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Desconstruindo o Moulin Rouge – o espectador por

trás das cortinas de veludo


Adriana Amaral∗

Índice elemento (a primeira frase do filme)1 para le-


vantar as questões que perpassam o corpus
1 Adentrando um antro de perdição 1 deste artigo:
2 Experimentando o modelo semiótico Quem é o receptor modelo de um produto
em um filme prêt-a-porter 2 cultural tão híbrido e multifacetado quanto
3 Desconstruindo o Moulin Rouge 4 Moulin Rouge? Que tipo de inferências são
4 Considerações finais – Versão remix 9 necessárias para que seja estabelecido um
5 Bibliografia 10 pacto de leitura entre o autor e o receptor
modelo do filme, a partir de sua leitura ver-
bal, imagética e sonora? Que tipo(s) de re-
1 Adentrando um antro de ferências tornam o jogo semiótico proposto
perdição pelo autor mais facilmente reconhecível pelo
leitor? Que tipo de inversão ocorre na es-
“The story is about love. The woman I love trutura técnica/estética do filme em relação
is dead.” a outros filmes do gênero musical? De que
maneira pode-se afirmar que Moulin Rouge
Estas duas sentenças, datilografadas em possui uma estética da desconstrução?
uma máquina de escrever antiga aparecem É importante expor que essa trilha pelo
na primeira seqüência de Moulin Rouge – bosque da ficção2 de Baz Luhrmann (Aus-
um amor em vermelho (Moulin Rouge, Baz trália, 1962) pode nos levar a um uso ou a
Luhrmann, 2001). Assim como, o tradici- uma interpretação do texto, e aí podemos fi-
onal Era uma vez remete crianças e adultos car tão confusos e perdidos quanto a perso-
às estruturas narrativas das fábulas, ela fun- nagem Christian (Ewan McGregor) quando
ciona basicamente como isca para o receptor 1
Para Eco (1994, p. 12), “num texto narrativo, o
formalizar o pacto ficcional com o autor mo-
leitor é obrigado a optar o tempo todo. Na verdade,
delo, no intuito de adentrar o mundo possível essa obrigação de optar existe até mesmo no nível da
do filme. Da mesma forma, utilizo-me desse frase individual — pelo menos sempre que esta con-

tém um verbo transitivo”.
Mestre em Comunicação Social pelo Programa 2
“Bosque é uma metáfora para o texto narrativo,
de Pós-graduação em Comunicação Social pela Pon- não só para o texto dos contos de fadas, mas para qual-
tifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, quer texto narrativo”(Eco, 1994, p. 12)
Brasil e Doutoranda pelo mesmo programa.
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chega a Montmartre e, em meio àquela exci- mento, mesmo sabendo que por trás dele virá
tação da época no bairro boêmio e é alertado um novo segredo e assim sucessivamente.
por um padre: “este é um antro de perdição”. Eco (1995) afirma que em algum ponto, o
Conforme a polêmica entre Eco, Culler e texto permanece secreto por não possuirmos
Rorty no livro Interpretação e Superinter- a chave que o decodifica. Um bom exemplo
pretação, a controvérsia entre quais são os para descrever de forma empírica o que se-
limites em que se pode interpretar e quais os ria o processo de semiose hermética são as
que se usa o texto para um proveito idiossin- babushkas, tradicionais bonecas russas que
crático, fica em um lugar entre as intenções se encaixam uma dentro da outra, mas para
autorais, intenções textuais e as intenções do tanto, teríamos que pensá-las num plano in-
leitor, além de apontar na direção dos pós- finito, até onde seriam perdidas por nossas
estruturalistas como os principais “utilizado- vistas.
res” de textos.
Para fins metodológicos, esclareço que, na
2 Experimentando o modelo
maior parte desta análise, houve uma inter-
pretação, “respeitando a perspectiva cultural semiótico em um filme
e lingüística do texto” (Eco, 1995, p. 84), co- prêt-a-porter
locando uma lupa semiótica para ampliar as
A construção do seguinte modelo5 de análise
percepções abdutivas e também para tentar
semiótico em nível teórico e sua aplicação
confirmá-las ou desconfirmá-las, tirando do
instrumental, muitas vezes, assemelha-se
nível obtuso as marcas e os indícios inscritos
com uma prostituição filosófica, da mesma
no filme. Em alguns momentos, no entanto,
forma que Satine (Nicole Kidman), a mais
o uso da obra torna-se inevitável, uma vez
bela cortesã do Moulin Rouge, entrega-se aos
que, de acordo com Culler (1997, p. 101),
ávidos clientes do cabaré parisiense. Con-
“a desconstrução apela para um princípio ló-
tudo, além de uma modelização das estraté-
gico mais elevado ou a razão superior, mas
gias de leitura ele é uma tentativa para ler
usa3 o próprio princípio que desconstrói”.
a cultura contemporânea e seus significados,
Um outro fator a ser considerado é o da
através de um de seus mais híbridos produ-
semiose hermética como método, num nível
tos: o cinema. Faz-se necessária uma teo-
em que, como afirma Eco (1995) os livros
rização que tente visualizar as marcas desse
são interpretados como mundos. Essa se-
sistema complexo de inter-relações, que se
miose hermética é um processo que remete
manifestam em produtos como a TV, os qua-
a busca do homem pelo conhecimento, pela
drinhos, a música, o cinema, etc. Assim
verdade, que vai dos alquímicos e gnósticos
sendo, torna-se imprescindível uma ferra-
aos filósofos como Nietzsche e Heidegger e
menta que exponha os sintomas, indícios, as
também Derrida. Esse caminho é uma pro-
cura pela senha4 que dá acesso ao desvela- que também podemos transpor para o mundo contem-
porâneo das senhas do banco, do cartão de crédito, do
3
Grifo meu correio eletrônico, etc.
4
Esta senha também é um mito que está arraigado 5
O modelo de análise semiótico é o de Eco.
até nos orientais, basta ver o exemplo da fábula de Ali
Baba, aonde o abracadabra abre as portas da caverna e

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marcas que se encontram no seio dessa cul- Ele é produto e produtor de uma cultura pró-
tura. pria. Uma vez isoladas as marcas, é possível
Esse modelo — apesar de não ser perfeito tirarmos uma amostragem cultural que, mais
como o vestido vermelho estonteante de Sa- uma vez, nos remeterá ao sujeito/ receptor
tine em uma das seqüências do filme — pode do produto cultural. Esse pacto de interpre-
ser pensado enquanto a procura de um novo tação do qual nos fala Bhabha (1998), tam-
sentido à questão da ideologia em meio à bém pode ser relacionado ao que Eco (1989)
anti-representatividade como quer um prag- chama de pacto ficcional, ou seja, um con-
matista como Rorty (1997, p. 227). “Mas trato de leitura que prevê a cooperação entre
o modo mais eficiente de expor ou desmis- leitor e autor em um mundo possível,
tificar uma prática existente parece consistir
em sugerir uma prática alternativa, e não em com respeito a esta riqueza de im-
criticar a atual”. plicitações, promessas argumenta-
Essa busca por um caminho que não fique tivas, pressuposições remotas, o
atrelado às oposições binárias talvez venha a trabalho de interpretação impõe
ser, como define Bhabha (1998), um terceiro a escolha de limites, a delimita-
espaço. Um entre-lugar, no qual haja uma ção de rumos interpretativos e, por
tradução dos símbolos na efervescência de conseguinte, a projeção de univer-
distintas culturas. O terceiro espaço é o lo- sos de discurso. (Eco, 1989, p. 31)
cal das negociações, e nele situa-se o efeito Nesse interstício, a semiótica, através de
da hibridização da cultura sobre os sujeitos. um modelo instrumental de análise, pode dar
conta de dissecar as marcas repetidas que tal-
O pacto da interpretação nunca é vez ancorem6 o próprio sentido do sujeito,
simplesmente um ato de comunica- principalmente via desconstrução. E é na
ção entre o Eu e o Você designa- desconstrução do discurso desse sujeito, em
dos no enunciado. A produção de suas mais diversas formas de expressões ar-
sentido requer que esses dois lu- tísticas, isto é, a partir do que ele(a) lê, do
gares sejam mobilizados na passa- que ela(e) escuta ou assiste possa conter uma
gem por um Terceiro Espaço, que estratégia desconstrutiva que gere uma recu-
representa tanto as condições ge- peração identitária, ampliando os domínios
rais da linguagem quanto a impli- da semiótica para novos recortes teóricos.
cação específica do enunciado em
6
uma estratégia performativa e ins- Tomo de empréstimo o conceito de ancora-
titucional da qual ela não pode, em gem para Barthes (1990), para uma tentativa de
desconstruí-lo. A ancoragem barthesiana trata de
si, ter consciência. O que essa re- duas linguagens: a verbal e a visual (especificamente
lação inconsciente introduz é uma a fotográfica), no qual a linguagem verbal (escrita) an-
ambivalência no ato da interpreta- cora a visual, tendo como exemplo as legendas das fo-
ção. (Bhabha, 1998, p. 66) tografias nos jornais. Uma hipótese é que, da mesma
forma, as marcas e/ou indícios e/ou ícones encontra-
dos nos produtos culturais ancorem nossa leitura do
No Terceiro Espaço as marcas do discurso sujeito e, conseqüentemente, de sua identidade. Eis
do sujeito contemporâneo são percebidas. aqui uma questão a ser problematizada.

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Afinal, como afirma Culler (1997, p. 99) as possibilidades interpretativas em um pas-


a desconstrução pode apresentar-se de três seio inferencial e dá uma espécie de limite a
diferentes modos: uma posição filosófica, essa mesma interpretação. O semiólogo ita-
uma estratégia política ou intelectual e um liano afirma que “as abduções hipocodifica-
modo de leitura. “A desconstrução investiga das – para não falarmos das criativas – são
o funcionamento de oposições metafísicas mecanismos criadores de mundos” (1995, p.
em suas argumentações e os modos como fi- 210). São essas criações de mundos que
guras textuais e relações (...) produzem uma impulsionam as inferências, aumentando as
lógica dupla e aporética” (Culler, 1997, p. possibilidades interpretativas. E, posterior-
126). mente, as tornando parte de um outro mundo,
Nessa intersecção entre a semiose hermé- o da experiência.
tica e a desconstrução7 , destaca-se o pa- Assim, elas podem funcionar como um
pel da abdução como mecanismo criador de tipo de chave para iniciar o desvelamento de
mundos possíveis8 , abrindo amplas possi- alguns segredos de um determinado produto
bilidades de leituras. De acordo com Eco cultural e, ao mesmo tempo, em que apre-
(1995, p. 201), a abdução “é a adoção provi- senta alguma estrutura desconhecida, abre
sória de uma inferência explicativa passível espaço para que essa mesma estrutura possa
de verificação experimental e que visa a en- ser desconstruída não se restringindo a um
contrar, juntamente com o caso, também a pensamento lógico binário, que exclui a cri-
regra”. O que Aristóteles chamou de dedu- atividade das abduções. Isto posto, vejamos
ção, Pierce chamou de hipótese ou abdução. o confronto entre modelo e objeto.
Para Eco (1995, p. 200) a abdução necessita
ser testada para uma verificação daquela pro-
3 Desconstruindo o Moulin
posição e é ela quem permite explorar ou não
Rouge
7
Para Carvalho (1992, p.93), não devemos tomar
a desconstrução como um conceito, pois isso inver- 3.1 Manifestação Linear
teria sua ordem, mas sim como uma espécie de crí-
tica dos encadeamentos e desencadeamentos do texto. O filme Moulin Rouge, obra de 2001, é diri-
“Definir desconstrução poderia ser a tentativa de dar gido pelo diretor australiano Baz Luhrmann
conta da atividade múltipla de produzir marcas que se e está categorizado no gênero musical. A
inscrevem por um lado, e por outro, se auto-apagam”.
8 trama apresenta um amor impossível entre
Para Eco (1989, p. 109), o mundo possível
é definido como “um estado de coisas expresso por o artista e uma cortesã do mais famoso ca-
um conjunto de proposições onde para cada proposi- baré de Paris no final do século XVIII, emba-
ção ou p ou ∼p. Como tal, um mundo consiste em lado por uma trilha sonora com música pop.
um conjunto de indivíduos dotados de propriedades. Christian (Ewan McGregor) é um jovem ar-
Visto que alguma dessas propriedades ou predicados
são ações, um mundo possível pode ser visto também
tista inglês que abandona Londres para ten-
como um curso de eventos. Dado que este curso de tar a sorte em Paris e acaba conhecendo a
eventos não é real, mas absolutamente possível, ele troupe do artista Toulouse-Lautrec (John Le-
deve depender dos comportamentos proposicionais de guizamo) e se envolve com Satine (Nicole
alguém, que o afirma, nele acredita, com ele sonha, Kidman), a mais famosa cortesã do Mou-
deseja-o, o prevê, etc.
lin Rouge, dirigido por Zidler (Jim Broad-

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bent) que a prometeu como negócio ao po- 3.2 Circunstâncias de


deroso Duque (Richard Roxburg). Por uma Enunciação
“coincidência”, Christian tem um encontro
no quarto de Satine que pensa que ele é o O diretor australiano Baz Luhrmann iniciou
Duque. Todavia, na hora em que seriam des- sua carreira com Vem dançar comigo (Stric-
cobertos, Satine, Zidler, Christian e a turma tly Ballroom, 1992) um filme sobre um con-
de boêmios de Toulouse convencem o duque curso de dança, mas seu début hollywoodi-
a financiar a peça musical que Christian irá ano aconteceu com Romeu + Julieta (Romeo
escrever, Espetacular Espetacular. O Duque + Juliet, 1996), nova adaptação do clássico
aceita patrocinar a estréia da peça e a reforma de Shakespeare. Seu mais recente projeto
do cabaré, que será transformado em teatro, é um musical sobre a vida de Alexandre, o
mas exige de Zidler a escritura do Moulin Grande. Em diversas entrevistas, Luhrmann
Rouge e Satine como sua esposa. declara ter uma preferência pelo gênero mu-
Os ensaios da peça prosseguem junta- sical. Após Romeu + Julieta, Luhrmann
mente com o caso de Satine e Christian, en- saiu em viagem de férias e foi para Índia.
tretanto, no último dia de ensaio, o duque Em suas entrevistas e, inclusive no próprio
descobre o romance dos dois e exige que o site do filme, afirma ter ficado impressionado
final da peça seja alterado conforme sua von- com a força do cinema indiano, tanto em re-
tade. Satine, no entanto, não sabe que está lação à estética dos filmes que ele afirma ser
com tuberculose e que possui pouco tempo uma explosão de cores, quanto em relação às
de vida. Enquanto isso, Zidler ordena a Sa- narrativas que variam da tragédia à comédia
tine que ela termine o caso com Christian, e, utilizam-se, principalmente de elementos
senão o Duque irá mandar matá-lo. Na noite dos musicais. O impacto desses filmes, se-
de estréia da peça, Christian retorna pela úl- gundo ele, é ainda mais interessante de ser
tima vez ao Moulin Rouge, alterando o fim percebido na própria Índia, aonde eles são
da peça e reconquistando o amor de Satine, exibidos em circuitos ao ar livre para milha-
que ao morrer, logo depois da cena final da res de pessoas. De acordo com o diretor, esse
peça, pede a Christian que conte a estória dos foi um dos eixos que conduziu o roteiro e a
dois. O filme termina com o escritor sentado direção de Moulin Rouge, pois ele queria um
à máquina de escrever, com a mesma can- filme colorido, vibrante, que fosse cômico e
ção do início. Até a metade do filme, as ce- triste e que tivesse muita música, sendo os
nas são editadas em uma velocidade bastante filmes indianos sua maior fonte de inspira-
acelerada, existe muita cor, tanto nos figuri- ção.
nos quanto nos cenários. As músicas variam No retorno de sua viagem, Luhrmann
de aceleradas a lentas, de acordo com cada reuniu-se com a equipe de produção e teve a
cena. seguinte idéia: e se escrevêssemos os diálo-
gos entre os protagonistas apenas com letras
de canções de amor famosas? Um grande
brainstorm gerou então o outro eixo de cons-
trução do filme, determinando que as músi-
cas a serem utilizadas na trilha sonora fos-

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sem músicas já existentes. A partir dessas espécie de homenagem à A Noviça Rebelde


duas idéias centrais foi desenvolvida a esté- enquanto um grande musical que marcou
tica e a narrativa do filme. época, introduzindo uma seleção contex-
tual, e, há também um deboche, através de
3.3 Circunstância do Enunciado uma paródia, tanto pelo contexto da cena
como um todo (que é extremamente cômica)
O filme trata, de uma forma hipercodificada, quanto pelo fato deles desistirem da idéia da
de uma história de salvação da arte/do ar- peça musical que se passa na Suíça com um
tista através da beleza, da liberdade, do amor camponês, decidindo por uma peça que se
e da verdade. Esses três conceitos reme- passa na Índia, apontando até para uma que-
tem aos ideais das vanguardas modernistas bra nas preferências cinematográficas deslo-
da belle-époque, além de nos levar uma di- cando Hollywood para Bollywood9 . Esse
mensão histórico-ideológica por trás de uma ato, pode ser analisado como um abandono
estética aparentemente poluída e acelerada dos padrões do gênero e uma proposta de um
na edição. Essa remissão aos ideais do pró- novo paradigma de musical, não pela nega-
prio período abordado pelo filme, estabelece ção do anterior, mas sim pela sua incorpora-
um grau de coerência interna ao mundo pos- ção e pela paródia e ao mesmo tempo reve-
sível do Moulin Rouge. rência, em uma atitude (se é que podemos
Há todo um jogo intertextual proposto chamá-la assim) extremamente desconstru-
pelo autor para os admiradores do gênero cionista. O abandono destes padrões tam-
musical. Destaco aqui a cena em que Chris- bém significa uma aposta do diretor em uma
tian, recém-chegado à Paris, vai ensaiar uma orientalização das estruturas estéticas do ci-
peça com a troupe de Toulouse-Lautrec. A nema, ou seja, uma incorporação de diferen-
peça tem um cenário de Alpes suíços e ele tes padrões no chamado cinemão.
está vestido de camponês. Toulouse e os ou-
tros estão em busca de uma frase para o pro-
tagonista, quando Christian canta: “The hills 3.4 Estruturas Discursivas
are alive with the sound of music”. Todos Podemos dizer que o discurso do filme
dizem: genial! Essa frase faz parte da can- concentra-se na relação amor/arte. Sendo as-
ção “The sound of music”, tema do filme A sim, a isotopia do filme seria: jovem artista
Noviça Rebelde (The Sound of Music, Ro- se apaixona por prostituta e tenta salvá-la do
bert Wise, 1965). A Noviça Rebelde se passa submundo através de sua arte. Existem vá-
nos Alpes suíços e é considerado um clássico rios topics que confirmam e legitimam essa
do gênero. Suas canções são extremamente isotopia, tanto em termos de cenas quanto de
conhecidas pelos cinéfilos em geral. Essa diálogos e de músicas e que compõem um
relação intertextual será mais facilmente re- quadro onde essa idéia está presente.
conhecida por aqueles fãs de cinema que, 9
A fase de ouro dos musicais foi produzida nos
acompanham especificamente, o gênero mu- estúdios hollywoodianos. Atualmente, Bombaim é a
sical e que, reconhecem um verso de uma de cidade da Índia com maior produção anual de pelícu-
suas importantes canções. las, o que lhe rendeu o apelido de Bollywood pelos
Essa cena apresenta ao mesmo tempo uma críticos de cinema.

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Selecionei uma cena quase do final do mas que transforma a significação e o sentido
filme, em que Satine terá um encontro com da película por completo. Na maioria dos
o Duque e, paralelo a isso, Christian começa musicais tradicionais, a música é composta
a se corroer de ciúmes. Entra em cena o para “casar” com o que a história requer. Em
personagem Argentino (Jacek Koman) que é Moulin Rouge, os diálogos foram escritos em
da trupe de Toulouse. Ele interpreta (can- função das canções já existentes. Isso pos-
tando e dançando), para aconselhar Chris- sibilita ao receptor-modelo, além de prestar
tian, a música El Tango de Roxanne que atenção na cena e nos diálogos da música,
serve como trilha das seqüências que des- uma participação cognitiva, por já conhecer
crevo a seguir. Esse tango rasgado trata do previamente a música (claro, isso apenas se
amor de um jovem por uma prostituta e de confirma em relação ao leitor modelo). Há
seu sofrimento pelo ciúme. El Tango de Ro- nesta inversão das condições de produção da
xanne é uma versão em forma de tango de obra uma proposta de jogo intertextual e de
Roxanne, música do The Police, banda de interação proposto pelo autor.
rock dos anos 80. Sting (ex-vocalista e com- No nível das fábulas e mitos que consti-
positor do Police) comenta que a escreveu a tuem a narrativa, pode-se apontar dois que
canção para uma prostituta pela qual ele foi subjazem na leitura do filme (embora esteja
apaixonado quando adolescente. Esse dis- enfatizando o segundo). A primeira estru-
curso percorre todo o texto e repete-se de tura é de A Dama das Camélias, romance de
forma sutil e intertextual durante toda a nar- Alexandre Dumas Filho. Temos uma estru-
rativa. As seqüências de Christian imagi- tura muito semelhante: jovem se apaixona
nando sua amada nos braços do outro é inter- por cortesã e tem dificuldades de lidar com
calada pelas cenas de dança entre o Argen- isso.
tino, uma das prostitutas do Moulin Rouge e O segundo é a reedição do mito de Or-
um dos bailarinos da trupe simulando um tri- feu, o deus grego da música que precisa sal-
ângulo amoroso — em uma remissão explí- var sua Eurídice do “submundo”. Orfeu é
cita a ópera Carmem — e pelas seqüências Christian, Eurídice é Satine, o Duque é Ha-
de Satine fingindo ser agradável com o Du- des e o coro grego está representado pelos
que, mas com o olhar perdido em direção à modernistas da companhia de teatro. O fi-
janela, onde avista Christian caminhando so- nal é infeliz em ambos, a garota morre e Or-
litário, explicitando ainda mais o caráter de feu/Christian transforma seus tormentos em
triângulo amoroso. música/literatura. Em uma entrevista no site
oficial do filme10 , Baz Luhrmann destaca que
3.5 Estruturas Narrativas seus três filmes são baseados em mitos. Vem
dançar comigo estabelece relações com o
Além da estrutura narrativa do amor impos- mito de Davi e Golias, Romeu + Julieta, já
sível devido ao triângulo amoroso, existe um mito por si só e Moulin Rouge traz à tona
aquela própria do gênero musical: a narrativa a questão do mito grego de Orfeu, discutindo
nascida da tensão música (incluindo aqui a a arte e, utilizando como pano de fundo os
parte verbal da letra) e imagem. Todavia, há
10
aqui uma aparentemente pequena diferença, www.clubmoulinrouge.com

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modernistas para apontar os caminhos do ar- relações música/imagem. Esse imaginário é


tista no mundo contemporâneo. muito similar ao que aparece no filme Alta
Fidelidade (High Fidelity, Stephen Frears,
3.6 Extensões de Parentesco 2000) baseado no livro homônimo de Nick
Hornby. Ele leva em consideração não a
Uma série de inferências poderia ser feita so- música como uma simples trilha sonora do
bre o texto, pois ele apresenta-se muito rico cotidiano, mas como uma outra linguagem,
em referências a mundos possíveis. Escolhi uma espécie de reflexão acerca das relações,
apontar as extensões e referências que estru- colocando na voz de outrem aquilo que
turam o próprio cinema e, dentro dele, mais gostaríamos de dizer.
especificamente o gênero musical.
Moulin Rouge além de remeter a musicais
de estrutura clássica como A Noviça Rebelde 3.8 Estruturas de Mundos
e Cabaret„ entre outros, também nos aponta Possíveis
para a estrutura das peças musicais da Bro- O Moulin Rouge de Baz Luhrmann não é o
adway (muitas inclusive baseadas em filmes típico cabaré francês dos filmes. Ele aposta
e vice-versa). A televisão é outro mundo em uma visão romântica e sombria, que cor-
presente nessas relações, uma vez que a es- responde mais aos clubs de música eletrô-
trutura do videoclipe em alguns momentos nica de nosso período do que aos próprios
assemelha-se à do musical e a do curta- cabarés. Seus “habitantes” querem torná-lo
metragem. Entretanto, o videoclipe também um teatro, no intuito de transformar a de-
já criou sua linguagem característica que por cadência em arte, para ser uma “atriz de
sua vez “contamina” alguns filmes. Essa re- verdade”, como diz Satine a sua camareira.
lação então é uma espécie de espiral aonde as Um mundo de cores, de fadinhas do absinto,
influências vão se somando e entrechocando- de hotéis sujos e baratos como aquele onde
se ao mesmo tempo. mora Christian, de artistas, de fanáticos reli-
giosos. Um ambiente urbano e efervescente
3.7 Estruturas Ideológicas onde Zidler (o dono do MR) faz uma perfor-
mance cantando Like a Virgin de Madonna
Duas instâncias ideológicas parecem
remetendo-nos às drag queens que divertem
entrecruzar-se no texto. A primeira diz
as boates do século XXI.
respeito a uma tentativa de mudança nos
Essa estrutura de mundo é apresentada na
paradigmas do gênero musical através da
primeira cena que se passa no espaço interno
inversão das relações música/diálogo e
do cabaré Moulin Rouge. Zidler fala para
música/imagem. Essa inversão atualiza o
todos os convidados se divertirem e chama
musical em relação a uma nova geração de
as moças do can-can. Em vez do tradicio-
espectadores. A segunda instância possui
nal can-can, elas dançam uma música ele-
uma relação estreita com a primeira, mas é
trônica, um tecno do DJ Fatboy Slim, en-
de ordem mais genérica: seria a constituição
quanto uma edição acelerada foca diversos
de um imaginário calcado pela música
clientes da casa com suas cartolas dançando
pop dos últimos 30 anos, que influencia as
enquanto cantam: “Here we are now. Enter-

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Desconstruindo o Moulin Rouge 9

tain us!!!” (Aqui estamos. Divirtam-nos!), de comunicabilidade mínimo para sua com-
refrão da canção “Smells like Teen Spirit” preensão pelos mais diversos leitores.
do Nirvana, banda de rock ícone do mo- No que tange ao reconhecimento do leitor-
vimento grunge da década de 90. Através modelo, os intertextos com músicas extrema-
dessa referência percebe-se que o filme diz mente conhecidas do público em geral, tor-
menos a respeito do passado do século XIX nam o jogo semiótico um momento de frui-
do que da virada do século XX para o sé- ção para o leitor. Um belo exemplo pode
culo XXI, recontando a própria história da ser visto na cena em que o casal de prota-
época atual através desse passado estilizado. gonistas interpreta a canção “Elephant Love
É um mundo possível e plausível para aque- Medley”, fazendo um dueto em cima do Ele-
les que esquecem onde estão e entram nele, fante11 do Amor, um dos quartos do Mou-
prestando atenção na narrativa de amor clás- lin Rouge. Essa cena faz uma citação aos
sica, ou então, para aqueles que possuem os grandes pares românticos dos musicais como
códigos e os acessos para nele penetrarem, Ginger Rogers e Fred Astaire (em diversos
estabelecendo as relações entre músicas, fil- filmes) e Olívia Newton John e John Tra-
mes, etc. volta em Grease – Nos tempos da brilhantina
(Grease, Randal Kleiser, 1978), apenas para
citar dois exemplos. A música é um medley
4 Considerações finais – Versão
de canções de amor muito famosas de artis-
remix tas de sucesso como Beatles, David Bowie,
Após esse pequeno experimento do modelo U2, Kiss, Elton John, Whitney Houston, Joe
de análise semiótica de Eco ao cinema de Cocker. Algumas estão iguais às suas letras,
Baz Luhrmann, resta fazer algumas conside- outras tiveram pequenas adaptações de modo
rações, recapitulando algumas questões ini- a fazerem sentido no contexto.
ciais que não foram diretamente respondi- Moulin Rouge possui algumas dualidades
das, embora estejam delineadas. em suas estruturas narrativas e ideológicas.
Em relação às inferências, necessárias E, principalmente, propõe uma inversão en-
para o contrato de leitura entre autor e tre música/imagem dentro do musical. Es-
receptor-modelo, estas são de várias ordens: tes elementos podem ser tomados dentro de
musical (identificar o autor da música como uma leitura semiótica e desconstrucionista,
em “Like a Virgin” ou conhecer a letra como embora tenha sido feito um recorte de algu-
no caso de “Roxanne”); cinematográfica (re- mas categorias. A desconstrução, na visão de
ferências a musicais como A Noviça Re- Culler, não pode ser tratada como método,
belde); literárias (A Dama das Camélias), de modo a não cristalizar o conhecimento.
mitológicas (mito grego de Orfeu) e até cul- Contudo, enquanto modo de leitura ela traz à
turais/informativas (produção indiana de fil- tona alguns paradoxos e inversões que cons-
mes), etc. Essas remissões, no entanto, não tituem determinados textos.
são indispensáveis para a compreensão da 11
O elefante traz consigo outra referência à Índia,
obra, pois o leit-motiv amor entre o jovem por ser um dos símbolos do país e, o elefante do MR
artista e a cortesã permite ao filme um nível está todo ornamentado de forma que sua imagem seja
diretamente relacionada com a Índia.

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10 Adriana Amaral

Finalmente, sobre o leitor modelo de Mou- Por outro lado, se analiso um produto
lin Rouge pode-se dizer que sua competência cultural como Moulin Rouge já não sou eu
enciclopédica deve dar conta tanto do mundo mesma apta a ser o leitor-modelo do filme?
possível do filme quanto de suas intenções Se fui apta a perceber as referências a que
discursivas, estéticas e técnicas. Com cer- ele remete durante minha análise não seria o
teza, ele está escondido observando atrás pesquisador também este leitor-modelo? São
das pesadas cortinas de veludo vermelho que questões surgidas ao longo desse pequeno
abrem a primeira seqüência do filme, e não ensaio, mas que devem ser levadas em conta
na primeira fila de cadeiras como mero es- em futuras discussões.
pectador. As inferências acerca das rela-
ções das músicas (principalmente das letras)
5 Bibliografia
com as imagens e a descoberta das referên-
cias (musicais, cinematográficas, etc) fazem BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. En-
parte do jogo semiótico proposto pelo autor. saios críticos III. Rio de Janeiro: Nova
O autor joga esse texto polifônico em um Fronteira, 1990.
anzol em busca de receptor modelo que pos-
sua as referências “certas”, ou seja, alguém BHABHA, Homi K. O local da cultura.
com uma cultura pop tão grande para música Belo Horizonte: Ed. UFMG. 1998.
quanto Rob Flemming/ Rob Gordon12 e, que, CARVALHO, Luiz Fernando M. Descons-
além disso, seja um admirador de musicais trução. In: JOBIM, José Luis (org.).
— a probabilidade de acertar aqui é maior, Palavras da crítica. Rio de Janeiro:
pois em geral, quem é o típico apreciador Imago. 1992.
de musicais certamente irá assistir ao filme,
uma vez que a produção de musicais não é CULLER, Jonathan. Sobre a desconstrução.
muito ampla atualmente em relação a outros Rio de Janeiro: Record. 1997.
gêneros (embora depois de MR outros musi-
cais como Chicago já estejam sendo produ- ECO, Umberto. Lector in fabula. São Paulo:
zidos). Perspectiva, 1989.
Dessa forma, faz sentido pensar que o
ECO, Umberto. Semiótica e filosofia da lin-
leitor-modelo de Moulin Rouge o seja por
guagem. São Paulo: Ática, 1991.
uma questão de identificação de forma idios-
sincrática com a obra, tão híbrida e cheia de ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques
intertextos quanto ele próprio. Entretanto, o da ficção. São Paulo: Companhia das
sujeito não faz parte dos domínios da semió- Letras. 1994.
tica e talvez, no caminho pela busca da iden-
tidade perdida do leitor-modelo fosse neces- ECO, Umberto. Os limites da interpretação.
sário um flerte com alguma outra teoria. São Paulo: Perspectiva, 1995.
12
personagem fanático por música pop do livro e ECO, Umberto. Kant e o ornitorrinco. Rio
do filme Alta Fidelidade. Como no filme a ação é de Janeiro: Record. 1998.
transposta de Londres para Chicago a personagem re-
cebeu um sobrenome diferente.

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Desconstruindo o Moulin Rouge 11

ECO, Umberto. Interpretação e Superinter-


pretação. São Paulo: Martins Fontes.

RORTY, Richard. Feminismo, ideologia e


desconstrução: uma visão pragmática.
In: SLAVOJ, Zizek (org.). Um mapa
da ideologia. Rio de Janeiro: Contra-
ponto, 1996.

Site Oficial do Filme:


www.clubmoulinrouge.com

www.bocc.ubi.pt

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