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Primeira edição, 1994

Reimpressão da primeira edição, 1994

© 1993 by Maria da Saudade Cortesão Mendes

Direitos de edição da obra em língua portuguesa adquiridos pela


EDITORA NOVA AGUILAR S.A.
Rua Bambina, 25 - Botafogo - CEP 22251-050
Rio de Janeiro, RJ
Te!.: 286-7822 - Fax: 286-6755
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CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, R)

Mendes, Murilo, 1901-1975


H492p Poesia completa e prosa, volume único / Murilo Mendes ;
organização e preparação do texto Luciana Stegagno Picchio. -
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
(Biblioteca Luso-brasileira. Série brasileira)

Conteúdo parcial: Notas para uma muriloscopia / José Gui-


lherme Merquior - Vida-poesia de Murilo Mendes / Luciana
Stegagno Picchio - Fortuna crítica/ Mário de Andrade ... [et ai) -
Homenagens poéticas/ Manuel Bandeira... [ et ai].
Bibliografia.
ISBN 85.210.0009-x

1. Poesia brasileira. 2 . Prosa brasileira. 3. Mendes, Murilo,


1901-1975. 1. Picchio, Luciana Stegagno. II. Título. Ili. Série.

CDD - 869.91
CDU - 869.0(81)-1
TEMPO E ETERNIDADE
1934
À memória de Ismael Nery
FSIA / TEMPO F. ETERNIDADE 245

NOV!SSIMO JOB

- Eu fui criado à tua imagem e semelhança.


Mas não me deixaste o poder de multiplicar o pão do pobre,
Nem a neta de Madalena para me amar,
O segredo que faz andar o morto e faz o cego ver.
Deixaste-me de ti somente o escárnio que te deram,
Deixaste-me o demônio que te tentou no deserto,
Deixaste-me a fraqueza que sentiste no horto,
E o eco do teu grande grito de abandono:
Por isso serei angustiado e só até a consumação dos meus dias.
10 Por que não me fizeste morrer pelo gládio de Herodes,
Ou por que não me fizeste morrer no ventre da minha mãe?
Não me liguei ao mundo, nem venci o mundo.
Já me julguei muito antes do teu julgamento.
E já estou salvo porque me deste a poeira por herança.
15 Até há pouco tempo atrás no meu país
Ninguém sabia que a vida é a luta entre classes
E eu já era, desde cedo, inconformado e triste.
Antes da separação entre os homens
Existe a separação entre o homem e Deus.
20 É doce te encarar como poeta e amigo,
É duro te encarar como criador e juiz.
Tu me guardas como instrumento de teus desígnios,
Tu és o Grande Inquisidor perante mim.
Por que me queres vivo? Mata-me desde já.
25 Cria outras almas, outros universos,
Sonda-os, explora-os com tua lente enorme.
Mcs faze cessar um instante o meu suplício.

Prefiro o inferno definitivo à dúvida provisória.


Falaste-me pelos teus profetas e pelo Espírito Santo,
30 Mas a última e essencial palavra está contigo.
Todas as tuas obras dão testemunho de ti,
Mas ninguém sabe o que tu queres de nós.
MURILO MENDES/ POESIA COMPLETA & PROSA

(Ó Virgem Maria, levanta-te da estrela da manhã


E faze o sinal da cruz sobre minha alma golpeada.)

35 Tu também não terás teus filhos renegados?


Aqueles que criaste e entregaste ao demônio
Para satisfazer tua cólera e paixão?
ó Deus, tua justiça é maior que tua misericórdia.
Por que me deixaste assim sem abrigo no mundo?
40 Por que me deste passado, presente e futuro?
Manda a tempestade de fogo a destruir minha existência.

- Estou contigo mesmo e não me queres ter


Sou tua herança desde toda a eternidade.

A GRAÇA

Desaba uma chuva de pedras, uma enxurrada de estátuas de ídolos


caindo, manequins descoloridos, figuras vermelhas se desencarnando
dos livros que encerram as ações dos humanos.
E o meu corpo espera sereno o fim deste acontecimento, mas a mi-
nha alma se debate porque o tempo rola, rola.
Até que tu, impaciente, rebentas a grade do sacrário; e me estendes
os braços: e posso atravessar contigo o mundo em pânico.
E o arco-de-Deus se levanta sobre mim, criação transformada.

NATAL

Meu outro eu angustiado desloca o curso dos astros, atravessa os


espaços de fogo e toca a orla do manto divino.
O Ser dos seres envia seu Filho para mim, para os outros que O
pedem e para os que O esquecem.
Uma criança dançando segura uma esfera azul com a cruz:
Vêm adorá-la brancos, pretos, portugueses, turcos, alemães, rus-
sos, chineses, banhistas, beatas, cachorros e bandas de música.
A presença da criança transmite aos homens uma paz inefável que
eles comunicam nos seus lares a todos os amigos e parentes.
Anjos morenos sobrevoam o mar, os morros e arranha-céus, de-
senrolando, em combinação com a rosa-dos-ventos, grandes letreiros
onde se lê: GLÓRIA A DEUS NAS ALTURAS E PAZ NA TERRA AOS HOM ENS
DE BOA VONTADE.
' 1'·

lESIA / TEMPO E ETERNIDADE 247 1I


.J
MEU Novo OLHAR '!;l
'
Meu novo olhar é o de quem já sabe
Que alegria e ventura não pemanecem.
Meu novo olhar é o de quem desvendou os tempos futuros
·1
E viu neles a separação entre os homens,
5 O filho contra o pai, a irmã contra o irmão, o esposo contra a esposa,
As igrejas dinamitadas, depois reconstruídas com maior fervor; 1
Meu novo olhar é o de quem penetra a massa 1
E sabe que, depois dela ter obtido pão e cinema,
Guerreará outra vez para não se entediar.
o Meu novo olhar é o de quem observa um casal belo e forte :1
E sabe que, sozinhos, se amam os dois com nojo.
Meu novo olhar é o de quem lúcido vê a dançarina
Que, para conseguir um movimento gracioso da perna, .,,.!!
Durante anos sacrificou o resto do seu ser.
.5 Meu novo olhar é o de quem adivinha na criança
O futuro doente, o louco, a órfã, a perdida.
Meu novo olhar é o de quem transpõe as musas de passagem
E não se detém mais nas ancas, nas nucas e nas coxas,
Mas se dilata à vista da musa bela e serena,
20 A que me conduzirá ao amor essencial.
Meu novo olhar é o de quem assistiu à paixão e morte do Amigo, 1
Poeta para toda a eternidade segundo a ordem de Jesus Cristo, ·I.
E aquele que mudou a direção do meu olhar;
É o de quem já vê se desenrolar sua própria paixão e morte,
25 Esperando a integração do próprio ser definitivo
Sob o olhar fixo e incompreensível de Deus.

A MUSA

Estás sozinha desde o princípio,


Foste imaginada na época da formação das pedras.
Um violento temporal lavou a terra antes que nascesses,
E muitas estrelas de perfil se inclinaram sobre teu berço.
5 Atravessas desertos de areia e mares vermelhos
Sem que sujes teu corpo,
Sem que ninguém penetre tua essência.
Os poetas te sacrificam suas amadas retrospectivas, atuais e futuras. )
Tua cabeça triste e serena
io Recortada num céu de convulsões desencadeia o mito: '
248 M URJLO MENDES / P OESIA COMPLETA & PROSA

i1 Distribuis ao mesmo tempo consolo e desespero.


ii
Aos olhos do homem és acima do sexo como uma deusa,
111 Aos olhos da mulher és masculina: um guerreiro.
Anulas o movimento de quem soube te decifrar,
/' 15 E não te perturbas nem ao menos ante a idéia de Deus.

1
EPIFANIA
,: 1
Eu te procurei tal qual os três reis magos
Que caminhavam através de mares e desertos,
Até que um dia uma estrela enviada por ti mesmo
Me trouxe até a tua inefável presença.
5 Não posso te ofertar o ouro, o incenso e a mirra:
Ofereço-te a minha alma que tu mesmo criaste
Ofereço-te a minha aridez e o meu pecado.
Ilumina agora e sempre todos os que te procuram
E todos aqueles que acreditam no teu fim.
10 Angústia e escuridão dominam o homem
Porque tu ainda não deste a volta ao mundo.

VOCAÇÃO DO POETA

Não nasci no começo deste século:


Nasci no plano do eterno,
Nasci de mil vidas superpostas,
Nasci de mil ternuras desdobradas.
5 Vim para conhecer o mal e o bem
E para separar o mal do bem.
Vim para amar e ser desamado.
Vim para ignorar os grandes e consolar os pequenos.
Não vim para construir minha própria riqueza
10 Nem para destruir a riqueza dos outros.
Vim para reprimir o choro formidável
f Que as gerações anteriores me transmitiram.
,j Vim para experimentar dúvidas e contradições.
:[ Vim para sofrer as influências do tempo
') 15 E para afirmar o princípio eterno de onde vim.
1 Vim para distribuir inspiração às musas.
Vim para anunciar que a voz dos homens
P OES IA / TEMPO E E T ERNIDADE 249

Abafará a voz da sirene e da máquina,


E que a palavra essencial de Jesus Cristo
20 Dominará as palavras do patrão e do operário.
Vim para conhecer Deus meu criador, pouco a pouco,
Pois se O visse de repente, sem preparo, morreria.

0 POETA E A MUSA

Vens da eternidade e voltas para a eternidade.


Não tens ódio.
Não tens amor.
Não tens fome nem sede.
5 Tens o ar frio de quem ultrapassou o mundo sensível e resolve lhe
dar um sinal da sua condescendência.
A linha das montanhas, a linha do horizonte e a linha da tua alma
se desdobram diante de ti como um anteprojeto da eternidade.
Estás desligada da geração que te trouxe ao mundo.
10 Anulas meu interesse pelo espetáculo da existência.
Olhas-me serenamente, passas a mão pelos meus cabelos e mecha-
mas de tua grande criança.
Esperas que eu diminua minha humanidade para ficar junto de ti,
sem ação, sem impulsos, observando apenas o desenrolar do tempo, o
15 ciclo das estações, o curso dos astros, as cambiantes da cor do céu e do ,1
oceano ...
Seremos duas estátuas confabulando.
Então os acontecimentos não agirão mais sobre mim.
E eu sobrevoarei a vida física.
20 E tocarei o espírito da musa.

SALMO Nº 1

Meu espírito anseia pela vinda da esposa,


Meu espírito anseia pela glória da Igreja,
Meu espírito anseia pelas núpcias eternas
Com a musa preparada por mil gerações. ll
5 Eu hei de me precipitar em Deus como um rio,
Porque não me contenho nos limites do mundo.
Dai-me pão em excesso e eu ficarei triste,
Dai-me luxo, riqueza, ficarei mais triste.
Para que resolver o problema da máquina
250 MURILO MENDES / POESIA COMPLETA & PROSA

10 Se minha alma sobrevoa a própria poesia?


Só quero repousar na imensidade de Deus.

FILIAÇÃO

Eu sou da raça do Eterno.


Fui criado no princípio
E desdobrado em muitas gerações
Através do espaço e do tempo.
5 Sinto-me acima das bandeiras,
Tropeçando em cabeças de chefes.
Caminho no mar, na terra e no ar.
Eu sou da raça do Eterno,
Do amor que unirá todos os homens:
10 Vinde a mim, órfãos da poesia,
Choremos sobre o mundo mutilado.

0 PROFETA

A Dante Milano

A Virgem deverá gerar o Filho


Que é seu Pai desde toda a eternidade.
A sombra de Deus se alastrará pelas eras futuras.
O homem caminhará guiado por uma estrela de fogo.
5 Haverá música para o pobre e açoites para o rico.
O poeta celebrará sua relação com o Eterno.
Muitos mecânicos sentirão nostalgia do Egito.
A serpente de asas será desterrada na lua.
A última mulher será igual a Eva.
10 E o Julgador, arrastando na sua marcha as constelações,
Reverterá todas as coisas ao seu princípio.

SALMO Nº 2

O Deus meu e de todos,


Que tenho feito até hoje no mundo,
Senão te invocar para que surjas,
Senão me desesperar porque sou pó?
>oESIA / TEMPO E ETERNIDADE

5 Dilata minha visão,


Dilata poderosamente minha alma,
Faze-me referir todas as coisas ao teu centro,
Faze-me apreciar formas vis e desprezíveis,
Faze-me amar o que não amo.
10 Tudo o que criaste no universo
É a divisão de uma vasta unidade
Em espaços e épocas diferentes.
Liga-me a todas as coisas em ti
E ilumina-nos fora do tempo, a todos nós
15 Que esperamos tua divina Parusia.

Novfss1Mo JACOB

Antes de eu nascer tu velavas sobre mim


E mandaste teu anjo substituir minha mãe morta.
Ele me continha quando eu corria á beira-mar
Ou quando me debruçava sobre o abismo,
5 Cantava serestas e acalantos
Para aplacar minhas horas de pedra.
As vezes uma vasta sombra atravessava os dias:
E de noite eu ouvia claramente os passos do serafim
Perderem-se nas estradas no céu.
10 Mais tarde uma mulher ao meu lado
Tinha um esboço de asas nas espáduas.
E na minha alma diminuíam os cuidados do tempo.

Manda-me de novo teu anjo


A fim de lavar as minhas chagas,
15 A fim de refrescar a minha boca:
Há dias em que nem mesmo tua palavra nos sustém.
É preciso que eu te veja nos menores detalhes,
É preciso que eu seja não só eu, também tu.
E que encare o sofrimento como um céu aberto,
20 E tua luz descendo e subindo sobre mim.
1
d
SALMONº 3

Eu te proclamo grande, admirável,


Não porque fizeste o sol para presidir o dia
252 M URILO M EN DES / POESIA COMPLETA & PROSA

E as estrelas para presidirem a noite;


Não porque fizeste a terra e tudo que se contém nela,
li 5 Frutos do campo, flores, cinemas e locomotivas;
Não porque fizeste o mar e tudo que se contém nele,
Seus animais, suas plantas, seus submarinos, suas sereias:
Eu te proclamo grande e admirável eternamente
Porque te fazes minúsculo na eucaristia,
10 Tanto assim que qualquer um, mesmo frágil, te contém.

Ü JUSTIFICADOR

Teu espírito se dilata para abraçar a criação.


Chegam famílias das pirâmides para te verem,
Outras chegam dos confins dos mares.
A noite te anuncia pelos seus astrônomos e suas estrelas,
5 O dia te proclama pelos seus sinos e pelos seus jornais.
Gerações inumeráveis crescem à sombra da tua Igreja.
Atravessas campo e deserto, sobes em arranha-céus,
Voas no aeroplano, desces no submarino,
Abalas a alma do cego, do criminoso e da perdida.
10 Presides ao casamento, ao nascimento, à morte e à ressurreição.
Os homens te dividem em mil imagens falsas:
Mesmo assim, mutilado, esquartejado, sujo,
Dás a todos o único, o insubstituível consolo.
Tuas parábolas publicadas em edições de engraxate
15 Comovem ao mesmo tempo o ignorante e o poeta.
Os maus sacerdotes em vão procuram te ocultar:
Tu os convertes na última hora, como ao bom ladrão.
Espalhas pela terra teu corpo e tua alma em pedaços,
E cada alma, mesmo ruim, é uma relíquia tua.
20 Diariamente o mundo te persegue e te mata,
Diariamente ressuscitas e atrais o mundo a ti.

ANGÚSTIA E REAÇÃO

Há noites intransponíveis,
1 Há dias em que pára nosso movimento em Deus.
Há tardes em que qualquer vagabunda
'l1 Parece mais alta do que a própria musa.
5 Há instantes em que um avião
PO ESIA / T EMPO E ETERNIDADE 253

Nos parece mais belo que um mistério de fé,


Em que uma teoria política
Tem mais realidade que o Evangelho.
Em que Jesus foge de nós, foi para o Egito:
10 O tempo sobrepõe-se à idéia do eterno.
É necessário morrer de tristeza e de nojo
Por viver num mundo aparentemente abandonado por Deus,
E ressuscitar pela força da prece, da poesia e do amor.
É necessário multiplicar-se em dez, em cinco mil.
15 É necessário chicotear os que profanam as igrejas
É necessário caminhar sobre as ondas.

URSS

URSS URSS
Virgem imprudente
Porque não compras azeite para tua lâmpada,
Porque só pensas no imediato e no finito?
5 URSS URSS
Um dia o Esposo há de vir,
Dará um grito agudo e será tarde.
Estavas fabricando teus tratores
Só te ocupavas com a produção dos kolkozes
10 E não reparaste que o Esposo já vem
Trancou-se no quarto vermelho com tuas irmãs
URSS

URSS URSS
Varre tuas casas teus parques de cultura
15 Solta no espaço teus aviões acende teus refletores
Chama teus vizinhos porque achaste o rublo perdido
A Palavra eterna que te alimenta sem que o saibas
URSS URSS
URSS
20 Já dispersaste teus bens
Para procurar o que existe em ti desde o princípio.
Volta ao lar do teu Pai onde há muitas moradas
Volta para a comunidade dos filhos de Deus
ó pródiga ó generosa
254 MURILO MENDES/ POESIA COMPLETA & PROSA

25 Ouvirás a sinfonia complexa dos órgãos, dos sinos


Misturados com os apitos de sirenes das fábricas
E verás a dança múltipla dos irmãos que te aclamam
ó irmã transviada
URSS URSS URSS.

A MUSA

Tu és a relação entre o poeta e Deus.


Tu prefiguras uma imagem do Eterno
Porque a todo o instante organizas o mundo,
Sem ti minha poesia se extinguirá,
5 Sem ti eu ficaria mirando as construções do tempo.
Tu assistes aos movimentos da minha alma,
1 \
E aumentas minha sede do ilimitado.
1
Um dia, quando o Eterno me der a grande força,
Prenderei tua cabeça entre as constelações
10 A fim de orientar os poetas futuros.

ANTECIPAÇÃO

Os outros que lutem para possuir o mundo.


Quanto a mim, quero te ver face a face.
Aguardo tua última vinda,
Minha forma definitiva e perfeita,
5 Minha justificação na tua unidade.
Estás em mim, mas ainda não te vejo:
Só vejo com os olhos do sangue.
Cai, mundo que herdei segundo a carne!
No fim de tudo abraçarei o Verbo
10 Que contém minhas formosas ascendentes,
Que me contém, contém a musa
E todas as gerações da musa, desde o princípio.

COMUNICANTES

Eu amo minha família sobrenatural,


Aquela que não herdei,
Aquela que ama o Eterno.
'ESIA / TEMPO E ETERNIDADE 255

São poetas, são musas, são iluminados


5 Que vivem mirando os seus fins transcendentes.
!
O mundo, minha família sobrenatural não te possuiu.
Minha angústia vive nela e com ela,
E eu formarei poetas no futuro
À sua imagem e semelhança. ,
10 E todos ajuntando novos membros ao corpo
De que o Cristo Jesus é a cabeça
Irradiarão as palavras do Eterno.
1
1
'j
ETERNIDADE DO HOMEM

Abandonarei as formas de expressões finitas,


Abandonarei a música dos dias e das noites,
Abandonarei os amores improvisados e fáceis,
Abandonarei a procura da ciência imediata
5 Serei a testemunha de um mundo que caiu,
Até que te manifestes na tua Parusia.

Aceitarei a pobreza para que me dês a plenitude,


Aceitarei a simplicidade para que me dês a multiplicidade,
Descerei até o fundo da mina do sofrimento
10 Para que um dia me apontes o céu da paz.

Minha história se desdobrará em poemas:


1.
Assim outros homens compreenderão
Que sou apenas um elo da universal corrente
Começada em Adão e a terminar no último homem.

ELO AH

O mar, a flor, a lua não me falam de ti.


Nem as manhãs, nem as tardes, nem as noites.
Uma noite sem desenho, sem montanhas, sem._i:&t,relas, ainifil é
mais expressiva do que tua configw:a~oJ)sk:a. . ,
5 Nada que se refere à natureza me fala de ti.
Não sei mais da cor da tua pele nem do ritmo do teu andar, nem da
linha do teu nariz, nem do tom da tua voz, nem do volume dos teus
seios.
Tu és uma criação que Deus continua em cada instante.
256 MUR!LO M EN DES / POESIA COMPLETA & PROSA
i,,
i1 10 Pronuncias de vez em quando meu nome ou me escreves uma car-
ta como se fosses responder a um anúncio ou falar a um estrangeiro,
.·i,·
'! enquanto pensas no capítulo primeiro do Gênese, no temporal que
;1
submergiu a raça dos gigantes, ou no fim do mundo pelo congela-
1' mento.
I:' 1 15 Tens a tristeza de uma sobrevivente que se expande dentro de si
I' mesma com a força que lhe sobrou da catástrofe de uma cidade em
chamas.
'I'; E, vigilante, esperas que o Eterno te arrebate.
Minha essência imortal refloresce à simples vista do teu ser, ani-
20 mada pelo sopro que lhe advém de um princípio divino.
E possui, pelo amor, a onivisão.

A MORTA VIVA

Maria do Rosário estendida no caixão


Toda vestida de branco aos vinte anos
Está cercada de angélicas e de moscas .
,,,
.
Seu rosto é inviolavelmente puro e simples.
5 Telefonam telefonam telefonam.

Inclino-me sem chorar sobre seu corpo.


Só agora lhe digo a palavra de ternura
Que ela nunca pôde conseguir de mim,
A palavra que talvez justificasse uma vida,
10 A palavra que eu nunca tive a força de dizer.

Só agora sei que a amo, de um amor definitivo.


Só agora me descobri seu companheiro para sempre.
A eternidade irrompeu no tempo, violentíssima.
1
i
A CEIA DO POETA

Diante do prato em que apenas toquei


Medito no dia em que multiplicaste pães e peixes,
Tu que sacias a fome e a sede do universo.
Aquele milagre anunciava outro muito maior:
5 Tu te repartes em milhões de seres
Que se consolam e se consolarão em ti eternamente.
Continuas a nascer todo o dia entre os homens,
1

li
•ESIA / TEMPO E ETERNIDADE 257 li
Nos quatro cantos do mundo, mal se ergue o sol. .:j
E estou unido a ti pela meditação e o rito, !i
1
10 Como se te conhecera em tua vida terrestre. l
1\

A IRMÃ SOBRENATURAL

Esperei-te desde o princípio,


Desde antes da vinda do dilúvio,
Desde o mundo dos manequins e dos bilboquês.
Uma noite o cometa de Halley apareceu
5 E eu pensei que tu viesses nele.
Os desertos se desdobravam ante meus olhos
Até que um enviado revelou-te a mim.

E eu dou testemunho de ti:


És bela, sábia e casta,
10 Um misto de colegial, de madona e de sibila.
És minha irmã escolhida
Não pela herança do sangue.
E nossas almas se abraçam harmonicamente
Sem a sucessão dos tempos.

FIM E PRINCIPIO

Cairá a grande Babilônia, meu corpo,


Cairá ao peso de suas taras,
Cairá ao peso de seus erros e visões no tempo.
Cairá porque Satã soprou sobre ele.
5 Cairá porque sustentou a esfera sobre si.
Contemplarei ainda um pouco o mundo efêmero
Até que Deus faça volver tudo à poeira primitiva.

E seja transformada a face da Criação.


Ouçamos os clarins e oboés da eterna música.
10 Entremos na cidade do amor
Que para nos receber se preparou: uma noiva,
Sem a herança das ascendências carnais e do tempo.
Não há mais lua nem sol.
Vem, Cristo Jesus, todos te esperam. Sim!
1
r. 258 MUR! LO MENDES / POESIA COM PLETA & PROS
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1
1 PENTECOSTES
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111 Um vento impetuoso que ninguém sabe de onde vem


1 ' 1·
Penetra na sala rústica onde estão os apóstolos,
Sopra sobre todos, entra neles de alto abaixo;
Há uma transfusão de almas inesperada.
O vento sopra mais, divide-se em línguas de fogo,
1: 5
Abre o espírito dos homens, renovando a terra.
;1
,i ! O vento continua implacável a soprar,
" Sai da sala, percorre cidades, desertos e planícies,
Levanta igrejas, conventos, hospitais,
10 Cura leprosos, ressuscita agonizantes e mortos,
Inspira a todos um desejo essencial de amor,
Atravessa os tempos, continua soprando, circular,

!
1
Move minha alma que move meu corpo que move minha pena,
Impele de novo os homens ao seu fim supremo
15 E continuará amanhã e até a conswnação das eras
Levando a todos o espírito de luz consolador.

DUPLA LouvAÇÃO
Santo, santo, santo és tu
Que me fizeste para te conhecer;
Que fizeste minha musa para te conhecer
E para que eu a conhecesse.
5 As suas perfeições se ligam à tua grandeza:
Por seu intermédio me transmites a poesia.
E louvando agora e sempre minha musa
Que foi criada à tua imagem, eu te louvo.

Poetas, louvai minha musa.


.i
1 10 Descendentes dos poetas, crescei para louvá-la.
i E acima de tudo louvai seu criador,
Pai de todas as musas que existem e existirão.

ISMAEL NERY

t Não é do homem que recebes a glória.


O Verbo te criou desde o princípio
'OESIA / TEMPO E ETERNIDADE 259

Para transmitires palavras de vida


E para que O mostrasses a outros homens.
5 Em poucos anos percorreste os séculos
Que medeiam entre o Gênese e o Apocalipse.
O germe da poesia, essencial ao teu ser,
Se prolongará através das gerações.
Eras sábio, vidente, harmonioso e forte:
10 Mas atrás de ti, que visavas o eterno,
Se erguiam o tempo e as muralhas da China.
Morres lúcido aos trinta e três anos,
Quando se fecha uma idade e se abre outra.
Morres porque nada mais tens que aprender.

15 É a manhã. Teu corpo jaz na urna.


Mas erguendo os olhos para o céu diviso
Um poderoso Ente que gira sobre si mesmo
Se levantar com o nascimento do sol.

Também eu vi aquele
20 Que vem precedendo a nova era.
Também eu vi aquele
· Que foi criado para glória de Deus.
Também eu passei com ele
Sob as arcadas do templo e à beira do mar.
25 A sabedoria se manifestava pelos seus lábios
E a plenitude da arte pelas suas mãos.
O homem não recebendo sua mensagem,
A eternidade impaciente o reclamou.
Também eu vi os céus se abrirem súbito
30 E o Julgador lhe atribuir a estrela.

MARTA MARIA

Tu és a que trabalha e contempla ao mesmo tempo:


Ainda bem não terminas de arrumar a casa,
Já voaste para a leitura do Evangelho.
Há momentos em que Alguém te separa da terra.
5 E teu olhar luminoso e obscuro,
Vindo da Palestina, já parece eterno.
260 MURILO MEND ES / POESIA COMPLETA & PROSA

Preparas tua alma para a visita do Esposo.


Insatisfeita e triste, não te equilibras no mundo,
Mas disfarças tua vocação transcendente
10 Cuidando com doçura dos arranjos temporais.

ABSTRAÇÃO DA PERSPECTIVA

Já estou sentindo meu fim se aproximar:


Adivinho os passos da musa, do médico e do padre.
Ouço os sinos dobrarem sobre meu corpo decomposto,
Vejo uma árvore estender a sombra preguiçosa sobre minha sepul-
[tura.
5 Diviso ao longe um Anjo carregando minha alma para o purgatório.
Desde já o terribilíssimo clarim do último tempo soa,
E meu corpo ressuscita glorioso e incorruptível.

CALENDÁRIO DO POETA

O Amigo e a Musa
Sucedem-se alternativamente no meu espírito
Assim como o dia e a noite para outros.
E, sobre os três, o sol que não se deita,
5 O sol de Jesus Cristo, meu poeta e meu Deus,
Ilumina sem perspectiva
Nossas almas formadas para a eternidade.

SALMO Nº 4

ó tu que mandaste um serafim


Purificar os lábios de Isaías com um carvão ardente,
Limpa meu coração de todo desejo impuro.
Imprime em mim tua cruz que desconhece limites.
Faze com que eu renegue a ciência do mundo.
Apaga em mim o encanto pelas conquistas do tempo,
Inspira-me para que eu possa inspirar os outros.
Digna-te descer a todo o instante na minha alma.
Cairão fábricas, palácios e choupanas,
io Cairão museus, teatros, igrejas, bibliotecas,
Os poetas e os falsos salvadores do mundo, chefes e empregados;
POESIA / TEMPO E ETERNIDADE 261

Mas um anjo de asas unindo o universo de ponta a ponta


Levará tuas palavras até o fim do tempo e por toda a eternidade.

POEMA ESSENCIALISTA

A Aníbal Machado

A madrugada de amor do primeiro homem


O retrato da minha mãe com um ano de idade
O filme descritivo do meu nascimento
A tarde da morte da última mulher
5 O desabamento das montanhas, o estancar dos rios
O descerrar das cortinas da eternidade
O encontro com Eva penteando os cabelos
O aperto de mão aos meus ascendentes
O fim da idéia de propriedade, carne e tempo
10 E a permanência no absoluto e no imutável.

SALMO Nº 5

Desde o princípio nunca me espantei


Diante da grandeza exterior da massa:
Um arranha-céu é igual a um tijolo.
Toda a máquina termina enferrujada.
5 As invenções do homem se transformam e se perdem.

Só me extasio diante das criações divinas,


Diante de Seus mistérios, Sua lucidez e Seus poemas.
ó alma imortal, sede e essência do amor!
ó eucaristia, multiplicação de um Deus!
10 ó carne ressuscitada para a vida eterna!
ó comunicação sobrenatural dos fiéis!
ó tangência do invisível
E pressentimento obscuro das Pessoas divinas!
Poetas, assimilai a substância que preside as eras.

A TESTEMUNHA

O céu se retira como um livro que se enrola.


Um anjo blindado solta os sete pecados mortais.
262 MURILO MENDES/ POESIA COMPLETA & PROS

Mulheres-cavalos galopam furiosamente nas ruas,


Homens ajoelham-se diante do sexo duma fêmea,
s Outros diante dum ídolo de ouro e prata.
Poderosos refletores iluminam milhares de sovacos.
Quem passeia no mar, quem sonha no mar
Se o mar está tinto do sangue derramado das virgens.
Mil fanáticos fuzilam o coração de Jesus.
10 Chacais hienas e urtigas invadem a alma dos ditadores.

Crianças nascem nos tanks ao som de um clarim.


As cidades transbordam de famintos,
Famintos de comida e da palavra de consolo.

Poeta, cobre-te de cinzas, volta à inocência,


15 Impede que se derrame o cálice da ira de Deus,
Tu que és a testemunha sustenta o candelabro,
Monta o cavalo branco e reconstrói o altar
Onde se transforma pão e vinho,
Indica à turba as profecias que se hão de cumprir,
20 Revela aos presos olhando através das grades
Que o mundo será mudado pelo fogo do Espírito Santo,
Descerra os véus da Criação, mostra a face do Cristo.

FIM DE "TEMPO E ETERNIDADE"

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