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O SHINSENGUMI EM RUROUNI KENSHIN:

A construção do mito e seu papel na cultura japonesa

Leonardo Rosa Molina De Oliveira*

RESUMO: O Shinsengumi foi uma força policial a serviço do governo Tokugawa durante o
período conhecido como Bakumatsu no Japão. Era formado por samurais leais ao shôgun e se
dividiam em dez regimentos. Sua atuação e importância foram relativamente pequenas na
historia do país. Porém, é comum que tal grupo ainda seja referenciado através de filmes,
animações ou literaturas. Nesse artigo, a atuação de tal bando será analisada dentro do
mangá nipônico Rurouni Kenshin, criado por Nobuhiro Watsuki em 1994.

PALAVRAS-CHAVES: Shinsengumi; Rurouni Kenshin; Nobuhiro Watsuki.

THE SHINSENGUMI IN RUROUNI KENSHIN: The construction of the myth and


their role in Japanese culture

ABSTRACT: The “Shinsengumi” were a police force in service of the Tokugawa government
during the period known as “Bakumatsu” in Japan. It was formed by samurais loyal to the
shôgun and consisted of 10 squads. Their actions and importance were relatively small in the
history of Japan. But, it’s quite common to see this groups being mentioned in movies,
animations or literature. In this article, the actions of this group will be analyzed through
Japan’s manga series “Rurouni Kenshin”, created by Nobuhiro Watsuki in 1994.

KEYWORDS: Shinsengumi; Rurouni Kenshin; Nobuhiro Watsuki.

***

*
Graduando do curso de História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bolsista do
Programa Institucional de Bolsas de Extensão (PIBEX) na linha de pesquisa Preservação do Arquivo
Histórico do Museu Nacional: contribuição ao resgate da memória científica da UFRJ sob a orientação
daProfª Dra. Maria das Graças Freitas Souza Filho.

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Causas para a restauração Meiji

E
m 1868 começou a Era Meiji93 no Japão. O país deixou de ser
governado por um líder militar, o shôgun94. A partir desse novo
período, o Estado nipônico se juntou aos países ocidentais na corrida
imperialista, se tornando o primeiro país na Ásia a passar por uma revolução industrial
e ter sua própria carta magna da constituição.
O período Tokugawa (1603 - 1867), também conhecido como período Edo95,
anterior a Meiji, havia sido derrubado por questões internas e externas. A visita de
navios ocidentais aos portos japoneses havia chamado atenção nipônica, tanto dos
citadinosquanto dos nobres rurais, pois o shogunato havia mantido o Estado japonês
em relativo96 isolamento deste a expulsão das missões cristãs no século XVII. A
situação interna do governo não era estável: desastres naturais e terremotos tinham
deixado os camponeses descontentes. A classe97 que governava o país, os samurais,
estava se endividando e nesse cenário, o chonin98, ganhava cada vez mais espaço,
mesmo ainda sem poder político.
Algo estava mudando no Japão Tokugawa. A estabilidade de dois séculos do
governo já não existia mais. Nas cidades, as pinturas Kawaraban99retratavam o
imaginário popular da época. Na imagem 1, temos as gravuras dos "Navios Negros" .
Esse tipo de arte era numeroso e aparecia em muitos formatos, geralmente com
informações complementares sobre o tamanho e a tripulação do navio e uma breve
história dos países de onde estes vieram. Esta figura, de 1854 mostra a impressão
nipônica em relação aos navios negros da América e de vários outros países. Sua

93
Período da história japonesa de 1868 a 1912.
94
Shôgun: generalíssimo; chefe do governo militar (bakufu) YAMASHIRO, José. A Pequena História do
Japão. 2. ed. São Paulo: Herder, 1964., pp. 194.
95
Chamado assim porque a capital do governo era a cidade de Edo, posteriormente chamada de Tokyo.
96
Relativo porque o governo insistia no isolamento do país, porém mantinha relação com navios
holandeses, em Nagasaki.
97
Inicialmente houve a divisão de classes em samurai (shi), lavrador (no), artífice (kô) e comerciante
(shô).
98
Classe dos negociantes e artesãos, "gente da cidade".
99
Um tipo de xilogravura do Período Edo.

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descrição da missão Perry100 é, em sua maior parte, precisa, embora o retrato do “Rei”
americano (inserida no topo, à esquerda) seja pouco lisonjeiro.

101
Figura 1 . Representação de navios estrangeiros e a representação de suas tripulações.

Segundo William Steele, foi durante esses eventos que se teve o surgimento
de um nacionalismo japonês. Para o autor:
In attempting to satisfy the curiosity of the masses for information about
the “other,” Yokohama prints helped Japanese people to imagine a new
sense of self and a new sense of community. Repeated references to
foreign countries (gaikoku or ikoku) and to the symbols associated with
each prompted and demanded answers to the questions: What is our
country (waga kuni)? What are its symbols? The curiosity reflected in the
prints of foreigners thus helped to generate a consciousness of ethnic,
cultural, and national identity that set the people of Japan apart from those
102
in other parts of the world .

Durante o período Tokugawa, conhecimento detalhado da geografia do


mundo foi limitado à elite intelectual e política. A chegada de Perry e dos "Navios

100
Logo depois de concluir o tratado de comércio com a China, os Estados Unidos propuseram, em 1853
(6.° da Era Kaei), a abertura dos portos nipônicos para estabelecer relações comerciais entre os dois
países. Foi portador da proposta, assinada pelo presidente Millard Fillmore (1800 - 1874), o comodoro
Matthew Calbaith Perry (1794--1858), que entregou a mensagem do seu governo ao bakufu, no porto
de Uraga, de Sagami (Kanagawa--ken). As fragatas da Esquadra de Perry equipadas com armamentos
modernos impressionaram os japoneses, que as denominaram kurobune (navios pretos). YAMASHIRO,
José. A Pequena História do Japão. 2. ed. São Paulo: Herder, 1964. p.137
101
STEELE, M. William. Alternative Narratives in Modern Japanese History.2 ª edição. Nova York: Taylor
& Francis e-Library, 2004. p.7.
102
Idem. pp.30-31.

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negros" mudou tudo isso. Embora em comparação com a primitiva forma de trazer
mapas ocidentais da mesma data, estes novos desenhos estavam entre as primeiras
representações do mundo prontamente disponível para os plebeus japoneses. O
mapa mostrado na Figura 2 inclui informações básicas sobre os cinco continentes e
vários países e povos do planeta, mas contém muita desinformação também. Ele
mostra, por exemplo, o País de Gigantes na América do Sul, a pátria de anões e a
nação de mulheres no norte da Europa. Várias representações simbólicas identificam
o Japão no centro do mapa: o Monte Fuji, o sol nascente, um sacerdote xintoísta, e os
membros das quatro classes: samurai, agricultor, artesão e mercador.

103
Figura 2 . Mapa mundial feito durante os últimos anos do governo Tokugawa, mostrando o Japão
no centro do mundo e as nações estrangeiras ao redor.

Com a investida ocidental e a fragilidade do governo, foi assinado em 1854 o


Tratado de Amizade e Comércio entre Estados Unidos e Japão, conhecido como
Tratado de Kanagawa. Dessa forma, o país nipônico abria seus portos ao comércio
internacional.
A política de assinar tratados econômicos com as potências ocidentais não foi
bem vista pelas elites rivais do governo central. Com a justificativa de que o

103
STEELE, M. William. Alternative Narratives in Modern Japanese History.2 ª edição. Nova York: Taylor
& Francis e-Library, 2004. p.8.

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shôgunestava “abrindo” o país para o estrangeiro, o Imperador passou a ser visto pelos
clãs contrários a Tokugawa, como a chave para o fim dos problemas e de uma nova
política forte para o Estado.
Entre esses clãs, estava o de Satsuma, encabeçados por figuras como
Takamori Saigo e Toshimichi Okubo, futuros políticos durante a Era Meiji; Choshu,
com Takayoshi Kido como líder e, Shojiro Goto, do feudo de Tosa.
Importante dizer que tais clãs faziam parte de famílias samurais. Essas figuras
da política japonesa perceberam a necessidade de se extinguir os bushi104com o novo
governo, pois o Estado não tinha mais recursos para sustentar tal classe.
Por isso é correto afirmar que, apesar do fim da classe samurai e a
marginalização de muitos desses indivíduos, foram os próprios bushi que lideraram o
processo de mudança governamental e continuaram a frente do governo durante a
Era Meiji.
Outro grupo envolvido nos eventos que derrubaram o shôgun seriam os
samurais legalistas, conhecidos como patriotas (Ishin Shishi). Segundo Andrew
Gordon105 esses guerreiros praticavam o terror político visando inimigos internos ou
externos. Para esse autor, os legalistas eram na maioria das vezes jovens revoltados
do escalão mediano ou inferior da classe bushi. Eles se juntaram a um número de
membros politicamente engajados da elite rural e urbano, incluindo mulheres
ativistas. Foram figuras cruciais da história revolucionária de ideias e ação política no
Japão. Os Ishin Shishi eram pessoas ferozmente orgulhosas que se entendiam em
virtude de nascimento e treinamento para serem servos de seus senhores e de um
reino maior e vagamente definido de Estado simbolizado pelo imperador. Na tradição
do funcionalismo Tokugawa, eles combinaram cultivo civis e militares. Tinham
contato com clássicos confucionistas enquanto treinavam a luta de espadas.
Refletindo essa dupla formação, eles sentiram uma par responsabilidade de pensar e
de agir: propor soluções para os problemas do momento e para realizá-los de forma
abnegada na prática.

104
Sinônimo para Samurai.
105
GORDON, Andrew. A Modern History of Japan From Tokugawa Times to the Present.New York:
Oxford University Press, 2003. pp.52-53.

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A Guerra Boshin

Com a sucessiva pressão, o shôgun acabou aceitando entregar o poder para o


Imperador. Dessa forma, Tokugawa Yoshinobu106 retirou-se para o Castelo de Osaka
para evitar uma guerra. No entanto, a profundidade do ressentimento em relação aos
clãs Satsuma e Choshu para com as forças partidárias do bakufu, particularmente os
Aizu e Kuwana do norte do país, era feroz e não seria facilmente neutralizado.
Com a aceitação do shôgun, parecia que não haveria conflitos. No entanto,
quando as forças pró-bakufu, especificamente do clã Shonai cercaram o complexo
militar Satsuma em Edo no final de dezembro, um conflito em larga escala parecia
inevitável. Ele eclodiu em 3 de janeiro de 1868 na região de Toba e Fushimi, ao sul da
capital imperial e marcou o início da série de batalhas referidos como a Guerra Boshin.
O conflito que irrompeu entre Satsuma e Choshu contra as forças pró-Bakufu
rapidamente deu uma lição sobre a superioridade do treinamento e equipamento do
novo exército. Embora em menor número, as forças imperiais enviadas para o
combate conseguiram ter vantagens e venceram os aliados do shôgun. Este, sem
dúvida ficou convencido da futilidade de tentar resistir ao novo governo.
Após uma série de encontros relativamente breves nos arredores de Edo, o
castelo formidável da metrópole oriental foi preparado para a defesa. Em última
análise, no entanto, este era também uma fortaleza abandonada sem uma campanha
prolongada. Saigo Takamori foi imediatamente fazer negociações com o antigo
shôgun e seus aliados para determinar os termos de rendição. No final, uma resolução
relativamente branda foi acordada e implementada, onde Yoshinobu e sua comitiva
foi removido para a região de Mito, no nordeste japonês, enquanto o novo governante
assumiu o castelo e foi apresentado para às forças imperiais em 4 de abril.
Entre as forças pró-bakufu, se encontrava um grupo de samurais conhecido
como a Tropa Shinsengumi.

106
Último shôgun.

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A Tropa Shinsengumi e seu papel no Shogunato

Segundo Mike Wagner, a Shinsengumi foi um grupo de espadachins poderoso


que foi formado pelo governo Tokugawa para proteger as cidades japonesas daqueles
que queriam ver o retorno do poder para as mãos do imperador. Esse bushidan107 teria
sido formado no fim do período Tokugawa, durante o período conhecido como o
bakumatsu108. Ainda segundo esse autor, eles não só lutaram contra os
revolucionários que queriam derrubar o poder do shôgun, mas também foram
atribuídos por esse governo para proteger o povo japonês e derrubar a corrupção
onde quer que ela fosse encontrada109. O significado literal do nome “Shinsengumi”
traduzido por Rômulo Hillsborough é "recém-corpo selecionado” um nome que reflete
o quão rápido o grupo foi criado, segundo Wagner110.
O grupo foi formado em 1862, inicialmente conhecido como “Corpo Roshi” por
líderes do bakufu para ajudar Matsudaira Katamori, comissário militar de Kyoto a
proteger seu povo dos imperialistas. Depois de centenas de recrutamentos de
samurais, um de seus líderes, Kiyokawa Hachirô, estabeleceu uma sede nos arredores
da vila de Mibu no Templo Shintokuji. Em um primeiro momento, o grupo foi
caluniado pela população local porque alguns de seus membros teriam extorquido
dinheiro da classe comerciante local111.
No entanto, Kiyokawa Hachirô se mostrou um adepto do Imperador, traindo
assim o corpo militar na qual fazia parte, a fim de usa-lo para minar a política externa
do shôgun. Eventualmente, ele revelou seu plano em 13 de Fevereiro de 1863, e
afirmou que seus seguidores tinham de servir ao imperador, se revelando assim como
um dos revolucionários que queriam restaurar o sistema imperialista. O bakufu ficou
chocado e com raiva. Kiyokawa foi assassinado em 1862, no entanto, por querer
enfrentar navios estrangeiros em Yokohama. Treze membros do Corpo Roshi que

107
Grupo ou legião de samurais. YAMASHIRO, José. História dos Samurais. 3. ed. São Paulo: Ibrasa,
1993. p. 267.
108
Período correspondente aos últimos anos do período Edo, entre 1853-1867.
109
WAGNER, Mike. Shinsengumi: In: Fact and Fiction.Asian Studies Major, 2005.p.4.
110
Idem p.4.
111
Idem p.5.

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foram leais ao bakufu juntou-se oficialmente no esforço para preservar o governo. Em
1863, o Shinsengumi foi formado por estes membros112.
O Shinsengumi possuía uma hierarquia estruturada (que inicialmente consistia
nos treze membros do Corpo Roshi que decidiram pelo lado do bakufu). O grupo tinha
um comandante (Kondô Isami), dois vices comandantes (Hijikata Toshizô e Yamanami
Keisuke) e um conselheiro militar (Kashitarô Itô). Além disso, havia dez capitães.
Foram eles: Okita Sôji (Primeiro Capitão), Nagakura Shinpachi (Segundo Capitão),
Saitô Hajime (Terceiro Capitão), Matsubara Chûji (Quarto Capitão), Takeda Kanryûsai
(Quinto Capitão), Inoue Genzaburô (Sexto Capitão), Tani Sanjûrô (sétimo Capitão),
Tôdô Heisuke (Oitavo Capitão), Suzuki Mikisaburô (Nono Capitão) e Harada Sanosuke
(Décimo Capitão)113.

A Tropa Shinsengumi em Rurouni Kenshin

O drama de Rurouni Kenshin, a obra analisada nesse trabalho, se passa dez


anos depois do inicio da Era Meiji e tem como personagem principal Kenshin Himura,
um guerreiro da classe samurai que lutou a favor do imperador contra as forças do
shôgun, às vésperas de 1868.
Nobuhiro Watsuki, criador do mangá em questão, procurou inspiração em
vários personagens históricos japoneses, principalmente antigos espadachins do fim
da Era Edo. A série apareceu pela primeira vez como um par de pequenas histórias
publicadas de forma esporádica, ambas são intituladas Crônicas de um Espadachim da
Era Meiji publicadas entre 1992 e 1993 na revista Weekly Shōnen Jump Special da
editora Shueisha. Em 1994, esse autor criou uma versão definitiva que foi publicada na
Weekly Shōnen Jump e concluída em 1999.
A Tropa Shinsengumi aparece em Rurouni Kenshin como um grupo militar pró
bakufu. Como já foi dito nesse trabalho, ela fora criada para enfrentar os
restauradores. Na figura 3, temos a primeira referencia à tropa em Rurouni Kenshin.
Essa alusão mostra dois membros diante do protagonista Kenshin: Saitou Hajime e
Okita Sôji.
112
Idem p.6.
113
Idem pp.6-7.

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Figura 3. Encontro entre Kenshin e os membros da Shinsengumi: Saitou Hajime e Okita Souji.

Para Rosa Lee114, o Shinsengumi, um grupo de jovens recrutados pelo bakufu


para proteger Kyoto da ameaça da Casa Imperial no período Bakumatsu, é
romantizado e idolatrado no Japão, apesar de sua limitada importância na história
daquele país. Citando Antonio Gramsci, o que explica o fato dos japoneses serem
atraídos pela literatura popular, esta na observação de suas "filosofias de idade", que
podem ser descobertas ao examinar heróis populares. O público nipônico ao ter
contato com os heróis samurais, especificamente os membros da Tropa Shinsengumi,
se identificariam com estes personagens por representarem parte do universo que
esses leitores estão inseridos.
Dessa forma, o público encontraria nos heróis da Shinsengumi, a reflexão de
suas filosofias de idade. Ou seja, a atração por personagens autônomos, protagonistas
determinados que apreciem o valor da comunidade, pode ser a razão para a constante
romantização da tropa, segundo Rosa Lee.

114
LEE, Rosa. Romanticising Shinsengumi in Contemporary Japan. New Voices: A Journal for Emerging
Scholars of Japanese Studies in Australia and New Zealand,Sydney, v. 4, jan. 2011. p. 168.

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Sonia Bide Luyten115 afirma que os heróis do mangá têm como característica
recorrente em seu comportamento, um caráter estoico, austero, de personalidade
rígida herança direta do bushi. Além de Histórias de autossacrifícios típicas da classe
samurai.
Devemos perceber durante o trabalho, como as características das
personagens de “Rurouni Kenshin” pode dialogar com ideias de Rosa e Luyten a
respeito do samurai. Na figura 4, vemos Kenshin falando sobre o grupo. Em sua fala,
Himura além de dizer que tais homens formaram o último grande grupo de
espadachins do Japão, para ele quem os derrotou não foram outros samurais, mas sim
o armamento moderno, ou seja, se de um lado os membros da Shinsengumi são vistos
como heróis, as armas modernas ocidentais são culpadas pela derrota desses
guerreiros.

Figura 4. Representação da Tropa Shinsengumi em Rurouni Kenshin.

Ainda na mesma imagem, podemos perceber que a forma gráfica na qual


Nobuhiro traz os membros da Shinsengumi são as mesmas onde representa alguns de

115
LUYTEN, Sonia. Mangá: o poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo, Hedra, 1999. p. 57.

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seus personagens fictícios em Rurouni Kenshin. Dessa forma, dos dez capitães
representados na imagem, além de Saitou, podemos identificar outros três membros
que servem de inspiração para personagens na historia de Kenshin. Sanosuke Harada,
Takeda Kanryûsai e Okita Souji serviram de base para a construção dos personagens
fictícios Sanosuke Sagara, Kanryu Takeda e Soujirou Seta, respectivamente.

Construção das personagens

Sanosuke Sagara

A primeira personagem a ser analisada foi inspirada em um samurai real:


Harada Sanosuke. Segundo Mike Wagner116 Harada teria sido o capitão da décima
divisão da Tropa Shinsengumi.
A primeira aparição de Sanosuke em Rurouni Kenshin (figura 5) remete aos
primeiros movimentos por direitos civis no Japão Meiji.

Figura 5. Introdução da personagem Sanosuke Sagara na obra.

Assim, os movimentos de protesto que se desenvolveram no Japão


moderno, sob o impacto dos vários processos de modernização, eram, na
aparência, em larga medida, muito semelhantes àqueles que se

116
WAGNER, Mike. Shinsengumi: In Fact and Fiction. Asian Studies Major. 2005. p. 7.

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desenvolveram na Europa. Isso é válido, particularmente, para os
movimentos pelos direitos dos cidadãos, bem como para os vários
movimentos trabalhistas e socialistas, a fim de aumentar a participação na
117
arena política .

A fala de Sanosuke na figura é curta. Porém, o autor Nobuhiro passa a ideia de


que o personagem possui uma definição do que seriam direitos civis: um mecanismo
para defender a liberdade dos mais “fracos”. Devemos também fazer um paralelo com
o movimento feminino que se iniciou em Meiji. Pois ao apresentar seu argumento,
Sanosuke acabara de defender uma moça. Dá a entender tal alegoria como uma
espécie de simbolismo usado pelo autor. Sagara cita os direitos civis e a proteção dos
mais dos mais fragilizados, e ao mesmo tempo está segurando uma mulher, passando
a ideia de que esse personagem corresponde aos ideais nobres com aos quais a
Shinsengumi é tão representada.
Seu embate contra Kenshin irá representar a rivalidade entre os apoiadores do
regime do shôgun, no caso os membros da Tropa Shinsengumi, com os samurais
patriotas que agiram apoiando o imperador.

Aoshi Shinomori

Mais um personagem com base em uma figura real, Aoshi Shinomori, foi
inspirado em um dos lideres da tropa Shinsengumi, um samurai chamado Hijikata
Toshizô118, que segundo Mike Wagner119, foi vice-comandante do grupo.
Apresentado como um vilão, Aoshi é representado em um primeiro momento
como um mercenário, trabalhando para o empresário Kanryu Takeda. Líder da
gangue Oniwabanshuu120, Aoshi nunca se mostra submisso ao capitalista. Mesmo
assim, podemos notar que essa representação do guerreiro, trabalhando por dinheiro,
seja uma forma de Nobuhiro trazer a questão da marginalização do samurai.

117
EISENSTADT, S. N. Modernidade Japonesa: A Primeira Modernidade Múltipla Não Ocidental.
Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 2010. pp.32-33.
118
Samurai vice-comandante da Tropa Shinsengumi.
119
Idem, p. 6.
120
O Oniwabanshu foi um grupamento existente durante o período Edo. Era formado por ninjas e
espiões, atendiam basicamente aos interesses dos daimyô.

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Além disso, quando assiste Kenshin lutar, Shinomori mostra que não esqueceu
os princípios que um grande guerreiro deve trazer. Isso fica amostra com os elogios
que estabelece a Himura. O personagem diz que se o protagonista tivesse como
intenção o lucro, teria se tornado um oficial do exercito japonês. Devemos tirar disso
uma critica ao aparelho militar da Era Meiji e suas motivações por parte do autor da
obra. Segundo Aoshi, faltaria um principio nobre durante a Era Meiji.( figura 6).

Figura 6. Reconhecimento do valor de Kenshin por Aoshi Shinamori.

Outra característica presente nesse personagem será sua lealdade para com
seus subordinados. Com o fim da Era Edo, Aoshi fora chamado para ser funcionário do
novo governo, mas rejeitou o cargo porque não queria abandonar seus amigos.
Depois de ver seus afetos sendo mortos, Shinamori decide que quer matar Kenshin,
pois assim, conseguiria ser o guerreiro mais forte, podendo dar esse título à memória
de seus antigos companheiros.

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Saitou Hajime

Mais um personagem inspirado em uma figura real, Saitou Hajime em Rurouni


Kenshin possui o mesmo nome do samurai histórico, que segundo Mike Wagner121 foi
capitão da terceira unidade do grupo Shinsengumi. Posição que Saitou também
possuía no drama.
Na figura 7, Saitou é mostrado primeiramente como alguém que possui uma
rivalidade com Kenshin. Essa dualidade estaria mergulhada no passado, com o
processo que culminou no fim da Era Edo e inicio da Era Meiji. Sendo o herói um
patriota a serviço do imperador, Saitou foi um de seus antagonistas, membro de uma
unidade pró- shôgun.

Figura 6. Rivalidade no discurso de Saitou Hajime em relação a Kenshin.

Esse embate entre Kenshin e Saitou será uma das principais formas de
relacionar os dois personagens antagonistas durante o Bakumatsu. Além disso, essa
dualidade também refletiria a rivalidade entre samurais a serviço do Shôgun de um
lado e entre os guerreiros a favor do Imperador.
O antigo capitão é retratado na obra à serviço do governo Meiji e diferente da
maioria dos samurais mostrados no mangá, Hajime conseguiu um posto como policial
na nova Era japonesa. Segundo Wagner, com a vitória das forças imperiais, o Saitou

121
Idem, p.6.

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histórico teria passado a ser policial depois de 1868. Seria a forma em que o antigo
bushi teria encontrado para lutar contra as injustiças no país, mostrando dessa forma
uma espécie de lembrança dos tempos de guerreiro.

Soujirou Seta

Soujirou Seta é mais um personagem criado por Nobuhiro a partir de um


personagem real: Okita Souji, membro da Tropa Shinsengumi. Segundo Wagner
(2005, p.9), Okita foi um prodígio no manuseio da espada e seu nascimento teria sido
no ano 1844. Segundo esse autor, o jovem espadachim morreu com 25 anos, vitima de
tuberculose (2005, p.15).
Okita foi retratado em Runouni Kenshin. Sua pequena aparição na obra de
Nobuhiro será lutando ao lado de Saitou Hajime, outro membro do grupo
Shinsengumi. Na figura 3, vemos o jovem Souji representado como alguém que possui
tuberculose, doença na qual Wagner, citado anteriormente, teria matado o samurai.
Sobre Soujirou Seta, esse samurai será apresentado como o assassino do
político Okubo Toshimishi, fato que aconteceu no dia 14 de maio de 1878, produto de
bushi radicais descontentes com a política de Okubo, segundo Swale (2009, p. 127-
128).
Soujirou não é tão critico quanto outros samurais. Pelo contrário, se mostra
como alguém frio e sem emoções, nos quais as ações estarão voltadas apenas para os
desejos de seu mestre Shishio Makoto. Seta representa, dessa forma, a figura do bushi
leal ao seu senhor. Alguém que não mostra suas emoções e que, ao mesmo tempo,
transmite confiança para seu sensei.
Essa relação entre Shishio e Soujirou lembra a lealdade da tropa Shinsengumi
para com o Shôgun. Por isso, a importância de representar um samurai histórico na
figura de um guerreiro leal ao seu mestre, como vemos na obra estudada.

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Takeda Kanryuu

Durante a Era Meiji, o Japão entrou no surto desenvolvimentista. O capitalismo


ganhou espaço de vez no país nipônico. As indústrias cresceram e tivemos a formação
da classe operária japonesa.
Em Rurouni Kenshin, essa fase capitalista será simbolizada na figura do vilão
Takeda Kanryuu. Sua representação será de um homem sem nenhum interesse que
não seja o lucro através da venda do ópio122 (figura 6).
O samurai histórico que serviu de inspiração para a criação de Kanryuu foi o
quinto capitão da Tropa Shinsengumi, Takeda Kanryûsai, morto em 1867 por Saitou
Hajime, não só porque ele era um líder ineficiente e arrogante e suas táticas
ultrapassadas, afirma Wagner. Mas também porque, Kondô Isam, líder máximo da
Shinsengumi, descobriu que Kanryûsai era um traidor quando ele se juntou aos
imperialistas, viajando para a mansão do clã Satsuma em Fushimi123.
No mangá, Takeda é representado como um empresário capitalista. Além
disso, ele não entende o código de um guerreiro samurai. “Um homem capaz de
morrer por suas crenças”, é assim que Aoshi se refere à Kenshin, quando questionado
por Kanryuu (figura 6). Além disso, Shinamori sendo um guerreiro irá fazer uma
analogia: diz que Himura “não liga para lucros, pois se ligasse, seria um oficial do
exército durante a Era Meiji”. Ou seja, um guerreiro virtuoso, característico do Período
Tokugawa, cedeu espaço para um militar apenas interessado no dinheiro durante a
Era Meiji.
A visão de Nobuhiro sobre o capitalismo japonês não é complexa. O autor cria
Takeda para representar tal fase nipônica, um homem que busca o lucro com a venda
de ópio, tem poderio bélico moderno e desconhece a honra samurai. Uma crítica a Era
Meiji através do sistema lucrativo é encontrada em Rurouni Kenshin dessa forma. Para
Watsuki, tal contexto histórico representou o surgimento de homens incapazes de
pensar como os antigos samurais, verdadeiros guerreiros de honra. O novo homem
japonês, segundo esse autor, apenas ligaria para ganância e lucro.

122
Substância que pode causar alucinações ou morte.
123
Um bairro da cidade de Kyoto.

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Considerações finais

Como analisado nesse trabalho, a representação da Tropa Shinsengumi na


cultura japonesa, em especial no mangá “Rurouni Kenshin”, está inserida em um
contexto comum dentro da literatura nipônica: a tentativa de lembrar a cultura
tradicional, principalmente através da figura do samurai.
Os integrantes da Shinsengumi em “Rurouni Kenshin” estão representados em
personagens fictícios. Sanasuke Sagara é o samurai marginalizado; Aoshi Shinamori é
um mercenário que não esqueceu a essência de um verdadeiro guerreiro; Saitou, um
antigo membro da Tropa, é um policial que ainda luta por justiça; Soujirou Seta
esqueceu os sentimentos e se juntou a um samurai radical e, Takeda Kanryuu,
inspirado em um membro traidor da Shinsengumi, é representado como um homem
sem valores morais.
Portanto, Nobuhiro traz antigos membros da Tropa Shinsengumi como
pessoas dentro do contexto da Era Meiji, mesmo que historicamente, tais membros
morreram antes do inicio daquele período (exceto Saitou Hajime). A representação
em cima desses samurais mortos durante a Restauração Meiji nos leva a entender que
o autor queria fazer com que o público japonês lembrasse seus heróis nacionais dentro
de um contexto polêmico da modernização no qual o país passava quando a obra foi
publicada: a década de 1990.
Segundo Elise K.Tipton124, a crítica à modernização japonesa encontra base na
perda de identidade cultural, propiciada principalmente com a globalização. Uma
linha de pensamento já presente nos anos 1880 e que, com a década de 1990 veio à
tona novamente, principalmente com a crise econômica na qual o país enfrentou
nesse período.
É discutível se a modernidade marcou o fim do tradicionalismo nipônico.
Segundo Yutaka Tazawa125, a cultura japonesa não se perde com a entrada da
influência estrangeira. Para esse autor, os hábitos nacionais contemporâneos devem
ser definidos como produto do encontro da cultural tradicional japonesa, com os

124
TIPTON, E. K. Modern Japan. New York: Routledge, 2002. p. 56.
125
TAZAWA Yutaka. História Cultural do Japão – uma perspectiva. Ministério dos Negócios Estrangeiros
do Japão, 1973. p.1.

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comportamentos estrangeiros, onde estes últimos foram “importados”, absorvidos e
misturados de forma harmoniosa à primeira. Houve dessa forma, possibilidade de
aberturas flexíveis para práticas estrangeiras. Portanto, a rejeição pela cultura
estrangeira por parte dos japoneses foi bem rara. Porém, não se teve a perda da
identidade nacional com a entrada das culturas “alienígenas”.
Além disso, aumentar a importância da Tropa Shinsengumi, criando
personagens inspirados em seus membros e, o caráter autônomo desses guerreiros,
nos faz lembrar das citações de Rosa Lee e Sonia Bide Luyten, onde as autoras nos
deixam a importância da representação do samurai como herói dentro da literatura
nipônica.
Lembrar-se dos samurais em tempo de crise é um jeito de mostrar ao povo
japonês que eles têm alguém a se espelhar. Representar esses heróis como
prejudicados pela modernização da forma que Nobuhiro faz em “Rurouni Kenshin” é
criticar o processo japonês de modernização, principalmente quando este destruiu um
dos maiores símbolos da cultura nacional daquele país: o bushi.

Bibliografia
EISENSTADT, S. N. Modernidade Japonesa: A Primeira Modernidade Múltipla Não
Ocidental. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 53, p.11-54, 2010. Rio de
Janeiro.
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LEE, Rosa. Romanticising Shinsengumi in Contemporary Japan. New Voices: A Journal
for Emerging Scholars of Japanese Studies in Australia and New Zealand,Sydney, v.
4, p.168-187, jan. 2011.
LUYTEN, Sonia. Mangá, o poder dos quadrinhos japoneses.São Paulo, Hedra, 1999.
STEELE, M. William. Alternative Narratives in Modern Japanese History.2 ª edição.
Nova York: Taylor & Francis e-Library, 2004.
TAZAWA Yutaka. História Cultural do Japão – uma perspectiva. Ministério dos
Negócios Estrangeiros do Japão, 1973.
TIPTON, E. K. Modern Japan. New York: Routledge, 2002.
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WATSUKI, Nobuhiro. Kenshin Kaiden. Shueisha Inc. Tokyo. 1999.
YAMASHIRO, José. A Pequena História do Japão. 2. ed. São Paulo: Herder, 1964.
YAMASHIRO, José. História dos Samurais. 3. ed. São Paulo: Ibrasa, 1993.

Artigo recebido em: 29 de Março de 2015


Artigo aprovado em: 20 de Abril de 2015

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