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ANAIS

 DO  4º  SELLP  –  ISSN  2178-­‐9908 1  

CASA DE BONECAS: AS INOVAÇÕES NA DRAMATURGIA REALISTA DE


HENRIK IBSEN
Adriele GEHRING (PG/UEM)
Maiara Cristina SEGATO (PG/UEM)

Resumo
Henrik Ibsen é uma figura central na história do teatro moderno, pois suas peças
inauguraram uma nova forma de experimentação teatral ao incorporar os problemas de
seu tempo, trazendo à tona a hipocrisia da sociedade mantida por convenções,
diferenciando-se, assim, do drama burguês. A partir de Ibsen, o teatro deixa de ser visto
apenas como uma forma de entretenimento, passando a ser encarado também como um
instrumento de experiência social, uma vez que sua dramaturgia tem a intenção de
desmarcar a sociedade burguesa, alicerçada na figura do “lar”. Com efeito, publicada no
ano de 1879, Casa de Bonecas tem como temática uma situação casual da vida de uma
família burguesa que é aparentemente bem estruturada, conforme as exigências da
sociedade da época. Nora é uma mãe de família, jovem, bonita e que fora bem
preparada para seu posto e seus afazeres; Torvald é o provedor da casa, o responsável,
ao menos aparentemente, pelas decisões que envolvem os que estão sob seus cuidados:
mulher e filhos. O maior conflito da peça gira em torno desses dois personagens,
contudo a ênfase recai sobre o personagem masculino, o qual fora definido por Peter
Szondi como sendo vazio, por ser o único a não apresentar um passado aberto. Nesse
sentido, o objetivo de nosso trabalho centrar-se-á na análise desses dois personagens e
de outros elementos constituintes dessa peça que é considerada um dos marcos do
Drama Moderno. Para esta análise, tomaremos como aporte teórico, dentre outros, os
trabalhos de Anatol Rosenfeld e Peter Szondi.

Palavras-chave: Henrik Ibsen; Casa de bonecas; Teatro realista.

Introdução
Na segunda metade do século XVIII, a sociedade ocidental se caracterizava
pelo enfraquecimento do regime feudal. Embora a nobreza e o clero ainda possuíssem
uma grande parte de terras, o agricultor e o camponês haviam se tornado também
proprietários destas. O artesanato e o comércio disseminavam-se entre a população, bem
como o estabelecimento da burguesia enquanto classe e sua expansão econômica e
social. Desse modo, com a ascensão dessa nova classe, é proposto um teatro sério que
representasse a burguesia, onde seriam exaltados os seus valores, tais como família,
trabalho, sucesso, em oposição ao teatro clássico, no qual a burguesia era apresentada
em papéis que representavam o ridículo.
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Nesse contexto, o teatro apresentava-se como instrumento de propaganda da


ideologia burguesa, de seus princípios econômicos, sociais e morais. Assim, a
importância do casamento e da família, como alicerce da sociedade, tornou-se o
principal assunto do teatro burguês, uma vez que estavam ligados ao sistema de
propriedade e empreendimentos rentáveis, pois os casamentos estabeleciam-se entre
famílias do mesmo padrão social ou da mesma linha de negócios e interesses, sob uma
estrutura patriarcal. Na vida artística, prevaleciam as tendências que estavam de acordo
com o gosto burguês, destinada apenas ao entretenimento.
Contudo, na segunda metade do séc. XIX, o teatro passou a questionar os
valores sociais, sendo denominado tal movimento de realismo, em que sua característica
principal foi a abordagem de temas sociais, de forma reflexiva, e um tratamento
objetivo da realidade do ser humano. Possuía um forte caráter ideológico, marcado por
uma linguagem política e de denúncia dos problemas sociais como, por exemplo,
miséria, pobreza, exploração, corrupção, entre outros. Na Noruega, Henrik Ibsen
analisou a condição feminina e a hipocrisia burguesa (Casa de Bonecas). Na Rússia,
Anton Tchekhov (Jardim das Cerejeiras) e Máximo Gorki (Pequenos Burgueses)
discutiram os dilemas existenciais do indivíduo e sua interação com a sociedade.
Na história do teatro moderno ocidental, a dramaturgia de Ibsen apresenta-
se como marco central, pois se revela revolucionária sob vários aspectos conteudísticos
e formais. A nova forma de suas peças se diferencia bastante do drama burguês, não
somente pelo fazer teatral, mas principalmente devido à sua luta constante contra as
convenções da sociedade burguesa. A partir de Ibsen, o teatro deixa de ser visto apenas
como uma forma entretenimento da burguesia e passa, então, a ser entendido como uma
ferramenta de experiência social, abrindo caminho para as novas formas teatrais do
século XX.
Para tanto, Ibsen encontrou muita resistência na Europa. A encenação de
suas peças foi acompanhada de protestos que as taxaram de indecentes e depravadas. E,
quando os críticos não seguiam por esse caminho, censuravam seu descumprimento das
convenções teatrais. Não era somente o tema “que desagradava a parte conservadora de
nossa crítica teatral. A forma de composição de Ibsen, que se distanciava cada vez mais
dos padrões hegemônicos do drama burguês, também foi o alvo constante de ataques”
(SILVA, 2007, p. 42). Conforme enfatizou Anatol Rosenfeld (1993), embora Ibsen
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tenha sido taxado de imoral e até pornográfico, suas peças têm na verdade um caráter
moralizante:

[...] a fama universal de Ibsen baseia-se nas "peças burguesas" ou sociais da


próxima fase que se inicia com Os Pilares da Sociedade (1877) e Nora
(1879) (Casa de Boneca), obras de crítica e desmascaramento da sociedade
burguesa. Estas peças tendem a estrutura rigorosa e os traços épicos são
quase por completo eliminados. (ROSENFELD, 1993, p. 85)

Já Peter Szondi, em Teoria do drama moderno (2001), elabora uma reflexão


sobre a crise do drama, enfatizando o modo pelo qual o teatro é condicionado por
processos econômicos, sociais e históricos. O crítico, considerando Ibsen como o
primeiro autor da crise do drama, mostra que o seu teatro, entre outras coisas,
empreendeu uma total inversão no conceito convencional do drama, sobretudo pela
emersão do elemento épico em suas peças. Tal crise, para ele, se apresenta na:

Contradição crescente, nas peças entre a forma do drama, presente nelas


como modelo não diretamente questionado, e os novos conteúdos que elas
tratam de assimilar. O núcleo do confronto, que caracteriza a crise da forma
dramática, encontra-se na crescente separação de sujeito e objeto – cuja
conversão recíproca era a base da absolutez do drama – separação que mais e
mais se manifesta nas obras, principalmente pela impossibilidade do diálogo
e pela emersão do elemento épico. (SZONDI, 2001, p. 14)

Em suas peças realistas, Ibsen serve-se de cenários, acessórios e


personagens para produzir efeitos que comovem e nos dão a sensação de realidade, o
que parece ter sido esta a fórmula ibseniana: tratar do cotidiano das ações humanas no
cenário da vida burguesa, enfatizando as potencialidades dramáticas e trágicas
implicadas não exatamente na simples condição de existir, mas na complexa condição
de uma existência idealizada, em meio a um mundo de ordens e valores decadentes. É
desse contraponto, entre uma figura idealizada e um ambiente hostil, degradado, que
Ibsen faz derivar os conflitos de suas tramas. Nesse sentido, todos os caracteres estão
desenhados profundamente para servir de discussão de um problema social e moral. O
autor se preocupa com temas relacionados à corrupção e a hipocrisia social, com a
intenção de desmascaramento da sociedade burguesa, tendo o foco no alicerce da
mesma, ou seja, o lar. A escolha por desenhar o mundo em que se vive e pôr em jogo as
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máscaras de uma sociedade em crise é o ponto de partida para uma nova estrutura
dramática. A primeira peça contundente nesse sentindo foi Casa de bonecas, que será
nosso objeto de estudo durante este trabalho.

Casa de Bonecas: a dramaturgia realista de Henrik Ibsen


Casa de bonecas, escrita em 1879, quando Ibsen estava em Roma, foi
concebida em um período revolucionário na Europa, após quase cem anos de Revolução
Francesa e logo após os movimentos sociais de 1848 e da Comuna de Paris em 1871.
Conforme já mencionado, Casa de bonecas é o início do trabalho dramatúrgico de Ibsen
que irá influenciar e revolucionar o teatro ocidental do século XX.
Em Casa de bonecas, a história é apresentada nos moldes da “peça bem
feita”, que se caracteriza pela perfeita disposição lógica de sua ação e descreve um
protótipo de dramaturgia pós-aristotélica que leva o drama de volta à estrutura fechada.
Contudo, esta estrutura confronta a própria estrutura da sociedade. A peça representa a
família, instituição central da organização social burguesa, ou seja, uma “micro-
sociedade” que espelha a natureza da “macro-sociedade”. Ibsen explora, conforme Iná
Camargo Costa (apud WILLIAMS, 2002, p. 11), “os modos pelos quais a sociedade
burguesa, que promete a libertação individual, apresenta fortes obstáculos ao
cumprimento dessa mesma promessa”.
Casa de Bonecas, a qual questiona as convenções familiares, é dividida em
três atos com a ação concentrada na casa da família Helmer, tendo este núcleo como um
microcosmo da sociedade, isto é, estabelecendo uma relação de homologia com a
mesma, uma vez que, conforme Goldmann (1967, p. 206) em seu estudo sociológico,
estrutural e genético, pressupõe que "o caráter coletivo da criação literária provém do
fato de as estruturas do universo da obra serem homólogas às estruturas mentais de
certos grupos sociais”.
Ao iniciar a peça, a sala é apresentada na rubrica de forma bastante
detalhada, pois ela é o “palco” principal onde acontece quase toda a trama, é o ponto de
encontro dos personagens: “Sala mobiliada com conforto e bom gosto, mas sem luxo.
No fundo, a direita, a porta da saleta, a esquerda a do escritório de Helmer [...]”
(IBSEN, 2007, p. 07). Algumas cenas ocorrem simultaneamente no escritório, ou no
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andar superior, sendo mencionadas pelas réplicas dos personagens que estão na sala.
Isso ajuda a dar verossimilhança externa aos fatos, uma vez que na vida as coisas
também acontecem simultaneamente. E, além disso, a sala representa o ambiente da
família burguesa, a começar pelo título que remete a esse mundo manipulável. O
problema formulado em Casa de bonecas se apresenta atual na medida em que
continuamos personagens do capital, tendo o dinheiro como base de nossas relações.
Em Casa de bonecas são poucos os personagens centralmente envolvidos
no drama: Nora Helmer, a esposa; Torvald Helmer, advogado; Cristina Linde, uma
amiga de longa data de Nora. Doutor Rank, amigo do Sr. Helmer; e Krogstad, quem vai
deflagrar o primeiro conflito na família.
Quando a peça se inicia, é véspera de Natal – data intencionalmente
empregada, pois representa a união familiar – e Torvald havia sido promovido a gerente
do banco, o que faria com que sua condição financeira melhorasse. Nora, sua esposa,
fica entusiasmada, já que, assim, poderia finalmente pagar a dívida que contraíra com
um empréstimo, feito por Krogstad. Tal dinheiro havia sido emprestado a fim de pagar
uma viagem à Itália para salvar a vida de Torvald, seu marido, que estava seriamente
doente. A problemática se dá pelo fato de que Nora, ao emprestar o dinheiro, forja a
assinatura de seu pai em uma nota promissória e este acaba morrendo pouco tempo
depois. Torvald nada sabia sobre seu estado de saúde nem sobre a origem do dinheiro,
que ele acreditava ter sido dado pelo pai de Nora.

NORA Já falei da viagem à Itália, não é verdade? Torvald não escaparia se


não tivesse podido ir para o sul.
SENHORA LINDE Sim, e seu pai lhe deu o dinheiro de que precisavam.
NORA (sorrindo) Isso é que Torvald e toda a gente supõem, mas...
SENHORA LINDE Mas...
NORA Papai não nos deu sequer um centavo. Eu é que arranjei o dinheiro.
SENHORA LINDE Uma quantia dessas?... Você?...
NORA Mil e duzentos táleres. Quatro mil e oitocentas coroas. Que lhe
parece?
SENHORA LINDE Mas, Nora, como você fez isso?... Ganhou a sorte
grande?
NORA (num tom de desprezo) A sorte grande... (Com um jeito de desdém)
Que mérito haveria nisso?
SENHORA LINDE Nesse caso, onde o foi buscar?
NORA (sorrindo misteriosamente e cantarolando) Hum! trálá-lá.
SENHORA LINDE Pedi-Io emprestado você não poderia.
NORA Porque não?
SENHORA LINDE Porque uma mulher casada não pode contrair
empréstimo sem o consentimento do marido.
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NORA (meneando a cabeça) Ah, quando se trata de uma mulher um pouco


prática... uma mulher que sabe ser hábil... (IBSEN, 2007, p. 21)

A situação seguia estável até o dia em que Krogstad chegara para uma
conversa, pois acabara de saber que seu cargo no banco de Torvald fora prometido para
a sra. Linde, amiga de Nora e sua namorada no passado, mas o deixou para se casar por
conveniência. Krogstad ameaça Nora de contar o seu segredo a Torvald e denunciá-la,
caso ela não convencesse o marido a mantê-lo no emprego. Nora, de várias formas,
tenta convencer Torvald, mas sem sucesso.
Desse modo, Krogstad escreve uma carta a Torvald, contando todo o
ocorrido, e a deixa em sua caixa de correio. Entretanto, Nora usa de artimanhas para
impedir que Torvald leia a carta, distraindo-o dos negócios ao pedir que ele a ajudasse a
praticar a dança para o baile da noite seguinte. Ele concorda em deixar os negócios de
lado até o final do baile.
Na noite seguinte, antes que Torvald e Nora voltassem do baile, a sra. Linde
e Krogstad, antigos amantes, se reúnem na sala de estar dos Helmer e, então, ela o
convence a voltar atrás quanto a carta denunciando Nora, mas Torvald já estava com a
carta em mãos e a lê. Torvald acusa Nora de arruinar sua vida, e dá a entender
claramente que pretende denunciá-la, desmentindo sua afirmação anterior de que seria
responsável por ela em qualquer situação.

HELMER (caminhando, agitado, pela sala) Ah, que terrível despertar! Oito
anos! ... Durante oito anos você foi a minha alegria e o meu orgulho... e agora
vejo que é uma hipócrita, uma impostora... pior ainda, uma criminosa! Que
abismo de torpezas! Ah, que horror!
NORA (muda, continua a olhá-Ia fixamente)
HELMER (parando em frente a ela) Eu devia ter sabido que uma coisa dessas
iria acontecer. Devia tê-Io previsto. Com os princípios levianos de seu pai...
princípios que você herdou! Ausência de religião, ausência de moral,
absoluta ausência do senso de dever... Ah, como estou sendo castigado por
encobrir o procedimento dele... Foi por você que o fiz, e é essa a minha
recompensa.
NORA Pois é...
HELMER Agora você destruiu a minha felicidade, aniquilou o meu futuro.
Não posso pensar nisso sem estremecer. Eis-me nas mãos de um homem sem
escrúpulos: pode fazer de mim o que quiser, mandar, ordenar à sua vontade,
que eu não me atreverei a balbuciar uma palavra sequer. E assim me vejo
reduzido a nada, rebaixado pela inconsequência de uma mulher. (IBSEN,
2007 p. 90-91)
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Ibsen empregou as concepções mais inovadoras de sua época, explorando as


noções de hereditariedade e supremacia do ambiente sobre o indivíduo. Quando Nora
assina os papéis da dívida em nome de seu pai, ela se coloca em seu lugar e age em seu
nome. Pela sua falsa assinatura, Nora comete um ato ilícito. No decorrer da peça,
ficamos sabendo que o pai teve que passar por uma investigação jurídica, a qual havia
sido conduzida por Torvald Helmer. Mesmo que ele, o pai, tenha escapado da prisão,
graças à intervenção de Helmer, o estado de seus negócios dera lugar a um escândalo
revelado pela imprensa. Nora perpetua então, em certo sentido, os gestos do pai. Ela
corre, sem o saber, o risco de sofrer a pena de prisão da qual o pai havia escapado.
Dívida e castigo, aí estão as realidades com as quais Nora entra em contato quando arca
com a responsabilidade de salvar a vida de seu marido:

O naturalismo de que Ibsen é um dos maiores expoentes parece, pela sua


própria concepção do homem, pouco adequado a uma dramaturgia de rigor
aristotélico. Influenciado pelas ciências biológicas e sociais, concebe o
homem como ser determinado por fatores hereditários e pelo ambiente.
(ROSENFELD, 2004, p. 88)

Desse modo, podemos dizer que os personagens de ibsen são impulsionados


por aspectos: a hereditariedade, a confissão e o sacrifício de si mesmo. A
hereditariedade justifica todas as falhas dos personagens, explica todos os males que os
afligem. A confissão tranquiliza as consciências, ameniza as faltas e elimina as
consequências. Tem uma função purificadora. O sacrifício, a abnegação, se contradiz na
medida em que funciona como um momento de rompimento.
Enquanto discursa irritado, Torvald é interrompido pela chegada da criada,
que traz outra carta de Krogstad, endereçada a Nora. Krogstad havia mudado de ideia e
estava devolvendo a promissória. Rapidamente, Torvald diz a Nora que ele a perdoa.
Então, Nora, aquela que poupou o pai, salvou o marido, contraiu um empréstimo com
um agiota, falsificou a assinatura de um homem, economizou e trabalhou para pagar a
dívida contraída, vendo a verdadeira personalidade de seu marido, decide abandonar o
lar.

NORA Ah, Torvald, não, você não é o homem indicado para me ensinar a ser
uma verdadeira esposa.
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HELMER E é você quem diz isso?


NORA E eu... de que maneira estaria preparada para educar meus filhos?
HELMER Nora!
NORA Não é o que você dizia ainda há pouco... que essa tarefa você não
ousaria me confiar?
HELMER Disse num momento de irritação. Você não deve dar atenção a
isso.
NORA Ah, mas você estava absolutamente certo. É uma tarefa superior às
minhas forças. Primeiro quero cumprir uma outra. Devo tentar educar a mim
mesma. E você não é o homem indicado para me ajudar nessa tarefa. É algo
que eu devo empreender sozinha. E para isso eu vou deixá-Io. (IBSEN, 2007,
p. 97)

A linguagem teatral é marcada pelo diálogo, mas o diálogo não resolve o


problema de Nora, então é preciso causar um movimento, que é a sua saída de casa, a
qual resulta em um rompimento. Temos aqui, então, um conteúdo que abala a forma, ou
seja, uma crise. Outro aspecto da crise é a questão do tempo em que os personagens
tentam solucionar o passado como forma de desbloquear o presente. O desbloqueio não
vem. O presente não muda. Há tentativas de livrar-se do peso do passado, mas tudo está
bloqueado, nada acontece. Por isso, Nora opta pelo rompimento. Como aponta Szondi
(2001, p. 34), “da possibilidade de diálogo depende a possibilidade do drama”, mais
radical que o ato de uma mulher abandonar casa, marido e filhos, é a incapacidade de
diálogo que uma sociedade de classes produz.
Diante de toda essa situação, cercada de conforto proporcionado pela vida
material, é posta no palco a família burguesa. Helmer é o pai, o marido, o senhor
honesto e respeitado, cuja função é manter a paz, o conforto e a harmonia do lar. Nora é
a mãe, a esposa ignorante e tola, cuja única tarefa, cuidar do marido, dos filhos e dirigir
os criados, não exige qualquer inteligência nem conhecimento. Um casal aparentemente
perfeito e feliz, até Nora falsificar a assinatura de seu pai, cujo ato Helmer, como muitos
moralistas, não fica exasperado com o delito da esposa, mas sim com a ameaça de
perder sua posição de prestígio na sociedade. No desfecho, Nora frustra-se com a
atitude do marido, repensa sua situação de inferioridade. Desse modo, com essa peça, os
críticos acreditam que Ibsen abriu caminho para a tragédia, pois foi a primeira solução
trágica do autor: Nora abandona marido e filhos em busca de uma identidade autônoma
e autodefinida, fato que a peça, ao ser encenada, despertou muitas polêmicas e
comentários. Na época, mediante as tentativas de emancipação feminina, foi uma peça
revolucionária, com grande repercussão entre feministas, a Europa inteira a discutiu.
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Houve censuras lançadas contra a personagem principal, Nora, pois a época não
perdoou seu abandono do lar. Em Casa de bonecas, Ibsen:

Assinala a contradição entre a estrutura da família patriarcal e a sociedade


burguesa. Por um lado, ele questiona como um mundo baseado numa
economia de obtenção de lucro, na livre iniciativa, na igualdade de direitos,
oportunidades e liberdade pode apoiar-se na instituição do matrimônio, que
nega todos esses ideais; e por outro, denuncia o cerceamento da liberdade e
dos direitos das mulheres. (SILVA, 2007, p. 18)

A família em foco, dita como burguesa, apresenta, de forma recorrente a


preocupação com as finanças da casa, cabendo ao homem administrar, visto que a
questão financeira está subjacente ao drama. A ideia de posse sobre a esposa está
presente desde as primeiras falas do senhor Helmer. Torvald mostra uma generalização
que vê a mulher como incapaz de pensar em negócios ou em tudo aquilo que possa ir
além dos limites do lar. Helmer leva quase todos os três atos a declamar frases banais
sobre a responsabilidade de esposo e que deve tomar a si todos os erros da esposa.
Contudo, no momento crítico de pôr à prova as suas afirmações, ele recua aterrado
diante das consequências do crime inconsciente de sua mulher e a trata como a mais
miserável pecadora. Torvald é vazio, o único personagem em que seu passado é
desconhecido, não sabemos nada dele. Para ele, o que importa é o presente idealizado.
No entanto, é o passado que retorna sempre para assombrar o presente dos personagens
e também para influenciar o sentido dramático do eterno retorno dos erros e das culpas.
Ibsen apresenta a impossibilidade do presente devido aos conflitos do passado:

[...] os personagens principais vivem quase totalmente no passado, como que


fechados na intimidade lembrada que os isola dos outros personagens. Só
graças a um golpe de força se torna possível o diálogo inter-humano que
deverá revelar este passado imenso que pesa sobre as suas vidas. Nisso se
manifesta a arte de Ibsen que consegue com maestria encobrir o tema épico
pela estrutura dramática, através de uma ação acessória que se desenvolve na
breve atualidade de um ou dois dias. Mas esta ação atual, dramática, não
disfarça o fato de que os eventos fundamentais são do passado e que a
evocação dialogada do acontecido, por mais magistral que seja e por mais
que atualize os vários eventos do passado, não consegue captar em termos
cênicos o próprio tempo, a nuvem do passado como tal que sufoca a vida
desses personagens. (ROSENFELD, 2004, p. 85-86)
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Conforme Otto Maria Carpeaux (1944, p. 63), “o destino das suas


personagens é determinado inexoravelmente pelas forças do seu passado, pela
lembrança inextinguível e vingadora de crimes perpetrados ou tencionados em épocas
anteriores da sua vida”. Szondi (2001, p. 44) mostra como o drama moderno de Ibsen
empreende uma total inversão da técnica analítica, tal como se dava em Édipo Rei. Nas
peças de Ibsen, a situação do presente não é muito mais do que um pretexto para a
evocação do passado. As personagens surgem para discutir um passado que ainda
permanece vivo e incômodo no presente: “por mais que esteja atada a uma ação
presente (no duplo sentido do termo), ela continua exilada no passado e na interioridade.
Esse é o problema da forma dramática em Ibsen”.
Nora se apresenta como uma “bonequinha de luxo”, uma “cotoviazinha”,
um “esquilo”, uma “menininha”, uma “cabeça-de-vento” e é justamente a sua aparente
fragilidade, ingenuidade e leviandade que atua em favor de sua adesão, construindo as
bases de um processo de caracterização que culminará no desfecho “impactante” do
drama. Embora Nora seja configurada como inferior e submissa ao marido, é ela quem
movimenta e quem tem conhecimento de toda a trama. Muita coragem e astúcia foram
necessárias para realizar o empréstimo, sem o consentimento do marido e falsificando a
assinatura do pai. Isso mostra que nora, ao contrário do que podemos pensar em uma
primeira leitura da peça, não é uma mulher vitimizada, mas sim forte, decidida, capaz de
qualquer coisa para conseguir o que quer. Nora “dominou a cena por todo o tempo
necessário à exposição da crise dos papéis na sociedade patriarcal burguesa” (COSTA,
1998, p. 178).
Nora, no decorrer da peça, espera um milagre, ou seja, deseja que seu
marido se sacrifique por ela, mas nada disso acontece, pois seu relacionamento é apenas
aparência social. Quando Torvald lhe mostra as consequências que a sua leviandade
acarretaria, ela, além de conhecer, então, o egoísmo do marido, percebe que as leis são
iníquas e contraditórias. Assim, a personagem reconhece que fora uma boneca nas mãos
do pai e do marido e começa a compreender a sua posição na vida e a sua cega
obediência ao marido e ao resto da sociedade. Nora sai de casa, porque precisa descobrir
a sua verdadeira identidade. A revolta de Nora, no fim, não é a conquista da liberdade,
mas sim a conquista da consciência de que ela não tinha liberdade. A personagem se
torna um ser consciente, seguro de si, contrapondo-se a imagem inicial de histeria,
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obcecada pela ideia fixa do crime que cometeu. A lucidez da reação de Nora faz
estremecer a própria tessitura dramática:

HELMER Parece uma criança falando. Você não entende nada da sociedade
de que faz parte.
NORA Não, nada entendo. Mas quero chegar a entender e certificar-me de
qual de nós tem razão: se a sociedade ou se eu.
HELMER Você está doente, Nora, tem febre: quase me convenço de que
perdeu o juízo.
NORA Sinto-me esta noite mais lúcida e mais segura de mim do que nunca.
(IBSEN, 2007, p. 99)

A princípio tudo isso a confunde e a atordoa, por isso sua revolta contra a lei
que condena um ato sem compreender o objetivo que o determinou. Mas, depois de
adquirida a noção da realidade prática da vida, todo o egoísmo do marido surge ao seu
espírito como um impulso revelador de seu livre-arbítrio. Para tentar resgatar sua
integridade e firmar-se como sujeito, Nora precisa abrir mão do conforto e segurança e,
assim, enfrentar o desconhecido e o incerto. Contudo, nem mesmo os protestos de um
público moralista, inconformado com a ação extremada da personagem, consegue
deturpar a integridade moral de uma protagonista que se mantem em oposição à
degradação de valores representada na peça por Torvald.
O casal que, após oito anos juntos, conquistou a estabilidade financeira, tem
sua casa desmoronada. Ao construir Torvald como um marido protetor, trabalhador e
bem sucedido, e Nora como uma esposa exemplar em seu lar, Ibsen coloca tipos ideais
em cena. É uma relação de fachada, com interesses bem determinados, para manter o
prestígio diante da sociedade. No entanto, a degradação dos valores se mostra no
momento em que Nora decide abandonar o lar. No desfecho, ao despir-se da roupa de
dançar a tarantela, seria como despir-se das máscaras vestidas conforme o jogo imposto
pela sociedade burguesa.

Considerações finais

Ibsen ao construir Nora, como a protagonista que transgride as convenções,


causa abalos na forma teatral, ou seja, ao tratar de um tema hostil ao drama, a
universalidade dos direitos, e colocar em pauta uma discussão sobre um ato cometido
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no passado, abre espaço para uma crise do drama burguês. Sendo assim, o autor
questiona a liberdade do indivíduo numa sociedade de classes, apontando para o limite
da liberdade individual dentro desse sistema, o qual na medida em que a mercadoria se
humaniza o próprio homem se desumaniza.
Casa de bonecas apresenta, de forma contundente, o desmascaramento dos
personagens que tentam se enquadrar na estrutura familiar patriarcal burguesa. Contudo,
o momento de rompimento com essa idealização se dá com o impacto da ação dramática
como ação moral, ou seja, com a saída de Nora de casa, abandonando os filhos e
marido, a fim de descobrir quem é e por que é, pois a máscara que veste não produz
liberdade e individualidade. Portanto, Ibsen introduz em sua dramaturgia um novo tipo
de composição, ao expor os limites do jogo social norteado sob as regras do homem e
do capital.

Referências
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Porto Alegre: Globo, 1944.

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________. Sinta o Drama. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

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SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1850-1950]. Tradução Luiz Sérgio Repa.
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ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.


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SILVA, Jane Pessoa. Ibsen no Brasil: historiografia, seleção de textos críticos e


catálogo bibliográfico – 3 volumes. 2007. Dissertação (Mestrado). Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas. USP. São Paulo.

WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. Tradução Betina Bischof. São Paulo: Cosac
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