Você está na página 1de 4

INTERAÇÃO E CONVERGÊNCIA NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO1

GARCÍA CANCLINI, Néstor; GOLDBERGER, Ana (Trad.). Leitores, espectadores e


internautas. São Paulo: Iluminuras, 2008.

Tcharly Magalhães Briglia2

Néstor Garcia Canclini é um antropólogo argentino e autor de reconhecidas obras na


área de cultura e globalização, tais como Culturas híbridas (1990). É diretor do Programa de
Estudos sobre Cultura Urbana do Departamento de Antropologia da Universidade Autônoma
Metropolitana, no México. Premiado por suas publicações, o escritor também lecionou em
diversas universidades europeias e americanas. Em Leitores, espectadores e internautas
(2008), o autor traça um perfil crítico acerca da relação entre o público e a arte no mundo
globalizado, trazendo à cena discussões acerca da leitura, do mundo da internet e das
conexões entre a audiência e os meios de comunicação. O livro está disponível na internet, na
íntegra, por conta do projeto Observatório Itaú Cultural, responsável por divulgar temas
referentes à política cultural. A edição do livro de Canclini faz parte de uma das ações do
projeto: os livros do Observatório. A obra em apreço é marcada pela linguagem ironicamente
arquitetada pelo pesquisador, que faz do seu estudo um grande glossário crítico acerca das
condições de produção cultural e o papel do cidadão/consumidor/espectador/leitor/internauta,
enfim, das inúmeras formas de recepção que caracterizam o mundo pós-moderno, onde não
convence mais falar em fronteiras bem definidas, mas sim, numa completa hibridização de
manifestações artísticas, científicas, sociais e políticas.
Desde a apresentação, leitor, espectador e internauta são colocados num mesmo
patamar, haja vista a série de complicações inerentes aos novos processos de relação com a
leitura e com as mídias na contemporaneidade. A leitura já se dá na tela do computador, os
arquivos de músicas são disseminados numa velocidade incomensurável, as formas de
relacionamento atingem altos índices de interatividade, logo, a postura desse público é muito
distinta do que outrora, o que coloca os pesquisadores num universo de indecisão e
convergências atípicas para os cientistas apegados às verdades comprovadas. O livro é
dividido em vinte e oito capítulos, organizados em ordem alfabética. Cada verbete desse
1
Trabalho apresentado como avaliação parcial da disciplina Comunicação e Realidade Brasileira,
ministrada pela professora Verbena Córdula Almeida, no curso de Comunicação Social - Rádio e TV,
da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC.
2
Graduando do 3º semestre do curso de Comunicação Social – Rádio e TV, da Universidade Estadual
de Santa Cruz.
2

grande dicionário crítico que é a obra traduz um pouco os significados inerentes ao mundo da
recepção pós-moderna. A primeira palavra sugere o assombro que antes se dava diante de
novas culturas, fenômeno hoje esvaziado pela confluência de manifestações artísticas de
diferentes países num mesmo local. Não se precisa mais ir à França para degustar a comida de
um típico restaurante francês. Nessa seara, torna-se difícil enquadrar as audiências em estudos
homogeneizantes. As políticas públicas de propagação da cultura acabam também por não dar
conta da desigualdade social e são absorvidas pela esperta lógica do mercado. A fusão entre
empresas, linguagens e corporações mostra o quão complicado se torna fazer uma descrição
cartesiana. O cenário no qual vive o internauta do mundo moderno é marcado pela
mercantilização da produção cultural. Ele próprio é um agente multimídia que recebe e
produz conteúdos. Questiona-se, no entanto, se essa conectividade tão exacerbada vai gerar
um pensamento mais crítico.
A obra prossegue numa análise da sociedade contemporânea. O recurso do glossário
mostra-se eficiente e estimulante. O leitor se vê cada vez mais transformado na medida em
que avança pelos verbetes. Ao estabelecer a distinção entre cinéfilos e videófilos, Canclini
põem em questão o aumento do consumo de vídeos e DVDs em contrapartida à diminuição do
número de espectadores das salas de cinema. Em seguida, retoma uma discussão presente em
outra de suas obras, Consumidores e Cidadãos (1995), confrontando o status do consumidor
na sociedade do consumo. Ser cidadão tem estado, cada vez mais, ligado à participação nas
esferas consumidoras. Outro aspecto da vida moderna que mostra a conexão entre diferentes
arenas é a convergência digital, responsável por configurar o acesso aos bens culturais, a
partir do momento em que rádio, TV, música, leitura e internet ficam mais confluentes e
hibridamente complementadas. Tal relação tem posto em xeque a criatividade artística e
acendido o debate sobre os direitos autorais e a privacidade no mundo cibernético. O objeto
artístico tem sido visto mais como fonte de lucro do que como objeto de fruição estética.
Assim, a relação com a comunicação e com a arte muda por completo, considerando que o
internauta está imerso num cenário no qual o próprio corpo é transformado. Ele lê, usa o
celular e acessa suas plataformas de comunicação com habilidades típicas do indivíduo da
sociedade convergente, se assim podemos conceituá-la.
Interessante que, ao chegar ao verbete “dicionário”, o autor opta por afirmar que esses
livros deveriam ser um compêndio de perguntas e não de respostas, algo que ele mesmo faz
ao longo de toda a obra, trazendo novas problematizações em cada novo capítulo. Nesse
sentido, ele próprio se abstém de apontar definições precisas para espectadores e para a
globalização. Afirma sim que a interatividade é um motor desse fenômeno comunicacional
3

que tem se desenhado nos últimos anos e que não possibilita previsões. Embora as fronteiras
de comunicação tenham diminuído, é importante lembrar-se de que estar conectado nem
sempre é sinônimo de estar participando ativamente de algo. Sabe-se que leitores e internautas
são partícipes de um processo que recorta os limites pré-definidos e aumenta as possibilidades
de participação e escolha, ainda que essas se deem de forma controlada pelos que detém o
monopólio da emissão de conteúdo. É só comparar a disparidade de tempo que há entre fazer
um download e um upload. Mais discussões pertinentes são colocadas nos capítulos
seguintes. A “indefinição” do conceito de local e global, por exemplo, é um sintoma da
contemporaneidade. Até que ponto o acesso facilitado às manifestações artísticas e sociais de
um dado povo tem promovido o acesso democrático à produção humana sem prejudicar as
peculiaridades de cada povo? Esses são dilemas nos quais pesquisadores e cientistas se
envolvem, já que boa parte da população está mais envolvida com o processo de inserção
mercadológica do que epistemológica. As marcas das roupas, as produtoras dos filmes, os
donos das grandes empresas são os grandes entusiastas dessa propagação do consumo
desmedido.
Segundo a ótica exposta no livro, os leitores, espectadores e internautas são envolvidos
num processo de perda de identidade e assumem posturas múltiplas, a ponto de se questionar
até mesmo a funcionalidade dos museus, redutos de uma tradição desprivilegiada e que são
obrigados a se adequar a uma lógica de arte multimidiática. Canclini chega a construir um
capítulo em cima de uma fina ironia que especula os formatos, locais e ações de um museu
pós-moderno. Nos verbetes que finalizam a obra, outros debates são propostos, como a
problematização da noção de leitor e de escritor no mundo contemporâneo, o que faz do leitor
o personagem mais delicado do universo literário. Outra polêmica discussão levantada recai
sobre os direitos autorais, haja vista a banalização da pirataria. Também não se ignora os
níveis de suspeição referentes aos lucros dos bancos e à questionável solidariedade da TV,
ambos com programas de teor filantrópico que se arquitetam mais como ferramentas de
controle e autopromoção do que como mecanismos de ação efetiva contra a desigualdade
social.
Como viver então, nesse mundo de simulacros? Aceitando uma única verdade é que
não pode ser. Só mesmo assumindo o desafio de atuar como leitor, espectador, internauta,
produtor e receptor de conteúdo. A obra de Canclini atinge o cerne de uma discussão
altamente atual, que é a convergência de mídias, de artes e o inevitável deslocamento do
indivíduo. Viver na sociedade contemporânea e participar, pelo menos em parte, das ações e
discussões relevantes, impõem um modelo de vida no qual a informação desempenha papel
4

crucial. O livro instiga o leitor a rever suas posturas diante do que recebe e a saber se
apropriar da interatividade que dispõe sem se deixar levar pelos discursos dos que querem
manter o monopólio. É natural que, nesse contexto, outros desafios sejam lançados,
especificamente no terreno da ética, do compromisso social e dos meandros relativos à noção
de consumo e cidadania. Nesse sentido, a obra não é indicada só para estudantes de
Comunicação e áreas afins, mas para todos que compõem a sociedade e que mudam de papel
a cada instante. Saber lidar com o nível de cultura e de informação oferecido pela ascensão do
mundo digital é um desafio similar à revolução imposta pelas novas comunicações. Eliminar
os ruídos ao máximo é tarefa para leitor, espectador e internauta nenhum se queixar.

Você também pode gostar