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Resumo
Henrik Ibsen é uma figura central na história do teatro moderno, pois suas peças
inauguraram uma nova forma de experimentação teatral ao incorporar os problemas de
seu tempo, trazendo à tona a hipocrisia da sociedade mantida por convenções,
diferenciando-se, assim, do drama burguês. A partir de Ibsen, o teatro deixa de ser visto
apenas como uma forma de entretenimento, passando a ser encarado também como um
instrumento de experiência social, uma vez que sua dramaturgia tem a intenção de
desmarcar a sociedade burguesa, alicerçada na figura do “lar”. Com efeito, publicada no
ano de 1879, Casa de Bonecas tem como temática uma situação casual da vida de uma
família burguesa que é aparentemente bem estruturada, conforme as exigências da
sociedade da época. Nora é uma mãe de família, jovem, bonita e que fora bem
preparada para seu posto e seus afazeres; Torvald é o provedor da casa, o responsável,
ao menos aparentemente, pelas decisões que envolvem os que estão sob seus cuidados:
mulher e filhos. O maior conflito da peça gira em torno desses dois personagens,
contudo a ênfase recai sobre o personagem masculino, o qual fora definido por Peter
Szondi como sendo vazio, por ser o único a não apresentar um passado aberto. Nesse
sentido, o objetivo de nosso trabalho centrar-se-á na análise desses dois personagens e
de outros elementos constituintes dessa peça que é considerada um dos marcos do
Drama Moderno. Para esta análise, tomaremos como aporte teórico, dentre outros, os
trabalhos de Anatol Rosenfeld e Peter Szondi.
Introdução
Na segunda metade do século XVIII, a sociedade ocidental se caracterizava
pelo enfraquecimento do regime feudal. Embora a nobreza e o clero ainda possuíssem
uma grande parte de terras, o agricultor e o camponês haviam se tornado também
proprietários destas. O artesanato e o comércio disseminavam-se entre a população, bem
como o estabelecimento da burguesia enquanto classe e sua expansão econômica e
social. Desse modo, com a ascensão dessa nova classe, é proposto um teatro sério que
representasse a burguesia, onde seriam exaltados os seus valores, tais como família,
trabalho, sucesso, em oposição ao teatro clássico, no qual a burguesia era apresentada
em papéis que representavam o ridículo.
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tenha sido taxado de imoral e até pornográfico, suas peças têm na verdade um caráter
moralizante:
máscaras de uma sociedade em crise é o ponto de partida para uma nova estrutura
dramática. A primeira peça contundente nesse sentindo foi Casa de bonecas, que será
nosso objeto de estudo durante este trabalho.
andar superior, sendo mencionadas pelas réplicas dos personagens que estão na sala.
Isso ajuda a dar verossimilhança externa aos fatos, uma vez que na vida as coisas
também acontecem simultaneamente. E, além disso, a sala representa o ambiente da
família burguesa, a começar pelo título que remete a esse mundo manipulável. O
problema formulado em Casa de bonecas se apresenta atual na medida em que
continuamos personagens do capital, tendo o dinheiro como base de nossas relações.
Em Casa de bonecas são poucos os personagens centralmente envolvidos
no drama: Nora Helmer, a esposa; Torvald Helmer, advogado; Cristina Linde, uma
amiga de longa data de Nora. Doutor Rank, amigo do Sr. Helmer; e Krogstad, quem vai
deflagrar o primeiro conflito na família.
Quando a peça se inicia, é véspera de Natal – data intencionalmente
empregada, pois representa a união familiar – e Torvald havia sido promovido a gerente
do banco, o que faria com que sua condição financeira melhorasse. Nora, sua esposa,
fica entusiasmada, já que, assim, poderia finalmente pagar a dívida que contraíra com
um empréstimo, feito por Krogstad. Tal dinheiro havia sido emprestado a fim de pagar
uma viagem à Itália para salvar a vida de Torvald, seu marido, que estava seriamente
doente. A problemática se dá pelo fato de que Nora, ao emprestar o dinheiro, forja a
assinatura de seu pai em uma nota promissória e este acaba morrendo pouco tempo
depois. Torvald nada sabia sobre seu estado de saúde nem sobre a origem do dinheiro,
que ele acreditava ter sido dado pelo pai de Nora.
A situação seguia estável até o dia em que Krogstad chegara para uma
conversa, pois acabara de saber que seu cargo no banco de Torvald fora prometido para
a sra. Linde, amiga de Nora e sua namorada no passado, mas o deixou para se casar por
conveniência. Krogstad ameaça Nora de contar o seu segredo a Torvald e denunciá-la,
caso ela não convencesse o marido a mantê-lo no emprego. Nora, de várias formas,
tenta convencer Torvald, mas sem sucesso.
Desse modo, Krogstad escreve uma carta a Torvald, contando todo o
ocorrido, e a deixa em sua caixa de correio. Entretanto, Nora usa de artimanhas para
impedir que Torvald leia a carta, distraindo-o dos negócios ao pedir que ele a ajudasse a
praticar a dança para o baile da noite seguinte. Ele concorda em deixar os negócios de
lado até o final do baile.
Na noite seguinte, antes que Torvald e Nora voltassem do baile, a sra. Linde
e Krogstad, antigos amantes, se reúnem na sala de estar dos Helmer e, então, ela o
convence a voltar atrás quanto a carta denunciando Nora, mas Torvald já estava com a
carta em mãos e a lê. Torvald acusa Nora de arruinar sua vida, e dá a entender
claramente que pretende denunciá-la, desmentindo sua afirmação anterior de que seria
responsável por ela em qualquer situação.
HELMER (caminhando, agitado, pela sala) Ah, que terrível despertar! Oito
anos! ... Durante oito anos você foi a minha alegria e o meu orgulho... e agora
vejo que é uma hipócrita, uma impostora... pior ainda, uma criminosa! Que
abismo de torpezas! Ah, que horror!
NORA (muda, continua a olhá-Ia fixamente)
HELMER (parando em frente a ela) Eu devia ter sabido que uma coisa dessas
iria acontecer. Devia tê-Io previsto. Com os princípios levianos de seu pai...
princípios que você herdou! Ausência de religião, ausência de moral,
absoluta ausência do senso de dever... Ah, como estou sendo castigado por
encobrir o procedimento dele... Foi por você que o fiz, e é essa a minha
recompensa.
NORA Pois é...
HELMER Agora você destruiu a minha felicidade, aniquilou o meu futuro.
Não posso pensar nisso sem estremecer. Eis-me nas mãos de um homem sem
escrúpulos: pode fazer de mim o que quiser, mandar, ordenar à sua vontade,
que eu não me atreverei a balbuciar uma palavra sequer. E assim me vejo
reduzido a nada, rebaixado pela inconsequência de uma mulher. (IBSEN,
2007 p. 90-91)
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NORA Ah, Torvald, não, você não é o homem indicado para me ensinar a ser
uma verdadeira esposa.
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Houve censuras lançadas contra a personagem principal, Nora, pois a época não
perdoou seu abandono do lar. Em Casa de bonecas, Ibsen:
obcecada pela ideia fixa do crime que cometeu. A lucidez da reação de Nora faz
estremecer a própria tessitura dramática:
HELMER Parece uma criança falando. Você não entende nada da sociedade
de que faz parte.
NORA Não, nada entendo. Mas quero chegar a entender e certificar-me de
qual de nós tem razão: se a sociedade ou se eu.
HELMER Você está doente, Nora, tem febre: quase me convenço de que
perdeu o juízo.
NORA Sinto-me esta noite mais lúcida e mais segura de mim do que nunca.
(IBSEN, 2007, p. 99)
A princípio tudo isso a confunde e a atordoa, por isso sua revolta contra a lei
que condena um ato sem compreender o objetivo que o determinou. Mas, depois de
adquirida a noção da realidade prática da vida, todo o egoísmo do marido surge ao seu
espírito como um impulso revelador de seu livre-arbítrio. Para tentar resgatar sua
integridade e firmar-se como sujeito, Nora precisa abrir mão do conforto e segurança e,
assim, enfrentar o desconhecido e o incerto. Contudo, nem mesmo os protestos de um
público moralista, inconformado com a ação extremada da personagem, consegue
deturpar a integridade moral de uma protagonista que se mantem em oposição à
degradação de valores representada na peça por Torvald.
O casal que, após oito anos juntos, conquistou a estabilidade financeira, tem
sua casa desmoronada. Ao construir Torvald como um marido protetor, trabalhador e
bem sucedido, e Nora como uma esposa exemplar em seu lar, Ibsen coloca tipos ideais
em cena. É uma relação de fachada, com interesses bem determinados, para manter o
prestígio diante da sociedade. No entanto, a degradação dos valores se mostra no
momento em que Nora decide abandonar o lar. No desfecho, ao despir-se da roupa de
dançar a tarantela, seria como despir-se das máscaras vestidas conforme o jogo imposto
pela sociedade burguesa.
Considerações finais
no passado, abre espaço para uma crise do drama burguês. Sendo assim, o autor
questiona a liberdade do indivíduo numa sociedade de classes, apontando para o limite
da liberdade individual dentro desse sistema, o qual na medida em que a mercadoria se
humaniza o próprio homem se desumaniza.
Casa de bonecas apresenta, de forma contundente, o desmascaramento dos
personagens que tentam se enquadrar na estrutura familiar patriarcal burguesa. Contudo,
o momento de rompimento com essa idealização se dá com o impacto da ação dramática
como ação moral, ou seja, com a saída de Nora de casa, abandonando os filhos e
marido, a fim de descobrir quem é e por que é, pois a máscara que veste não produz
liberdade e individualidade. Portanto, Ibsen introduz em sua dramaturgia um novo tipo
de composição, ao expor os limites do jogo social norteado sob as regras do homem e
do capital.
Referências
CARPEAUX, Otto Maria. “Ensaio sobre Henrik Ibsen”. In: Henrik Ibsen, seis dramas.
Porto Alegre: Globo, 1944.
COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1996.
IBSEN, Henrik. Casa de bonecas. Tradução Maria Cristina Guimarães Cupertino. São
Paulo: Editora Veredas, 2007.
SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1850-1950]. Tradução Luiz Sérgio Repa.
São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
ROSENFELD, Anatol. “Navalha na nossa carne”. In: ______. Prismas do teatro. São
Paulo: Perspectiva, São Paulo: EDUSP, Campinas: EDUNICAMP: 1993. (Debates,
256). p. 143-144.
WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. Tradução Betina Bischof. São Paulo: Cosac
& Naify, 2002.