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chega a Montmartre e, em meio àquela exci- mento, mesmo sabendo que por trás dele virá
tação da época no bairro boêmio e é alertado um novo segredo e assim sucessivamente.
por um padre: “este é um antro de perdição”. Eco (1995) afirma que em algum ponto, o
Conforme a polêmica entre Eco, Culler e texto permanece secreto por não possuirmos
Rorty no livro Interpretação e Superinter- a chave que o decodifica. Um bom exemplo
pretação, a controvérsia entre quais são os para descrever de forma empírica o que se-
limites em que se pode interpretar e quais os ria o processo de semiose hermética são as
que se usa o texto para um proveito idiossin- babushkas, tradicionais bonecas russas que
crático, fica em um lugar entre as intenções se encaixam uma dentro da outra, mas para
autorais, intenções textuais e as intenções do tanto, teríamos que pensá-las num plano in-
leitor, além de apontar na direção dos pós- finito, até onde seriam perdidas por nossas
estruturalistas como os principais “utilizado- vistas.
res” de textos.
Para fins metodológicos, esclareço que, na
2 Experimentando o modelo
maior parte desta análise, houve uma inter-
pretação, “respeitando a perspectiva cultural semiótico em um filme
e lingüística do texto” (Eco, 1995, p. 84), co- prêt-a-porter
locando uma lupa semiótica para ampliar as
A construção do seguinte modelo5 de análise
percepções abdutivas e também para tentar
semiótico em nível teórico e sua aplicação
confirmá-las ou desconfirmá-las, tirando do
instrumental, muitas vezes, assemelha-se
nível obtuso as marcas e os indícios inscritos
com uma prostituição filosófica, da mesma
no filme. Em alguns momentos, no entanto,
forma que Satine (Nicole Kidman), a mais
o uso da obra torna-se inevitável, uma vez
bela cortesã do Moulin Rouge, entrega-se aos
que, de acordo com Culler (1997, p. 101),
ávidos clientes do cabaré parisiense. Con-
“a desconstrução apela para um princípio ló-
tudo, além de uma modelização das estraté-
gico mais elevado ou a razão superior, mas
gias de leitura ele é uma tentativa para ler
usa3 o próprio princípio que desconstrói”.
a cultura contemporânea e seus significados,
Um outro fator a ser considerado é o da
através de um de seus mais híbridos produ-
semiose hermética como método, num nível
tos: o cinema. Faz-se necessária uma teo-
em que, como afirma Eco (1995) os livros
rização que tente visualizar as marcas desse
são interpretados como mundos. Essa se-
sistema complexo de inter-relações, que se
miose hermética é um processo que remete
manifestam em produtos como a TV, os qua-
a busca do homem pelo conhecimento, pela
drinhos, a música, o cinema, etc. Assim
verdade, que vai dos alquímicos e gnósticos
sendo, torna-se imprescindível uma ferra-
aos filósofos como Nietzsche e Heidegger e
menta que exponha os sintomas, indícios, as
também Derrida. Esse caminho é uma pro-
cura pela senha4 que dá acesso ao desvela- que também podemos transpor para o mundo contem-
porâneo das senhas do banco, do cartão de crédito, do
3
Grifo meu correio eletrônico, etc.
4
Esta senha também é um mito que está arraigado 5
O modelo de análise semiótico é o de Eco.
até nos orientais, basta ver o exemplo da fábula de Ali
Baba, aonde o abracadabra abre as portas da caverna e
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marcas que se encontram no seio dessa cul- Ele é produto e produtor de uma cultura pró-
tura. pria. Uma vez isoladas as marcas, é possível
Esse modelo — apesar de não ser perfeito tirarmos uma amostragem cultural que, mais
como o vestido vermelho estonteante de Sa- uma vez, nos remeterá ao sujeito/ receptor
tine em uma das seqüências do filme — pode do produto cultural. Esse pacto de interpre-
ser pensado enquanto a procura de um novo tação do qual nos fala Bhabha (1998), tam-
sentido à questão da ideologia em meio à bém pode ser relacionado ao que Eco (1989)
anti-representatividade como quer um prag- chama de pacto ficcional, ou seja, um con-
matista como Rorty (1997, p. 227). “Mas trato de leitura que prevê a cooperação entre
o modo mais eficiente de expor ou desmis- leitor e autor em um mundo possível,
tificar uma prática existente parece consistir
em sugerir uma prática alternativa, e não em com respeito a esta riqueza de im-
criticar a atual”. plicitações, promessas argumenta-
Essa busca por um caminho que não fique tivas, pressuposições remotas, o
atrelado às oposições binárias talvez venha a trabalho de interpretação impõe
ser, como define Bhabha (1998), um terceiro a escolha de limites, a delimita-
espaço. Um entre-lugar, no qual haja uma ção de rumos interpretativos e, por
tradução dos símbolos na efervescência de conseguinte, a projeção de univer-
distintas culturas. O terceiro espaço é o lo- sos de discurso. (Eco, 1989, p. 31)
cal das negociações, e nele situa-se o efeito Nesse interstício, a semiótica, através de
da hibridização da cultura sobre os sujeitos. um modelo instrumental de análise, pode dar
conta de dissecar as marcas repetidas que tal-
O pacto da interpretação nunca é vez ancorem6 o próprio sentido do sujeito,
simplesmente um ato de comunica- principalmente via desconstrução. E é na
ção entre o Eu e o Você designa- desconstrução do discurso desse sujeito, em
dos no enunciado. A produção de suas mais diversas formas de expressões ar-
sentido requer que esses dois lu- tísticas, isto é, a partir do que ele(a) lê, do
gares sejam mobilizados na passa- que ela(e) escuta ou assiste possa conter uma
gem por um Terceiro Espaço, que estratégia desconstrutiva que gere uma recu-
representa tanto as condições ge- peração identitária, ampliando os domínios
rais da linguagem quanto a impli- da semiótica para novos recortes teóricos.
cação específica do enunciado em
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uma estratégia performativa e ins- Tomo de empréstimo o conceito de ancora-
titucional da qual ela não pode, em gem para Barthes (1990), para uma tentativa de
desconstruí-lo. A ancoragem barthesiana trata de
si, ter consciência. O que essa re- duas linguagens: a verbal e a visual (especificamente
lação inconsciente introduz é uma a fotográfica), no qual a linguagem verbal (escrita) an-
ambivalência no ato da interpreta- cora a visual, tendo como exemplo as legendas das fo-
ção. (Bhabha, 1998, p. 66) tografias nos jornais. Uma hipótese é que, da mesma
forma, as marcas e/ou indícios e/ou ícones encontra-
dos nos produtos culturais ancorem nossa leitura do
No Terceiro Espaço as marcas do discurso sujeito e, conseqüentemente, de sua identidade. Eis
do sujeito contemporâneo são percebidas. aqui uma questão a ser problematizada.
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Selecionei uma cena quase do final do mas que transforma a significação e o sentido
filme, em que Satine terá um encontro com da película por completo. Na maioria dos
o Duque e, paralelo a isso, Christian começa musicais tradicionais, a música é composta
a se corroer de ciúmes. Entra em cena o para “casar” com o que a história requer. Em
personagem Argentino (Jacek Koman) que é Moulin Rouge, os diálogos foram escritos em
da trupe de Toulouse. Ele interpreta (can- função das canções já existentes. Isso pos-
tando e dançando), para aconselhar Chris- sibilita ao receptor-modelo, além de prestar
tian, a música El Tango de Roxanne que atenção na cena e nos diálogos da música,
serve como trilha das seqüências que des- uma participação cognitiva, por já conhecer
crevo a seguir. Esse tango rasgado trata do previamente a música (claro, isso apenas se
amor de um jovem por uma prostituta e de confirma em relação ao leitor modelo). Há
seu sofrimento pelo ciúme. El Tango de Ro- nesta inversão das condições de produção da
xanne é uma versão em forma de tango de obra uma proposta de jogo intertextual e de
Roxanne, música do The Police, banda de interação proposto pelo autor.
rock dos anos 80. Sting (ex-vocalista e com- No nível das fábulas e mitos que consti-
positor do Police) comenta que a escreveu a tuem a narrativa, pode-se apontar dois que
canção para uma prostituta pela qual ele foi subjazem na leitura do filme (embora esteja
apaixonado quando adolescente. Esse dis- enfatizando o segundo). A primeira estru-
curso percorre todo o texto e repete-se de tura é de A Dama das Camélias, romance de
forma sutil e intertextual durante toda a nar- Alexandre Dumas Filho. Temos uma estru-
rativa. As seqüências de Christian imagi- tura muito semelhante: jovem se apaixona
nando sua amada nos braços do outro é inter- por cortesã e tem dificuldades de lidar com
calada pelas cenas de dança entre o Argen- isso.
tino, uma das prostitutas do Moulin Rouge e O segundo é a reedição do mito de Or-
um dos bailarinos da trupe simulando um tri- feu, o deus grego da música que precisa sal-
ângulo amoroso — em uma remissão explí- var sua Eurídice do “submundo”. Orfeu é
cita a ópera Carmem — e pelas seqüências Christian, Eurídice é Satine, o Duque é Ha-
de Satine fingindo ser agradável com o Du- des e o coro grego está representado pelos
que, mas com o olhar perdido em direção à modernistas da companhia de teatro. O fi-
janela, onde avista Christian caminhando so- nal é infeliz em ambos, a garota morre e Or-
litário, explicitando ainda mais o caráter de feu/Christian transforma seus tormentos em
triângulo amoroso. música/literatura. Em uma entrevista no site
oficial do filme10 , Baz Luhrmann destaca que
3.5 Estruturas Narrativas seus três filmes são baseados em mitos. Vem
dançar comigo estabelece relações com o
Além da estrutura narrativa do amor impos- mito de Davi e Golias, Romeu + Julieta, já
sível devido ao triângulo amoroso, existe um mito por si só e Moulin Rouge traz à tona
aquela própria do gênero musical: a narrativa a questão do mito grego de Orfeu, discutindo
nascida da tensão música (incluindo aqui a a arte e, utilizando como pano de fundo os
parte verbal da letra) e imagem. Todavia, há
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aqui uma aparentemente pequena diferença, www.clubmoulinrouge.com
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tain us!!!” (Aqui estamos. Divirtam-nos!), de comunicabilidade mínimo para sua com-
refrão da canção “Smells like Teen Spirit” preensão pelos mais diversos leitores.
do Nirvana, banda de rock ícone do mo- No que tange ao reconhecimento do leitor-
vimento grunge da década de 90. Através modelo, os intertextos com músicas extrema-
dessa referência percebe-se que o filme diz mente conhecidas do público em geral, tor-
menos a respeito do passado do século XIX nam o jogo semiótico um momento de frui-
do que da virada do século XX para o sé- ção para o leitor. Um belo exemplo pode
culo XXI, recontando a própria história da ser visto na cena em que o casal de prota-
época atual através desse passado estilizado. gonistas interpreta a canção “Elephant Love
É um mundo possível e plausível para aque- Medley”, fazendo um dueto em cima do Ele-
les que esquecem onde estão e entram nele, fante11 do Amor, um dos quartos do Mou-
prestando atenção na narrativa de amor clás- lin Rouge. Essa cena faz uma citação aos
sica, ou então, para aqueles que possuem os grandes pares românticos dos musicais como
códigos e os acessos para nele penetrarem, Ginger Rogers e Fred Astaire (em diversos
estabelecendo as relações entre músicas, fil- filmes) e Olívia Newton John e John Tra-
mes, etc. volta em Grease – Nos tempos da brilhantina
(Grease, Randal Kleiser, 1978), apenas para
citar dois exemplos. A música é um medley
4 Considerações finais – Versão
de canções de amor muito famosas de artis-
remix tas de sucesso como Beatles, David Bowie,
Após esse pequeno experimento do modelo U2, Kiss, Elton John, Whitney Houston, Joe
de análise semiótica de Eco ao cinema de Cocker. Algumas estão iguais às suas letras,
Baz Luhrmann, resta fazer algumas conside- outras tiveram pequenas adaptações de modo
rações, recapitulando algumas questões ini- a fazerem sentido no contexto.
ciais que não foram diretamente respondi- Moulin Rouge possui algumas dualidades
das, embora estejam delineadas. em suas estruturas narrativas e ideológicas.
Em relação às inferências, necessárias E, principalmente, propõe uma inversão en-
para o contrato de leitura entre autor e tre música/imagem dentro do musical. Es-
receptor-modelo, estas são de várias ordens: tes elementos podem ser tomados dentro de
musical (identificar o autor da música como uma leitura semiótica e desconstrucionista,
em “Like a Virgin” ou conhecer a letra como embora tenha sido feito um recorte de algu-
no caso de “Roxanne”); cinematográfica (re- mas categorias. A desconstrução, na visão de
ferências a musicais como A Noviça Re- Culler, não pode ser tratada como método,
belde); literárias (A Dama das Camélias), de modo a não cristalizar o conhecimento.
mitológicas (mito grego de Orfeu) e até cul- Contudo, enquanto modo de leitura ela traz à
turais/informativas (produção indiana de fil- tona alguns paradoxos e inversões que cons-
mes), etc. Essas remissões, no entanto, não tituem determinados textos.
são indispensáveis para a compreensão da 11
O elefante traz consigo outra referência à Índia,
obra, pois o leit-motiv amor entre o jovem por ser um dos símbolos do país e, o elefante do MR
artista e a cortesã permite ao filme um nível está todo ornamentado de forma que sua imagem seja
diretamente relacionada com a Índia.
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10 Adriana Amaral
Finalmente, sobre o leitor modelo de Mou- Por outro lado, se analiso um produto
lin Rouge pode-se dizer que sua competência cultural como Moulin Rouge já não sou eu
enciclopédica deve dar conta tanto do mundo mesma apta a ser o leitor-modelo do filme?
possível do filme quanto de suas intenções Se fui apta a perceber as referências a que
discursivas, estéticas e técnicas. Com cer- ele remete durante minha análise não seria o
teza, ele está escondido observando atrás pesquisador também este leitor-modelo? São
das pesadas cortinas de veludo vermelho que questões surgidas ao longo desse pequeno
abrem a primeira seqüência do filme, e não ensaio, mas que devem ser levadas em conta
na primeira fila de cadeiras como mero es- em futuras discussões.
pectador. As inferências acerca das rela-
ções das músicas (principalmente das letras)
5 Bibliografia
com as imagens e a descoberta das referên-
cias (musicais, cinematográficas, etc) fazem BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. En-
parte do jogo semiótico proposto pelo autor. saios críticos III. Rio de Janeiro: Nova
O autor joga esse texto polifônico em um Fronteira, 1990.
anzol em busca de receptor modelo que pos-
sua as referências “certas”, ou seja, alguém BHABHA, Homi K. O local da cultura.
com uma cultura pop tão grande para música Belo Horizonte: Ed. UFMG. 1998.
quanto Rob Flemming/ Rob Gordon12 e, que, CARVALHO, Luiz Fernando M. Descons-
além disso, seja um admirador de musicais trução. In: JOBIM, José Luis (org.).
— a probabilidade de acertar aqui é maior, Palavras da crítica. Rio de Janeiro:
pois em geral, quem é o típico apreciador Imago. 1992.
de musicais certamente irá assistir ao filme,
uma vez que a produção de musicais não é CULLER, Jonathan. Sobre a desconstrução.
muito ampla atualmente em relação a outros Rio de Janeiro: Record. 1997.
gêneros (embora depois de MR outros musi-
cais como Chicago já estejam sendo produ- ECO, Umberto. Lector in fabula. São Paulo:
zidos). Perspectiva, 1989.
Dessa forma, faz sentido pensar que o
ECO, Umberto. Semiótica e filosofia da lin-
leitor-modelo de Moulin Rouge o seja por
guagem. São Paulo: Ática, 1991.
uma questão de identificação de forma idios-
sincrática com a obra, tão híbrida e cheia de ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques
intertextos quanto ele próprio. Entretanto, o da ficção. São Paulo: Companhia das
sujeito não faz parte dos domínios da semió- Letras. 1994.
tica e talvez, no caminho pela busca da iden-
tidade perdida do leitor-modelo fosse neces- ECO, Umberto. Os limites da interpretação.
sário um flerte com alguma outra teoria. São Paulo: Perspectiva, 1995.
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personagem fanático por música pop do livro e ECO, Umberto. Kant e o ornitorrinco. Rio
do filme Alta Fidelidade. Como no filme a ação é de Janeiro: Record. 1998.
transposta de Londres para Chicago a personagem re-
cebeu um sobrenome diferente.
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