aˆ€o "superada
a epistemologia Œ sem sujeito Œ parecem-me capazes de abrigar. pelos a‘tdmentos"
Interessam-me somente as quest‰es que essa reformula†ƒo per-
mite colocar, agora que dispomos de uma base comparativa mais
sim‹trica e mais vasta: j€ que eles nƒo t•m mais psicologia que
os outros, quais sƒo as divindades dos brancos? Quais sƒo o s in-
visŠveis indispens€veis ‡ constru†ƒo provis„ria e fr€gil de seus
inv„lucros e de seus qu ase-sujeitos? Como fazem para afastar os
pavores e para transferi-los para outro lugar? Por meio de quais
encantamentos? Por meio de quais artimanhas? Por meio de No decorrer desta pequena reflexƒo, propus trƒs acep†‰es
quais dispositivos? Quem sƒo seus curandeiros? Que m sƒo seus diferentes para o "culto moderno dos deuses fe(i)ciches". Como
etnopsiquiatras?' 9 — de costume no pensamento crŠtico, reutilizei, inicialmente, o
sentido pejorativo das palavras "fetiche" e "culto". Os moder-
nos nƒo se mostram a partir de entƒo desprovidos de fetiche,
nem desprovidos de culto, como eles se acreditavam Œ seja para
se vangloriarem, seja para se desesperarem. Eles t•m um culto,
o mais estranho de todos: eles negam ‡s coisas que fabricam a
autonomia que conferem ƒs mesmas, ou negam ‡queles que as fabri-
cam, a autonomia que estas conferem aos mesmos. Eles pretendem
nƒo ser superados pelos acontecimentos. Eles querem manter o
domŠnio, e encontrar tal fonte no sujeito humano, origem da
a†ƒo. 3o Ou entƒo, por uma altern…ncia brutal com a qual esta-
mos agora familiarizados, os modernos, ressentidos por nƒo po-
29. Se n€o conseguirmos responder a estas quest‹es, a si metria der explicar a a†ƒo pelo trabalho humano, querem aniquilar o
ser… quebrada, e os brancos ficar€o, de fato, sem fe(i)tiche. Se nos
lan†armos na pesquisa empŒrica dos fe(i)ciches duplamente frag- sujeito-fonte, sufocando-o nas linguagens, na gen‹tica, nos tex-
mentados e as tuciosamente remendados, deverŒamos poder en-
contr…-los, por exemplo, nas fun†‹es espantosas dos medicamen-
tos (Pignarre, Philippe les Deux Mƒdecines. Mƒdicanzents, psychotro- 30. Encontraremos em Jullien, Fran†ois. La Propension des choses,
pes e t sugge stion thƒrapeutique . Paris: La Decouverte, 1995) ou das Le Seuil, Paris: 1992, (cole†€o Travaux), uma outra teoria da a†€o,
drogas (ver a tese, em andamento, de Gomart, Emilie sobre a me- na China, que tampouco se adapta ‡ teoria dos ocidentais, pois ela
tadona). E este o interesse do novo trabalho dos soci‚logos da me- ignora, ao mesmo tempo, a imanƒncia e a transcendƒncia, o sujei-
dicina (para uma aprecia†€o da obra, ver Mol, Anne-Marie; Berg,
to como o objeto. Parece que os chineses • na interpreta†€o de
Marc (Org.), Difference s in Me dicine , Harvard University Press, no Jullien • apresentam uma linguagem ‡ pr…tica, da qual os bran-
prelo, e Akrich, Madeleine; Dodier, Nicolas (Org.). "Les Objets cos nunca se desfizeram, mas que a filosofia destes Šltimos, por
de la M„decine". Techniques et Cultures, n. 25-26, 1995. raz‹es polŒticas interessantes, desejou, freq‘entemente, renegar.
tos, nos campos, nos inconscientes, nas causalidades diversas. co o marionetista. 31 Ele lhe dir€, como todo mundo, como rodo
"Visto que o sujeito nƒo tem o total domŠnio e liberdade reivin- criador e manipulador, que suas marionetes lhe ditam seu co m-
dicados pelo sujeito sartriano, entƒo, ningu‹m poder€ mais dis- portamento, que elas o fazem agir, que elas se exprimem atrav‹s
por de tal domŠnio e liberdade'", exclamam os modernos com dele, que ele nƒo saberia manipul€-las, nem automatiz€-las. En-
furor. E sobre o amontoado de seus Šdolos destruidos, eles lan- tretanto, ele as mant‹m, as domina e as controla. Ele ir€ confes-
†am o homem. Os respons€veis pela restaura†ƒo, irƒo, em segui- sar, naturalmente, que ‹ ligeiramente superado por aquilo que
da, ao dep„sito de entulhos, para ali remendar um "sujeito de controla. Suponhamos agora, que um marionetista de segunda
direito". O existencialismo, o estruturalismo, os direitos do ho- categoria venha manipular nosso artista. Nƒo faltarƒo candida-
mem, avatares sucessivos do culto dos fe tiches, daqueles que se tos: o texto, a lŠngua, o espirito do tempo, o habitus, a socieda-
cr•em muito astutos porque se cr•em livres para sempre dos fe- de, os paradigmas, as epistemes, os estilos, qualquer agente far€
tiches, das cren†as e da ingenuidade, ao passo que ningu‹m ja- o trabalho para controlar nosso marionetista como este controla
mais acreditou ingenuamente nos fetiches Œ nem mesmo e les! suas marionetes. Mas, justamente esses agentes, tƒo poderosos
Tomei, logo ap„s, a expressƒo com um segundo sentido, quanto voc•s os fi zerem, serƒo superados pelo marionetista,
que restituŠa valor e poder ‡ palavra fe(i)tiche como ‡ palavra como este ‹ superado por suas marionetes. Voc•s jamais farƒo
culto. A hip„tese ‹ muito mais simples, e os modernos, na ver- melhor do que isso; voc•s jamais o terƒo tƒo sob controle. Ao in-
dade, nunca a abandonaram. Aquele que age nƒo tem o domŠ- v‹s de uma cadeia causal que transmitiria uma for†a, que atua-
nio daquilo que faz; outros, que o superam, passam ‡ a†ƒo. lizaria um potencial, que realizaria uma possibilidade, voc•s ob-
Nada que autorize, contudo, a afogar o sujeito no mar do deses- terƒo apen as sucess‰es de ligeiras supera†‰es. Sim, acontecimentos,
pero. Nƒo existe em lugar algum um €cido capaz de dissolver o outro nome do fe(i)tiche e do culto que lhe ‹ prestado.
sujeito. Este ˆltimo ganha autonomia, ao conceder a autonomia Mas refa†amos toda a cadeia; suponhamos um manipulador
que nƒo possui aos seres que adv•m gra†as a ele. Ele aprende a de fios, enfim mestre, enfim criador, um ser todo poderoso, urn
media†ƒo. Ele prov•m dos fe(i)tiches. Ele morreria sem eles. Se a deus ‡ antiga, onisciente, onipotente. Isso nƒo mudaria nada. Ele
expressƒo parece difŠcil, que ela seja comparada ‡ aparelhagem nƒo poderia fazer mais do que isso. Criatura entre as criaturas, ele
inverossŠmil, com todos seus maquinismos, engrenagens, con- tamb‹m seria ligeiramente superado pelo que faz, aprendendo com
tradi†‰es, feedbacks, reparos, epiciclos, dial‹ticas e contor†‰es o que fabrica no que ele consiste, conquistando sua autonomia no
destes marionetes-marionetistas, enredados em seus fios, ‡s ve- contato com suas criaturas, como n„s conquistamos todos, nossa
zes visŠveis e invisŠveis, mergulhando na cren†a, a m€ consci•n- exist•ncia, ao descobrir, por ocasiƒo de encontros com outr as en-
cia, a m€ f‹, a virtualidade e o illusio... Ao querer fazer mais tidades, aquilo que nƒo sabŠamos ser capazes no minuto anterior.
si mples que os fe(i)tiches, os modernos fizeram mais complica- Por tr€s da ostenta†ƒo do antifetichismo, esconde-se uma teolo-
do. Ao querer fazer mais luminoso, fizeram mais obscuro. gia da cria†ƒo, lament€vel, Šmpia. Imaginamos um deus criador
Quem quer fazer o anjo, faz o homem. que nƒo seria superado pelo que faz e que dominaria suas criatu-
Sim, os modernos t•m que prestar um culto explŠcito aos
fe(i)tiches, ‡s media†‰es, aos passes, j€ que nunca tiveram o do-
mŠnio do que fazem, e ‹ bom que seja assim. A imagem da ma- 31. Sem esquecer da etimologia que nos lembrar€, muito oportu-
rionete vem bem a prop„sito, contanto que se indague um pou- namente, que se trata aqui de urna f„rmula afetuosa para designar
as "pequenas Santa Maria", virgens mediadoras por excel•ncia. e
ras! Mesmo quando negamos sua exist•ncia Œ sobretudo quando de da aparelhagem complicada do d eterminismo, da liberdade e
a negamos Œ ‹, contudo, este modelo de a†ƒo que gostarŠamos de da gra‚a, • pela falta, talvez, de ter compreendido os fe(i)tiches.
usurpar ao homem. O construtivismo social ‹ o criacionismo do "Nem deus, nem senhor" deveria servir de slogan somente aos
pobre. Nƒo h€ mais cria†ƒo por um deus-fonte do que constru†ƒo anarquistas. Esse slogan deveria ser tamb‹m escrito sobre o pe -
por um homem-fonte. Ao querer rebaixar o orgulho do homem destal dessas est€tuas invisiveis, destruŠdas e depo is restauradas,
construtor pelo grosso fio do deus criador, os cl‹rigos se engana- que permitem a a†ƒo sob todos os aspectos. Se acontecimentos
ram tanto quanto os livres de preconce itos, que pretendem cor- existem, ningu‹m ‹ deles senhor, muito menos Deus.
tar todas as liga†‰es e dominar o que fabricam, abaixo de si pr„- "E necess€rio autorizar a importa†ƒo dos `djinns'?", 3 i' in-
prios, sem nenhum senhor acima de si pr„prios. O que? Um en- daga Tobie Nathan, e ‹ este o terceiro e ˆltimo sentido que
genheiro controlaria sua m€quina? P asteur seu fermento de €cido conferi ao meu tŠtulo. Os migrantes passeiam com suas divin-
l€tico? Um programador seu programa? Um criador sua cria†ƒo? dades na periferia, e mesmo em Paris, mas o culto de seus deu-
Um autor seu texto? Mas ‹ preciso jamais ter agido para pensar ses fe(i)tiches ‹ bem moderno, j€ que vivem, ao mesmo tempo,
uma coisa dessas, para proferir tais sacril‹gios! E porque Deus ‹ desenraizados e reenraizados. Em todo caso, tal culto nƒo se
uma criatura e porque nossas cria†‰es possuem, para n„s, tanta parece em nada com aqueles de seu passado. Entretanto, os
autonomia quanto n„s possuŠmos para Ele, que podemos reutili- migrantes reconfiguraram para n„s a sabedoria do passe, obs-
zar, de verdade, as palavr as referentes ‡ constru†ƒo como aquelas tinando-se em nƒo acreditar em seus deuses, ao passo que n„s
referentes ‡ cria†ƒo." Se tivemos durante tanto tempo necessida- nos obstin€vamos em acreditar que eles adorariam ingenua-
mente a mat‹ria bruta, e que n„s tŠnhamos nos livrado da
cren†a para penetrar no saber. A etnopsiquiatria talvez consi-
32. Raras sƒo as descobertas em teologia; entretanto, aquela efe- ga, felizmente, curar os migrantes; nƒo serei eu o juiz. Mas os
tuada por Whitehead, a respeito do deus criatura, ‹ efetivamente migrantes conseguem nos curar, em todo caso, e pude testemu-
uma descoberta. Na verdade, ele descobre menos do que com- nhar isso. Eles mant•m entidades em estados mˆltiplos
preende, por uma outra liguagem, o que todos j€ haviam com- interessantes, fr€geis, sem exigir que elas durem obstinada-
preendido anteriormente, de outra forma: o deus de Whitehead ‹
encarnado. " All actual entities share with God this characteristic
mente ou que provenham de nossa psicologia. Eles desfiam,
of self-causation. For this reason every actual entity also shares portanto, para n„s, a diferen†a entre fabrica†ƒo e realidade, do-
with God the characteristic of transcending all other actual enti- mŠnio e cria†ƒo, construtivismo e realismo. Eles passam taga-
ties, including God", p. 222, Process and Reality. An Essay in Cos- relando, l€, onde s„ poderiamos passar com meia palavra. Eles
mology, New York: Free Press, 1978; "Todas as entidades atuais nos permitem compreender com mais exatidƒo nossas ci •ncias
dividem com Deus este car€ter de ser causa de si. Por esta razƒo, e nossas t‹cnicas, essas fabrica†‰es que se poderia ac reditar que
cada entidade atual divide tamb‹m com Deus o car€ter de trans- eles ignoravam ou que elas os dominavam. Encontro mais exa-
cender todas as outras entidades atuais, incluindo Deus", Alfred
Whitehead, North ProcŠs et r alit•. Essai de cosmologie. Gallimard,
Paris: 1995, p. 358. Acreditar que Deus vai, por conseguinte,
dissipar-se nas criaturas, ‹ repetir sempre o mesmo erro. As cria- 33. Nƒo confundir com a questƒo da importa†ƒo dos "jeans", se-
turas nƒo sƒo imanentes. Media†‰es, acontecimentos, passes e gundo a anedota belga que nƒo contaria se ela nƒo me tivesse
fe(i)tiches, tais criaturas nƒo servem nem para dissipar, nem para sido contada por um fil„sofo da mesma etnia!
dissolver, mas para produzir. El as surgem. Elas distinguem -se. * Djinn: espŠrito do ar, g•nio nas cren†as €rabes. (N.T.)
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•qS~ITU ~ ~ PSICOLOGIA