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À sombra da liberdade

Com a Revolução de 1974, várias pessoas começaram a fazer teatro fora dos grupos amadores e das
companhias profissionais existentes. No grande Porto, até então, todos gravitavam à volta do TEP,
da Seiva Trupe, do TUP e das agremiações locais. A partir de 1974, liberta-se uma energia que
causará efeitos por muito e bom tempo, e talvez ainda hoje tenha impacto. O livro do Mário
Moutinho conta a história desse movimento, que deu vazão ao desejo de atuar e de intervir
publicamente pela a arte e pela cultura. O movimento, em parte involuntário, foi constituído por
coletivos informais, difíceis de catalogar, nem amadores nem profissionais, que vieram mais tarde a
desaparecer ou a institucionalizar-se de vez. Isabel Alves Costa (Roda Viva), João Paulo Seara
Cardoso (TEG, TAI), Francisco Beja (Roda Viva), João Lóio (Roda Viva), Victor Valente
(Realejo), Fernando Costa (Teatro 5, TEG, Artimagem, Caixa de Pandora), José Leitão (Banzé,
Artimagem), Antero Afonso (Faúlha), e o próprio Mário Moutinho, entre muitos outros, criaram
espectáculos, ocuparam casas e fundaram coletivos que, nalguns casos, ainda existem, como o
Teatro de Marionetas do Porto e o Artimagem; ou vieram a dirigir instituições de relevo, como o
Rivoli e a ESMAE, e festivais como o FITEI e o Fazer a Festa. Pelo meio, realizaram espectáculos
que foram marcos na história do teatro em Portugal, como, por exemplo, Hoje Começa o Circo
(1979), do Roda Viva; Trupe Maravilha (1981), do TAI; ou Nó Cego (1982), do Realejo —
espetáculos que a muitos dos que fazem teatro hoje no Porto não viram, mas de que ouviram falar e
pelos quais são, indiretamente, afetados.
Podemos arriscar chamar movimento a este conjunto de ações coletivas porque muita coisa
em comum e sobretudo muita cumplicidade houve entre os responsáveis por elas. Apesar da
independência que cultivaram, muitos dos artistas de teatro dos anos 70 tinham feito cursos ou
espectáculos em grupos de teatro universitário, em especial no TUP, e viriam a ter o apoio e
colaboração da Seiva Trupe, na formação e na cedência de espaço (a Cooperativa do Povo
Portuense). Antes de se aventurarem, estas pessoas começaram por promover ou frequentar ações
de aprendizagem de técnicas teatrais. Para desenvolver os seus trabalhos, os criadores estudaram os
temas e fizeram pesquisa tanto das formas tradicionais quanto das inovações que chegavam de todo
o mundo. Os grupos desdobraram-se em espectáculos para a infância, teatro de formas animadas e
teatro de rua, participando em festivais, encontros e associações dessas áreas. Realizam também
espectáculos de variedades e café-teatro. É o período áureo do movimento, que nos anos oitenta
chega a ter cumplicidade tanto com quem trabalhava no campo da performance quanto com os
responsáveis pelos canais televisivos.
O movimento não surgiu do nada. Estas pessoas eram politicamente ativas. Uma vista de
olhos sobre os títulos das peças levadas à cena nesses primeiros anos mostra que eram feitas por
malta engajada, com intenção de denúncia e mobilização: por exemplo, A Greve (1974), pelo
Faúlha; O Outro, de Durrenmatt, e Os Direitos do Homem, de Yvette Centeno (1975), pelo Teatro
5; ou Computa, Computador, Computa (1977), de Millôr Fernandes, pelo TEG. Em 1974, a Seiva
Trupe faria (A Seiva Conta) Catarina na Luta do Povo, de Luís Humberto; e em 1977, o TUP faria
A Renda, com encenação de Victor Valente. No início dos anos oitenta, continuavam a fazer um
teatro crítico, de intervenção e temática social, mas as peças mudam de tom. O movimento começa
a perder gás. Em 1981, Subsídio de Natal, do Realejo, terminava com a entrega do programa do
espectáculo, apenas no final, impresso em negro e dourado, “quase de luto”, conforme conta
Armando Dourado numa das entrevistas dadas a Mário Moutinho. Em 1980, Fernando Costa,
chamado pelo FAOJ a dirigir um espetáculo para as comemorações oficiais da morte de Camões,
intitulou-o Não Mais, Musa. Na segunda metade da década de 1980, o movimento começa a parar.
Em 1986, num texto que não chegou à cena, intitulado Chuva, João Lóio imagina, para começo do
espetáculo, o cenário abandonado de uma tenda de circo depois da função da noite passada. O
contraste dessa imagem com a imagem do vento que iniciava, como um sopro de vida, o espetáculo
Hoje Começa o Circo (1979), do Roda Viva, feito a partir das canções do mesmo João Lóio, é
sintomático da mudança de estado de espírito que ocorreu na época. O fim do movimento talvez
coincida com o que Isabel Alves Costa, citada na introdução a este livro, descreveu como um certo
desencanto com «a normalização da vida política pós-75». O trabalho de Mário Moutinho permite
começar a fazer uma análise da relação entre a produção teatral desses anos e a chamada
normalização.
Nos anos noventa, um conjunto de pessoas foi assumindo responsabilidades de maior, e o
testemunho do movimento foi passado para as gerações seguintes, mas o caráter rebelde do teatro
daqueles anos perdeu-se no caminho. A profissionalização levou à institucionalização do sistema
teatral no Porto, e muitos dos que participaram no movimento participaram nesse processo. Alguns
optaram por manter-se à margem da profissionalização e da institucionalização, fosse por rejeitarem
a burocratização, fosse por cansaço, é certo. Mas a energia que renovou o teatro do Porto naqueles
anos não se esvaiu só naturalmente. O Realejo, por exemplo, depois de ter perdido apoio público
em 1982, devido a um erro de classificação cometido pelos serviços da Direção-Geral das
Actividades Culturais, viu novo pedido negado em 1988, visto que estava em curso um processo de
concentração dos vários grupos da cidade. Para cúmulo, na noite de Natal de 1989, o muro traseiro
do espaço do Realejo na Ribeira ruiu debaixo do temporal, destruindo o património do grupo. Ficou
apenas a fachada, o “último cenário”, como diz Victor Valente, citado pelo Mário Moutinho.
O entusiasmo da primeira década após a revolução gerou grupos e escolas que renovaram o
tecido teatral da cidade. A efervescência desses amadores-profissionais de teatro no Porto, na
década de setenta, é comparável à vaga de novos grupos nos anos noventa, saídos da ACE, e à leva
de coletivos que, nos anos zero deste milénio, se instalou na Fábrica, edifício desocupado da
ESMAE. É comparável e talvez esteja na origem dessas outras vagas. Atrás de cada estreia de teatro
que há hoje no Porto, está um exército de sombras vindo dos anos setenta. Em todas as grandes
cidades de teatro é assim. Que seria do teatro paulistano sem o Teatro de Arena, grupo e espaço
físico fundados em São Paulo nos anos cinquenta, que é um modelo para os grupos independentes;
ou do teatro portenho sem o Teatro del Pueblo, em atividade em Buenos Aires desde os anos trinta?
É nas épocas de liberdade que o teatro vem à tona para respirar.
A memória do teatro revolucionário e pós-revolucionário, no Porto, fixada pelo Mário
Moutinho neste livro, dá-nos um vislumbre do que foi o fôlego criativo e a insubordinação cívica
desse tempo, tanto que chegou até hoje. Por contraste, deixa-nos entrever o que teria acontecido se
houvesse ainda mais fôlego. Enquanto os movimentos teatrais de cidades como São Paulo e Buenos
Aires se infiltraram nas quadras e quarteirões urbanos, onde se mantêm até hoje; o movimento do
teatro revolucionário foi enquadrado nos teatros municipais ou nacionais. Uma das grandes
diferenças entre esses sistemas teatrais e o contexto do Porto é a rede de espaços de apresentação.
São inúmeras as pequenas salas e os teatros de bolso dos bairros centrais dessas cidades, que
oxigenam o sistema como um todo. Ao contrário, no Porto, se não fosse pelos teatros fundados no
fim do Séc. XIX ou início do Séc. XX, o centro da cidade estaria deserto de teatro. Quase todas as
tentativas de manter espaços alternativos na Baixa ou na Ribeira foram esporádicas e infrutíferas,
tirando, atualmente, a Mala Voadora e, desde há muito, o Teatro de Marionetas do Porto. Essa
exceção, a mais duradoura (a que, de resto, está ligado o próprio Mário Moutinho), tem origem
precisamente naqueles anos da liberdade, cuja sombra ainda nos protege. Quanto mais sombra,
melhor.

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