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Lorena Madruga Monteiro

Luciana Santana
Organizadoras

“Temerosas
transações”:
Ensaios sobre o golpe recente no Brasil
Volume II
Lorena Madruga Monteiro
Luciana Santana
Organizadoras

“Temerosas
transações”:
Ensaios sobre o golpe recente no Brasil
Volume II
CONSELHO EDITORIAL

Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa – Direito – UFSC e UNIVALI/Brasil


Prof. Dr. Alvaro Sanchez Bravo – Direito – Universidad de Sevilla/Espanha
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Prof. Dr. Giuseppe Ricotta – Sociologia – SAPIENZA Università di Roma/Itália
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Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais – Direito – FDV/Brasil
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Prof. Dr. Luiz Rodrigues Wambier – Direito – UNIPAR/Brasil
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Profª. Drª. Silvia Virginia Coutinho Areosa – Psicologia Social – UNISC/Brasil
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COMITÊ EDITORIAL

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T279 “Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil [recurso


eletrônico] / Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana,
Org. - Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2018.
118 p. v.2

Texto eletrônico.
Modo de acesso: World Wide Web.

1. Golpes de Estado - Brasil. 2. Democracia - Brasil. 3. Ciência política -


Brasil. 4. Igualdade – Brasil. I. Monteiro, Lorena Madruga. II. Santana, Luciana.

CDD: 320.0981

Prefixo Editorial: 5479


Número ISBN: 978-85-5479-040-0

Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406


Catalogação: Fabiana Lorenzon Prates
Revisão gramatical: Aila Corrent
Diagramação: Aila Corrent e Marco Aurélio de Souza Carneiro
PREFÁCIO
Até dezembro de 2014, ano da eleição de Dilma Rousseff, a preocupação dos bra-
sileiros estava mais focada nos temas econômicos e nas pautas materialistas. Contudo,
em 2015, a corrupção passaria a ser vista como o principal problema do país e, uma vez
associada à Dilma Rousseff, incidiu sobre a sua popularidade. Nesse processo, a identi-
dade com os partidos políticos chegou aos mais baixos níveis desde a redemocratização.
Observou-se, dessa forma, um crescente sentimento apartidário, em geral, e antipetista,
em particular.
A combinação de fatos como os escândalos políticos midiáticos de corrupção,
uma oposição ferrenha no Congresso Nacional, a impopularidade da presidenta e a pe-
quena diferença de votos entre o primeiro e o segundo colocado na disputa presidencial
abriram uma janela de oportunidades para os grupos de oposição solicitassem reconta-
gem de votos e acusassem sistematicamente a chapa eleita de produzir fraudes para se ele-
ger. Foram realizados diversos pedidos de afastamento da presidenta, como a cassação da
chapa PT-PMDB junto ao Tribunal Superior Eleitoral, por suposto “caixa dois” na cam-
panha da chapa Dilma-Temer. Também foram organizados movimentos de protestos nas
redes sociais contrários ao governo, por grupos da direita e extrema-direita que pediam o
afastamento de Dilma, seja por impeachment, renúncia ou mesmo por intervenção militar
“constitucional”. Esses reiterados pedidos de afastamento da chefe do governo resultaram
no aumento da desconfiança na lisura das eleições, nas próprias urnas eletrônicas e na
classe política.
A descrença no processo eleitoral encontra eco na cultura política brasileira, que
pouco valoriza as instituições e considera legítimo que um presidente perca o seu man-
dato, caso seja impopular. Uma vez que não se encontraram provas de corrupção que
envolvessem diretamente a presidenta, o pedido de seu afastamento foi baseado em uma
alegação técnica de que ela havia realizado “pedaladas fiscais”.
Após um desgastante processo político e jurídico, Dilma sofreu impeachment.
Contudo, mais do que um impeachment, o que se viu foi um Golpe Parlamentar. Um
processo de impeachment é um julgamento jurídico-político reservado a um crime de res-
ponsabilidade atribuído ao presidente da República. Mas a destituição de um presidente,
apenas como resultado de uma mudança no equilíbrio político de um governo de coalizão,
pode ser configurada como um golpe. Um golpe civil, pois não houve envolvimento das
Forças Armadas. Trata-se de um golpe parlamentar porque foi produzido por uma falha
técnico-administrativa fora de proporção com a punição. O que se assistiu foi um proces-
so de destituição e de desestabilização institucional no Brasil. O impeachment, da ma-
neira casuística como ocorreu, produziu um trauma institucional de difícil recuperação
e colocou em jogo a ordem constitucional de 1988, afetando a região latino-americana. 
Durante o governo Temer, poucas lideranças nacionais conseguiram articular a
sociedade civil, e as estruturas partidárias estão congeladas, numa tensão constante entre
o Congresso Nacional e o Judiciário, caracterizando-se também uma crise institucional
de definições incertas. Desde então, pouco se tem discutido sobre o significado político
e econômico do pós-impeachment. Este volume tem a vantagem de ultrapassar as dis-
cussões sobre o impeachment, ao se dedicar ao processo posterior: o governo Temer. A
coletânea dedica-se a expor o aprofundamento das desigualdades políticas, econômicas
e de gênero produzidas durante curto o mandato de Temer, além de esmiuçar as políticas
públicas que tiveram como efeito aprofundamento da desigualdade, o empoderamento do
Poder Judiciário e a ausência de conexão entre o poder público e a sociedade.
É uma coletânea necessária para todos aqueles que se interessam pela política
brasileira, pois, além de contar com prestigiados autores e acadêmicos, os capítulos do
volume partem de teorias diversas – política, história, filosofia, economia – para a com-
preensão do processo de desmocratização do Brasil pós-Golpe.

Helcimara Telles
Verão de 2019

REFERÊNCIA

TELLES, H. S. Crise Política ou Crise na Política? O processo de impeachment da Presi-


dente Dilma Rousseff e seus desdobramentos (a)políticos. In: Paulo Edgar R. Resende;
Vitor de Angelo. (Org.). A crise política brasileira em perspectiva. 1ed.Florianópolis:
Insular, 2016, v. 1, p. 15-4
APRESENTAÇÃO
O presente volume dois do e-book Temerosas transações: Ensaios sobre o golpe
recente no Brasil tem como objetivos apresentar temáticas não analisadas no primeiro
volume e destacar os efeitos mais significativos da ruptura institucional instaurada no
Brasil após o impeachment da Presidenta do Brasil Dilma Rousseff. Enquanto o primeiro
volume teve como preocupação didática destrinchar analiticamente o golpe à democracia
brasileira ocorrido em 2016, este volume dedica-se a expor o aprofundamento das desi-
gualdades no governo de Michel Temer.
O primeiro ensaio Desenvolvimento econômico com inserção social: o grande
desafio brasileiro, de Benedito Tadeu César, demonstra que, com o impeachment e o
governo de Michel Temer, a concentração de renda e a exclusão social, assim como o au-
toritarismo e a violência, aumentaram vertical e horizontalmente. Considerando esse ce-
nário, segundo o autor, é preciso repensar as alternativas de desenvolvimento econômico
do país, que sempre oscilaram entre uma posição de desenvolvimento liberal dependente
e associado e outra de desenvolvimento com maior controle nacional e autônomo.
No segundo ensaio Espiral do tempo: modernização conservadora e a nova (anti-
ga) história do Brasil, Maro Lara Martins volta-se às interpretações da formação política
do Brasil para demonstrar os choques e as transposições construídos historicamente entre
a elite e o povo, o Estado e a sociedade, a modernização e o moderno. Sugere, ao final,
com base na instabilidade política vivenciada hoje, o risco e a emergência da demofobia.
O terceiro ensaio Recessão democrática: uma análise do Brasil no contexto in-
ternacional, de Rodrigo Horochovski, Augusto Júnior Clemente e Ivan Jairo Junckes,
discute, com base no índice de democracia da Economist Intelligence Unit (EIU), se o
impeachment da Presidenta Dilma Rousseff refletiu, no plano internacional, na avaliação
da democracia brasileira.
O quarto ensaio Desigualdade de gênero no Brasil pós-golpe de 2016, de Thalita
Carla de Lima Melo, Wagner Leite de Souza e Débora Cristina da Silva Alves, analisa
o aprofundamento da desigualdade de gênero no governo de Michel Temer. Os autores
demonstram essa questão mediante o debate sobre a representatividade de gênero nos
altos escalões do governo instaurado após o impeachment de Dilma Rousseff, das conse-
quências das reformas trabalhista e previdenciária na luta pela equidade de gênero, além
da questão da “feminização da pobreza”, com a redução em curso dos programas sociais.
O quinto ensaio, intitulado Uma ponte para o desastre: a fratura política ambien-
tal no (des)governo Temer, de autoria de Diego Freitas Rodrigues, expõe a influência da
Frente Parlamentar Agropecuária (bancada ruralista) na agenda política do governo Te-
mer, impondo, por meio da produção legislativa, amplos retrocessos ambientais e cortes
orçamentários significativos no Ministério do Meio Ambiente e nas suas autarquias.
O sexto ensaio Cartografia dos privilégios: os Magistrados no Brasil, de Andrés
del Rio, analisa as facetas do judiciário brasileiro, em especial os privilégios dos Ma-
gistrados. Destaca o autor que, embora se apresente desconectado da realidade política
e social brasileira, o Judiciário foi um ator central na ruptura institucional em curso no
Brasil, mediante o Lawfare, o ativismo judicial e a judicialização das relações sociais e
da política.
O sétimo ensaio Da filosofia como modo superior de dar o cu: arte, violência
e censura em tempos de cólera é uma peça teatral escrita por Djalma Thürler. Além de
apresentar a peça, o autor contextualiza e analisa a criminalização cultural promovida por
setores conservadores, como o Movimento Brasil Livre (MBL), não só à leitura da peça
teatral de sua autoria, mas também a outras peças e experiências artísticas.
O oitavo ensaio Austeridades e políticas sociais no governo Temer: um panorama
sobre as políticas de saúde e educação, de Michele Fernandez e Andressa Pelllanda, ana-
lisa como o discurso e a prática de austeridade do governo Temer têm afetado significa-
tivamente as políticas públicas de saúde e educação, impactando, portanto, na qualidade
de vida dos brasileiros.

Lorena Madruga Monteiro e Luciana Santana


LISTA DE SIGLAS
ADIns: Ações Diretas de Inconstitucionalidade
ANS: Agência Nacional de Saúde
Anvisa: Agência Nacional de Vigilância Sanitária
BRICs: Brasil, Rússia, índia, China e África do Sul (grupo formado por países emergen-
tes que se encontram em situação econômica similar)
CAQ: Custo Aluno-Qualidade
CAQi: Custo Aluno-Qualidade Inicial
CIDH/OEA: Comissão Interamericana de Direitos Humanos
CLT: Consolidação das Leis do Trabalho
CNJ: Conselho Nacional de Justiça
CSN: Companhia Siderúrgica Nacional
EC: Emenda Constitucional
EIU: Economist Intelligence Unit
FHC: Fernando Henrique Cardoso
FIAC: Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia
FIESP: Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
FLOTA: Floresta Estadual
FPA: Frente Parlamentar Agropecuária
FUNDEB: Fundo de Manutenção da Educação Básica
IBAMA: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICBA: Instituto Cultural Brasil Alemanha
ICMBio: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
IPEA: Instituto de Pesquisa Aplicada
ISEB: Instituto Superior de Ensino Brasileiro
JK: Juscelino Kubistchek
LGBTI: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros e Intersexual
LOA: Lei Orçamentária Anual
LOMA: Lei Orgânica da Magistratura Nacional
MBL: Movimento Brasil Livre
MP: Ministério Público
OAB: Ordem dos Advogados do Brasil
OIT: Organização Internacional do Trabalho
ONU: Organização das Nações Unidas
PBF: Programa Bolsa Família
PE: Pernambuco
PETROBRÁS: Petróleo Brasileiro S.A
PIB: Produto Interno Bruto
PL: Projeto de Lei
PNE: Programa Nacional de Educação
PR: Partido da República
PSF: Programa de Saúde da Família
PT: Partido dos Trabalhadores
RENCA: Reserva Nacional de Cobres e Associados
RLI: Receita Líquida de Impostos
RT: Reforma Trabalhista
SAMU: Serviço de Atendimento Médico de Urgência
STF: Supremo Tribunal Federal
SUS: Sistema Único de Saúde
TRF4: Tribunal Regional Federal da 4 região
UDN: União Democrática Nacional
UFPR: Universidade Federal do Paraná
UPA: Unidade de Pronto Atendimento
UTI: Unidade de Terapia Intensiva
SUMÁRIO

DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COM INSERÇÃO


SOCIAL: O GRANDE DESAFIO BRASILEIRO �����������������13
BENEDITO TADEU CÉSAR
A ESPIRAL DO TEMPO: MODERNIZAÇÃO
CONSERVADORA E A NOVA (ANTIGA) HISTÓRIA DO
BRASIL.......................................................................................26
MARO LARA MARTINS
RECESSÃO DEMOCRÁTICA: UMA ANÁLISE DO BRASIL
NO CONTEXTO INTERNACIONAL......................................36
RODRIGO ROSSI HOROCHOVSKI
AUGUSTO JÚNIOR CLEMENTE
IVAN JAIRO JUNCKES
DESIGUALDADE DE GÊNERO NO BRASIL
PÓS-GOLPE 2016.......................................................................49
THALITA CARLA DE LIMA MELO
WAGNER LEITE DE SOUZA
DÉBORA CRISTINA DA SILVA ALVES
“UMA PONTE PARA O DESASTRE”:
A FRATURA POLÍTICA AMBIENTAL
NO (DES)GOVERNO TEMER................................................. 61
DIEGO FREITAS RODRIGUES
CARTOGRAFIA DOS PRIVILÉGIOS:
OS MAGISTRADOS NO BRASIL...........................................71
ANDRÉS DEL RÍO
DA FILOSOFIA COMO MODO SUPERIOR
DE DAR O CU: ARTE, VIOLÊNCIA E CENSURA EM
TEMPOS DE CÓLERA.............................................................83
DJALMA THÜRLER
AUSTERIDADE E POLÍTICAS SOCIAIS NO GOVERNO
TEMER: UM PANORAMA SOBRE AS POLÍTICAS DE
SAÚDE E EDUCAÇÃO............................................................ 101
MICHELLE FERNANDEZ
ANDRESSA PELLANDA
SOBRE OS AUTORES............................................................ 114
ORGANIZADORAS................................................................ 117
DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COM
INSERÇÃO SOCIAL: O GRANDE DESAFIO
BRASILEIRO
Benedito Tadeu César

INTRODUÇÃO

Vivemos tempos sombrios, de crescimento da desigualdade e da violência, em


todo o mundo. A democracia liberal e os direitos sociais, que resultaram do avanço da
organização e da participação popular, estão em crise profunda, pois não são mais fun-
cionais à economia globalizada e sob o controle do capital financeiro. A livre disputa do
controle do Estado e dos recursos ficais pelos diferentes segmentos da sociedade, que
possibilita uma distribuição razoavelmente equitativa dos fundos públicos, com sua desti-
nação tanto para as atividades empresariais quanto para o bem-estar social, está em risco.
O avanço do setor financeiro na economia, bem como a incorporação crescente
de tecnologia de ponta às atividades produtivas, tornando-as ainda mais onerosas e de-
pendentes da inversão intensiva de capitais, desencadearam uma pressão por recursos
públicos e um consequente ataque contínuo e cada vez mais acirrado aos direitos sociais e
democráticos conquistados ao longo do século XX e, de forma mais intensa, durante os 30
anos seguintes à Segunda Grande Guerra, com a emergência do Estado de Bem-Estar Social.
Resultado da hegemonia do capital financeiro e do avanço de suas políticas ne-
oliberais em grande parte das maiores economias globais, o nível de concentração de
renda no mundo, que havia regredido desde o final da Segunda Guerra Mundial, tornou a
crescer e iguala-se hoje ao existente no final do século XIX. A perda de direitos sociais e
trabalhistas é globalizada, assim como o avanço de governos e organizações políticas de
direita e de extrema-direita.

O CONFLITO ENTRE DOIS PROJETOS PARA O BRASIL

No Brasil, o crescimento mais intenso dos direitos sociais, enunciados na Consti-


tuição de 1988, ocorreu, mais tardiamente do que nos países desenvolvidos, na primeira
década do século XXI.
Neste período, contrariando a tradição de exclusão social que marca a história
brasileira e em uma trajetória inversa à que ocorria em termos mundiais, houve cresci-
mento econômico e inclusão social, com a diminuição das desigualdades econômicas e a
inserção de grandes parcelas da população tanto no mercado de bens de consumo quanto
nos benefícios da educação, da saúde e da habitação.

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Com a deposição da Ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016, a constante de con-


centração de renda e exclusão social, autoritarismo e violência política que caracteriza a
história brasileira foi retomada.
O Brasil se constituiu como colônia de exploração de bens naturais e de produção
agrícola e mineral, com uma elite que se instalou e se manteve com base na escravização
da mão de obra nativa e depois africana submetida à dependência dos capitais financeiros
internacionais, que drenavam grande parte dos imensos ganhos obtidos com a extração
do pau-brasil, da cana-de-açúcar e do ouro, nos primeiros séculos, da borracha, do café,
do minério de ferro, da soja, desde o final do século XIX e durante o XX, e, agora, tam-
bém do petróleo.
Desde sua constituição como país independente, o Brasil tem sido produtor e ex-
portador das commodities mais valiosas do mercado internacional, o que lhe assegurou a
presença sempre entre as maiores economias do mundo, sem que isso tenha garantido a
participação da maioria da população nos benefícios econômicos gerados, que têm sido
historicamente apropriados por parcela ínfima da população. Essa situação está entre os
principais motivos pelos quais o país vive um constante embate entre duas concepções de
desenvolvimento econômico e social e sob constante ambiente de violência política, com
uma história marcada por longa sucessão golpes e deposições de governo.
Em uma caracterização bastante geral, de um lado, encontra-se a concepção que
prega a associação dependente do país aos capitais internacionais, como forma de ga-
rantir a inserção no mercado mundial, e que entende que o Brasil tem prioritariamente
uma “vocação agrícola” e de serviços e é incapaz de gerar capitais e tecnologia próprios,
precisando buscá-los externamente, o que o levaria a se associar, em posição subordinada,
àqueles que os possuem e têm capacidade de desenvolvê-los. De outro lado, encontra-se
a concepção que prega o desenvolvimento nacional mais autônomo possível, calcado na
industrialização e no desenvolvimento tecnológico gerados internamente, ainda que não
de modo autárquico. Grosso modo, o embate entre essas duas concepções se iniciou antes
mesmo da independência política do país, quase sempre com a prevalência, por meio do
emprego da força, da primeira sobre a segunda concepção.
Para os fins deste artigo, define-se a primeira concepção como um tipo de desen-
volvimento liberal dependente e associado, que defende a redução de gastos sociais e a
não utilização do Estado como agente indutor do desenvolvimento, e a segunda como um
tipo de desenvolvimento com maior controle nacional e autonomia, que prega a adoção de
políticas sociais e a ação do Estado como indutor do desenvolvimento.
Considerando-se o período iniciado com a Revolução de 1930, quando começa a
construção do estado nacional moderno brasileiro e se intensifica a industrialização do
país, até hoje, os governos se alternaram, nem sempre pacificamente e por meio do voto
popular, aproximando-se mais de uma concepção ou de outra. Houve variações significa-
tivas de posturas entre os governos identificados com a mesma concepção aqui referida.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Por exemplo, entre os governos defensores do desenvolvimento com maior controle na-
cional e autonomia, ocorreu variação de posição quanto às políticas de inserção social, na
medida em que, diferentemente dos demais, os governos do período da ditadura civil-mi-
litar mantiveram uma política de concentração da renda. No que se refere, no entanto, ao
projeto de desenvolvimento do país, observa-se uma postura semelhante.
Eurico Gaspar Dutra (1946/1951), José Sarney (1985/1989), Fernando Collor de
Mello (1990/1992), Fernando Henrique Cardoso (1995/2003) e Michel Temer (2016/2018)
fizeram governos que podem ser identificados com o desenvolvimento liberal dependen-
te e associado, enquanto Getúlio Vargas (1930/1945 e 1951/1954), Juscelino Kubistchek
(1956/1961), João Goulart (1961/1964), os generais do período da ditadura civil-militar
(1964/1985), Luiz Inácio Lula da Silva (2003/2011) e Dilma Rousseff (2011/2016) fizeram
governos com maior controle nacional e autonomia.
Em todo esse período, nunca foram eleitos para a Presidência da República go-
vernantes que tenham defendido, durante suas campanhas eleitorais, projetos de cunho
liberal dependente e associado. Suas conquistas do poder de Estado ocorreram ou pela via
da força ou pela via da desconstrução moral de seus adversários, ou seja, dos defensores
das propostas de cunho nacional com maior autonomia, por meio de intensas campanhas
de “combate à corrupção” e de “moralização e diminuição dos gastos públicos”.
Getúlio Vargas chegou ao poder através da Revolução de 1930 e implantou o Es-
tado Novo, um governo ditatorial, entre 1937 e 1945, mas, depois de forçado a renunciar,
quatro anos após a criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), que deu início à
industrialização pesada no Brasil, foi reconduzido à Presidência da República pelo voto
popular em 1951 e levado ao suicídio em 1954, logo após a criação da Petrobras (1953),
por meio de grande campanha midiática que o acusava de envolvimento com o “mar de
lama” da corrupção e sob forte pressão militar.
A partir de Vargas, todos os presidentes da República eleitos democraticamente e que
adotaram políticas de cunho nacional com maior autonomia tiveram seus mandatos fortemente
contestados e foram alvo de campanhas de desestabilização, como aconteceu com Juscelino
Kubistchek, João Goulart, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, todos acusados de
“corrupção” e, exceto JK, de simpatias com ideais “comunistas”. Entre eles, apenas Juscelino
e Lula concluíram seus mandatos.
Considerando-se os presidentes da República que realizaram governos de cunho
liberal dependente associado, o general Eurico Gaspar Dutra implementou um governo de
abertura ao capital externo e de afrouxamento das políticas de proteção à indústria nacio-
nal, não obstante tenha sido eleito em razão do apoio de Getúlio Vargas em contraposição
à candidatura do Brigadeiro Eduardo Gomes, que apresentava um programa claramente
liberal dependente. Jânio Quadros e Fernando Collor de Mello ganharam eleições anco-
rados em fortes discursos de combate à corrupção e Fernando Henrique Cardoso (FHC)
por ter sido identificado com o Plano Real, de combate à hiperinflação, sem que tenha ex-
plicitado na campanha suas propostas de desmonte do “Estado Varguista” e de suspensão
das políticas nacional-desenvolvimentistas.

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Somente Michel Temer, que assumiu depois da deposição de Dilma Rousseff,


com seu programa “Ponte para o Futuro”, revelou um projeto de governo que incluía pri-
vatizações, austeridade fiscal, controle de gastos públicos, alteração da legislação traba-
lhista e previdenciária e uma clara política de internacionalização da economia brasileira.
Temer explicitou, assim, seu intento de retomar e fazer avançar as políticas econômicas de
Collor de Mello e de FHC, mas o fez perante empresários e parlamentares, sem submeter
seu projeto ao voto popular, que havia consagrado majoritariamente o projeto de gover-
no de Dilma, radicalmente diferente do seu. A chegada de Temer ao poder ocorreu por
meio de uma ação jurídico-parlamentar, sustentada por forte campanha midiática contra
a “corrupção” política.
Sob a justificativa de que afrontara a Lei de Responsabilidade Fiscal, a então Pre-
sidenta Dilma Rousseff foi destituída da Presidência da República por uma ação desenca-
deada no Congresso Nacional e que contou com o respaldo do Supremo Tribunal Federal
(STF), após um processo de impeachment durante o qual não houve comprovação da
prática de crime de responsabilidade, única justificativa constitucional possível para o
impedimento de uma(a) presidente(a) da República no Brasil.
O mais longo ciclo democrático da história brasileira, iniciado em 1985, passou,
a partir de 2016, a sofrer iniciativas jurídico-políticas, autojustificadas como necessárias
em um “momento de exceção” na luta contra a corrupção, que desrespeitaram a Consti-
tuição e deram espaço para a implementação de um projeto de governo liberal dependente
associado. Com ele, foi colocado fim a 13 anos de mandatos presidenciais consecutivos
sob a liderança do Partido dos Trabalhadores (PT) e às suas políticas de inserção social e
de desenvolvimento econômico mais autônomo.
Sem que sejam recuperadas aqui todas as ações desencadeadas por opositores dos
governos petistas, visando a inviabilização de suas políticas e até mesmo impossibilitar a
conclusão de cada um dos quatros mandatos concedidos por votação popular, é importan-
te ressaltar que tais ações foram realizadas tanto por integrantes do Congresso Nacional,
lócus apropriado aos embates políticos, quanto por integrantes de organismos institucio-
nais ligados ao Poder Judiciário e ao Ministério Público Federal, fortemente articulados
com os veículos da grande mídia corporativa, que “vazaram” e repercutiram intensamen-
te denúncias e gravações de conversas até mesmo privadas e sem ordem judicial.
A primeira grande ação visando a inviabilização e até mesmo a deposição do
governo Lula ocorreu durante a metade do segundo ano de seu primeiro mandato. Desen-
cadeada na Câmara dos Deputados, por um parlamentar de oposição já acusado de cor-
rupção, as acusações foram transformadas na Ação Penal 470, popularmente conhecida
como o Processo do Mensalão. Dela resultou a exoneração do Ministro Chefe da Casa
Civil da Presidência da República e sua posterior prisão, junto com outros integrantes do
primeiro e segundo escalões do governo e do PT, incluindo o seu presidente nacional.
Nunca foi comprovada efetivamente a culpa dos acusados, que foram condenados
com base em uma interpretação peculiar da chamada Teoria do Domínio do Fato, sob a
justificativa, manifestada de forma sintética e emblemática pela ministra Rosa Weber, do
STF, na condenação do ministro José Dirceu, de que não tinha provas, mas que a literatu-
ra jurídica lhe permitia condená-lo.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Não obstante o escândalo midiático estabelecido, os altos índices de aprovação


popular obtidos pelo Governo Lula e pelo seu titular impediram que fosse sequer apre-
sentado pedido de impeachment do Presidente da República, fato amplamente divulgado
e alardeado pelos parlamentares de oposição, que preferiram “deixar sangrar” o governo
para que se esvaísse. A estratégia não funcionou. Lula foi reeleito, terminou seu segundo
mandato com índices de aprovação popular que variaram entre 83 e 87%, segundo os ins-
titutos de pesquisa Ibope e Datafolha, e elegeu Dilma, até então desconhecida do grande
eleitorado e que nunca tinha disputado uma eleição popular.
As ações contrárias ao projeto de desenvolvimento econômico mais autônomo
e socialmente inclusivo, encaminhado pelos governos do PT, foram retomadas durante
os últimos anos do primeiro governo Dilma Rousseff. Iniciadas como manifestações de
jovens contra os aumentos do preço das passagens de ônibus urbanas nas principais ci-
dades do país e dirigidas aos governos municipais, as mobilizações foram rapidamente
apropriadas pelos grandes veículos de mídia e transformadas em atos de protestos contra
os políticos em geral e principalmente contra o governo Rousseff. Milhões de pessoas
foram às ruas em todo o país, mobilizadas por chamadas continuamente divulgadas pelas
grandes redes de rádio e televisão, entoando o refrão “não nos representam”.
No ano seguinte, foi instalada a Operação Lava Jato, voltada para a investigação
de desvios e “lavagem” de dinheiro envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras e polí-
ticos, tendo concentrado suas investigações prioritariamente sobre os integrantes do PT,
não obstante as investigações e as delações obtidas tenham apontado o envolvimento de
políticos pertencentes à maioria dos partidos nacionais.
Resultaram dessa operação a devassa nas contas da Petrobras e a abertura de
processo envolvendo grande parte de suas diretorias durante os governos Lula e Rous-
seff, bem como a prisão de proprietários e executivos das maiores empreiteiras do país
e a drástica redução de suas atividades produtivas, além da interrupção da fabricação de
plataformas submarinas no país, a prisão e a condenação a mais de 40 anos de reclusão
do desenvolvedor do processo de enriquecimento de urânio brasileiro e coordenador do
projeto do submarino atômico nacional. Em ação jurídica derivada da Operação Lava
Jato, o ex-presidente Lula foi condenado e preso em tempo recorde, após um processo
amplamente contestado e ainda inconcluso, no qual ele é acusado de ter se beneficiado de
forma irregular na compra e reforma de um apartamento, ainda que dele não tenha tido
nem posse, nem propriedade legal.
A sucessão de denúncias, seus vazamentos e repercussão contínua pela grande mídia
não apenas criaram o clima favorável à deposição de Dilma Rousseff e à interrupção das
políticas de cunho nacional mais autônomas, como também provocaram o descrédito ge-
neralizado com a política e com as instituições públicas. Apenas 2% dos brasileiros hoje
declaram confiar nos partidos políticos (68% não confiam), 3% no Congresso Nacional
(67% não confiam) e 5% na Presidência da República (64% não confiam). Mesmo as ins-
tituições mais bem avaliadas detêm a confiança de parcelas extremamente minoritárias
da população. Somente 16% creem na imprensa, 19% no Poder Judiciário, 20% no Minis-

17
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

tério Público e 37% nas Forças Armadas. Destaca-se, além disso, que as três instituições
que foram apontadas como as mais confiáveis são todas dedicadas, de alguma forma, a
atividades repressivas ou de estabelecimento da ordem pública.
Embalada pela “crise moral” e política, enfrentando uma recessão econômica pro-
funda e prolongada e uma taxa de desemprego extremamente elevada, grande parcela da
população brasileira deixou de acreditar no próprio país. Não chega a ser surpreendente o
fato de que 62% dos jovens e 43% do conjunto da população expressam o desejo de deixar
o país, se pudessem.
Além disso, como seria de se esperar, o desencanto com a política e com
o país vem se revelando também no comportamento eleitoral dos brasileiros. Ele
se manifestou nas eleições municipais de 2016, nas quais a “alienação eleitoral”
foi a maior vencedora do pleito, e se reforçou nas eleições de nível estadual e federal de
2018, com as vitórias de candidatos considerados “outsiders”, que se apresentaram como
alternativas “contra tudo o que está(va) aí”.
O clima de desilusão e de desalento instalado tem propiciado a eclosão de atos de
violência política e manifestações em prol de nova intervenção militar, único meio, para
muitos, de “restabelecer a ordem” e de “reorganizar o país”. Em sentido contrário, ainda
que de forma embrionária, começam a se articular entidades, instituições e cidadãos em
movimentos de defesa da democracia, da inclusão social e da soberania nacional.

INCLUSÃO SOCIAL SEM UM PROJETO DE


DESENVOLVIMENTO NACIONAL INDUSTRIALIZANTE

País historicamente colocado entre as Nações detentoras das mais altas taxas de
concentração de renda e desigualdade social do mundo, o Brasil atravessou um período
de inclusão social e de redução de desigualdade no início do século XXI, durante os
governos Lula e Dilma, só comparável ao ocorrido durante os anos áureos do nacional-
-desenvolvimentismo getulista, sem, no entanto, ter sido implementada uma política de
desenvolvimento econômico similar à daquele período.
Para ganhar as eleições, governar e executar as políticas de inclusão social que
compunham o núcleo de seu programa, Lula propôs um pacto com os empresários e os
investidores financeiros e um acordo com partidos do campo da centro direita, em que se
incluíam os partidos de negócios e políticos fisiológicos, cujo marco inicial foi a “Carta
aos brasileiros”. Colocou um empresário nacionalista como seu vice e garantiu os gastos
eleitorais de partidos de centro direita em troca do apoio parlamentar, imprescindível para
a aprovação das políticas sociais inclusivas. Depois de eleito, nomeou um banqueiro inter-
nacional Presidente do Banco Central (BC), para garantir a autonomia efetiva (ainda que
informal) do BC e a não alteração da política de juros básicos da economia – benéfica ao ca-
pital financeiro –, além de criar um conselho político formado por lideranças empresariais,
de movimentos sociais e de trabalhadores, para consolidar o pacto (informal) estabelecido.

18
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Dessa forma, Lula conseguiu viabilizar seu governo e cumprir a promessa, feita
durante o discurso proferido na Avenida Paulista, em São Paulo, logo após a confirmação
de sua vitória eleitoral, de garantir “três refeições diárias a todos os brasileiros”, o que
pode ser considerado o mote central dos seus dois governos. O Brasil saiu do Mapa da
Fome da Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 28 milhões de pessoas deixa-
ram a faixa da miséria absoluta e 40 milhões ascenderam socialmente. Foi estabelecida
uma política de reajustes automáticos do salário mínimo acima da inflação, políticas de
cotas raciais e sociais nas universidades públicas e no serviço público. Foram criados
programas de complementação de renda para as famílias mais pobres, programas de ha-
bitação e de saúde popular, de expansão do ensino público e gratuito em todos os níveis e
de incentivo à geração de ciência e tecnologia.
Lula empenhou-se, além disso, durante os seus dois governos, na formulação e
execução de uma política internacional mais autônoma e propositiva, por meio da qual o
país estabeleceu parcerias com diferentes nações e continentes, ampliando os laços Sul-
-Sul, com ênfase nas relações com os países da América do Sul, da América Central e
da África, e até mesmo com países do Oriente Médio. Incrementou e ampliou as relações
com a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul, ajudando a criar o Bloco dos BRICs.
Esse conjunto de ações fez com que o período ficasse conhecido como o de uma política
externa “ativa e altiva”.
Em contrapartida, para a manutenção do pacto de classes, foi mantida, durante os
dois mandatos de Lula, a política macroeconômica estabelecida pelos governos antece-
dentes, conservando inalterado o chamado “tripé neoliberal”: taxas reais de juros eleva-
das, resultado primário positivo nas contas públicas e câmbio apreciado, com o qual o seu
governo abdicou de adotar qualquer política econômica de desenvolvimento autônomo e,
menos ainda, qualquer projeto de (re)industrialização do país.
Embalado pelo boom das commodities, notadamente a soja e os minérios, calcado
no crescimento chinês, foi possível recompor o balanço de pagamentos e obter recursos
para financiar, sem déficit, as políticas sociais. Com a manutenção do “tripé neoliberal”,
não ocorreu, no entanto, a criação de um programa efetivo para a reversão do processo
de desindustrialização, em curso desde o final do período militar. O país, que chegou
a ter 21,6% do seu Produto Interno Bruto (PIB) composto pelo setor de transformação
industrial no ano de 1985, viu a participação desse setor cair para 17,6% durante a “aber-
tura econômica” de Fernando Collor, para 16,4% durante os governos FHC e para apenas
13,9% ao final do governo Lula, segundo as séries históricas divulgadas pelo IBGE.

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Participação percentual da indústria de transformação no PIB do Brasil (eixo esquerdo) e na indústria


de transformação mundial (eixo direito), no período 1970-2015.

Fonte: Unctadstat. Elaborado por Pedro Cezar Dutra Fonseca, Marcelo Arend e Glaison Augusto
Guerrero, no texto inédito Política econômica, instituições e classes sociais: os governos do Partido dos
Trabalhadores no Brasil.

Crescimento acumulado da indústria de transformação no período 2003-2015. (número índice, 2002=100).

Fonte: Unctadstat. Elaborado por Pedro Cezar Dutra Fonseca, Marcelo Arend e Glaison Augusto
Guerrero, no texto inédito Política econômica, instituições e classes sociais: os governos do Partido dos
Trabalhadores no Brasil.
Obs.: Valor Adicionado Manufatureiro em US$ constantes de 2005.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Ao mesmo tempo, a evolução do salário mínimo que, considerado em dólares,


passou de U$77 no início do governo Lula para U$291 ao seu final (chegou a U$331 em
janeiro de 2013 e baixou para U$309 em janeiro de 2014, início do segundo governo Dil-
ma) e que tem sido considerado o maior propulsor da grande mobilidade social ascendente
registrada no período, provocou a diminuição da taxa de lucros das empresas de todos
os setores, exceto as do setor financeiro que tiveram, ao contrário, sua lucratividade con-
tinuamente aumentada, beneficiadas pela manutenção do “tripé econômico neoliberal”.
Segundo dados do BC, os lucros do setor bancário passaram de cerca de 20 bilhões no ano
de 2003 para quase 70 bilhões em 2010 e para mais de 80 bilhões em 2014, o que significa
que quadruplicaram durante o período Lula/Dilma.

Quando a crise econômica mundial, iniciada em 2008, chegou finalmente ao Bra-


sil, trazendo o final do ciclo de preços favoráveis das commodities, no meio do primeiro
governo Dilma, o pacto econômico informal até então estabelecido não pôde mais ser
mantido, paralelamente às políticas de inclusão social em curso. As pressões do setor em-
presarial e financeiro passaram a ser, crescentemente, no sentido da redução dos gastos
sociais do governo.

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Em razão da não adoção de uma política de desenvolvimento mais autônoma,


restou ao governo Dilma implementar políticas anticíclicas de caráter keynesiano, mas
que não tiveram efetividade na retomada do crescimento econômico, na estimulação do
consumo e na geração de empregos1. Os incentivos destinados aos diferentes setores em-
presariais, denominados por alguns como “Agenda Fiesp” ou como “Bolsa Empresário”,
que somaram, em subsídios, quase 1 trilhão de reais (R$ 420 bilhões foram destinados ao
setor produtivo) no período de 2003 a 2016 e que tiveram seu crescimento mais acelerado
depois de 2011, não foram suficientes para convencer o empresariado nacional a se manter
no pacto.
Apesar da manutenção do “tripé neoliberal” e da ausência de políticas capazes de
reverter o processo de desindustrialização em curso no país, os governos de Lula e Rous-
seff buscaram criar um núcleo de atividades econômicas de cunho nacional, centrado na
produção do petróleo, com a prospecção e a descoberta do pré-sal, os investimentos em
refinarias e na infraestrutura necessária ao setor, buscando criar incentivos ao desenvol-
vimento de empresas nacionais neste ramo de atividades, capazes, inclusive, de atuar no
mercado internacional, como as grandes construtoras.
A redução da taxa de lucros, aliada ao não aumento da produtividade das empre-
sas instaladas no Brasil, abriu o caminho para a adesão e o incentivo do empresariado ao
movimento pela deposição de Dilma Rousseff, deflagrado no Congresso Nacional com
forte apoio dos grandes veículos de comunicação social, de setores do Ministério Público
Federal e do Poder Judiciário, incluindo parte do STF. Insuflados pela grande mídia, seg-
mentos de classe média, que já começavam a sofrer os efeitos da crise com a queda dos
seus rendimentos e o início do desemprego, sentindo-se, ainda, pressionados pelo acesso
de segmentos sociais populares a espaços e benefícios antes reservados a eles, foram às
ruas, fornecendo a base social necessária ao golpe de 2016.
O novo governo, que assumiu após a deposição de Rousseff, cumprindo o que
prometera em seu documento Ponte para o Futuro, retomou a agenda liberal dependente
associada, dando início, de forma acelerada, ao processo de desmonte do que resta de
nacional nas principais áreas da economia brasileira, com a privatização e desnacionali-
zação de empresas que se encontram sob controle estatal e que sobreviveram às privatiza-
ções realizadas durante os governos Collor de Mello e FHC.
Citam-se os casos do desmonte do parque naval criado para a construção de plata-
formas de prospecção de petróleo do pré-sal, o esfacelamento da Petrobras, com a venda
de seus gasodutos, a diminuição da produção das refinarias nacionais e a preparação para
sua venda, a alteração do regime de partilha para a exploração do petróleo do pré-sal, com
sua abertura para as empresas públicas e privadas internacionais.
1
Sugere-se consulta a Pedro Cezar Dutra Fonseca, Marcelo Arend e Glaison Augusto Guerrero, no texto
inédito Política econômica, instituições e classes sociais: os governos do Partido dos Trabalhadores no
Brasil.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

As iniciativas governamentais de desnacionalização e privatização de empresas


brasileiras visam também o setor elétrico, fundamental para todos os demais setores pro-
dutivos do país, os recursos naturais essenciais, como os hídricos e minerais, terras e flo-
restas, a Caixa Econômica Federal, que é um dos principais instrumentos governamentais
para a implantação de políticas sociais públicas, e até a Casa da Moeda do Brasil. Com
o decreto nº 9.188/2017, de 1º de novembro de 2017, o Governo Temer estabeleceu a pos-
sibilidade de vender, sem licitação pública, empresas como a Petrobras, a Eletrobras e o
Banco do Brasil.
O governo federal fez cortes profundos nos programas sociais, tanto nos destina-
dos à população de baixa renda, principalmente os voltados para a complementação de
renda e os das áreas de saúde e habitação, quanto nos voltados às áreas da cultura e da
ciência e tecnologia. Aprovou Emenda Constitucional congelando os gastos sociais pelos
próximos vinte anos e realizou reforma trabalhista que reduziu direitos dos trabalhadores,
flexibilizou e precarizou as relações de trabalho, barateando o custo da mão de obra. Na
mesma perspectiva, encaminhou reforma do sistema previdenciário. Ao mesmo tempo, o
governo Temer aumentou os gastos públicos com a ampliação da política de subsídios e
isenções para setores empresariais.
Com a intensificação da crise econômica, o aumento do desemprego e da descon-
fiança nas instituições públicas, cresceram a intolerância e a violência de forma generali-
zada em todo o país, alcançando, de modo especial, lideranças de movimentos sociais, a
população negra, as mulheres e o segmento Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Tran-
sexuais ou Transgêneros e Intersexuais (LGBTI). Cresceram as manifestações de grupos
de extrema-direita, sem que tenham sido contidas pelas forças de segurança pública e
firmemente repudiadas pelos meios de comunicação de massa controlados por empresas
oligopolistas.
Considerando a proximidade do final do atual mandato presidencial e da possibi-
lidade de Luiz Inácio Lula da Silva ser reeleito para um terceiro mandato, segundo indi-
caram todas as pesquisas de intenção de voto realizadas, os segmentos responsáveis pelo
golpe de 2016, com forte protagonismo de setores do Ministério Público Federal, do Poder
Judiciário e da grande mídia, utilizaram artifícios legais para manter preso e declarar ine-
legível o ex-presidente. Impediram, assim, a retomada de um projeto de desenvolvimento
sob sua liderança.
Sem que se entre aqui na análise das últimas eleições presidenciais, com as ma-
nobras jurídicas, fraudes e veiculação de notícias falsas ( fake news) por meio das redes
sociais que distorceram o pleito sem que qualquer medida efetiva fosse tomada pelas
autoridades competentes, e sem que se analisem as propostas do novo Presidente da Re-
pública, o fato é que a vitória de Jair Bolsonaro e do seu vice, general Hamilton Mourão,
com um projeto de governo diametralmente oposto aos de Lula da Silva e de Dilma Rou-
sseff, representa nova interrupção do ciclo desenvolvimentista relativamente autônomo,
iniciado nos governos de Getúlio Vargas e adotado, ainda que com limites, pelos governos
petistas. Retoma-se, desta feita, o projeto liberal dependente e associado, na senda traça-

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

da por Collor de Mello e alargada por Fernando Cardoso. Mais uma vez, a adoção desse
projeto pela via eleitoral se fez por meio de subterfúgios e da ocultação de suas propostas
econômicas efetivas (Bolsonaro não compareceu a debates durante a campanha e não
apresentou seu plano de governo). Mais uma vez, a campanha liberal dependente asso-
ciada se fez calcada no “combate à corrupção”, inovando, agora, com a incorporação de
pautas moralistas ultraconservadoras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise do processo de desenvolvimento político e econômico brasileiro realiza-


da aponta importantes lições para aqueles que defendem a possibilidade de um país sobe-
rano, democrático e com justiça social. A tarefa a ser enfrentada, com certeza, será árdua.
É preciso que seja construído um Projeto de Nação com clara definição do modelo
de desenvolvimento econômico a ser implementado. Esse modelo deve manter o controle
dos gastos públicos, sem a diminuição dos investimentos públicos, a diminuição dos juros e
a administração da taxa de câmbio de modo a impedir a valorização especulativa do Real.
Necessita de um sistema de tributação progressivo, em que os diferentes segmen-
tos sociais paguem impostos proporcionais à sua renda, assim como de políticas públicas
que priorizem a produção e o consumo, e não a especulação financeira, que reverta o
processo de desindustrialização em curso no país e priorize a geração de emprego, o
desenvolvimento científico e a inovação tecnológica, capazes de fazer aumentar a produ-
tividade do trabalho e a competitividade internacional dos produtos brasileiros.
Requer também políticas públicas voltadas para o desenvolvimento da infraes-
trutura nas áreas de energia, transporte e comunicações sob controle nacional e de ins-
tituições financeiras públicas que se constituam em instrumentos da ação do Estado.
Esse modelo exige, ainda, políticas públicas que incentivem o crescimento dos diferentes
setores da economia, com suas redes diversificadas de micro, pequenas, médias e grandes
empresas, sem que seja exercido o controle pelos grandes oligopólios.
O Projeto de Nação, ao mesmo tempo, deve estabelecer políticas sociais que ga-
rantam o direito básico de todos os cidadãos a serviços de qualidade nas áreas da edu-
cação, cultura, segurança, saúde, previdência e assistência social. Para as áreas urbanas,
em que se concentra, atualmente, a maioria da população brasileira, o Projeto precisa for-
mular políticas públicas para a habitação, o saneamento e o transporte, e nas áreas rurais
políticas públicas que incentivem a produção garantindo, ao mesmo tempo, o respeito ao
meio ambiente e o direito de acesso à terra.
No plano político, o Projeto de Nação necessita de um sistema de representação
política capaz de expressar livremente a vontade popular, acima do controle do poder eco-
nômico, e necessita, ainda, de espaços de participação política direta da população. Deve
manter a liberdade de expressão e manifestação e o respeito aos direitos individuais frente
ao poder do Estado, garantidos a todos os segmentos da população, independente das condi-
ções socioeconômicas e das diferenças de gênero, raça/etnia ou filiação política e religiosa.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

No plano das relações internacionais, o Projeto de Nação, para garantir a sobe-


rania nacional, deve estabelecer como diretriz a manutenção do diálogo e da negociação
com todas as nações, especialmente com aquelas que, como o Brasil, enfrentam um qua-
dro de trocas econômicas internacionais desfavoráveis. É necessário desenvolver relações
de cooperação com as nações que se disponham a manter parcerias, respeitando o direito
de desenvolvimento autônomo de todos os povos.
A viabilidade de um Projeto de Nação nos termos enunciados depende da for-
mação de uma ampla frente social e política, da qual participem pessoas, movimentos e
organizações com visões ideológicas e posicionamentos políticos diferenciados, situadas
em qualquer ponto do espectro político-ideológico, que compreendam a importância da
democracia como valor e que estejam dispostos a se engajar na construção de uma socie-
dade mais desenvolvida, com maior justiça social e soberania nacional.

REFERÊNCIAS

CASTELLS, M. Ruptura, La crisis de la democracia liberal. Alianza Ensayo, 2017.


FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo:
Globo; Publifolha, 2000.
FONSECA, P. C. D.; AREND, M.; GUERRERO, G. A. Política econômica, instituições e
classes sociais: os governos do partido dos trabalhadores no Brasil, disponibilizado em
professor.ufrgs.br/pedrofonseca.
PICKETTY, T. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
WEFORT, F. (org.). PT – Um projeto para o Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.

25
A ESPIRAL DO TEMPO: MODERNIZAÇÃO
CONSERVADORA E A NOVA (ANTIGA) HISTÓRIA
DO BRASIL
Maro Lara Martins

Neste ensaio, procurei estabelecer as relações diacrônicas entre a modernização


conservadora brasileira, uma das faces do andamento temporal cujas origens e sentidos
remontam aos anos 1930 e 1940, com o atual período da história brasileira na qual seus
caminhos ou descaminhos tendem a recuperar, ainda que sobre novos termos, as encru-
zilhadas conservadoras, e muitas vezes autoritárias, de nosso andamento moderno. Além
disso, também foi possível pensar a história do país, suas tradições e seus elementos
constituintes, íntimos de sua peculiar modernidade, através destes andamentos que se
assemelham mais a um tipo de ordenação temporal que escamoteia a linearidade aparente
do próprio transcorrer do tempo.
Associado a essa preocupação relacionada a uma sensibilidade sobre o tempo e
seus sentidos ordenadores, a outra ponta de minhas preocupações estava em compreen-
der os modos pelos quais as reatualizações foram estabelecidas de modo a romper com a
perspectiva ainda que segmentada de que, a partir dos anos 1980, em especial a partir da
Carta de 1988 e suas aberturas hermenêuticas e seu condensamento no mundo social a
partir do Direito, teríamos certa noção de fim da história – tanto no sentido de finalidade
como no sentido de direção e missão a ser cumprida.
Na primeira parte do texto, evoco uma discussão sobre estrutura e conjuntura de
maneira a deixar claro suas diferenças fundamentais e o modo como cada qual estabelece
para si determinado andamento temporal e exige do analista certo esforço compreensivo
distinto, apesar de intercambiável. Além de ressaltar a característica pública de nossas
ciências sociais, ao dotar peso nas íntimas relações entre diagnóstico e prognóstico.
Como segundo movimento, proponho uma busca sobre os fundamentos interpre-
tativos hegemônicos que conduziram a nossa modernização conservadora dos anos 1930
e 1940. Aponto a dinâmica dessas interpretações como substrato do diagnóstico a respeito
da concepção corrente à época do caso brasileiro ser considerado uma modernidade pato-
lógica. O cerne do diagnóstico estaria na má formação das relações entre Estado, mercado
e sociedade, que operariam por lógicas desviadas ou tortas.
E, por fim, chego ao debate sobre a renovação de uma interpretação do país, es-
perançosa com a Carta de 1988, que estabeleceria o período posterior a 1988, como o
momento inaugurador de uma nova história do Brasil. Esse movimento é tão radical que
propõe o fim da história nacional. Aí, é que chamo a atenção para o fim do fim da história
brasileira, sua rotina e seus dramas, abalados pela conjuntura recente, ao menos desde o
processo de impeachment da Presidenta eleita pelo voto popular, e suas conexões mais
profundas com a tradição conservadora brasileira.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

ESTRUTURA E CONJUNTURA, DIAGNÓSTICO E


PROGNÓSTICO

Existe uma diferença entre conjuntura e estrutura. Conjuntura e estrutura, se as-


sim for de vontade do analista, podem ser mecanismos interessantes para se pensar o con-
temporâneo. Um tema que, a princípio, poderia ser de exclusividade da conjuntura, como
a política, por exemplo, ao ser deslocada para a área estrutural, revela também pontos
importantes que subsidiam os argumentos.
Outro movimento interessante desse jogo de escalas é a temporalidade que o
acompanha. Afinal, a conjuntura possui um tempo mais acelerado, fatos e eventos se
acumulam para dar-lhe seu movimento, condensando as experiências em curto espaço
temporal. Por sua vez, a estrutura é o tempo da longa duração, da qual falava Braudel,
ou mesmo a distensão reprodutiva a partir da dualidade presença/ausência; o tempo do
imediato e o tempo da distensão a jogar suas sementes pelo caminho, o que leva à inter-
pelação de um tema caro à teoria social contemporânea, as conjugações entre diacronia e
sincronia, das ações, das estruturas, dos tempos, das análises.
De todo modo, ao retornarmos ao tema da política contemporânea, observarmos
seus movimentos estruturais, suas florações conjunturais, seus tempos de eventos, a par-
tir dos deslocamentos e das relações entre estrutura e conjuntura, vivemos um momento,
raro pela sua nudez, de erupção vulcânica entre duas perspectivas sobre o país. De um
lado, certa esperança e expectativa no bom futuro, a despeito de seu passado, que pode ser
considerado virtuoso ou não; de outro lado, um diagnóstico centrado na ruína do destino,
cujo sentido não é lá muito favorável.
A tensão entre o diagnóstico e o prognóstico, ainda que não posto nestes termos,
evidencia alguns pontos interessantes. Em primeiro lugar, é da tradição da interpretação
à brasileira, bem como de seus movimentos intelectuais e políticos, terem no cerne de
seu debate essa oposição. Em segundo lugar, e não menos importante, o extravasamento
de sentimentos acerca do tempo vivido, não somente como história pública, mas também
como sentimento, de se velejar, ora por águas calmas e tranquilas, ora a se deparar com
águas revoltas à beira do precipício.
Sobre o primeiro ponto, o movimento mais claro é o retorno aos clássicos. Argu-
mentos e perspectivas que estavam a empoeirar nas estantes retomam posição central no
debate (SOUZA, 2017). O passado, e seu possível abandono, a cobrarem seu preço, afinal
essas perspectivas adentram com força e constância o mundo social e sua imaginação
(VIANNA, 1997); seus sonhos mais límpidos, seus sentimentos mais profundos. É o
momento em que a interpretação ganha o mundo e se liberta do círculo que a concebeu.

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Na história do país, poucos momentos revelam de modo claro esses choques e es-
sas transposições. Atualmente, vivemos um desses momentos. Não somente pela norma-
lidade institucional ser rompida, o cotidiano e regular movimento de reprodução, confiança
e legitimidade, normal funcionamento das instituições, ou pelo sombreamento puro de
reativações de doutrinas guardadas (SANTOS, 2017), mas, especialmente, pela oposição
entre razão e sentimento, oferecidos, sobretudo, pelos rodopios inconstantes entre o diag-
nóstico e o prognóstico. Se o mundo das interpretações traria seus personagens, e suas
dotações de sentido, o mundo social emergiria o sentimento, a dar-lhe substância e força
a atuar no mundo (MARTINS, 2015) – jogados todos no redemoinho do tempo, cujo final
ainda é imprevisível.

INTERPRETAR O PAÍS: ANTECEDENTES DA


MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA

Em texto seminal sobre o país, Raymundo Faoro (1992) postulara que, em vez de
buscar a modernidade, o Brasil padeceria de ímpetos de modernização, mediante os quais
haveria a tentativa (e a tentação) de queimar etapas no processo de desenvolvimento. Uma
nova modernização sepultaria a anterior e nenhuma conseguiria fazer com que o país
encontrasse o caminho para o desenvolvimento. Impostas por elites pseudodissidentes em
favor dos seus interesses, essas modernizações manteriam a maioria da população alijada
de benefícios sociais elementares.
Na história do país, poucos momentos como hoje revelam de modo claro esses
choques e essas transposições entre elite e povo, Estado e sociedade, modernização e mo-
derno. A tradição da interpretação brasileira já apontara elementos fundamentais para se
explicar os vícios e as virtudes da constituição societal brasileira. A década de 1930, veria
florescer com maior frescor a sociologia modernista, com o conjunto de ideias desenvol-
vidas em torno da caracterização identitária brasileira, suas ações sociais e seus tipos de
solidariedade e autoridade, especialmente nas mediações entre as relações público e pri-
vado, coordenadoras das relações entre Estado e sociedade no país, postos pela sociologia
modernista também como um problema histórico e historiográfico (MARTINS, 2015).
Ademais, essa tradição de sociologia veria suas últimas florações nos anos 1950, em torno
do Instituto Superior de Ensino Brasileiro (ISEB), perdendo paulatinamente força e poder
explicativo, enquanto outros modos de operacionalização disciplinar, como a sociologia
acadêmica, profissionalizavam-se.
A partir das características do ensaio como forma, e seu dinamismo na escrita, foi
possível capturar o movimento de construir-se pela proposição de algo novo, de uma nova
experiência histórica que, apesar dos seus contratempos, realizava-se fora do contexto
europeu. Dessa experiência do confronto com outros desenvolvimentos nacionais, insur-
giriam-se diferentes tempos históricos que coexistiriam e conferiam especial densidade à
realidade que interpretaram, em um esforço de compor o mapa da cultura, revelando sua

28
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

capacidade de mediador entre mundos e articulador de experiências. Não obstante, apre-


sentariam como fundamento um caráter dialógico das análises, fazendo aflorar compara-
ções com outras experiências, como a inglesa, a norte-americana e a francesa. Emergindo
com maior clareza as diferenças no andamento moderno, as singularidades do próprio
território e sua natureza e a pluralidade dessa constituição societal.
Surgiria, pelo movimento inicial da sociologia modernista e sua separação ana-
lítica entre Estado e sociedade, entre política e sociologia, um profundo desconforto na
aplicabilidade de modelos e respostas exógenas aos diagnósticos efetuados mediante o
ensaio buscariam essa originalidade no tratamento das questões tipicamente nacionais.
A comparação funcionou como um poderoso recurso não só ao cotejarem semelhanças
e diferenças que se produziram em espaços geográficos e sociais distintos, mas também
entre as culturas presentes no mesmo espaço nacional.
Nas florações da sociologia modernista dos anos 1930, formulou-se com mais
vigor a tese da hipertrofia do privado, identificando a família de tipo patriarcal como a
agência crucial de coordenação da vida social que se veio formando desde a colonização
portuguesa, em relação a uma esfera pública atrofiada identificada ao Estado (SOUZA,
2017). Em todos esses autores, os elementos da sociedade brasileira em seu período colo-
nial ainda se fariam presentes, impedindo a consolidação plena de instituições e valores
da modernidade ocidental clássica (TAVOLARO, 2005). Nessa vertente do pensamento
social brasileiro, uma atávica herança patrimonial-patriarcal acabara sutilmente assumin-
do o caráter de variável independente, supostamente capaz de explicar, ao longo de toda a
história brasileira, especialmente no mundo rural, as formas e as configurações políticas
e sociais que aqui se consolidaram.
Mais ou menos explícita nas interpretações propostas por cada um daqueles au-
tores encontra-se a ideia de que no Brasil contemporâneo a eles, Estado, economia e so-
ciedade civil jamais teriam sido capazes de se diferenciar plenamente e, dessa forma, de
se dinamizar a partir de lógicas e códigos próprios. O domínio público teria sido raptado
e subjugado à lógica e aos propósitos das esferas de convívio familiar, códigos pessoais
e privados, sociabilidade restritiva, razão pela qual as regras impessoais e racionalizadas
seriam frequentemente relegadas a segundo plano. Nessa sociedade, jamais se atingiram
o grau e a extensão da diferenciação social, da secularização e da separação entre o pú-
blico e o privado observados nas sociedades modernas centrais. Vale lembrar que, no dis-
curso sociológico da modernidade ocidental europeia, as chamadas sociedades modernas
centrais são aquelas em que o Estado, o mercado e a sociedade civil ocuparam esferas
plenamente diferenciadas entre si, reguladas.
Os âmbitos público e privado, por sua vez, são também plenamente separados,
cada um dos quais ordenado por códigos e lógicas particulares, comunicando-se ape-
nas mediante canais apropriados que mantêm inalterados os termos e as regras de cada
um dos domínios. Trata-se, segundo esta trilha que se está percorrendo, da formação
de uma sociologia na qual mais do que simplesmente relacionar política e sociedade, se
ambicionaria especificar os fundamentos e a dinâmica social da dominação política bra-

29
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

sileira. Seria mediante esse tipo de ensaio que se ganharia inteligibilidade a tendência a
relacionar aquisição, distribuição, organização de poder à estrutura social. Posto nesses
termos, a ação social e a ação política dispostas nessa historicidade inerente a cada uma
produziriam ritmos temporais diferenciados; movimento analítico que configuraria, num
certo sentido, a precedência da sociologia sobre a política. Essa sociologia exprimiria de
fato um caminho alternativo do andamento moderno por meio de suas dicotomias: campo
e cidade; rural e urbano; litoral e sertão; centro e periferia; público e privado; interesse e
virtude; iniciativa e inatividade; empreendimento e cometimento; vontade e contingência,
em uma difícil síntese. A tese possuiria seu lugar, ao reanimar as tradições, a colocá-las
sob a chave da influência na contemporaneidade. A antítese, a conjugar a novidade e as
possibilidades abertas pelo desenrolar histórico, inclusive seu futuro. E, ao sair de dentro
do modernismo, essa sociologia – e em certa medida o pensamento social e político lati-
no-americano – carregaria essa contradição como fundamento de sua modernidade, em
especial, na forma como abordou seus territórios e seus personagens postos na ação da
história, exacerbando uma cartografia semântica e uma figuração de seus personagens.
Dito de outra forma, ao procurarem explicar essa difícil síntese, conheceriam a
modernidade brasileira, no sentido de contemporaneidade e historicidade, sob a ótica de
uma espécie de modernidade alternativa. O campo possuiria sua sociologia, seus per-
sonagens principais, com sua subjetividade, sua atuação no mundo; o latifúndio como
fundo para as ações realizadoras de interesses e virtudes para o fazendeiro, o escravo,
o capanga, o homem livre comum, o tempo lento no seu desenrolar a incrustar a vida
social e a estabelecer certos tipos de solidariedade e interesses; a cidade, local das inter-
-relações sociais e lócus do tempo célere, da iniciativa, da volúpia do viver moderno, dos
seus personagens liberais e de sua sociabilidade muitas vezes subsumida ao mundo rural
e incapaz de encontrar terreno fértil para o seu avanço. A compreensão da cidade e do
mundo rural passaria pela análise de todos os elementos que comporiam o seu quadro:
terra, água, clima, homens, civilização, cultura, arquitetura, trabalho, ideias, símbolos. O
campo e a cidade não seriam apenas materialidade, possuiriam uma dimensão simbólica,
subjetiva, que também atuaria na construção de suas formas espaciais. A significação do
espaço, urbano ou rural, conferiria aos indivíduos e coletividades, unidade e identidade
com o seu entorno, em uma espécie de estruturação sígnica do espaço.
Cada local estruturaria uma espécie de cartografia semântica, que atribuiria a
um determinado tempo-espaço, certos modos de viver, pensar e experimentar o mundo,
certos tipos sociais, certa solidariedade, certa constituição de interesses e virtudes em sua
sociabilidade, marcada no Brasil, através do modernismo e de sua sociologia modernista,
por certa inventividade e certo pragmatismo, pensados para dialogicamente desvendar
essa alternativa à modernidade central. Se a sensibilidade temporal indicava a aceleração
do tempo pela dinâmica do contexto, a realização da difícil síntese brasileira, composta
por dualismos e diversas contrastividades internas e externas, norteavam uma percepção
do tempo que estaria cindido.

30
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

O torneamento das interpretações do país, ao menos ao largo do século XX, pas-


saria pela sedimentação das oposições realizadas pela sociologia modernista. Todas as
suas florações, desde o período republicano, focalizaram nas relações entre Estado e so-
ciedade no arranjo da modernidade brasileira. Seja pelo comparativismo interno, litoral e
sertão, cidade e campo, urbano e rural, Brasil legal e Brasil real, seja na busca pela iden-
tidade nacional, mesmo que pelo regionalismo, seja pelo comparativismo externo, cujos
modelos de entrada na modernidade, Inglaterra, França, EUA, e às vezes até a Alemanha,
moldaram-se como paradigmas analíticos. Trata-se de uma cartografia semântica das mo-
dernidades e das modernizações. Personagens a povoar a imaginação, ou autoimaginação
identitária que permearia o território com esses tipos sociais. E, claro, não precisa dizer,
seus impactos na imaginação de uma elite acostumada à depreciação dos personagens su-
balternos, além de sua hábil capacidade de popularização, muitas vezes via Estado, como
no período Vargas, de seus pressupostos quanto à imaginação do quem somos.
A estratégia de construção por cima do país adquiriu uma nova complexidade nes-
ta renovação de sua metafísica – ainda que dirimidas ao longo do tempo, essas variações
advindas deixaram suas marcas a impregnar a profundidade dos sentimentos sociais, seja
pela via negativa, logo, diagnóstico, a impedir a plena realização civilizatória, seja pela via
positiva, prognóstico, a exaltar as singularidades civilizatórias e possibilidades de sucesso
das consequências que este tempo possuiria. Contudo, tais sentimentos de que o Brasil
é o país do futuro, essa euforia desmedida, chocam-se com o Brasil país do atraso, certo
pessimismo profundo. Dando certo, ou não, percorrendo as linhas que garantiam sucesso
ou não, o fato é que entre idílios e desilusões continuamos e possivelmente continuaremos.

O FIM DO FIM DA HISTÓRIA

Tivemos várias crises econômicas, políticas, sociais, em diversos momentos do


trajeto brasileiro. Profundidades diversas. Personagens variados. E muito se questiona se
as crises podem ser a própria rotina. O padrão poderia muito bem envolver-se sob o manto
fino das crises conjunturais, ao estapear da solidez estrutural – ao menos, se pensarmos
na questão do Impedimento e da crise política atual. O padrão, desde o período posterior a
1930, é a interrupção dos mandatos presidenciais. Desde essa época, dos oito presidentes
eleitos democraticamente apenas cinco terminaram o mandato. Somente oito presidentes
eleitos democraticamente em 86 anos; deles, apenas cinco terminaram o mandato. Após
1988, nova fase republicana, pelo menos a se pensar nos marcos políticos, foram quatro
presidentes eleitos pelo voto direto. Deles, dois cumpriram integralmente seus mandatos,
enquanto um sofreu o impedimento e um parece ter poucas chances de retorno. Nessa
cultura política, o conflito pelo poder a partir de posições divergentes é apenas aparente
(FAORO, 1992; VIANNA, 1997; SANTOS, 2017).

31
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

A finalidade das ações e negociações remete-se ao abrandamento das tensões


sociais como estratégia da política levada ao cabo por políticos profissionais, advindos
do estamento burocrático, deixando à margem da agenda pública e do aparelho estatal
discussões que levam ao confronto aberto e explícito pela ordenação dos projetos e dos
sentidos do tempo.
O sentimento social de que a modernização efetuada a partir da Carta de 1988
possibilitaria, enfim, a autonomização dos subalternos e congraçaria trilhos a serem per-
corridos de virtuose e justiça social, seja pela via do distributivismo estatal seja pela via
do Direito, surpreendidos pela opacidade das construções modernizantes. Retorno à in-
terpretação clássica. Diferenças e variações entre as linhas do moderno e da moderniza-
ção. De acordo com essa dualidade, sua síntese parece de difícil solução. Os sobressaltos
provavelmente não ocorrerão pela via do ativismo societal, haja visto as consequências
atuais da capitulação dos movimentos sociais pelo espontaneísmo que o ativismo virtual
apresentou. Por outro lado, a via do Estado parece bloqueada por uma elite política capaz
de subsumir seus interesses estamentais à própria reprodução institucional da democra-
cia. Uma nova modernização sem conteúdo de caráter conservadora a conduzir a nova
aventura imprevisível, nau sem rumo.
Nada parece se estabelecer de forma definitiva no campo da interpretação. Talvez
decorra daí certa dificuldade das famosas análises de conjuntura, vindas das ciências
sociais, com a sua força interpretativa de atuação no mundo público. O contemporâneo,
temporalidade a pregar peças em todos nós. Entre messianismos da profissão ou mesmo
certa fé no ofício, entre a crença nas ciências sociais e na sua predileção que nos poderia
guiar rumo a águas calmas, ou mesmo esperança de que a interpretação seja necessária e
urgente. Nada disso parece se confirmar nesta onda de imprevisibilidade.
Sem dúvida, tal processo de ausência de previsibilidade no mundo da vida deita
raízes no processo de destituição da Presidenta eleita e nas manobras obscuras de perso-
nagens do mundo político, na atuação da grande mídia, no papel do judiciário, no empre-
sariado, em parcela da classe média, que contribuíram para a anatomia do processo de
desestabilização da previsibilidade dos acontecimentos (SINGER, 2018). O ano de 2016,
conhecido como aquele que não se queria findar, página de roteiro de filme ruim, ou o re-
positório necrológico de figuras como David Bowie, Leonard Cohen, Prince, Cauby Pei-
xoto, Ferreira Gullar e ainda Fidel Castro e Paulo Evaristo Arns. O roteiro, cuja página o
ano desgostoso não acabara de compor, foi muito narrado por diferentes personagens em
fontes diversas e de diferentes matizes – desde a reflexão sobre a separação entre forma e
conteúdo, passando pelo pêndulo desproporcional entre ação/punição, o hiperativismo do
Judiciário (AVRITZER, 2016), a seletividade e desrespeito às regras (SANTOS, 2017), até
as análises que elevam os personagens centrais dessa trama, Lula, Dilma, Temer, Cunha,
Moro, a reencenar a composição historiográfica dos grandes heróis e do oficialismo pas-
sado (MATTOS et al, 2016).

32
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Delatores e delações, arapongagens, gravações ilegais, divulgações à margem da


legislação: todos personagens bem conhecidos da história política do país, como são bem
conhecidos os golpes de Estado entre nós, como são conhecidas as incapacidades de res-
peito à rotina democrática, e como são duras as dificuldades enfrentadas a partir das
dualidades básicas já anunciadas pelos nossos clássicos. Público e privado, razão e senti-
mento, interesse e virtude, campo e cidade, rural e urbano, moderno e atraso.
Aí mesmo a denúncia, nada pueril do golpe de Estado, ao enunciar as suas frentes
parlamentares, jurídicas, midiáticas e, porque não dizer, civis. Falta-lhe uma nomeação:
um golpe parlamentar-jurídico-midiático-civil? Tantos são os envolvidos (GRUN, 2018). Tama-
nha orquestração. E que cronologia de eventos e simultaneidade de ações desses personagens!
De todo modo, tais interpretações tenderiam a desempenhar papel importante na agenda
pública do país, pelo menos do ponto de vista do debate republicano. Procedimentalismos à par-
te, certa desilusão com o sufrágio, vontade popular, consistentes com os últimos acontecimentos
fazem tremer a ideia liberal da representação. Extrapolar, ainda que pelo trágico, o andamento
das instituições, que sempre foram, mesmo sob condições democráticas dos últimos anos, es-
pumas do mar. Ainda que a Carta de 1988 tenha legado, durante as últimas três décadas, o fun-
cionamento institucional do Estado, sua abertura e flexibilidade deveriam ser utilizadas. Sob o
ponto de vista democrático, repensar a ordem política (DOMINGUES, 2017), cuja efervescência
societal parece ter cedido lugar a composições heterogêneas do papel do ativismo político na
democracia. Forçar o encontro da democratização social com a democracia política.
Entretanto, tal encontro necessita de instituições que revigorem tanto a forma quanto o
conteúdo da democracia tropical, a começar pelo fundamento de todas as instituições: rotina.
Nada mais cotidiano do que rotina. Sem previsibilidade, a rotina se torna algo destituído de seu
conteúdo, não que a vida deva ser convenientemente ordenada por padrões de repetição. Certas
rupturas são necessárias a oxigenar a vida, porém, no olho do furacão, ainda não avistamos certa
serenidade factual no horizonte a dotar de conteúdo o mundo vazio dos eventos que ainda não
se ordenaram. Em outras palavras, a formidável extensão do drama do Brasil, que ingressa no
circuito do ocaso da democracia representativa sem tê-la instituído integralmente.
Postos sob a ótica de uma procura pelos meandros que engendrariam o caminhar do
tempo histórico do país, essas dualidades conformariam o que há de mais original e perverso
na nossa revolução passiva. Essa tradição, fincada desde o momento inicial do Estado-Nação
(FERNANDES,1987) e exacerbada no momento de nossa modernização conservadora (VIAN-
NA, 1997), parece sempre nos conduzir e nos lembrar de que nosso caminho é no fio da navalha.
Ademais, olhar em direção a essa tradição – e, claro, a seus intelectuais, atores fundamentais
para a organização da cultura – lança luz sobre a natureza do transformismo que a tudo corrói.
Nada mais justo do que “tudo que é sólido se desmancha no ar”, mesmo as impossibilidades
e os insucessos. Talvez, mesmo o pessimismo mais profundo possa ser contraposto a motivos
bem-compreendidos, em uma valorização dialética de todo empenho dirigido a converter a en-
grenagem do tempo desenvolvendo uma perspectiva crítica que finque as condições para uma
guerra de posições capaz de desorganizar e substituir a hegemonia dominante. Caminharmos na
certeza de quem somos, para sermos outro.

33
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

PALAVRAS FINAIS

Em conjunto, mas não como unidade e para além do contexto intelectual do qual
emergiram tais diagnósticos, a nota distintiva de certa concepção de país que conduzi-
ria ao diagnóstico de uma modernidade patológica, ao operacionalizar conceitos como
patriarcalismo, familismo, patrimonialismo, personalismo, agnatismo, clientelismo, e a
miríade de empecilhos privatistas consignados em seu ideário estaria na posição decisiva
sobre a constituição da vida pública de sua sociedade nos momentos de modernização.
O modo de orientação das condutas, das percepções, dos modos de pensar e agir
retiraria suas características próprias de certos condicionantes históricos da relação entre
o mundo público e o mundo privado, fincado na história e na sociologia de sua socieda-
de, em suas determinações culturais, ora definindo as feições mais pujantes do caráter
brasileiro, como uma sociedade amenizadora das diferenças, ora condensando o que de-
veria ser público ao personalismo, à asfixia diante da hipertrofia do mundo privado, à
amoralidade dos costumes, ao patrimonialismo, ao familismo, à insolidariedade social, à
indistinção entre o público e o privado, ao clientelismo e à precarização dos direitos ou de
qualquer arranjo de normas com pretensões de universalidade.
A Carta Constitucional de 1988 operaria no sentido diverso, promovendo certa
direção e sentido, pelo menos no campo do Direito; representaria, ainda que simbolica-
mente, o fim da História brasileira. Entretanto, ela própria fora engolida pelo conserva-
dorismo e pela força centrípeta e reformulada por uma nova cascata de modernização
conservadora. A modernização democrática efetuada a partir da Carta de 1988, com o
pacto político inclusivo sob o ponto de vista de certa autonomização dos subalternos, fora
capturada pelo pacto intraelite a partir do qual os limites das construções modernizan-
tes foram impostos a essa sociedade. O terrível diagnóstico da modernidade patológica,
típica de processos conservadores, em vez de permitir a emergência do novo, moderno,
encontraria seus obstáculos no país das modernizações controladas. Demofobia encontra-
ria por aqui terreno fértil.

REFERÊNCIAS

AVRITZER, L. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.


DOMINGUES, J. M. Esquerda, crise e futuro. Rio de Janeiro: Mauad, 2017.
FAORO, R. A questão nacional: a modernização. Estudos Avançados, vol. 6 nº 14, São
Paulo, Jan./Apr, 1992.
FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
GRUN, R. Da pizza ao impeachment: uma sociologia dos escândalos no Brasil contem-
porâneo. São Paulo: Alameda, 2018.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

MARTINS, M. L. Entre a Cultura e a Política: a sociologia modernista dos anos 1930.


Revista Estudos Políticos. Rio de Janeiro, vol. 5, nº 2, 2015.
MATTOS, H.; BESSONE, T.; MAMIGONIAN, B. (Orgs.) Historiadores pela democra-
cia. São Paulo: Alameda, 2016.
MONTEIRO, L.; SANTANA, L. (Orgs.) “Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe
recente no Brasil. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2017.
MOORE JUNIOR, B. As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e cam-
poneses na construção do mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1975.
SANTOS, W. G. A democracia impedida. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2017.
SINGER, A. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São
Paulo: Companhia das Letras, 2018.
SOUZA, J. A elite do atraso: da escravidão a lava-jato. São Paulo: Leya, 2017.
SOUZA, J. A radiografia do golpe. São Paulo: Leya, 2016.
TAVOLARO, S. Existe uma modernidade brasileira? Reflexões em torno de um dilema
sociológico brasileiro. RBCS Vol. 20, nº 59, 2005.
VIANNA, L. W. A revolução passiva: americanismo e iberismo no Brasil. Rio de Janei-
ro: Revan, 1997.

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RECESSÃO DEMOCRÁTICA: UMA ANÁLISE DO
BRASIL NO CONTEXTO INTERNACIONAL
Rodrigo Rossi Horochovski
Augusto Júnior Clemente
Ivan Jairo Junckes

INTRODUÇÃO

É possível vislumbrar, nos mais diferentes meios – acadêmico, midiático e na so-


ciedade em geral –, uma crença mais ou menos generalizada de que há um caminho
inexorável no sentido de um aprofundamento teleológico da democracia, a que todas as
sociedades chegariam uma hora ou outra. O substrato dessa crença é uma suposta supe-
rioridade moral desse regime, como se houvesse um consenso de que ele, notadamente
em sua versão liberal, é “naturalmente” melhor, em qualquer circunstância.
Esta assunção pareceu ganhar força nas décadas finais do século XX, mormente
com a terceira onda de democratização, que envolveu tanto as nações do terceiro mundo
quanto aquelas do bloco soviético, chegando-se a falar em fim da história e em uma nova
ordem liberal, sob a égide do modelo liberal estadunidense (FUKUYAMA, 2006). Além
disso, do ponto de vista meramente quantitativo e formal, esse período marca a primeira
vez na história humana em que ligeira maioria da população mundial passou a viver em
países democráticos.
Talvez vivamos o dia em que a democracia, em suas mais diferentes versões, seja
o regime político hegemônico no mundo. O curso da história não é, contudo, linear, um
caminho sem obstáculos em direção a um devir único que poderíamos almejar como sen-
do pós-histórico, como tão bem aponta Rüsen (2001). Não se pode negligenciar os desvios
e retornos do pensamento e da história do desenvolvimento e do progresso prometidos
pela modernidade, e há um acúmulo de teoria e evidências empíricas a sugerir que esse é
o caso da democracia. Aparentemente, à exceção de um grupo relativamente pequeno de
países, quase todos localizados no Ocidente e no Hemisfério Norte, a democracia sofre
abalos de alcance e duração variáveis. Assim como na economia, perguntamos se a de-
mocracia também pode entrar em recessão.
Um dos lugares em que isso se apresenta de maneira particularmente dramática é
na América Latina. Se, até meados do século XX, os golpes contra a democracia no sub-
continente eram caracterizados por quarteladas, a contemporaneidade tem trazido novas
modalidades de ação que apresentam como resultado a limitação ou mesmo a reversão
dos poucos avanços acumulados pela democracia na região. Nesse contexto, outros ato-
res assumem a linha de frente, podendo-se destacar os papéis exercidos por frações do
empresariado, dos meios de comunicação de massa e das próprias instituições do Estado,
com proeminência para os legislativos e os judiciários.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

O Brasil entrou em um processo de desconsolidação democrática, especialmente


a partir de 2013, quando, em junho daquele ano, milhões de pessoas foram às ruas em
protestos com as mais diversas pautas, mas unificados em torno da insatisfação com o
sistema político. Desde então, há claros sinais de esgotamento de um modelo que, bem ou
mal, funcionou por mais de duas décadas e que, num balanço minimamente razoável, se
não resolveu satisfatoriamente os problemas estruturais do país, trouxe avanços inegáveis
nos campos político, econômico e social, com uma estabilidade até então inédita para os
padrões brasileiros.
Mais do que responder por que isso aconteceu, pretendemos aqui apresentar a
conjuntura em que se engendrou a atual crise política, que, vale repetir, não é brasileira
somente. Trata-se, sobretudo, de um ensaio, ainda que embasado em alguns dados empíri-
cos. Para tanto, nos valemos de uma literatura que desafia o otimismo quanto à marcha da
democracia. Tal discussão teórica compõe a primeira parte do texto. A seguir, trazemos
algumas evidências de como o processo de desconsolidação democrática vem se insta-
lando paulatinamente, valendo-nos de dados acumulados pela EIU para a composição de
seu Índice de Democracia. Por fim, tal qual têm buscado muitos brasileiros dentro e fora
do campo acadêmico, fazemos uma tentativa de aventar algum caminho para a superação
do quadro atual.

DESDEMOCRATIZAÇÃO LENTA E GRADUAL

A agenda de estudos sobre democracia se desenvolveu na América Latina com


base em três ondas bibliográficas até 2013: estudos sobre a transição política, sobre a
consolidação da democracia na região e, por fim, estudos sobre a sua qualidade – a mais
recente e incipiente (IAZZETTA, 2013). Contudo, os recentes choques no sistema demo-
crático da região têm revelado novamente os debates sobre sua consolidação no centro da
agenda de pesquisa.
O conceito de democratização aponta para um desenvolvimento sem fim; todavia,
O’Donnell (1993) adverte para o seu inverso, apontando que a desdemocratização tam-
bém é um processo longe de ser finito, pois a experiência histórica demonstra que os re-
gimes políticos não se cristalizam no tempo, e as democracias são plenamente reversíveis.
Seja em relação à qualidade da democracia ou à democratização (ou desdemocra-
tização), há sempre uma dependência conceitual quanto ao sentido teórico dado ao seu
radical: a democracia. Dependendo da conceituação sobre democracia trazida à baila, a
operacionalização dos conceitos de democratização ou de qualidade da democracia pode
variar (IAZZETA, 2013).

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Vargas e Cullell (2011), por exemplo, definem a democracia sob inspiração da teoria
democrática de Whitehead (2011a; 2011b): um processo não ocluso por meio do qual a organi-
zação democrática das relações de poder se distribui em dada sociedade, afetando os distintos
âmbitos da vida social. Charles Tilly (2013), por seu turno, considera que a democracia se
apresenta como um conjunto de relações entre Estado e cidadãos, sendo que a democratização
e a desdemocratização consistem nas mudanças desses padrões de relacionamento.
Vejamos com mais vagar sua teorização, tendo em vista que Tilly (op. cit.) tem
sido referência central neste debate. Seu conceito de democracia envolve quatro dimen-
sões: (i) amplitude: que se refere à quantidade de cidadãos que possuem direitos num
dado Estado-nação; (ii) igualdade: que diz respeito à extensão da cidadania como catego-
ria homogênea independente de etnia, gênero e outros atributos categóricos; (iii) proteção:
o quanto os cidadãos têm suas liberdades protegidas pelo Estado; (i) vinculação: que diz
respeito a quanto os cidadãos têm suas preferências levadas em conta e atendidas pelo
Estado. Assim, um Estado se aproxima da democracia à medida que promove consultas
mais amplas, igualitárias, protegidas e mutuamente vinculantes; ou em direção à desde-
mocratização ao promover consultas mais estreitas, mais desiguais, menos protegidas e
menos mutuamente vinculantes.
Importante característica dos regimes democráticos, para o autor, é o quanto o Es-
tado consegue implementar suas decisões políticas. Nenhuma democracia pode funcionar
se o Estado não possui a capacidade de supervisionar o processo de decisão democrática
e de pôr em prática os seus resultados; por isso outra dimensão relevante de Tilly (op. cit.)
é o de capacidade estatal, que significa:

a extensão na qual as intervenções dos agentes do Estado em recursos, ati-


vidades e interconexões pessoais não estatais existentes alteraram as distri-
buições existentes desses recursos, atividades e conexões interpessoais, bem
como as relações entre aquelas distribuições (…) Em um regime com alta
capacidade (…) sempre que os agentes do Estado agem, suas ações afetam de
forma significativa os recursos dos cidadãos, suas atividades e suas conexões
interpessoais. Em um Estado com baixa capacidade, os agentes do Estado
exercem uma influência muito menor, não importa o quanto tentem mudar as
coisas. (Tilly, 2013, p. 30).

Democracia e capacidade do Estado, portanto, são dois eixos de um gráfico car-


tesiano, no qual os países desenvolvem suas trajetórias na democratização ou desdemo-
cratização. Esses movimentos de trajetórias, contudo, dependem e podem ser acelerados
por três mecanismos causais: (i) aumento ou diminuição da integração das redes de con-
fiança interpessoal e institucional junto aos processos políticos públicos; (ii) aumento ou
diminuição no insulamento dos processos políticos públicos em relação às principais de-
sigualdades categóricas em torno das quais os cidadãos organizam suas vidas cotidianas;
(iii) aumento ou diminuição na autonomia em relação aos processos políticos públicos
por parte dos principais centros de poder (especialmente aqueles que se valem de meios
coercitivos), como as milícias, as redes de clientelismo, forças armadas, etc.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Os principais processos na promoção da democracia, em todos os períodos,


consistem na crescente integração das redes de confiança aos processos polí-
ticos públicos, no crescente insulamento dos processos políticos públicos em
relação às desigualdades categóricas e na autonomia decrescente nos princi-
pais centros de poder em relação aos processos políticos públicos (Tilly, 2013,
p. 37).

Outra perspectiva conceitual que se aproxima à de Tilly é a de O’Donnell e Sch-


mitter (2010), que desenvolveram uma concepção sobre a democratização articulada ao
conceito de cidadania como princípio fundante da democracia. Democratização, logo,
define-se por um triplo processo ampliado que deve se manifestar: (i) estendendo os pro-
cessos democráticos a áreas nas quais outros princípios normativos fundantes seriam as
âncoras fundamentais; (ii) expandindo direitos e deveres a indivíduos que antes não goza-
vam deles; (iii) expandindo a democracia a instituições públicas e privadas que não eram
abertas à participação cidadã.
Tal ideia de democratização entendida como a propagação ou difusão de princí-
pios de participação cidadã a diferentes âmbitos da vida social é um avanço à noção de
democracia eleitoral e a uma perspectiva minimalista que restringe a participação aos
momentos eleitorais – condições necessárias e importantes, mas que não esgotam a de-
mocracia e podem estancar o aprofundamento da democratização.
Trazendo essa discussão conceitual para o mundo empírico, Larry Diamond (2015)
contribui com assertivas importantes. Ele recorda que, quando iniciou a terceira onda de-
mocrática, em 1974, com a Revolução dos Cravos em Portugal (HUNTINGTON, 1994),
apenas 30% dos países no mundo viviam sob regimes eleitorais democráticos (DIA-
MOND, 2015). Nas décadas seguintes, a democracia expandiu-se, sobretudo no mundo
ocidental, até 2007. Usando dados da Freedom House2, Diamond (2015) alega que houve
nas três primeiras décadas pós-Revolução dos Cravos uma tendência positiva de expansão
nos níveis de liberdade: em 1974, a média do nível de liberdade no mundo permaneceu em
4,3 (numa dupla escala de 7 pontos, em que 1 é “mais livre” e 7 “mais repressivo”). Esse
cenário teve um aumento gradual entre as décadas de 1970 e 1990, sendo que, em 2005, a
média de liberdade no mundo alcançou 3,2. A partir de 2006, essa média estagnou em 3,3.
Discordando de uma visão mais otimista, que considera que esse é um sinal de
relativo equilíbrio da democracia eleitoral no mundo, Diamond (2015) se filia ao rol de
autores que percebem que, na última década, tem ocorrido um incipiente declínio da
consolidação democrática em todo o globo. Trata-se não somente das transições efetivas
rumo a regimes autoritários, mas também países que passaram a se encontrar numa “zona
cinzenta” de difícil classificação tipológica (“regimes híbridos”, “semidemocráticos”),
que apontam para uma tendência de desdemocratização nos próximos anos. São carac-
terísticas desses países as quedas de confiança no regime democrático e nos governos,
mesmo em países ricos e com economias fortes.
2
A Freedom House classifica todos os regimes do mundo como democracias ou não de 1989 até o presente, com base
em se (i) eles obtêm pelo menos 7 de 12 na dimensão “processo eleitoral” dos direitos políticos; (ii) eles pontuam
pelo menos 20 de um total de 40 na escala de pontos brutos para direitos políticos; (iii) as suas mais recentes eleições
parlamentares e presidenciais foram razoavelmente livres e justas; (iv) não há fontes ocultas significativas de poder
sobrepujando as autoridades eleitas; e e) não há mudanças legais recentes que abreviem a liberdade eleitoral futura.

39
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

O autor argumenta que, a partir de 2006, temos em todo o globo quatro padrões de
desdemocratização: (i) significativas taxas de rupturas democráticas; (ii) a qualidade e a estabi-
lidade da democracia declinadas em importantes países estratégicos com mercados emergentes;
(iii) autoritarismo sendo aprofundado; (iv) democracias consideradas estáveis incrementando sua
desconfiança na promoção da democracia. Importante ressaltar que o texto de Larry Diamond
(2015) analisa um recorte temporal que vai até 2014; por isso, quando menciona o Brasil, ele
coloca nos trilhos de firmarmos uma “robusta democracia, embora com desafios” (2015, p. 151)
e como um país estratégico em termos econômicos e políticos.
Diamond (2015) não poderia prever a sequência de fatos ocorridos em nosso país após a
publicação de suas considerações. O Brasil também parece ter entrado numa rota de incertezas
quanto à consolidação democrática nos últimos anos, fato que aponta um sinal de alerta para os
anos vindouros. Tais incertezas estão vinculadas àquilo que Aníbal Pérez-Liñán (2007) denomi-
na de um novo padrão de instabilidade que tem surgido na América Latina, que ganhou forma
na década de 1990 e se consolidou nos anos 2000: os processos de impeachments (ou “juízos
políticos”).
O autor analisou a remoção dos presidentes de oito países da América Latina entre 1992
e 2004 – Brasil, Venezuela, Guatemala, Equador, Paraguai, Peru, Argentina e Bolívia –, argu-
mentando que, diferentemente das décadas anteriores pautadas por golpes militares, agora é
o impeachment que tem gerado instabilidades nos governos democráticos. Os impeachments
surgem com função de resolver as crises observadas quando setores do governo se rebelam com
o intento de dissolvê-lo, trazendo uma situação conflituosa com inúmeras consequências para o
sistema de freios e contrapesos do modelo tripartite de Estado democrático.
Pérez-Liñán (2007) demonstrou que, nos anos 1980, houve aumento dos escândalos po-
líticos, produto da massificação dos meios de comunicação de massa, bem como o surgimento
de jornalistas de carreira. Conjugadas, essas características tornam a mediação da informação
uma arma política central nos processos de impeachment. Trata-se de um denominador comum
dos seis casos de impeachment que envolvem a hipótese do autor: sempre o presidente e seu cír-
culo familiar ou de funcionários próximos estavam envolvidos em escândalos midiáticos sobre
corrupção.
Castells (1999) já havia apontado a mídia como conectora de cidadãos e como campo de
batalha do poder político. Esse autor analisa o papel da mídia na produção da política do escân-
dalo, em geral associado à corrupção, e seu uso (e abuso deliberado) como arma política na crise
da democracia. Meios de comunicação oligopolizados ampliam a sua relevância como atores
estratégicos, com vieses ideológicos e interesses comerciais, que apresentam informações como
estratégias editoriais e políticas. Nesse sentido, a produção do escândalo não é independente da
popularidade do governo: se a opinião pública é favorável às políticas do governo, então os meios
de comunicação têm menos incentivos para atacar um governo, porque os cidadãos também são
seus leitores e audiências (PEREZ-LIÑÁN, 2007). Outros fatores que contribuem para o juízo
político são a situação econômica ruim do país e as manifestações de rua. A primeira desperta o
mal-estar da opinião pública, com baixos índices de apoio ao presidente, e a segunda legitima as
manobras congressuais para a derrubada dos presidentes (PEREZ-LIÑÁN, 2007).

40
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Em entrevista recente, Perez-Liñán (2007) afirma que, no caso de Dilma, há um


elemento adicional que é a capacidade investigativa do Poder Judiciário, algo inexistente
nos outros países da América Latina. Isso é um elemento de imprevisibilidade para além
dos meios de comunicação, porque há uma fonte adicional, além do discurso contra a
corrupção. O Poder Judiciário, por outro lado, tende a ser menos estratégico no uso da
informação do que as fontes internas do governo, porque geram investigações como parte
de um processo legal, relativamente público. Porém, está claro que o Poder Judiciário
também filtra informações para a imprensa com fins políticos. Afirma o entrevistado:

O caso do juiz Sério Moro foi muito claro. A divulgação da ligação intercep-
tada entre Dilma e Lula foi um cálculo estratégico para impedir que Lula se
tornasse ministro e que as investigações saíssem das mãos do juiz. Então, é
possível dizer que todos os atores, inclusive o setor judicial, utilizam os filtros
da imprensa como estratégia política. (Chagas, 2016, p. 112-113 – Entrevista
com Aníbal Pérez-Liñán).

Discordando da visão do autor de que processos de impeachments não constran-


gem os regimes democráticos (e somente seus governos), estabelecemos que é preciso
considerar os usos legítimos ou ilegítimos do referido expediente sob a seguinte questão:
o impeachment tem contribuído para melhora de nossos indicadores internacionais de
qualidade democrática? Ele tem contribuído para a democratização ou a desdemocratiza-
ção do país? São questões que estão longe de terem respostas simples. Ao observarmos,
porém, em perspectiva longitudinal nossos indicadores, podemos contribuir um pouco
com esse debate.

SINAIS DA RECESSÃO: O ESTADO ATUAL DA DEMOCRACIA


NO MUNDO E NO BRASIL

Baseamos nossas análises empíricas no Índice de Democracia (Democracy Index),


que a EIU estabeleceu para classificar e comparar os países em uma escala entre 0 e 10,
na qual o primeiro número representa um regime totalmente autoritário, e o último, total-
mente democrático, a partir de cinco dimensões dos sistemas políticos: processo eleitoral
e pluralismo, funcionamento do governo, participação política e liberdades civis. Cada
uma dessas dimensões recebe uma nota entre 0 e 10, e o índice geral é uma média simples
dessas notas3. Os 167 países analisados são, em seguida, dispostos em 10 intervalos, que,
por sua vez, compõem quatro classes correspondentes a tipos de regime político (Quadro 1).

3
Além das tabelas completas, o leitor encontra explicação pormenorizada de como as notas são atribuídas
em qualquer um dos relatórios anuais, publicados desde 2007 pela EIU (2007, 2008, 2010, 2011, 2012,
2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018).

41
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Quadro 1 – Classificação dos Regimes Políticos conforme Índice de Democracia - EIU

Índice de Democracia Regime


9 – 10
Democracia plena
8–9
7–8
Democracia imperfeita
6–7
5–6
Regime híbrido
4–5
3–4
2–3
Regime autoritário
1–2
0–1

Fonte: EIU (2007)


Como qualquer índice do gênero, o que adotamos em nossas análises não é livre
de críticas, já que pode conter vieses e limitações que acarretam generalizações por vezes
superficiais. No entanto, ele fornece uma base comparativa que envolve a maioria dos
países, em todos os continentes, matrizes culturais e níveis de desenvolvimento socioe-
conômico, em uma perspectiva longitudinal que cobre um período de duração expressiva
(2006-2017), com a publicação de 10 relatórios que, a partir de 2010, passaram a ser anu-
ais. Essas características são essenciais quando se pretende analisar comportamentos de
variáveis envolvendo diversos casos.
A Tabela 1, com dados regionalmente agrupados, mostra que a democracia se
distribui de forma bastante desigual pelo mundo, com a América do Norte e a Europa a
ostentar índices superiores, em contraste com a África Subsaariana e o Oriente Médio e
Norte da África, com médias expressivamente inferiores. Todavia, essa organização dos
dados, efetuada a partir das médias dos índices, sugere uma forte estabilidade política,
com os indicadores variando muito pouco ao longo dos anos.
Países
Região (n) 2006 2008 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017
América do
Norte 2 8.64 8.64 8.63 8.59 8.59 8.59 8.59 8.56 8.56 8.56
Europa
Ocidental 21 8.6 8.61 8.45 8.4 8.44 8.41 8.41 8.42 8.4 8.38
América Latina
e Caribe 24 6.37 6.43 6.37 6.35 6.36 6.38 6.36 6.37 6.33 6.26
Ásia e
Australásia 28 5.44 5.58 5.53 5.51 5.56 5.61 5.7 5.74 5.74 5.63
Europa Central
e Oriental 28 5.76 5.67 5.55 5.5 5.51 5.53 5.58 5.55 5.43 5.4
África
Subsaariana 44 4.24 4.28 4.23 4.32 4.33 4.36 4.34 4.38 4.37 4.35
Oriente Médio e
Norte da África 20 3.54 3.48 3.52 3.62 3.73 3.68 3.65 3.58 3.56 3.54
Mundo 167 5.52 5.55 5.46 5.49 5.52 5.53 5.55 5.55 5.52 5.48

Tabela 1 – Índice de Democracia por região (2006-2017)


Fonte: Elaboração dos autores, com dados de EIU (2007-2018)
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Outra realidade emerge, entretanto, com os dados dispostos de maneira distinta. O


Gráfico 1 apresenta a quantidade de países em cada um dos quatro tipos de regime con-
siderados desde que o índice foi criado, em 2006. De maneira complementar, o Gráfico 2
revela como a população desses países se distribui entre os regimes, no mesmo período.
Os conjuntos de dados sugerem que podemos testemunhar um refluxo da democracia em
nível mundial, ainda que tênue.

Gráfico 1 – Países por tipo de regime (N)


Fonte: Elaboração dos autores, com dados de EIU (2007-2018)

Gráfico 2 – População por tipo de regime (%)


Fonte: Elaboração dos autores, com dados de EIU (2007-2018)

43
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Não se trata, com efeito, de uma mudança abrupta, porém há razoáveis indícios de uma
tendência lenta de redução tanto no número quanto na população de países plenamente democrá-
ticos. Ademais, os dados mantêm-se relativamente estáveis para regimes autoritários e democra-
cias imperfeitas, ao mesmo tempo que os regimes híbridos aumentam em número e população.
Tal dinâmica aponta para um quadro em que vários países pioram seus indicadores de qualidade
da democracia, enquanto a redução dos países autoritários mostra-se bastante tímida.
Os dados indicam que a última década aponta para um rearranjo paulatino nos sistemas
políticos dos países, com clara desvantagem para a democracia. Os títulos dos relatórios anuais
que trazem os dados o refletem e, ao longo dos anos, termos cada vez mais desfavoráveis ao es-
tado da democracia foram empregados4. Tal quadro é explicado pelos aportes teóricos de autores
como Charles Tilly (2013) e Larry Diamond (2015), que, com diferentes conceitos – respecti-
vamente desdemocratização e recessão democrática –, apontam para uma inflexão na onda de
democratização que parecia inexorável no fim do século XX.
A novidade do atual quadro histórico está em a tendência em tela não se apresentar
apenas em países isolados ou com sistemas políticos instáveis na periferia mundial, mas de um
amplo número de sociedades, incluindo países de longa tradição democrática. Ao mesmo tempo,
diferentemente do que costumava acontecer no passado, o processo em marcha não se constitui
uma ruptura, em geral caracterizado por quarteladas e assemelhados; é lento e gradual, somente
perceptível em médio e longo prazo.
O Brasil segue o movimento internacional mais amplo e, após aprofundar sua democra-
cia ao longo de quase três décadas após a abertura política, pode estar entrando em um período
de desconsolidação de sua democracia – fenômeno mais nítido nos últimos anos. A Tabela 2
revela uma tendência do país em perder posições no ranking e ter seus índices de democracia
paulatinamente reduzidos.

Tabela 2 – Índice de Democracia – Brasil (2006-2017)

Processo
Índice Funcionamento Participação Cultura Liberdades
Ano Posição eleitoral e Regime
geral do governo política política civis
pluralismo
Democracia
42 7.38 9.58 7.86 4.44 5.63 9.41
2006 imperfeita
2008 41 7.38 9.58 7.86 4.44 5.63 9.41 “
2010 47 7.12 9.58 7.5 5 4.38 9.12 “
2011 45 7.12 9.58 7.5 5 4.38 9.12 “
2012 44 7.12 9.58 7.5 5 4.38 9.12 “
2013 44 7.12 9.58 7.5 5 4.38 9.12 “
2014 44 7.38 9.58 7.5 4.44 6.25 9.12 “
2015 51 6.96 9.58 6.79 5.56 3.75 9.12 “
2016 51 6.9 9.58 6.79 5.56 3.75 8.82 “
2017 49 6.86 9.58 5.36 6.11 5 8.24 “

Fonte: Elaboração dos autores, com dados de EIU (2007-2018)

4
Os relatórios, com seus títulos, estão nas referências.

44
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

A Tabela 2 apresenta ainda o desempenho do país em cada uma das dimensões


que compõem o índice. Se, de um lado, no geral, verifica-se uma tendência à estabilidade;
de outro, há perdas de desempenho em dois indicadores centrais para a democracia, fun-
cionamento do governo e liberdades civis. Os Gráficos 4 e 5 ilustram a tendência à perda
de posições e de redução no Índice de Democracia no país.

Gráfico 3 – Posição no ranking do índice de democracia – Brasil (2006-2017)


Fonte: Elaboração dos autores, com dados de EIU (2007-2018)

Gráfico 4 – Índice de democracia – Brasil (2006-2017)


Fonte: Elaboração dos autores, com dados de EIU (2007-2018)

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verificar dados de uma trajetória pregressa de desdemocratização (ou o contrário)


e, a partir desses dados, apontar alguma perspectiva é uma tentativa pela qual nenhum
analista político passaria incólume. Indicadores são sempre objeto de discussão por si só,
tornam-se ainda mais polêmicos quando tentam medir e acompanhar fenômenos tão ca-
ros quanto a qualidade da democracia. Todavia, indicadores como o que utilizamos neste
trabalho servem de parâmetros para estratégias diplomáticas, decisões sobre emprésti-
mos internacionais e direcionados investimentos do setor privado internacional. Tal qual
aponta Gugliano (2013, p. 2.030): “ter o carimbo de país não livre não representa apenas
um denominador incômodo, além disso, pode significar perda de legitimidade, espaços
diplomáticos e recursos financeiros, por exemplo”. Portanto, pesquisas que reflitam sobre
a condição formal do Brasil ante institutos e organismos internacionais são sempre neces-
sárias para provocar preocupações, além das paixões próprias da política interna. Mesmo
que tenhamos utilizado critérios bem “conservadores” sobre democracia eleitoral/liberal,
ainda assim, o Brasil tem perdido posições nos rankings que tentam mensurar democra-
tização.
A decomposição democrática medida pelo Índice de Democracia da EIU tende a
ser ainda mais acentuada quando assimilados os dados referentes a 2018, especialmente
por dizer respeito a um ano que processa a sucessão do Presidente com históricos índices
de reprovação popular em todas as pesquisas realizadas por diversos institutos. Esse qua-
dro de desdemocratização, vivido em plena campanha eleitoral, apresenta-se – ao próxi-
mo governo e à sociedade civil organizada – como um grande desafio de reversão ou uma
oportunidade para aprofundar a agonia democrática vivida nos últimos anos, a depender
da mobilização dos grupos políticos que darão sustentação aos próximos mandatários do
executivo e legislativo.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

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47
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

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48
DESIGUALDADE DE GÊNERO NO BRASIL
PÓS-GOLPE 2016
Thalita Carla de Lima Melo
Wagner Leite de Souza
Débora Cristina da Silva Alves

INTRODUÇÃO

Construir a história do presente é um desafio que, por vezes, incorre no risco de


não enxergar os acontecimentos atuais ligados a um processo histórico mais amplo. No
presente, tendemos a olhar para frente, para o foco, para meta, para o plano. Os slogans
da indústria cultural e de autoajuda seguem essa trilha: Siga em Frente! Não olhe para
trás! O futuro está a um passo! (ou a um toque). A história amnésica ou a memória seleti-
va costumam ser privilegiadas no âmbito político. Esquecer é a palavra de ordem, perigo
que tende a nos desconectar daquilo que nos constitui hoje. Esse processo mnemônico
pode ser observado nas análises da conjuntura política no Brasil, realizadas pela mídia
de massa, que negligenciam a realidade histórica do país. Se voltarmos à década de 90,
um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) identificou que em 1993
cerca de 32 milhões de brasileiras(os) defrontavam-se, diariamente, com o problema da
fome. Em 1998, os resultados mostravam-se ainda mais gritantes, visto que 21 milhões
de pessoas poderiam ser classificadas como indigentes e 50 milhões como pobres. (BAR-
ROS, HENRIQUE E MENDONÇA, 2000).
A partir desses dados, observa-se que o Brasil revelava uma realidade de subcida-
dania, em que a naturalização da desigualdade levava a maior parte da população a for-
mas perversas de marginalização. Ficava explícito o abismo material e valorativo entre as
classes, mulheres e raças que compõem a sociedade. A estrutura brasileira apresentava de
forma ainda mais marcante a desigualdade na distribuição da renda e das oportunidades
de inclusão econômica e social, de pobres, negros e mulheres (SOUZA, 2006). Esse cená-
rio de terror, minimizado na Era Lula-Dilma5, tem sido atualizado pelo projeto neoliberal
de Michel Temer. Diante da intensificação de violações dos direitos sociais, políticos e
civis, a reflexão aqui proposta, por ser breve, toma como foco o agravo da desigualdade
de gênero perpetrada e reforçada pelo governo golpista.

5
Reportagem disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/revista/980/os-governos-do-pt-reduzi-
ram-ou-nao-a-desigualdade>.

49
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Nessa esteira, o texto se desenvolve a partir de três situações que problematizam a


desigualdade de gênero no governo Temer: a constituição de um governo formado para e
por homens da elite branca, retirando a representatividade de mulheres e negros dos car-
gos públicos do alto escalão6; o desmonte previdenciário e trabalhista, que elaborou nor-
mativas que minam a luta pela equidade de gênero; e a redução das participantes do Pro-
grama Bolsa Família, que intensifica o processo de “feminização da pobreza”, afetando
principalmente as mulheres negras, chefes de família e das regiões mais pobres do país.

CAÇA ÀS BRUXAS AINDA? ONDE ESTÁ A


REPRESENTATIVIDADE?

Em 18 de abril de 2016, em inflamado clima de crise política, pouco antes do afas-


tamento da Presidenta Dilma Rousseff e da consolidação do governo golpista de Michel
Temer, a ardilosa revista Veja antecipava a apresentação da futura primeira dama com a
reportagem “Marcela Temer: bela, recatada e do lar”, publicada em seu site na internet.
O texto da repórter Juliana Linhares trouxe à baila uma efervescência de manifestações
feministas nas redes sociais, que contestavam o lugar histórico e socialmente imposto
à mulher, de passividade, de objeto de consumo sexual/estético, de subserviência e de
senhora do espaço doméstico. Tensionamentos considerados pertinentes e necessários,
frente às situações de violência simbólica, psicológica, física, moral, patrimonial e sexual
que cerceiam a ‘condição da mulher’ em culturas patriarcais, machistas, sexistas e misó-
ginas, como no Brasil.
Além do relevante aspecto protestual motivado pela reportagem, a publicação
também pré-anunciava um governo sexista e racista, que retiraria mulheres e negros dos
cargos mais elevados do Executivo. Michel Temer, ao anunciar as nomeações para os
ministérios, em maio de 2016, durante a posse como Presidente interino, rodeado de mui-
tos varões, apresentou uma equipe completamente masculina, composta por 24 homens
brancos. A jornalista Kelli Kadanus7, do Jornal Gazeta do Povo, analisou o quadro apon-
tando que seria a primeira vez em 37 anos, desde o governo Geisel (1974-1979), em que
os ministérios não teriam mulheres em sua composição. O número de mulheres da Espla-
nada foi mais representativo no período de Dilma Rousseff, chegando a 18 desde o início
do governo em 2011. Outra ação polêmica foi a extinção do Ministério das Mulheres, da
Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos8, situação que mostra como o
governo de Michel Temer inicia, e permaneceu, com uma nítida afronta às mulheres e à
equidade de gênero.
6
Reportagem disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/falta-de-mulheres-de-negros-em-ministe-
rio-de-temer-criticada-19293761>.
7
Reportagem disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/pela-primeira-vez-em-
-37-anos-ministerio-nao-tera-mulheres-c9b59phya7wbbfyf3jpqs5jk6>.
8
Reportagem disponível em: <https://noticias.r7.com/brasil/temer-oficializa-extincao-de-oito-ministe-
rios-e-secretarias-30092016>.

50
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Infelizmente, esse tipo de perseguição ronda a História. A desigualdade de gê-


nero está ancorada no sistema capitalista e nas políticas de governo desde o período do
maior genocídio de mulheres – a época denominada caça às bruxas. Federici (2017, p. 23)
afirma que a “herege, a curandeira, a esposa desobediente, a mulher que ousa viver só, a
mulher obeah que envenenava a comida do senhor e incitava os escravos à rebelião” en-
carnaram um mundo de sujeitos femininos que o capitalismo precisou aniquilar. Assim, a
autora aponta que a caça às bruxas procurou destruir o controle exercido pelas mulheres
sobre sua função reprodutiva e favoreceu o desenvolvimento de um regime patriarcal
ainda mais opressor.
Identificar as mulheres como bruxas foi, antes de tudo, uma estratégia de governo
dos corpos. Bionde (2017) diz que essa tática se difundiu com o intuito de dominar as prá-
ticas femininas de controle reprodutivo que vigoravam nas sociedades campesinas e que,
em determinado momento, foram tomadas como modos de resistência às determinações
de um Estado favorável à economia em expansão.

O sexismo, assim como o racismo, foram mais que simples temáticas durante
a implementação capitalista, mas vigoraram como pautas políticas importan-
tes dos programas de Estado, que passou a regular as relações sexuais e os
hábitos reprodutivos das mulheres conforme as demandas econômicas. Em
diferentes momentos da história das sociedades, as mulheres foram subor-
dinadas ao controle sistemático dos governos conforme as demandas de pro-
dução do trabalho, em prol do desenvolvimento capitalista que se instalava.
(BIONDE, 2017. p. 278).

Federici (2017) é precisa ao apontar que as atividades associadas à reprodução,


questão central da divisão sexual do trabalho, seguem um terreno de luta fundamental e
se ligam à história das bruxas, pois foi nesse período, da nascente sociedade capitalista,
que a “feminilidade” foi construída como uma função-trabalho, que ocultou a produção
da força de trabalho sob o disfarce de um destino biológico. Esse fato que permite que se
faça uma história das mulheres desconectada da história das classes. Portanto, quando a
revista Veja apresenta Marcela Temer como “uma vice-primeira-dama do lar, onde seus
dias consistem em levar e trazer Michelzinho da escola, cuidar da casa, em São Paulo, e
um pouco dela mesma também” ou quando o Governo é destituído da representatividade
de gênero, fica evidente a reiteração da “feminilidade” como lugar imposto à mulher para
garantir seu afastamento do espaço público e da ameaça de indisciplina.
Apesar do termo bruxa não ser mais tão usado como elemento desqualificador
da mulher, o capitalismo continua difamando e anulando aqueles que explora, mesmo
quando usa vocábulos suavizados, como “bela, recatada e do lar”. O sistema econômi-
co precisa justificar e mistificar as contradições incrustadas em suas relações sociais (a
promessa de liberdade e de prosperidade frente à realidade da coação e penúria genera-
lizadas), “difamando a ‘natureza’ daqueles a quem explora: mulheres, sujeitos coloniais,
descendentes de [...] africanos, imigrantes deslocados pela globalização”. (ibid, p. 37). A
difamação da mulher, e de outros grupos explorados, conecta-se à prática culturalmente
disseminada, do silenciamento:

51
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

A impossibilidade de falar de si mesma acaba por abolir o seu próprio ser, ou


ao menos, o que se pode saber dele. Como aquelas velhas mulheres fechadas
em um mutismo de além-túmulo, que não se pode discernir se ele é uma
vontade de se calar, uma incapacidade em comunicar-se ou uma ausência
de um pensamento que foi destruído de tanta impossibilidade de se ex-
pressar. (PERROT, 2005, p. 10, grifo nosso)

A violência do silenciamento estava tão bem acomodada no espaço público que a


ausência costumeira foi tão enraizada que, hoje, ainda insistentemente, fazem-se neces-
sárias reivindicações para que o gênero apareça nas estatísticas de gestão do Executivo,
porque é a história de uma ausência que tenta ser forçada, como se pode ler na pesquisa
“A mulher brasileira nos espaços público e privado” de Venturi (2004). No estudo, quase
200 pesquisadoras entrevistaram 2.502 mulheres, com 15 anos de idade ou mais, em áreas
urbana e rural, distribuídas geograficamente em 187 municípios de 24 estados das cinco
macrorregiões do país. Elas falaram sobre temas variados, desde suas percepções sobre
as mudanças na condição da mulher nas últimas décadas até suas expectativas pessoais
e políticas.
O interessante na pesquisa é que, apesar das diferenças derivadas das desigualda-
des regionais, de classes e racial, as experiências que permitem às mulheres brasileiras
compartilharem elementos comuns na percepção da identidade de gênero não só desven-
dam as mais violentas faces do machismo enraizado na cultura nacional, mas também
mostram um ponto positivo: “erra muito quem, ao pensar nas mulheres brasileiras hoje,
visualiza a dona-de-casa, conformada e satisfeita com sua dependência e submissão ao
marido, ou à espera de um. Não é assim que elas se veem, não é assim que elas vivem.”
(ibid., p. 28). A ocupação do espaço público, principalmente mediante da inserção no
mercado de trabalho, é a meta da maioria das mulheres, por possibilitar a construção de
sua autonomia e/ou por trazer independência econômica em relação aos seus parceiros. O
estudo afirma que as brasileiras não querem voltar atrás para recolherem-se novamente
ao “recato do lar”.
Ao ocupar os espaços do trabalho remunerado na esfera pública, a mulher ganha
força e passa a produzir sentidos construtivos da realidade material e simbólica, demar-
cando lugares sociais, agregando valor ao sujeito feminino, orientando condutas e modos
de ser de pessoas e instituições. Além disso, o trabalho representa um movimento de luta
e resistência à lógica de dominação patriarcal instituída ao longo dos séculos, que cerceou
a inserção das mulheres nos postos de trabalho remunerados e que ainda se atualiza me-
diante a desigualdade salarial.
Em resistência a essa lógica de dominação, as mulheres colocaram-se na linha de
frente na conquista de direitos nos âmbitos formais da organização social, garantindo a
participação na formulação de políticas que as integrassem e contemplassem suas neces-
sidades materiais. Infelizmente, essa conquista não está completa, já que a maioria das
brasileiras acumula o trabalho remunerado ao trabalho doméstico não pago, tendo que
suportar a extenuante dupla jornada.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

O horizonte do espaço público tem muito que ser ampliado tanto na garantia de
trabalhos fora da precariedade dos vínculos informais e baixos salários, e, mais ainda, no
mundo do poder político, uma realidade ainda distante da maioria das mulheres no Brasil.
É por isso que devemos denunciar um governo sexista, que tenta silenciar e anular a par-
ticipação política das mulheres nas esferas decisórias.

Ao perseguirem sua autonomia, o respeito a sua dignidade e a sua integridade


física; ao tentarem rearticular os espaços privado e público em outros termos,
transformando o primeiro e ampliando sua inserção no outro; em suma, ao
reivindicarem o fim da opressão de gênero, sendo esta tão onipresente, certa-
mente as mulheres apontam não só para uma sociedade em que elas possam
viver melhor, mas para um Brasil potencialmente menos injusto no conjunto
de suas relações sociais. Quanto aos homens, sobretudo como principais res-
ponsáveis pela maioria das instituições sociais, podem optar pelo status quo
ou contribuir para acelerar essas mudanças. O que os dados sugerem é que
não conseguirão resistir às transformações nas relações de gênero que as mu-
lheres brasileiras têm conquistado e provavelmente consolidarão muito antes
de acabar o século que se inicia. (VENTURI, 2004, p. 29).

DE VOLTA À SENZALA?

A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), embora com contradições, configu-


rou-se como um campo de conquistas para as mulheres brasileiras em relação aos direitos
trabalhistas, trazendo especificidades no olhar sobre a mulher no mercado de trabalho,
visando à igualdade dos gêneros. No entanto, desde o golpe machista e misógino que
operou contra a Ex-presidenta Dilma Rousseff, as desigualdades de gênero no mercado
de trabalho têm se intensificado. A retirada de direitos historicamente construídos para as
mulheres nesse âmbito tem ampliado as diferenças não só de gênero, mas também de raça
e classe, uma vez que, no campo da perda, as principais atingidas são mulheres negras
e pobres que, em sua maioria, ocupam postos de trabalhos precarizados. Para mulheres
negras, a categoria gênero influencia no acesso e na permanência nos postos de trabalho,
enquanto o determinante raça recai sobre o lugar precário que essa mulher vai ocupar
(VIEIRA, 2017).
A reforma trabalhista (RT), aprovada em 2017 sob a Lei nº 13.467, alterou mais
de 100 pontos da CLT e evidenciou a ação direta da agenda de retrocessos vinculadas ao
golpe, uma vez que reduz a proteção institucional às/aos trabalhadoras/res, expandindo
ainda mais a garantia das empresas, e a precarização do trabalho ganha respaldo na lei.
Conforme Lima (2018), a RT atinge duplamente as mulheres, uma vez que altera
os processos de trabalho de todos os trabalhadores e possui normas que são especifi-
camente endereçadas as trabalhadoras, atingindo-as de forma direta, precisamente em
razão de seu gênero. A autora faz uma discussão de como a “flexibilização”, que propõe
a RT, agrava as condições de trabalho da mulher, tornando ainda mais difícil romper com
as desigualdades de gênero no mercado de trabalho.

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

O primeiro ponto discutido versa sobre a possibilidade das trabalhadoras gestan-


tes e lactantes trabalharem em ambiente insalubre:

Art. 394-A. Sem prejuízo de sua remuneração, nesta incluído o valor do adi-
cional de insalubridade, a empregada deverá ser afastada de:

I - atividades consideradas insalubres em grau máximo, enquanto durar


a gestação;

II - atividades consideradas insalubres em grau médio ou mínimo, quando


apresentar atestado de saúde, emitido por médico de confiança da mulher, que
recomende o afastamento durante a gestação;

III - atividades consideradas insalubres em qualquer grau, quando apresentar


atestado de saúde, emitido por médico de confiança da mulher, que recomen-
de o afastamento durante a lactação (LEI 13.467/17- Art. 223-G).

A transferência de encargo para a gestante e a lactante, que devem comprovar


por meio de atestado médico que trabalham em um local que oferece risco à sua saúde,
apresenta-se como problema, uma vez que o médico de confiança da mulher deveria ter
conhecimento da realidade concreta das suas atividades para que possa analisar as con-
dições e o ambiente de trabalho. Esse médico deve ter conhecimento técnico específico
sobre segurança no trabalho que lhe possibilite realizar tal análise; assim, as trabalha-
doras que fazem acompanhamento de sua gestação pelo SUS terão as possibilidades de
toda essa articulação reduzida, pelo alto grau de demanda e urgência do sistema (LIMA,
2018). Ainda conforme a autora, a nova lei também desconsidera que a gestante e a lac-
tante podem estar inseridas em lugares nocivos à sua saúde; para ela, a nocividade existe
independentemente do grau da insalubridade.
Para Vieira (2017), em uma pesquisa global (OIT, 2016), as mulheres têm, em mé-
dia, dias de trabalho mais longos do que os homens, ao considerar o trabalho doméstico
não remunerado. Np caso do Brasil, em 2014 as mulheres dedicavam 21 horas semanais
às tarefas domésticas e familiares, que, somadas à jornada profissional, totalizam 58h
semanais, ultrapassando em 6h a jornada masculina.
Em meio às normas de proteção do trabalho da mulher preconizadas pela CLT,
estava a garantia de um período de descanso não inferior a 15 (quinze) minutos, antes do
início do período extraordinário de trabalho, conforme previsão do art. 384. Tal norma
reconhecia o cotidiano da mulher permeado pela dupla jornada de trabalho, e embora essa
lógica seja alvo de várias críticas por reconhecer que o trabalho doméstico e o cuidado
dos filhos não devem ser direcionados apenas à mulher, era possível reconhecer que, na
prática, tal benefício agia como redutor de danos à saúde feminina. Assim, a supressão do
período de descanso antes do período extraordinário de trabalho pela reforma trabalhista
representa um grande problema e colabora com os danos à saúde.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Também nessa direção, o aumento da jornada de trabalho permitido pela RT con-


figura um problema para as mulheres, ao considerar os pontos já apresentados. Antes da
reforma, se permitia a jornada de 12 horas de trabalho por 36 de descanso, em caráter
excepcional, estabelecida por meio de negociação coletiva, assegurada a remuneração em
dobro dos feriados trabalhados. Assim, fica evidente que a reforma trabalhista banalizou
a possibilidade dessa jornada, que agora pode ser instituída por mero acordo individual, e
desonerou o empregador, que não está mais obrigado a pagar hora extra quando não cum-
prir as formalidades legais (LIMA, 2018). Tal lógica afeta sobretudo as mulheres mais
pobres, pois as pertencentes às camadas populares são as que mais vivenciam os serviços
domésticos, somado ao fato de que grande parte dessas mulheres (em sua maioria negras)
é mãe solteira e o trabalho é uma questão de sobrevivência para ela e os filhos, a realidade
se agrava significativamente.
Assim, se a lei consente que a mulher estenda a sua jornada de trabalho, e se a
mulher continua cumprindo sua dupla jornada com o trabalho doméstico não remunera-
do, é evidente que o somatório dessas jornadas será extenuante, o que além de representar
riscos à saúde da mulher, intervém em sua socialização e relação familiar (LIMA, 2018).
Outra questão problemática para as mulheres no que diz respeito à RT refere se à
indenização tarifada do dano moral associada ao salário contratual do ofendido:

§ 1º Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a


cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumu-
lação:

I - ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual


do ofendido;

II - ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do


ofendido;

III - ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do
ofendido;

IV - ofensa de natureza gravíssima, até cinquenta vezes o último salário con-


tratual do ofendido (LEI 13.467/17- Art. 223-G).

Para Lima (2018), condicionar o valor indenizatório por dano moral ao salário dos
trabalhadores é uma forma de legitimar os danos morais a eles, sobretudo aqueles que re-
cebem menores salários, como é o caso das mulheres. Outro ponto é que tal relação acaba
afirmando que a dignidade da trabalhadora pobre é menor, equivalente ao seu salário.
Casos de assédio sexual contra mulheres poderão ser intensificados, já que nessa lógica
cruel sairia mais barato para o empregador assediar moralmente uma mulher do que um
homem, o que afeta o próprio caráter pedagógico das indenizações por danos morais.

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Considerando o entendimento de alguns desdobramentos da reforma trabalhista,


é evidente que as mulheres serão as mais atingidas, e ainda que o princípio de igualdade
de gênero seja garantido nos termos da lei, pouco se vê quanto à efetiva aplicação e ao
controle desse princípio, ou seja, há pouco efeito na prática. O golpe tem colocado em an-
damento uma série de projetos que efetivam o desmonte do estado democrático de direito,
e quem está a pagar o pato são os pobres, negros e as mulheres, por meio da precarização
do trabalho, da superexploração da mão de obra, dos salários reduzidos, da ampliação de
subempregos e do desemprego.

GOLPE FEITO, BARRIGA VAZIA?

A implantação do Programa Bolsa Família possibilitou ao Brasil enfrentar algu-


mas de suas chagas sociais mais antigas. A desigualdade mostrou sinais claros de redu-
ção de intensidade. A proporção de municípios brasileiros com elevado grau de exclusão
social caiu de 30,8%, em 2000, para 21,0%, em 2010, graças à expansão dos programas
sociais capazes de atender desigualmente os desiguais (GUERRA et al, 2015).
É importante reconhecer as potencialidades do Programa Bolsa Família no en-
frentamento da pobreza, mas é relevante destacar que, ao falar desse programa, somos
convidadas/os também a trazer para o debate a categoria gênero. Esse programa assume
evidentes impactos na vida das mulheres participantes, de modo que, na Lei nº 10.836, de
09 de janeiro de 2004 (que cria e regulamenta o programa), consta que o pagamento seja
destinado preferencialmente à mulher.
As mulheres na sociedade brasileira são a maioria da população em situação de
extrema pobreza. Isso aponta a relevância do Programa Bolsa Família para a vida das
mulheres negras e pobres. Aproxima-se aqui a necessidade de um olhar interseccionado
entre “classe, raça e gênero” ao se tratar das mulheres contempladas no programa, tendo
em vista que a população negra é a maioria entre os mais pobres na configuração da de-
sigualdade brasileira (MARIANO & CARLOTO, 2012; 2013).
Sobre o perfil das mulheres que participam do Programa Bolsa Família, Peixoto
(2010) destaca que as participantes do programa, em sua maioria, possuem filhos, são
pardas ou negras, têm um baixo nível de escolaridade e convivem com seus companhei-
ros, sem vínculos legais do casamento formal. Quanto à situação ocupacional, elas estão
desempregadas ou realizam trabalhos eventuais que lhes conferem algum ganho.
Algumas críticas feministas afirmam que o Programa Bolsa Família reforça a ló-
gica machista-sexista por delimitar os papéis de gênero, ao exigir das mulheres o cuidado
com crianças, naturalizando o lugar da mulher na maternidade e no cuidado (MARIANO
& CARLOTO, 2012; 2013). No entanto, poderíamos afirmar aqui que o PBF empodera
mulheres negras e pobres com a possibilidade que oferece de saída da pobreza extrema,
pois, mediante uma renda mínima condicionada, o programa possibilita que as mulheres
alcancem certa autonomia (domínio de si), que lhes permite perceber-se como sujeitos femininos.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

De acordo com Rego e Pinzani (2014), o processo de distribuição de renda mo-


netária tem por objetivo emancipar os sujeitos não somente da miséria ou pobreza, mas
também de um ambiente social gerador de sofrimento. 
O estudo de Bartholo, Passos e Fontoura (2017) exemplifica o que foi tratado. As
autoras analisaram pesquisas nacionais que se propuseram discutir a relação entre Bolsa
Família, autonomia feminina e equidade de gênero. Seguem alguns resultados apresenta-
dos pelas autoras:
a) a renda recebida possibilita a ampliação da autonomia das mulheres residentes
nas áreas urbanas nas decisões sobre compra de bens duráveis, remédios para os filhos,
comparecimento das crianças à escola e uso de anticoncepcionais. O uso de métodos
contraceptivos sugere a concretização de direitos, neste caso reprodutivos, podendo exer-
citá-lo autonomamente.
b) O valor recebido permite a flexibilização de jornadas de trabalho muito árduas,
ou mesmo a liberação de trabalhos considerados humilhantes e degradantes, sem falar
que o desemprego feminino é superior ao masculino.
c) O acesso à renda mensal do programa parece provocar efeitos nas trajetórias
dessas mulheres: na percepção que têm de si, no questionamento da sujeição a relações
conjugais indesejadas, na ampliação de sua liberdade de fazer escolhas e da capacidade
de participarem no mundo público.
d) A garantia da renda faz com que as mulheres possam ter outras preocupações
que não a sobrevivência no dia de amanhã, diminuindo assim seu isolamento social e
ampliando sua presença no mundo público e em suas escolhas. No que se refere às condi-
cionalidades, que mesmo reforçando simbolicamente o papel maternal, parecem também
estar contribuindo para que se enxerguem como detentoras de direitos e deveres, como
cidadãs que se relacionam com o Estado, independentemente da mediação masculina.
Esses resultados expressam o papel efetivo do Programa Bolsa Família no que
diz respeito ao combate à fome-pobreza e em sua capacidade de gerar condições eman-
cipatórias para as mulheres participantes do programa que se encontram em situação de
exclusão quanto a ter sua autonomia e condições básicas de vida rompidas.
Entretanto, o Programa Bolsa Família está atualmente sob um ataque mais pesado,
mesmo sendo responsável por manter aproximadamente 36 milhões de pessoas distantes
da linha da pobreza. Com a implementação do Plano Temer, a cobertura média nacional
da pobreza cai para somente 23,7%, com 10,9 milhões de famílias pobres não atendidas,
o que corresponde a 39,3 milhões de pessoas, cerca de uma em cada cinco pessoas do
país. Como já discutimos, as mulheres negras acabam sendo maioria nesses números, que
correspondem ao quantitativo da população em situação de pobreza e extrema pobreza,
significando, assim, um ataque ao processo de autonomização dessas mulheres possibi-
litado pelo Programa Bolsa Família, as quais restam sob o alcance do problema da fome
que volta a emergir de forma intensa na realidade brasileira9. O Brasil caminha rumo a
uma regressão de suas políticas sociais (FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO, 2016).
9
Fome volta a assombrar famílias brasileiras: Relatório de entidades da sociedade civil que será levado à
ONU alerta que Brasil pode voltar ao mapa da fome. Reportagem disponível em: <https://oglobo.globo.
com/economia/fome-volta-assombrar-familias-brasileiras-21569940>.

57
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

É importante demarcar que o Programa Bolsa Família faz parte de um projeto de


governo eleito democraticamente. Os governos Lula-Dilma apresentaram e disputaram
nas urnas um projeto pautado no compromisso social e político de combate às desigualda-
des de renda, racial e de gênero. No entanto, o projeto neoliberal de governo representado
pelas figuras de candidatos como José Serra, Geraldo Alckmin e Aécio Neves, que vinha
sendo derrotado nas urnas, passa a ser difundido, representado por Michel Temer. Suas
ações consistiram na retirada de direitos conquistados historicamente e no desmonte de
políticas construídas ao longo dos 14 anos de governo do Partido dos Trabalhadores (PT),
ao aprovar o maior número possível de reformas que não faziam parte do pacote de es-
tratégias eleitas nas urnas junto à candidatura da legítima Ex-presidenta Dilma Rousseff.
Reafirmou-se um modo de governar que alimenta o processo de “feminização da pobre-
za”, com os cortes no Programa Bolsa Família. Os efeitos disso são notáveis e revoltantes.

E AS CENAS DOS PRÓXIMOS CAPÍTULOS?

O projeto neoliberal do golpe que vem ancorado à lógica patriarcal e racista da


elite econômica tem afundado o Brasil numa crise profunda, fazendo com que as estru-
turas das desigualdades que estavam começando a ser dirimidas por políticas públicas de
equidade retrocedessem, abrindo espaço para o fascismo e formas mais sofisticadas de
práticas de violência pelo Estado.
O autoritarismo e o conservadorismo têm ganhado visibilidade, posturas machis-
tas, racistas e de marginalização da pobreza. Esses aspectos vêm tendo palco e têm an-
gariado cada vez mais simpatizantes. Discursos de misoginia como os que são proferidos
pelo agora Presidente da República Jair Bolsonaro escancara a profundidade do problema,
um modo de fazer política vertical, em que as mulheres não têm participação – muito pelo
contrário, parecem ser abjetas.
O governo Temer não é o fim da agenda reacionária – que não foi escolhida pelo
povo brasileiro nas urnas e continua em curso não reconhecendo mulheres, negros e pes-
soas pobres como sujeitos de direitos – implementada no Brasil pós-golpe. Bolsonaro,
além de ter sido uma das figuras responsáveis pelo golpe10, como candidato à Presidência
em 2018 tentou propor uma agenda ultrarreacionária, utilizando-se do momento de fra-
gilidade que a democracia tem passado, como é possível perceber na seguinte afirmação
com relação às mulheres: “... eu não empregaria (a mulher) com mesmo salário... mas tem
muita mulher que é competente.” (Jair Bolsonaro, 2017)11.

10
Na votação do golpe na câmara dos deputados, Bolsonaro foi favorável, enquanto dedicava seu voto
ao torturador (Brilhante Ustra) de Dilma Rousseff na ditadura militar no Brasil. Ele também foi um dos
deputados federais que votou a favor da reforma trabalhista.
11
Então candidato à Presidência da República, numa entrevista ao programa “SuperPop” da RedeTV.
Entendemos que Bolsonaro não é o único a ter como plano de governo a agenda neoliberal de desmonte
do estado; no entanto, por ser um dos candidatos de direita mais incisivos na derrubada de conquistas das
minorias sociais, resolvemos usar sua figura para pensar os retrocessos vivenciados e a ameaça ao futuro
do Brasil.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

A “caça às bruxas” continua presente: mulheres negras e pobres são seus princi-
pais alvos, a morte dessas mulheres ganha aparato legal por meio de reformas/leis geno-
cidas, que preconizam exclusão e subserviência, legitimando a injustiça social. A “caça
às bruxas”, não muito diferente de ocorrências históricas, está aqui representada como o
modo de consolidação de estratégias antidemocráticas de marginalização das mulheres.
A reconstrução da democracia é urgente e só as mobilizações populares poderão
promovê-la. A luta feminista, antirracista e anticapitalista se consolida na resistência ao
autoritarismo político, por meio de posturas e discursos emancipatórios, que contestam a
visão estabelecida sobre ser mulher, negra e pobre. O movimento contrário à lógica auto-
ritária e antidemocrática busca que a mulher não esteja mais a serviço do homem, que o
negro não volte mais para senzala, que o pobre possa, no mínimo, alimentar-se três vezes ao dia.

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Congress (Anais Eletrônicos). Florianópolis, 2017.

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“UMA PONTE PARA O DESASTRE”:
A FRATURA POLÍTICA AMBIENTAL
NO (DES)GOVERNO TEMER
Diego Freitas Rodrigues

INTRODUÇÃO

A agenda ambiental no Brasil continua, do ponto de vista das instituições e das


políticas públicas, a ser tratada de forma setorial e fragmentada, ganhando mais ou me-
nos relevância a depender da pressão internacional invariavelmente ligada a alguma con-
venção da ONU sobre Mudança do Clima. Mesmo que o Brasil seja o país onde mais se
assassina lideranças ambientais, o apelo ainda é pequeno e basicamente restrito a círculos
acadêmicos, membros críticos da imprensa ou movimentos sociais.
Não há apelo político no Congresso que impulsione medidas políticas de efetiva
proteção às lideranças ambientais e de salvaguarda do que essas pessoas lutam: um meio
ambiente equilibrado, como determina a Constituição Federal de 1988, o que indica não
apenas o desprestígio da agenda ambiental como plataforma política, mas também o des-
prestígio da própria agenda de direitos humanos, tratada de forma quase horizontal como
empecilho à segurança jurídica e ao dito desenvolvimento, o que quer que seja isto. As
frentes de combate à agenda ambiental no Congresso Nacional, palco por excelência do
processo de articulação e típico golpe parlamentar que ocorreu em 2016, foram impres-
cindíveis para a ascensão do vice-presidente Michel Temer ao Planalto. O preço pago foi
cobrado pela Bancada Ruralista, fiel depositária de Temer et caterva, na produção de
legislação com amplos retrocessos ambientais, além de cortes significativos no orçamento
do Ministério do Meio Ambiente e de autarquias como IBAMA e ICMBio.
Para este ensaio, busquei discutir como a política ambiental brasileira sofreu re-
trocessos políticos e institucionais, cortes em políticas e programas ambientais e o avanço
sem controle da Frente Parlamentar Agropecuária, mais conhecida como Bancada Rura-
lista, sob pautas e políticas ambientais, como a extinção da Reserva Nacional de Cobre e
Associados (RENCA) e, por fim, o PL nº 6.292/2002 batizado de Lei do Veneno.

MEIO AMBIENTE IMPORTA PARA QUEM?

O meio ambiente é transversal a inúmeras políticas públicas. Inclui os meios rural


e urbano, incorpora elementos diversos objetos de políticas públicas na área de Saúde e
Planejamento Urbano, por exemplo, e com inúmeras instituições envolvidas na sua ges-
tão, de Ministérios até Autarquias. A gestão ambiental, entretanto, na maioria das vezes,
não é compartilhada, embora possam haver dezenas de ministérios e autarquias envolvi-
das na formulação e/ou implementação de políticas públicas.

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Há uma pergunta essencialmente importante para a reflexão proposta neste en-


saio: meio ambiente importa? Ainda que seja uma pergunta relativamente simples, ela nos
empurra de imediato outras perguntas: importa em relação a quê? E para quem?
Definitivamente, as questões ambientais sofrem maior dificuldade de inserção na
agenda política do que outras questões. Parte da razão deriva de uma observação relati-
vamente simples: o jogo democrático remete às expectativas em torno do desempenho de
instituições democráticas, no qual são pressupostos, fundamentalmente, três elementos:
(1) diversidade institucional, (2) cooperação e (3) competição política. Como afirmei an-
tes, o meio ambiente é transversal às políticas públicas e isso tem um preço político, ainda
mais com um governo que nasce de uma relação pouco transparente entre Executivo e
Legislativo: a política ambiental ser rifada e, por exemplo, as áreas protegidas virarem
moeda de troca política com o Congresso Nacional.
Há um bom debate na literatura de Ciência Política e Economia Institucional rela-
tivo à maior inclusão de atores políticos e se essa ampliação inclusiva nos espaços deci-
sórios permitirá que o meio ambiente seja tratado de maneira prioritária. Para quem usa
de forma indiscriminada o conceito de “democratização” na gestão ambiental, a resposta
seria um sonoro não, mas não é esse caso. Se há algo que aprendi lendo a cientista política
e economista ecológica Elinor Ostrom é que precisamos avaliar as situações específicas
para responder sobre algum tipo de modelo de gestão e política ambiental. Por exemplo,
as práticas de gestão ambiental muitas vezes se restringem à reparação de danos. Porém,
o que alarma mesmo – e trato aqui do Brasil, embora não seja diferente em outros países
latino-americanos –, é o investimento público em gestão ambiental. O ponto é que a agen-
da ambiental no Brasil possui tão baixa prioridade política que até mesmo a reparação de
danos recebeu desincentivo, quando não cerceamento de atividades.
Sob o governo Temer, o orçamento ambiental passou de ruim para pior; aquilo que
já era pouco para a gestão ambiental de um país com as dimensões continentais brasileiras
ficou ainda menor. Os gastos autorizados no Ministério do Meio Ambiente com quatro
autarquias vinculadas à sua gestão (respectivamente, IBAMA, ICMBio, Agência Nacio-
nal de Águas e Serviço Florestal Brasileiro) tiveram, há cinco anos, um montante de R$ 5
bilhões; em 2017, esse valor havia sido reduzido para R$ 3,9 bilhões e, em 2018, a redução
continuou atingindo apenas R$ 3,7 bilhões para a gestão ambiental federal.
O ICMBio, responsável pela gestão das unidades de conservação federais, sofreu
redução de 44% em seu orçamento. Qual o resultado? O desmatamento no bioma amazô-
nico caiu 21% em 2017; em compensação, aumentou 22% nas unidades de conservação
federais (WORLD WIDE FUND FOR NATURE, 2018).
O caso da redução (e fim do investimento) do orçamento da Bolsa Verde foi ainda
mais perverso, por conta de sua natureza: remunerar comunidades que conservam suas
florestas. É o princípio básico do Pagamento por Serviços Ambientais e um mecanismo
cada vez mais usual nas políticas ambientais nos mais diversos países do mundo. Não fez
muita diferença para os decisores do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e
chancelado pela Casa Civil: R$ 106,1 milhões para 2015, R$ 78 milhões para 2016 e, por
fim, R$ 61,7 milhões para, e nada para 2018.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

É catastrófico e não há boa gestão que suporte o desmantelamento da política am-


biental que impera no Brasil nos últimos anos. O cenário desolador foi alvo do relatório da
World Wide Fund for Nature e da Contas Abertas intitulado Financiamento Público em
Meio Ambiente – Um Balanço da Década e Perspectivas. A bolsa verde, por exemplo, foi
sustada. Sabe qual a “fortuna” que era paga? O programa concedia R$ 300 reais, de três
em três meses, para famílias que fossem beneficiadas em áreas de prioridade de conser-
vação ambiental, ou seja, atendia quem iria manter a floresta em pé e não arrasada sob os
seus pés. O desmonte da política e da autonomia das instituições que regulam, formulam
e implementam a política ambiental era um projeto governamental.
Se há algo repetido feito mantra como se forçoso de se fazer verdade pelo presiden-
te Michel Temer desde que empossado na Presidência da República é sua capacidade de
diálogo, especialmente com o Congresso Nacional. Esse “diálogo” foi pautado especial-
mente pela plataforma “Uma Ponte para o Futuro”, verdadeira plataforma de retrocesso
ambiental nas mais variadas frentes. O “diálogo” com os setores do Congresso Nacional,
aqui especialmente da suprapartidária bancada BBB (Bala, Boi e Bíblia), visou alguns ob-
jetivos, especialmente a recuperação de antigos projetos de lei que flexibilizassem (quan-
do não excluíssem) mecanismos de controle ambiental ou alterassem áreas protegidas.
Alguns casos dessa ponte para o desastre são bem ilustrativos. Vejamos alguns deles.

AS TRAPALHADAS DA RENCA

Quando assinou sua autorização de abertura, o Ex-presidente Michel Temer não


imaginou que a Reserva Nacional de Cobre e Associados ([RENCA] – como é conhecida)
lhe traria ainda mais instabilidade num governo cujo nascimento foi instável pelo seu
próprio nascimento. Um território entre o Pará e o Amapá, a RENCA possui 46.450km2, e
não figurou nunca como uma unidade de conservação federal, embora sua não exploração
permitisse a manutenção de uma extensão do tamanho da Dinamarca. E para um governo
ansioso por fazer valer sua “ponte para o futuro”, cuja plataforma política era de busca
por mais investimento estrangeiro direto no país, todo aquele potencial mineral não pas-
sou desapercebido, assim como para a sociedade civil, graças à desastrosa comunicação
governamental.

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

O caráter desastroso pôde ser percebido na sequência de decretos envolvendo a


RENCA. O Decreto nº 9.159, que revogou outro decreto, o nº 9.147, de 28 de agosto de 2017,
que extinguiu a RENCA, foi publicado no Diário Oficial após protestos de organizações não
governamentais, universidades e artistas12. O barulho foi grande e com toda a razão. Entre
os impactados, estavam comunidades indígenas na região, como os Wajãpi. E a Convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, é clara
na obrigação legal de que essas comunidades tradicionais sejam consultadas previamente
sobre empreendimentos que impactarão seus territórios (RODRIGUES et. al, 2018). O reco-
nhecimento, entretanto, da necessidade de consulta às populações a serem impactadas veio
a posteriori e, ainda assim, de maneira pouco democrática, ainda que o jargão não escapas-
se ao então Ministro das Minas e Energia, Fernando Coelho Filho:

O MME reafirma o seu compromisso e de todo o governo com a preservação


do meio ambiente, com as salvaguardas previstas na legislação de proteção e
preservação ambiental, e que o debate em torno do assunto deve ser retomado
em outra oportunidade, mais à frente, e deve ser ampliado para um número
maior de pessoas, da forma mais democrática possível.13

A justificativa para essa medida (a venda fracionada da RENCA para mineradoras)


teria uma premissa “sustentável”: a legalização da mineração na região. O cenário no local é
de extensa prática de mineração ilegal (neste ponto, o governo Temer estava correto). Entre-
tanto, de sustentável a mineração nada têm. Mesmo que a mineração seja de grande porte,
como o padrão Vale, Alcoa ou AngloGold, ainda assim os impactos biofísicos e antrópicos
são significativos. A Floresta Estadual (Flota) do Paru (Figura 1), unidade de conservação
estadual do Pará, seria diretamente atingida pela extinção da Renca e ilustra bem o pretenso
dilema entre a mineração legal e ilegal em áreas públicas e/ou protegidas.

12
Renca: Temer revoga polêmico decreto que ameaça reservas da Amazônia. Disponível em: https://brasil.
elpais.com/brasil/2017/09/25/politica/1506372008_097256.html Acesso em 28 de Agosto de 2018.
13
Decreto que revoga a extinção da Renca é publicado no Diário Oficial. Disponível em: http://agencia-
brasil.ebc.com.br/politica/noticia/2017-09/diario-oficial-publica-decreto-que-revoga extincao-da-renca
Acesso em 28 de Agosto de 2018.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Figura 1. Flota do Paru: atividades de mineração identificadas

Fonte: Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Estado do Pará (2017).

No caso da Flota do Paru, a mineração ilegal (aqui dimensionada à garimpagem)


produz impactos ambientais, mas considerando a infraestrutura de acesso às áreas de
garimpo e, especialmente a falta de equipamentos (como escavadeiras), os prejuízos são
reduzidos quando comparados a mineração legal e a mineração ilegal e o perfil dos im-
pactos que ambas produzem (ainda que existentes, como a contaminação de cursos d’agua
por mercúrio, o que atinge a ictiofauna e comunidades ribeirinhas e indígenas).
Outro indicador convenientemente esquecido pelo então Ministro das Minas e
Energia Fernando Coelho Filho foram os impactos associados à mineração desse porte,
caso as mineradoras iniciassem a prospecção e o diagnóstico das áreas a serem explora-
das, e o mais abrangente entre eles seria o desmatamento. Sonter et al (2017) publicaram
na revista Nature estudo em que dissecam essa associação, com ênfase no Brasil. A lite-
ratura científica aponta a ligação direta entre as autorizações de mineração e a abertura
de picos de desmatamento que atraem novas atividades econômicas, como a pecuária e a
exploração ilegal de madeira, ambas realizadas em áreas públicas. E mais, conforme os
resultados, a mineração impacta diretamente no desmatamento, aumentando a mortalida-
de de espécies, perda de habitat, conflitos socioambientais na região e risco de contami-
nação ambiental por reagentes químicos, entre outros prejuízos (SANCHEZ, 2013).

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

O impedimento da extinção da RENCA, em grande parte, teve relação com a


mobilização social. A RENCA, como afirmado, não era legalmente uma unidade de con-
servação e não era regida pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC),
mas sua totalidade territorial compreendia florestas públicas, terras indígenas e unida-
des de conservação estaduais e federais. Entretanto, seu desenho espacial agia como um
cinturão protetor em uma área com desmatamento pouco significativo. Por exemplo, a
Floresta do Paru possui em torno de 36.000 km², dos quais apenas 0,2% foi desmatado até
2017, ano da publicação do Decreto de extinção e do Decreto de revogação da extinção
(IMAZON, 2018).
A mobilização que impediu a extinção da RENCA esteve relacionada muito mais
ao conjunto de retrocessos ambientais já anunciados do que, necessariamente, à especi-
ficidade dessa situação política. O ditado popular “cachorro mordido de cobra tem medo
de linguiça” fez todo o sentido: a agenda antiambiental avançava no Congresso Nacional
com forte apoio do Executivo, e nada na “ponte para o futuro” indicava outra coisa, que
não um desastre para o presente e o futuro. O próximo caso ajuda a ilustrar outro retro-
cesso até o momento sustado também por forte mobilização popular.

O PROJETO DE LEI DO VENENO E O DESENHO INSTITUCIONAL


DE CONTROLE E REGULAÇÃO AMBIENTAL

Recentemente, por conta do PL nº 6.299/2002 foi instituído um acalorado e pro-


fundamente necessário debate sobre o uso de agrotóxicos no Brasil. A comissão especial
da Câmara dos Deputados aprovou o texto do PL que flexibiliza o uso de agrotóxicos e o
encaminhou à Mesa Diretora da Câmara para colocá-lo em votação no Plenário. A Agên-
cia Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
(Ibama), o Ministério Público Federal, a Associação Brasileira de Ciências, a Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência, entre outras instituições, mostraram-se contrários
ao texto do PL, o que não é de espantar, considerado seu conteúdo. Um dos motivos para
o rechaço é esse PL altera de forma consistente o desenho institucional e as competências
decisórias envolvendo a aprovação de um produto fitossanitário (agrotóxicos), já que,
para tanto, seria necessário que a Anvisa e o Ibama, além do Ministério da Agricultura,
chancelassem a autorização.
Não é surpresa para uma análise institucionalista a observação de Tsebelis (2009)
e de North (1993), para quem, considerada a maior quantidade de atores com poder de
veto, haveria maior a tendência de paralisia decisória no processo político. Embora duvi-
de muito de que tenha estudado os dois autores, essa observação da literatura de Ciência
Política e Economia Institucional serviu bem aos interesses da bancada BBB, que “moveu
mundos e muitos fundos” para aprovar o PL nº 6.299/2002, aproveitando uma verdadeira
liquidação governamental como se constitui o que se passa com o governo Temer.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

De acordo com tal PL, tanto o Ibama quanto a Anvisa deixam de ser atores com
poder de veto e tornam-se apenas órgãos consultivos. A razão para a alteração do dese-
nho institucional envolvendo as competências e a capacidade decisória de cada órgão é a
celeridade no licenciamento dos produtos fitossanitários (e não mais agrotóxicos, como
pede o relator, o Deputado paranaense Luiz Nishimori do PR). A concentração de poder
decisório no Ministério da Agricultura, pasta ligada diretamente ao agronegócio, resulta-
ria num típico caso de redução da accountability. Essa observação é respaldada pela nota
técnica do Ministério Público Federal, que afirma: “Não pode o Estado renunciar aos seus
mecanismos de avaliação e controle prévio de substâncias nocivas ao meio ambiente e à
saúde” (BRASIL, 2018).
A ideia falaciosa é “homologar para não atrasar”. Trata-se do mesmo raciocínio
perverso que também guia o PL nº 3.729/04, a denominada Lei Geral do Licenciamento
Ambiental. Entre as queixas em torno do licenciamento ambiental, está a morosidade na
aprovação das licenças. A seguir, é possível visualizar o quadro de licenciamento ambien-
tal apenas sob responsabilidade do Ibama somente para 2014, por exemplo, ano de eleição
da chapa presidencial Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (PMDB).

Quadro 1. Panorama de Licenciamento Ambiental Federal para 2014.

Licença ambientais emitidas


Licença prévia 08
Licença de instalação 23
Licença de operação 38
Outros tipos de licenças e autorizações 319
388 Licenças ambientais
Total 3,1 licenças/dia útil
Audiências públicas promovidas 20 audiências públicas
5. 474 pessoas envolvidas
Documentos técnicos produzidos
(ofícios, pareceres e notas técnicas) 5.510 documentos
Demandas de órgãos de controle (documentos recebidos)
(Ministérios Públicos, Polícia Federal, Polícias Civis, TCU, 410 ofícios
AGU, Defensorias Públicas, 3,2 ofícios/dia útil
Tribunais Regionais, Tribunais Estaduais, etc.)

Fonte: Brasil (2014).

Há pouca consistência na crítica sobre morosidade no licenciamento ambiental


se, nela, não existir a incorporação da falha em investimentos sistemáticos nos órgãos
de controle e monitoramento ambiental e, claro, no órgão federal responsável pelo li-
cenciamento ambiental federal, o Ibama. A morosidade nas aprovações dos agrotóxicos,
portanto, deve-se mais a um projeto de desmantelamento dos órgãos ambientais do que a
incompetências dos gestores ambientais em conceder ou não as licenças ambientais. Uma
das demandas da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) (2018) foi solicitação de que as
atividades agropecuárias nem necessitassem de obtenção de licença ambiental.

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A ascensão de Michel Temer à Presidência da República foi amparada, de forma


significativa, pela FPA. Não só a escolha de Blairo Maggi, então Senador por Mato Gros-
so, foi pontual, mas também a própria adoção da agenda da FPA foi imprescindível para a
própria agenda do governo Temer e, após as duas denúncias da Procuradoria-Geral da Re-
pública, para sua manutenção no poder. Essa associação simbiótica entre governo Temer e
FPA já era sinalizada desde o momento de sua “gestão interina”, enquanto se desenrolava
o circo do impeachment (BENITES, 2016).
O modelo atual tripartite envolvendo o licenciamento dos agrotóxicos funciona
como um “check and balance” de regulação. A concentração de poder decisório apenas
no Ministério da Agricultura sobre essa política regulatória gerará ainda mais ruído, da-
dos os questionamentos judiciais que virão certamente. A alardeada “insegurança jurídi-
ca” será ainda maior para os investidores, sem considerar, claro, os riscos significativa-
mente maiores de impactos à saúde e ao meio ambiente.
Como disse, os custos em saúde e os custos ecológicos também serão altos. Por
exemplo, como informou Marco Antonio Delfino (2018), Procurador da República, coor-
denador do Grupo de Trabalho Agrotóxicos e Transgênicos do Ministério Público Federal
em artigo no El País Brasil, em torno de 87% dos municípios brasileiros não têm sua água
monitorada para resíduos de agrotóxicos.
Definitivamente, é um dado assustador. Entretanto, ainda assim, a Comissão Es-
pecial da Câmara dos Deputados aprovou, por 18 votos a 9, o PL 6.299/2002. Residiu
nesse embate um claro sinal da força política da FPA e do alinhamento de sua agenda com
a do governo Temer.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sem recursos, como mencionado, não há como fazer uma boa gestão ambiental.
E considerando que o meio ambiente é um tema transversal não apenas politicamente,
mas também social e economicamente, é forçoso que a agenda ambiental seja priorizada.
Não adiante dizer que saneamento básico precisa ser prioridade se você não lidar com
revitalização de corpos hídricos e sem planejamento urbano. A pauta ambiental atravessa
ministérios, autarquias, secretarias, e todos lidam direta ou indiretamente com o meio
ambiente, mas pouco importa reconhecer esse fato e, na hora de dispor o orçamento para
a gestão da política ambiental, ele ser irrisório.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

A maior eficiência e decisividade da política ambiental de um país, do ponto de


vista da qualidade ambiental, depende fortemente do desenho de políticas que se carac-
terizariam por antecipar mais do que reagir às externalidades ambientais, o que demanda
investimento público nas instituições e políticas ambientais. Contudo, os retrocessos na
política ambiental brasileira aqui brevemente debatidos são sintomáticos da falta de ca-
pilaridade política envolvendo a agenda ambiental, especialmente no governo Temer. A
ascensão de Michel Temer à presidência da República permitiu a operacionalização mais
livre de atores políticos que não surgiram do nada, mas já atuavam com visibilidade e
articulação com o Poder Executivo sob o governo Dilma Rousseff como na elaboração
de um novo Código Florestal. Com o impeachment, devidamente apoiado pelos 243 con-
gressistas da FPA, a bancada ruralista apenas deu claridade a sua agenda permeada de
retrocessos propositivos. No caso, duas agendas políticas (Temer e FPA) criaram uma
ponte para um futuro desastroso para o meio ambiente.

REFERÊNCIAS

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politica/1468363551_264805.html Acesso em 27 de Agosto de 2018.
BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria-geral da República. PL que flexibili-
za registro de agrotóxicos afetará saúde e meio ambiente, afirma MPF. Disponível em:
http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pl-que-flexibiliza-registro-de-agrotoxicos-afetara-saude-
-e-meio-ambiente-afirma-mpf último acesso em 28 de Agosto de 2018
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis. Diretoria de Licenciamento Ambiental. Modernização e
o Processo de Tomada de Decisão no Licenciamento Ambiental Federal. II Congresso
Brasileiro de Avaliação de Impacto Ambiental. Ouro Preto, 2014.
DELFINO, M. A. Água no Brasil: Insípida, incolor, inodora e com agrotóxicos.
El País. Brasília, 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/07/06/opi-
nion/1530877709_484199.html último acesso em 19 de junho de 2018.
FRENTE PARLAMENTAR AGROPECUÁRIA. FPA trabalha por novo marco legal
para o licenciamento ambiental no Brasil. Disponível em: http://agencia.fpagropecuaria.
org.br/2018/02/27/fpa-trabalha-por-novo-marco-legal-para-o-licenciamento-ambiental-no-bra-
sil/. Acesso em 28 de Agosto de 2018.
NORTH, D. Instituciones, Cambio Institucional y Desempeno Económico. México:
FCE, 1993.

69
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

PARÁ. Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade. Floresta Estadual de Paru.


Disponível em: https://www.semas.pa.gov.br/diretorias/areas-protegidas/florestas-esta-
duais-da-calha-norte-faro-paru-e-trombetas/floresta-estadual-de-paru/. Acesso em 05 de
Julho de 2018.
RODRIGUES, D. F.; GALVAO, V. K.; MENEZES, R. K. Consulta prévia, accountabili-
ty social e conflitos no licenciamento ambiental em mineração no Brasil e na Colômbia.
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SANCHEZ, L. E. Avaliação de Impacto Ambiental: conceitos e métodos. Oficina de
Textos: São Paulo, 2013.
SONTER, L. J., HERRERA, D., BARRETT, D. J., GALFORD, G. L., MORAN, C. J.,
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TSEBELIS, G. Atores com Poder de Veto: como funcionam as instituições. São Paulo:
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WORLD WIDE FUND FOR NATURE. Financiamento público em meio ambiente -
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cloudfront.net/downloads/financiamentomma_final2_web.pdf. Acesso em 10 de Agosto
de 2018.

70
CARTOGRAFIA DOS PRIVILÉGIOS:
OS MAGISTRADOS NO BRASIL
Andrés del Río

INTRODUÇÃO

A democracia brasileira está atualmente em processo de erosão, vivendo na fron-


teira com o autoritarismo e, aos trancos e barrancos, orientada para um aprofundamento
de privilégios e aumento da desigualdade. Nesse sentido, falar de privilégios é debater os
sentidos da democracia. Neste breve artigo, refletiremos sobre outras facetas do Judiciá-
rio que nos mostram sua desconexão com a realidade e a sociedade no processo de golpe.

APROXIMAÇÃO

A partir do golpe, desenvolveu-se uma interessante e diversa produção intelectual


e artística sobre o processo que destituiu a presidenta Dilma Rousseff. Em especial, na
nossa área específica, trabalhos e análises sobre comportamentos, ações e sentenças do
Poder Judiciário foram divulgados; por exemplo, livros como Comentários a uma senten-
ça anunciada: o processo Lula a respeito da sentença de Sergio Moro, com participação
de mais de 120 acadêmicos analisando o caso. Na mesma linha, foi lançado o livro Co-
mentários a um acórdão anunciado – o processo Lula no TRF4, com a participação de
mais de 50 juristas. Essas obras deixariam qualquer magistrado envergonhado. Ainda,
foram publicados livros das mais várias áreas do conhecimento e perspectivas, a modo
de exemplo: Enciclopédia do golpe, Por que gritamos golpe, O golpe 16, A resistência ao
golpe, A resistência internacional ao golpe, Temerosas Transações, Depois do golpe, His-
toriadores pela democracia, A radiografia do golpe, entre muitos outros. Alguns foram
traduzidos para outras línguas. Outras obras foram lançadas como produto dos debates
originados pelos cursos O Golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil ou conhe-
cidos como Seminários do Golpe, disciplina ministrada de forma coletiva em inúmeras
universidades no Brasil e no exterior14.
Sobre o judiciário e sua participação ativa no processo atual, existe um interes-
sante desenvolvimento sobre o Lawfare utilizado no Brasil como parte de um processo
internacional. O Lawfare se refere à utilização indevida de instrumentos legais com o
propósito de perseguição política. Destruição da imagem pública e desqualificação de um
adversário político são parte da estratégia (ROMANA e TIRADO, 2018). Outros estudos
atacam as genealogias políticas do judiciário, como as pesquisas lideradas pelo professor
Ricardo Costa de Oliveira da UFPR. Como indica o próprio Costa de Oliveira (2018, s/p):
14
Universidades internacionais também anunciam curso sobre o golpe no Brasil. Pragmatismo político. 15
de maço de 2018. Disponível em: https://bit.ly/2MA65oc. Acesso em: 20 mai. 2018.

71
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

a visualização de uma prosopografia familiar conservadora e corporativista


instalada no sistema judicial brasileiro, com grandes consequências políti-
cas na atual conjuntura. As nossas pesquisas sempre revelam que no Brasil e
no Paraná, em parte central, o poder judiciário é hereditário e familiar, bem
como as mentalidades e a cultura política.

Enfim, foram desenvolvidos estudos dos mais variados para compreender a situa-
ção atual e o estudo do judiciário no Brasil. Neste artigo, refletiremos sobre outras facetas
do judiciário que nos mostram a desconexão com a realidade e a sociedade no processo
de golpe.

UM POUCO SOBRE O BRASIL

O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, e o atual governo está fazendo
todo o possível para alcançar o topo da lista (CORRÊA, 2017). Por seu próprio mérito,
a elite brasileira está irritada com a melhora popular, ao mesmo tempo que os setores
privilegiados se acumulam e se concentram cada vez mais, isto é, observa-se um ódio
de classe radical. Não é só a desigualdade que cresce: aumenta também a concentração
de renda. Um estudo recente revelado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) mostrou que as pessoas que fazem parte do 1% com retornos mais altos ganham
em média 36,1 vezes mais da metade da população com menor renda (SILVEIRA, 2018).
Após o golpe de 2016, com o impeachment estético de Dilma Rousseff, um furor
legislativo cooptou o Parlamento15. O objetivo deste processo é eliminar o estado de bem-
-estar social rudimentar existente, reduzir os direitos sociais à sua expressão mínima e
consolidar mais uma vez os privilégios de uma elite pungente, racista, intelectualmente
indigente, colonizada e escravista. Como disse o poeta Millôr Fernandes, “o Brasil tem
um enorme passado pela frente”. Nada mais atual.
O Ex-presidente do Brasil, Michel Temer, teve a menor taxa de aprovação do mun-
do: 3%. Um campeão da falta de legitimidade. Acrescentamos que é um governo ilegal,
em razão de sua origem fraudulenta como resultado do desvio de finalidade no uso do
instituto de impeachment. Um governo de costas para a sociedade. Não é aleatório que o
Brasil tenha novamente entrado no mapa mundial da pobreza e da fome. Segundo levan-
tamento da LCA Consultores, o número de pessoas que vivem em extrema pobreza no
Brasil passou de 13,34 milhões em 2016 para 14,83 milhões em 2017, o que significa um
trágico aumento de 11,2% (VILLAS BÔAS, 2018). Um governo invencível na multiplica-
ção da desigualdade e da fome. Mas o mal-estar é geral: segundo pesquisa recente, sete
em cada 10 brasileiros consideram que a vida piorou desde que o Ex-presidente Michel
Temer assumiu a Presidência da República, em agosto de 2016 (AGOSTINE, 2018).

15
Algumas medidas de ajuste foram implementadas no segundo governo Dilma, gerando mal-estar na sua
própria base. Contudo, não foram da intensidade que existiram depois do golpe.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

A CORPORAÇÃO

O Judiciário está cada vez mais presente em diferentes áreas das quais anterior-
mente não participava. Do fortalecimento do ativismo judicial – muitas vezes seletivo – à
judicialização das relações sociais e da política, o sistema Judiciário brasileiro pode ser ob-
servado em todos os jornais diariamente. Ou seja, é um ator de relevância, determinante
na atual democracia. A Constituição de 1988 concedeu-lhe força e recursos. A premissa
enunciada no artigo 78 em The Federalists, de Alexander Hamilton, sugere que o judici-
ário não tenha influência sobre a espada ou a bolsa; nenhuma direção sobre a força ou a
riqueza da sociedade, assim como não pode tomar qualquer resolução ativa. Pode-se dizer
que a premissa que não exerce força nem vontade, somente julgamento, lidando com o
poder mais frágil, e hoje seria muito debatida.
Todavia, ao mesmo tempo que participa cada vez mais das diferentes arenas do
cenário nacional, o processo de designação do Judiciário continua com problemas his-
tóricos. Por um lado, é o único poder estatal que não é eleito pelo povo. Esse recurso
afeta a questão da legitimidade ao julgar determinados assuntos. Por outro lado, há um
perfil problemático específico no Brasil que faz parte desse poder estatal: em geral, é
branco, masculino e rico. Assim, a magistratura está representada, em média geral, por
62,7% dos homens e 37,3% das mulheres. Há, ainda, diferenças mais significativas se
consideradas as regiões: por exemplo, no estado do Amapá, apenas 9,8% é do sexo fe-
minino (BERNARDES, 2017). Quando colocada a questão racial, os números são ainda
mais expressivos: o Censo do Poder Judiciário de 2014, realizado pelo Conselho Nacional
de Justiça (CNJ), revelou que os juízes brasileiros que se declararam negros eram 1,4%
(84,5% declararam-se brancos e 14% pardos) (OLIVEIRA, 2014). Os indígenas são repre-
sentados por apenas de 0,1% do total. O perfil por excelência da magistratura brasileira
é um juiz, branco, casado e heterossexual. Em suma, muito longe do rosto da população
verde-amarela.
O Brasil é um país extremamente diversificado (geográfica, racial e cultural, entre
muitos outros aspectos). Essa característica é o seu grande diferencial no mundo, porém
também é o seu grande desafio. Nem todas as suas instituições processam essa diversida-
de da mesma maneira; algumas pouco se esforçam para canalizar as diferenças existentes,
as quais aumentam notavelmente quando considerados gênero, raça e território, como
abordado.
O Poder Judiciário foi historicamente o menos estudado. O ex-ministro do Su-
premo Tribunal Federal (STF) Aliomar Baleeiro já o considerou, em 1967, “aquele outro
desconhecido”. Nos últimos anos, a partir do aumento de sua participação nos diferentes
cenários (um movimento global), os estudos começaram a ser reproduzidos a partir das
mais variadas áreas do conhecimento humano. Nesse processo, começaram a descobrir as
características de uma instituição que estava sempre nas sombras.

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

O prestígio sempre foi considerado um bem sagrado no Judiciário. Com a perda


de prestígio, sua justiça é observada e entendida como parcial, e a parcialidade desfaz os
sentidos da Justiça. Desse modo, poucos magistrados arriscaram participar de eventos pú-
blicos, e menos ainda de programas de televisão ou entrevistas. Atualmente, porém, ocor-
re acontece exatamente o contrário. Mas, como visto, outras características começaram a
ser reveladas, como a baixa participação de mulheres, sobretudo de mulheres negras. A
pouca preocupação em relação a gênero e raça não é simplesmente um evento inocente,
é uma forma de dominação e de compreensão do mundo. E esse mundo construído por
este setor específico é aquele que, no final, fala “justiça” nas sentenças. Se somarmos o
minúsculo número de homens negros e/ou de origem de classes populares, o problema se
multiplica sensivelmente. Dessa forma, o Poder Judiciário no Brasil tornou-se um branco,
de privilégios, continuidades e uma garantia de que um modo de entender o mundo seria
traduzido em sentenças, em um monumento jurídico16.
Os estudos expuseram esses problemas e alguns reajustes estão sendo implemen-
tados ; contudo, demoram e apresentam problemas estruturais da desigualdade brasi-
17

leira: questões de saúde, educação básica e inclusão social. Quem pode acessar e buscar
um diploma de Direito? Quem pode fazer um curso de dois anos para entrar na carreira
judicial sem apoio financeiro? Quem é geralmente reconhecido e promovido dentro da
instituição? Em suma, ainda há muitas perguntas, muita ignorância, muitas áreas perme-
adas por sombras e pouca vontade de respostas.
Se tomarmos todas as instituições no Brasil, as Forças Armadas, a imprensa e o
judiciário são os menos avessos e, ao mesmo tempo, os mais apoiados. Segundo pesquisa
do Datafolha18, 40% da população afirma confiar muito nas Forças Armadas; 22% das
pessoas dizem que confiam muito na imprensa e 20% dizem que confiam muito no Judi-
ciário. Ao mesmo tempo, 92% da população acredita que a justiça trata os ricos melhor
do que os pobres. Parece um paradoxo: força, garantia de direitos e injustiça. Deixando
de lado a imprensa (e sua discussão), que no Brasil é hegemônica e conservadora, exis-
tem várias semelhanças entre o Poder Judiciário e as Forças Armadas: poucos realmente
sabem sobre elas. São carreiras que muitos herdam, não há eleição pelo povo e, no Brasil,
ambas as instituições se consideram a reserva moral do país19. Assim, em tempos de co-
lapsos institucionais ou golpes de estado, são essas instituições que salvam o país. Claro,
é possível discutir os significados de salvação e de quem está sendo salvo. Em geral, essas
duas instituições no momento da ruptura, longe de estarem em bandas rivais, têm um rit-
mo sincronizado, ambas necessitam uma da outra para legitimar e realizar seu trabalho.
16
Como indica Werneck Aguelhes, a magistratura tem no seu perfil classe média alta. Aqueles mais ricos
foram para o âmbito privado, com escritórios.
17
Un ejemplo de ello es la pequeña pero importante mudanza en el perfil de los jueces, aunque todavía
marginal.
18
“92% acreditam que a Justiça trata melhor os ricos do que os pobres”. Datafolha, 26 de Junho de 2017.
Disponível: https://bit.ly/2udaiR5
19
Para ingressar na magistratura, realiza-se concurso público. Apesar disso, existe influência que benefi-
cia certas candidaturas, como é o caso da filha do Ministro Lux do STF.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Os militares precisam do selo da corte para mostrar seu disfarce legal e democrático, e o
Poder Judiciário precisa deles para sobreviver. Por exemplo, na Argentina, desde o golpe
de 1930, a Suprema Corte estabeleceu uma tradição de carimbar de legalidade as rupturas
institucionais. No Brasil, não é muito diferente. Em geral, poucos conhecem o poder judi-
cial e menos são aqueles que entendem o léxico kafkiano do mundo jurídico. Lembre-se
que os juízes falam por suas sentenças, e elas são eventos políticos.
Contudo, no momento, parece que os juízes falam fora de suas sentenças. E, em
geral, quando abrem a boca, mais se entende sobre os problemas de justiça. Como o jo-
gador de futebol Romário disse quando perguntado sobre Pelé: “calado é um poeta”, o
mesmo se aplica a muitos magistrados. Em numerosas ocasiões, os magistrados anunciam
os seus votos nos julgamentos que serão ditados, e isso é proibido pela Lei Orgânica da
Magistratura Nacional (LOMA) de 1979, que, em seu artigo 36, declara: “o magistrado
é proibido, III - manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processos
com pendências de julgamento”.
A seguir, serão apresentados dois eventos importantes para poder compreender o
Judiciário brasileiro e sua participação no golpe: por um lado, a reação do Poder Judiciá-
rio do Paraná ao ser publicado num jornal o tamanho de seus salários; por outro, o auxí-
lio-moradia, um canto à desigualdade da justiça. Os eventos são uma forma de entender
o tipo de democracia existente no Brasil, a distância considerável com a sociedade, bem
como a participação deste poder no golpe de 2016.

OS SALÁRIOS DA DESIGUALDADE: A CORPORAÇÃO EM AÇÃO

Em 2016, Dilma estava sendo levada para a fogueira, num julgamento político,
misógino e fraudulento, por ser honesta, mas não carismática ou articulada. O ódio de
classe contra o PT, contra o popular, é uma constante na elite brasileira. A elite brasileira
em geral é mesquinha, ignorante, consumista, colonizada e profundamente racista. Um
racismo intenso, uma escravidão viva. Um casamento perfeito para a desumanização em
seu mais alto grau. Darcy Ribeiro, que tinha algumas ideias, disse: “O Brasil tem uma
classe dominante ranzinza, azeda, medíocre, gananciosa, que não deixa o país avançar!”.
Em pleno processo contra Dilma Rousseff, os magistrados saíram cada vez mais
nas capas dos jornais. Numa publicação, um jornalista, daqueles que ainda desenvolve pes-
quisas, procurou saber o quanto os juízes recebiam em seu estado, o Paraná. O jornalista
ficou pasmo ao conhecer os números. Em seu relatório, o profissional mostra que os juízes,
em seu estado, ganhavam mais de 39 mil reais. A renda média era de 527 mil reais por ano.
Os privilégios da Justiça foram exibidos com relativa visibilidade. Lembra-se que, no meio,
estava em processo um julgamento político, então tudo estava em segundo plano, mas ao
mesmo tempo multiplicou o caos da cena política. Numa democracia, há uma coisa cha-
mada transparência das instituições públicas, então publicar salários oficiais não infringe
lei alguma. Todavia, o fato não foi interpretado dessa maneira pelos juízes daquele Estado:
mais de 36 ações entraram nos tribunais, pela porta da frente, por diferentes magistrados e
advogados, de diferentes locais, dificultando ainda mais o panorama.

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Isso é um fato importante. O Brasil é grande, apresenta proporções continentais.


O jornalista foi processado por quase 1.300.000 reais em indenização. É um exemplo de
ação coletiva em favor da ocultação. Rapidamente, ele começou a ser citado para diferen-
tes audiências, mas cada audiência estava em um distrito diferente. Se fosse na Europa,
uma audiência seria em Lisboa, outra em Porto, outra em Madri e outra Barcelona, etc.
Só nesse percurso, são 1.500km. Nas primeiras 19 audiências, o jornalista viajou mais
de 6.300 quilômetros. De jornalista para motorista. Para o diretor do jornal, A Gazeta
do Povo, no Paraná, as ações eram contra a liberdade de imprensa. De nossa perspecti-
va, uma extorsão e um exemplo disciplinar para o resto dos jornalistas. Uma ação que
coloca todas as ovelhas em uma fileira. As associações de magistrados e promotores da
região ficaram indignadas com a nota jornalística, que disseram ter conteúdo ofensivo e
prejudicar sua dignidade. A desordem da razão. As associações de jornalistas reagiram
apoiando o jornal e o jornalista, indicando que eram ações para inviabilizar o trabalho da
imprensa. A questão chegou ao STF, que acabou suspendendo as ações. A visibilidade do
caso alcançaria o status como um problema nacional.
O caso ilustra o tipo de democracia que existe no Brasil. A corporação judicial
cuidando de seus privilégios e usando os tribunais para garantir um bom resultado ou
mostrar seu poder. O senso de justiça nunca esteve na mesa, e sim uma defesa para a ocul-
tação de informações públicas, usando seus próprios corredores, sua própria linguagem e
seus próprios recursos. Esse caso, que colocou sobre a mesa o tema dos bizarros salários
dos magistrados, mostra como funciona uma democracia que quer a continuidade da his-
tória, dos privilégios e da dominação. E o Judiciário é uma ferramenta a serviço da con-
tinuidade histórica por meio de julgamentos legais, garantia de interpretações jurídicas.
No entanto, a história não termina aqui. Em meio a um debate sobre os salários
dos magistrados, já com a presidente Dilma temporariamente destituída de seu cargo de
Presidente por um bando criminoso que cooptou o Executivo e o Legislativo, o Presiden-
te interino Michel Temer, em um movimento estratégico para garantir o apoio do Poder
Judiciário, aumentaria 41% os salários dos magistrados. Esse aumento foi sancionado
14 dias depois de o jornalista publicar seu relatório sobre os salários dos magistrados no
estado do Paraná. Sim, no mesmo mês, no calor do debate sobre os salários, o Presidente
provisório aumentou os salários do criticado Poder Judiciário. Em plena crise política,
econômica e social, as instituições funcionando para se respaldar e resguardar entre eles,
de costas à população. Lembra-se que, em julho de 2015, Dilma Rousseff vetou o PL
que dava reajuste de até 78,6% aos servidores do Judiciário, o qual o impactaria R$ 25,7
bilhões nos próximos quatro posteriores (FONSECA, 2015). O Judiciário, com o golpe,
retomou o caminho do fortalecimento dos seus privilégios. Um golpe de desigualdade.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

A CONTINUIDADE DA DESIGUALDADE: PRIVILÉGIOS SOB A


FORMA DE BENEFÍCIOS

O auxílio-moradia foi criado nos anos 1970 para juízes de distritos que não possu-
íam “residência oficial” disponível. A ajuda nunca foi regulamentada e acabou concedida
de diferentes formas em cada Estado brasileiro. O auxílio é um benefício, uma ajuda
econômica que os magistrados recebem no Brasil com base na LOMA. O valor é pago
diretamente com seu salário e eles não precisam provar que o uso do dinheiro tem por
objetivo os custos de moradia. Essa ajuda é de R$ 4.377,00 reais por mês. Para comparar
o que essa quantia significa no País, 92% dos salários brasileiros estão abaixo do auxílio
concedido aos magistrados. Sim, estou falando do auxílio, não do salário dos magistra-
dos; se considerar o salário médio de um magistrado (o teto legal é de R$ 33.000,00), o
auxílio é maior do que 99% dos salários dos brasileiros. Se considerar a média do que um
magistrado recebe em todo o conceito, aproximadamente R$ 47.000,00 (RAMALHO,
2017), a ponta da pirâmide salarial fica minúscula. São dados importantes para se ter
perspectiva da discussão. Remarco, o auxílio-moradia não é o único benefício recebido
pelos magistrados, há também a assistência alimentar, de saúde, educação, entre outros.
Sem perder a esperança, vários outros vêm pela frente. Em um país rico em pobreza,
racismo e recursos naturais, os privilégios mostram o poder da continuidade histórica
nacional. O Judiciário faz parte disso e é, ao mesmo tempo, sua garantia legal. Ou seja, a
discussão do auxílio-moradia é uma maneira de entender a democracia no Brasil.
Ironicamente, foi o próprio STF, o mais alto escalão do Judiciário, que decidiu
sobre o destino do benefício. O auxílio-moradia foi estendido a todos os juízes por uma
decisão liminar, por um dos 11 ministros do Supremo, pelo Ministro Luiz Fux, em 2014.
O benefício, de acordo com ele, apresenta caráter indenizatório, e não remuneratório,
tornando-o compatível com o direito constitucional aplicável aos magistrados (ROVER,
2014). Naturalmente, a decisão teve impactos políticos e econômicos. A primeira, a in-
certeza de como os Poderes Legislativo e Executivo reagirão, embora, nessa área, a nego-
ciação seja parte do processo. Economicamente, a questão é simples: de acordo com uma
pesquisa da revista Veja, 86% dos magistrados brasileiros, 20.270, receberam o benefício
em 2017. A esse respeito, a União e os estados gastaram em 2017 cerca de 920 milhões de
reais pelo pagamento do auxílio (FERNANDES, 2018). Estamos falando do auxílio, não
de salário, reitero. Em um país onde há um problema habitacional profundo – basta obser-
var os morros que abraçam as praias de Rio de Janeiro –, poderia ser destinado dinheiro a
uma política habitacional com um propósito social, e não para “socialites de toga”.

77
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Contudo, não há apenas desproporcionalidade do benefício em relação a outros


setores da administração pública e da sociedade como um todo, existem ainda exemplos
que multiplicam as perguntas sobre o auxílio. O juiz federal Sergio Moro, que liderou a
Lava-Jato com sede em Curitiba, falou sobre o assunto recentemente. Moro, um herói dos
setores mais reacionários, exibe a irrealidade de parte do mundo judicial. Ele afirmou
que “a ajuda é uma maneira de compensar a falta de reajuste salarial por juízes federais”
(ALBUQUERQUE, 2018). Levando em conta que quase 50% dos empregos no Brasil são
informais e mais de 60% dos novos empregos são informais (SILVEIRA, 2017), falar em
reajuste salarial é uma provocação. Remarco: a renda familiar média é de R$ 1.200,00
reais. Claro, se abordada a questão geográfica, o desempenho cai (e muito): no estado de
São Paulo, o coração econômico do país, não é o mesmo que nos estados do Norte, onde
o cai para R$ 700,00. Na mesma pesquisa do IBGE, indica-se que 50% de trabalhadores
no Brasil ganham menos de um salário mínimo, e 15% menos do que o salário mínimo
(SILVEIRA, 2017).
É importante deixar claro que, para receber o benefício, não é necessário que o
magistrado demostre não possuir propriedade própria. Em geral, esse tipo de benefício é
concedido quando a pessoa deixa a cidade e se muda para outra, caso em que o recebe.
No Brasil, isso não acontece assim. Não é ilegal receber o auxílio, ainda que, onde esteja
trabalhando, o magistrado tenha sua propriedade. É o exemplo do próprio juiz Moro. Ele
morou em sua residência e recebeu o benefício desde 2014. Atualmente, ele se tornou um
superministro. Claro, não é ilegal, mas é muito criticado. A injustiça da justiça.
Outro caso que ilustra o problema é o do juiz federal Marcelo da Costa Bretas,
responsável pela Lava-Jato, no Rio de Janeiro. Bretas entrou na justiça pedindo o auxílio
para ele e sua esposa Simone de Fátima Diniz Bretas, também juíza federal. O CNJ, que
exerce controle externo sobre o Poder Judiciário, proíbe a ajuda nesses casos; porém, Bre-
tas ganhou a causa. Justiça a serviço da desigualdade. Em um comunicado, Bretas indicou
que “sempre que penso que tenho o direito de alguma coisa, eu entro na justiça e peço
por ela” (MARTÍN, 2018). O auxílio-moradia foi, então, multiplicado por dois, ainda que
morando em casa própria. Foi tanto alvoroço quanto à visibilidade do caso Bretas que,
recentemente, o mais polêmico ministro do STF, Gilmar Mendes, solicitou que a causa
fosse revista. Claro, não por justiça, mas para que o caso não provoque um efeito dominó
e mobilize o público de exigir que todos os magistrados percam seu auxílio. Outro caso
elegante é o da filha do ministro do STF Marianna Fux. Ela é desembargadora, indicada
pela OAB do Rio, posição que alçou com o apoio explícito do pai e recebe o benefício
todo mês, mesmo possuindo dois apartamentos no Leblon, o bairro mais caro do Rio de
Janeiro, que ultrapassam o valor de R$ 2 milhões de reais. Lembra-se que foi o próprio pai
e ministro do STF, Luiz Lux, o que permitiu a permanência de ajuda desde 2014. Final-
mente, talvez o caso mais coerente seja o do juiz do Tribunal de São Paulo, José Antônio
de Paula Santos Neto. O juiz recebe o auxílio mensal e possui 60 propriedades. Sim, você
não leu errado, 60. Uma joia de ética.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

É importante notar que os brasileiros pagam por um dos sistemas de justiça mais
caros do mundo. Em 2016, a despesa representou 1,4% do Produto Interno Bruto (PIB)
do País. No mesmo período, na Alemanha, os gastos com justiça representaram 0,4%. Ou
seja, o poder Judiciário brasileiro, à época, era 3,5 vezes mais caro do que o alemão. Um
dado de cor, ou de indisposição (CARTA CAPITAL, 2018).

HORIZONTE

Os debates sobre desigualdade e democracia muitas vezes não incorporam ques-


tões que fazem parte de sua construção. A justiça é um pilar fundamental de um Estado
democrático de direito. Parece que hoje a justiça no Brasil fala de múltiplas formas: por
suas sentenças, preconceitos; por seu comportamento, desigualdade; por suas palavras,
irrealidade social.
Lutar contra a desigualdade, em favor da dignidade e da justiça social, além de
ser o objetivo declarado na Constituição brasileira, é fundamental para saber que tipo de
democracia estamos construindo. Os privilégios são uma base que esmaga os pilares de
qualquer construção democrática. No Brasil, a justiça luta por seus próprios privilégios,
afastando-se cada vez mais da sociedade. Ao fazer isso, perde seu significado, e a demo-
cracia começa a despedaçar-se desde seu coração. Combater a desigualdade não é apenas
executar políticas públicas que corrijam certos padrões, é também a mudança cultural de
hábitos institucionais, como os privilégios históricos desfrutados pelo Poder Judiciário.
Uma elite que fortalece sua continuidade institucional.
O exemplo mais recente disso foi a votação do STF em que se decidiu incluir um
aumento de 16,38% para os próprios ministros no orçamento de 2019, indicando uma
forma de recompor as perdas sofridas pela inflação, em plena crise brasileira, com um
impacto de mais de 700 milhões de reais para o Poder Judiciário (OLIVEIRA, 2018)20.
Um aumento rejeitado antes do Golpe pela Ex-presidenta Rousseff em 2015. Como indica
o professor Diego Werneck Arguelhes (2018, s/p), os juízes não possuem, “porém, um di-
reito constitucional à indexação automática desse reajuste à inflação, ou à irredutibilidade
de padrão de vida”. Existem motivos políticos no processo. Politicamente, os juízes em
geral e os Ministros do Supremo em particular dispõem de poderes que desequilibram as ne-
gociações. Concordamos com o professor Werneck Arguelhes (2018, s/p), para quem, em pri-
meiro lugar, eles têm o destino dos políticos em suas mãos a partir do mundo pós-Lava-Jato.

20
O texto foi aprovado pela Câmara dos Deputados, mas ainda aguarda aprovação no Senado em 9 de
agosto. Salienta-se que a remuneração de um ministro do STF é o teto constitucional do serviço público.
Assim, existirá um efeito cascata no Ministério Público, no Legislativo e no Executivo. O impacto variará
dos R$ 3 aos 4 bilhões anuais, de acordo com estimativas de técnicos do Congresso Nacional.

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Em segundo, os juízes brasileiros já mostraram que, na ausência de aumentos


formais em seus salários, podem e vão encontrar meios informais de avançar
seus interesses unilateralmente. O Supremo tem colaborado para consolidar
no país uma realidade paralela ao texto da Constituição no tocante aos salá-
rios dos juízes.

Como indica Werneck Arguelhes (2018, s/p): “ou os parlamentares dão o aumento
por mudança formal orçamentária e legislativa, ou assistem enquanto variadas peças da
criatividade remuneratória judicial vão sendo direta ou indiretamente chanceladas pelo
Supremo. Se o aumento não vier sob a forma de lei, virá como gambiarra”. Ponto. Mas
lembremos, não são só os Ministros do STF que têm profunda falta de conexão com a
realidade. As associações de juízes sobre a imperiosa necessidade do aumento declararam
“insuportável perda monetária” (QUEIROZ e MENDES, 2018). Salientamos que a pro-
posta de reajuste salarial beneficia uma categoria que faz parte do 1% mais bem pago do
país. Numa pesquisa recente sobre o tema, mostrou-se que 97% dos membros do Minis-
tério Público e do Poder Judiciário receberam remunerações mensais superiores ao teto,
e os benefícios corporativos representam cerca de 60% da remuneração de cada membro
(MADEIRO, 2018). Como ironicamente indica Huber Mendes, “os magistrados não pre-
cisam ter uma vocação para a pobreza” (CONRADO, 2018). Contudo, eles precisam de
critério, razoabilidade e proporcionalidade, além claro, do norte da justiça social.
Atualmente, a democracia brasileira está contra as cordas, se é que existem as
cordas ou a democracia. A continuidade e o fortalecimento dos privilégios aniquilam
qualquer possibilidade de construção real. Nesse sentido, uma investigação recente, de
setembro de 2017, indica que 43% dos brasileiros apoiam uma intervenção militar no Bra-
sil (LONDRES, 2017). Uma das taxas mais altas da região. Segundo o Latinobarómetro
(2018), o Brasil é o país da região menos satisfeita com a democracia, apenas 13%. Além
disso, de acordo com o Instituto Paraná Pesquisas, 74% dos brasileiros apoiam a interven-
ção militar no Rio de Janeiro (LONDRES, 2018). Um horizonte muito complicado. Assim
que houver ostentação de privilégios no Brasil, a democracia será mais estética do que
material. E, assim, outros regimes, como o verde-oliva, podem se tornar uma alternativa
real. Então, todos nós vamos precisar de auxílio.

REFERÊNCIAS

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SILVEIRA, D. Crise no mercado de trabalho faz renda do brasileiro encolher em 2017,
aponta IBGE. G1, O Globo, Economia, 11 de Abril de 2018. Disponível em: https://glo.
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81
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

SILVEIRA, D. Metade dos trabalhadores brasileiros tem renda menor que o salário mí-
nimo, aponta IBGE. G1, O Globo, 2017. Disponível em: https://glo.bo/2k973dE.
VILLAS BÔAS, B. Pobreza extrema aumenta 11% e atinge 14,8 milhões de pessoas.
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WERNECK ARGUELHES, D. O reajuste dos juízes: o Supremo, a bolsa e a espada.
JOTA, Brasil. 18 de agosto de 2018. Disponível em: https://bit.ly/2OQu9zv.

82
DA FILOSOFIA COMO MODO SUPERIOR
DE DAR O CU: ARTE, VIOLÊNCIA E CENSURA
EM TEMPOS DE CÓLERA

Djalma Thürler

INTRODUÇÃO

Nietzsche é, sem sombra de dúvida (epa!), queer. O Zara podia ser o santo
padroeiro do queer. Heiddeger podia ter sido, mas bobeou. Hegel nem me
falem. Desculpem, mas a dialética não dá pra queer. Tem um devir muito qua-
drado. Ou redondo demais. Tanto faz. Kierkergaard, no seu côté anti-Hegel,
até podia ser sócio (mas, cuidado, o queer não admite sócios!). Mas aquela
transcendência toda atrapalhou um pouco. Ou muito. Dos antigos, Heráclito
é puro queer. Já Parmênides entre o ser e o não ser, não tem nenhuma chance.
Platão e Sócrates formam uma dupla muito certinha, coitados! Aqueles diálo-
gos todos: tão fingidinhos, tão arrumadinhos! Nem precisa dizer que não dá
pé. Dos mais recentes, Bergson, contrariamente às aparências, era dos mais
queer. O Jean-Paul e a Simone chegaram a ser. Mas, depois, sei não, acho que
bobearam. Derrida, a gente gostaria muito que fosse. Mas ele parece tão sério!
Já Deleuze, aquele “bêbado de água cristalina”, fica difícil ser mais queern do
que isso (LOURO, 2008, p. 86).

Quando aceitei o convite das organizadoras deste livro, estava escrevendo meu
atual projeto de pesquisa, intitulado Dramaturgias monstruosas: peças para uma política
cultural das margens, e me debruçava sobre acontecimentos teatrais de 2017 – na verda-
de, a censura a artistas e obras que tratavam questões de gênero e sexualidade. Referia-me
à suspensão da exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira21,
em Porto Alegre, após mobilização em redes sociais e queixas de apologia à pedofilia e à
zoofilia de trabalhos de artistas consagrados, como Adriana Varejão, Cândido Portinari e
Lygia Clark; à polêmica em torno da performance Le Bête, do artista Wagner Schwartz,
na abertura da Mostra Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna (MAM)
de São Paulo; e à prisão do artista Maikon K em razão de sua performance DNA de DAN,
no Museu Nacional da República, em Brasília, entre outras. Esses foram apenas alguns
episódios que denunciam as tensões e as disputas em torno dos significados da arte e de
sua relação com a sexualidade e a liberdade.

21
Graças a uma plataforma de financiamento coletivo, a exposição teve nova estreia na Escola de Ar-
tes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, depois que o prefeito daquela cidade a proibiu nos seus
aparelhos culturais. Sobre a nova estreia, vale a leitura da crítica de Daniela Name, “Falta ‘queer’ em
‘Queermuseu’”, disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/critica-falta-queer-em-que-
ermuseu-22992951.

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Não poderia deixar de destacar, com ênfase, a saga épica da atriz travesti Renata
Carvalho e a trajetória da peça Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu. Para quem não
lembra, a representação de Jesus Cristo como travesti mobilizou a opinião pública para a
peça, resultando em inúmeros episódios de disseminação de discursos de ódio e conflitos
com grupos religiosos que mobilizam o aparato jurídico do Estado para impedir as apre-
sentações do espetáculo em diversas partes do país.
Certamente, a peça pode ser assumida como exemplar no que se presta a revelar
a pressão de setores conservadores para a retomada da censura, já que tem acumulado
um conjunto de decisões judiciais ou mobilizações coletivas que visam seu cancelamento,
como se verifica no histórico de sua passagem por diversas cidades brasileiras. Em Sal-
vador, o espetáculo, que integrou a programação da 10ª Edição do Festival Internacional
de Artes Cênicas da Bahia (FIAC), em novembro de 2017, teve sua segunda apresentação
cancelada por uma liminar que impediu a Fundação Gregório de Mattos de mantê-lo na
programação. Eu estava lá, pois, quando soubemos por meio da imprensa do cancelamen-
to, corremos todos para o Espaço Cultural da Barroquinha, onde a peça seria apresentada.
Do lado de fora, artistas se acotovelavam e insistiam em não acreditar, uma onda nostál-
gica tomava conta do espaço, enquanto passava por nossas cabeças a velha dramaturgia
escrita pela ditadura militar, nós éramos os Beneditos Silva, de “Roda Viva22”, as Neuzas
Suelis23, que não acreditavam que o presente repetia o passado. Do lado de dentro, produ-
tores do festival, da peça e a própria atriz se mobilizaram e pensaram em estratégias de
resistência à suspensão do evento. Eles saem e avisam: “Há brechas na liminar, eles proí-
bem que a peça seja encenada aqui nesse teatro, mas não a proíbem em nenhum outro da
cidade”. Fomos para o Teatro do Goethe-Institut, no Instituto Cultural Brasil Alemanha
(ICBA)24, local em que outros artistas já se encontravam e, em pouco tempo, uma horda,
uma grande “família amoral” se reunia em vigília em suas dependências.
Cena semelhante também ocorreu com a peça do Jesus Trans, na cidade de Gara-
nhuns (PE), onde o evento teve inicialmente sua apresentação cancelada da programação
oficial do Festival de Inverno daquela cidade pelo Governo Estadual de Pernambuco, em
julho de 2018; porém, uma liminar judicial do Tribunal de Justiça de Pernambuco do dia
24 do mesmo mês exigiu a reintegração imediata do espetáculo ao Festival. Outra liminar,
por sua vez, foi expedida para o dia da exibição, o que causou muita revolta por parte da
produção, da atriz e do público presente, que, aos gritos de “fascistas” direcionados aos
agentes policiais, mantiveram (à revelia) a apresentação, descumprindo a ordem judicial.

22
Refiro-me ao espetáculo Roda Viva, de Chico Buarque.
23
A personagem é da peça Navalha na carne, de Plínio Marcos.
24
Em Salvador, o ICBA é conhecido como um espaço de ocupação artística e de resistência política,
especialmente porque entre os densos anos de 1971 a 1978, sob a gestão de Roland Schaffner, abrigou
experiências de teatro, música, dança, artes visuais que enfrentaram a ditadura militar e lutaram pela
liberdade de expressão.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Mobilizadas por movimentos jovens da extrema-direita, como o Movimento Brasil


Livre (MBL), em associação a conservadores religiosos, essas tentativas de silenciamento
nos fizeram ter mais segurança ainda de que, sim, a arte é capaz de mudar subjetividades.
E é dessa mudança que os conservadores têm medo, por saberem que, atualmente, no
Brasil ocorre uma efervescência artística que propõe outras narrativas sobre os corpos
não normativos25.
Todos esses fatos serviram de base e inspiração para a escrita da peça teatral da
filosofia como modo superior de dar o cu, de minha autoria. A peça, que tem o título
homônimo ao texto de Paul B. Preciado no Manifesto Contrassexual (2014), é, original-
mente, uma crítica e principal razão de seu afastamento de Deleuze, sobretudo quando
Preciado (2014, p. 177) ataca o filósofo francês, especialmente “quando [ele] fala de uma
experimentação sem prática, como no caso da bebedeira sem álcool ou do nomadismo
sem sair do lugar”.
da filosofia como modo superior de dar o cu – a peça – é uma forma de constru-
ção dramatúrgica de estética coral, espécie de devir rapsódico do teatro contemporâneo,
que coloca em questão a própria ideia de composição e aparece ligada a procedimentos de
escrita, como a montagem, a hibridização, fragmentos narrativos, suspenção da dimensão
lógica e comunicativa da linguagem, instauração ostensiva do silêncio, fragmentos de
notícias, poemas, canções, imagens em movimento, narrativas, depoimentos, colagem,
coralidade, ou seja, “obras onde se cruzam falas, ruídos e gêneros (...) marcadas por ope-
rações de escuta, e pela constituição de uma espécie de câmara de ecos, na qual ressoa o
rumor (...) de uma multiplicidade de vozes, elementos não verbais, e de uma sobreposição
de registros e de modos expressivos diversos” (SUSSEKIND, 2013, s/p).

25
Esses artistas se utilizam de distintas linguagens. Para citar alguns exemplos, numa lista bastante limita-
da: Performance: Yuri Tripodi, Jota Mombaça, Sarah Panamby, Miro Spinelli, Pêdra Costa. Teatro: Teatro
Kunyn, Teatro da Queda, As Travestidas, Teatro Oficina, ATeliê VoadOR, Coletivo das Liliths, Música:
Linn da Quebrada, Caio Prado, Alice Guél, Ava Rocha, Daniel Peixoto, As Bahias e a Cozinha Mineira,
Hiran, Hendson. Coletivos: Casa Monstra, Selvátiva, Afrobapho. No cinema, além de Gustavo Vinagre,
há nomes como: Tavinho Teixeira, coletivo Surto & Deslumbramento, Hilton Lacerda, Marcelo Caetano,
entre outros. Para compreender melhor essa emergência artística, recomendo a leitura de Colling (2018)

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Assim, utilizo na peça o conceito de transversalidade, de Deleuze e Guattari


(2010), como forma de pensar possibilidade de certas experiências de “devir” minoritário
e, por conseguinte, a sociedade para além dos binarismos. Além de Deleuze e Guattari,
conclamo, também, Foucault, Butler e Paul B. Preciado em um exercício de escrita dra-
matúrgica como ato de criação no sentido deleuzeano, como produção, invenção de novas
possibilidades de vida e pensamento em uma dramaturgia monstruosa26 (THÜRLER,
2018), dramaturgia máquina de guerra (DELEUZE & GUATARI, 2010) que propõe uma
fricção, um enfrentamento a todo tipo de universalismo e de totalidade que pode ser pen-
sada a partir de teorias pós-estruturalistas e pós-identitárias, e em, nosso caso, a partir
da Teoria Queer27 (MISKOLCI [2007], LOURO [2010], PRECIADO [2011], BUTLER
[2003], SALIH [2002]).
Uma dramaturgia monstruosa faz do pensamento um modo de vida e experimenta
a vida, na escrita, na palavra-chicote (NOVARINA, 1999 ) das vozes subalternizadas,
nos modos de vida outros que desterritorializam verdades e hegemonias euro-nortecên-
tricas repetidas e reiteradas ao longo do tempo e da história, como as noções de gênero,
de sexualidade, de ciência, sociabilidade e conhecimento e, assim, cria figuras em fluxos,
movimentos, linhas de fuga, devires, processos de subjetivação das minorias, dos seres
abjetos, das multidões queer, que, na cena, inquietam, perturbam, incomodam estranham
e intrigam. É, também, uma opção decolonial epistêmica e significa, entre ouras coisas,
aprender a desaprender (THÜRLER, 2018). E, nesse movimento, convida os espectadores
a serem capturados pelo “e”, não mais pelo “ou” e, assim, diferente do que ensinou Cecília
Meireles em seu poema Ou isto ou aquilo, poder refletir sobre os modos de vida deste e
daquele modo, abrindo-se ao múltiplo, às infinitas conexões e entrecruzamentos.
A dramaturgia monstruosa, na esteira do pensamento de Gilles Deleuze (1992),
opera à revelia do Belo-animal, das tradições dramatúrgicas clássicas, buscando gerar
formas de escrita que se abram a indeterminações, imprevisibilidades. Um texto monstro
é um texto composto, múltiplo, disforme, sempre variado, descentrado e deslizante e, nes-
se sentido, é terreno movediço de enfrentamento e de contestação, como é a dramaturgia
de “da filosofia como modo superior dar o cu”, que abre possibilidades para pensarmos a
homossexualidade molecular (DELEUZE & GUATARRI, 2010) como lugar privilegiado,
como lugar filosófico da agência, fazendo da própria homossexualidade uma condição
de pensamento sobre a vida e, por meio da transversalidade, pensar na condição abjeta,
nômade e marginal das multidões queer.

26
O conceito de dramaturgia monstruosa reivindica a individualidade fora dos moldes e regras rígidas da
normalidade, dos convencionalismos sociais e culturais e, assim como os movimentos feministas promo-
veram o questionamento do que se acreditava ser uma ordem natural das coisas, a dramaturgia monstruosa
também questiona o sistema binário sexo-gênero e a suposta naturalidade dos sexos, propondo expandir o
olhar para as infinitas possibilidades de ser. Ser monstro é um ato verdadeiramente revolucionário porque
estamos falando da aparição de corpos, seus modos de ver, sentir e perceber que estiveram encobertos pela
longa tradição colonial (THÜRLER, 2018).
27
Destacamos que os estudos queer surgem nos anos 1980 alinhados às lutas sociais dos movimentos
gays e lésbicos, os quais contestavam a fixação das identidades sexuais e de gênero e, ainda, os discursos
pautados na heteronormatividade como regulatórios das relações entre homens e mulheres. Queer, em sua
etimologia original, pode ser traduzido como “estranho”, “esquisito”, “singular”, ou seja, aquilo que foge
dos padrões, que não é ou não está da maneira que se espera.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

A leitura do texto da peça da filosofia como modo superior dar o cu foi realizada
no dia 26 de julho de 2018, no Ateliê de Bolso, laboratório de pesquisa da ATeliê voadOR
Companhia de Teatro, nas dependências da Universidade Federal da Bahia, e fechava o
ciclo de leituras dramáticas, denominado Leituras Voadoras. O ciclo contou ainda com
as leituras das seguintes peças: Gisberta, de Eduardo Gaspar, Pobre super-homem, de
Brad Fraser, Minha irmã, de Marcus Barbosa e História de amor de Jean-Luc Lagarce. O
conjunto dessas peças entende que os sentidos sobre o corpo são construídos na cultura
e, por isso, compreendem o campo cultural como espaço privilegiado para ação políti-
ca, por possibilitar a reivindicação e a criação de outros discursos sobre corpo e desejo.
Essas peças nos permitiriam entender o teatro como possibilidade de ação política, criar
novos modos de vida, outros discursos sobre o mundo, as pessoas, seus desejos. Contudo,
nenhuma delas causou repercussão negativa, muito diferente do que aconteceu com da
filosofia como modo superior dar o cu.
Do dia para a noite, viramos alvos das milícias digitais, e as redes sociais (Figuras
1 e 2) tornaram-se um esgoto do ódio, uma máquina de ofensas. A Secretaria de Cultura
do Estado da Bahia, no dia seguinte à leitura, cobrou o texto, e um clima de censura e
patrulha começava a se instaurar. Até onde o Estado pode patrulhar a liberdade de ex-
pressão artística se, como se sabe, a Constituição, em seu art. 5º, IX, assegura que “é livre
a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente-
mente de censura ou licença”?

Figura 1: O zumbi Janeilson Santos desferindo seu ódio nas redes sociais.
Fonte: Print do autor.

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Figura 2: O zumbi Bernardo P. Küster, tentado ser engraçado através do seu ódio nas redes sociais.
Fonte: Print do autor.

A leitura da peça desencadeou centenas de compartilhamentos em páginas da ex-


trema-direita e pânico moral, e a subsequente cruzada de criminalização cultural movida
pelo MBL, em especial, bem como outros simpatizantes da causa impetraram verdadeira
campanha de incitação de ódio, mas, no fundo, revelaram sua profunda incapacidade
hermenêutica, porque esses pseudoliberais não só atacam a liberdade de expressão, como
também demostram uma vasta ignorância em relação às formas disruptivas da arte falar
de comportamento, crenças, valores. O nome disso não é liberalismo, é fascismo, literal-
mente (BENTES, 2017).
Deleuze e Guattari (2010), autores que emprestam suas vozes para o texto da fi-
losofia como modo superior de dar o cu, juntam-se aos consagrados Portinari, Volpi e
Lygia Clark que, na exposição QueerMuseu, também, do dia para a noite, tornaram-se
degenerados.
Esse exército de zumbis (na expressão de Bentes, 2017) liberais, na verdade, não
passa de reacionários que desprezam a liberdade e os direitos fundamentais e querem
impor sua visão de mundo retrógrada aos demais, deveria

ouvir Chico, Caetano e Gil, assistir a um filme de Kleber Mendonça Filho, ou


com Wagner Moura e Sonia Braga, ler um Raduan Nassar e um Veríssimo, ir
a uma peça de Aderbal Freire Filho, Zé Celso, e buscar poesia, tentar viajar
pelo mundo da fantasia e da beleza, do sublime e do grotesco com que a arte
nos confronta, nos modifica, nos provoca. (TAVARES, 2016, s/p).

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Se for possível atribuir a Bernard Shaw a ideia de que a Revolução Industrial co-
locou o mau gosto ao alcance de todos, podemos atualizá-la e dizer que, sem dúvidas, a
internet amplificou o alcance e a intensidade dos pânicos de uma forma que antes seria
inimaginável e tornou mais ostensiva a imbecilidade de qualquer um. Deveriam, pois,
sair “das digitações odiosas de seus teclados, da monotonia maniqueísta dos telejornais
e revistas semanais, e frequent[ar] concertos, exposições, teatros, cinemas (TAVARES,
2016, s/p).
Parece que após o golpe do impeachment, o Brasil voltou a ser uma “máquina de
retrocessos [...] primária e boçal” (BENTES, 2017), e as formas expressivas marginais que
afrontam as hegemonias coloniais passaram a não ter mais espaço na cidade monitorada
e disciplinada e, por isso, são consequentemente atacadas, uma espécie de estética da
autoridade (FERRELL, 1996) em favor e defesa do vocabulário visual da ordem moral
(AUSTIN, 2010) de uma sociedade doente que não suporta a democracia, que não suporta
a existência de outros corpos que importam.
Porém, o “parlamento dos corpos”, mais uma vez com Bentes (2017), não esmo-
rece, a lei do desejo e a erotização da política são difíceis de censurar ou calar, por isso
publicamos o texto da peça da filosofia como modo superior dar o cu. Ao fim, podemos
dizer que, apesar de tudo, estamos orgulhosos: não calamos diante da cultura do ódio, da
violência e da ignorância. E continuamos fazendo Arte, mesmo que questionemos o que
Brecht se perguntou na primeira metade do século passado: que tempos são esses, em que
temos de defender o óbvio?

DA FILOSOFIA COMO MODO SUPERIOR DE DAR O CU

“C’est toujours avec des mondes que l’1on fait l’amour”

Deleuze

Sinopse: A peça é o resultado de um longo processo criativo que Djalma Thürler


experimentou nos últimos anos, motivado pela leitura de “O Anti-Édipo”, de Deleuze e
Guattari. É uma série de sofisticadas costuras, entre ficção e realidade, razão e emoção,
delírio poético e discurso científico. No palco, Thürler é um misto de professor e cientista,
e a experiência oscila entre o teatro e a conferência, numa ausência de limites que conta-
mina o projeto, da dramaturgia à produção.
[O público entra ao som de música, que permanece como fundo para o texto seguinte]

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Desde o ano passado, quando eu assisti o espetáculo solo da Georgete Fadel, “Afi-
nação I”, no FIAC, eu passei a pensar sobre a forma que esse espetáculo teria e que, de
algum modo, eu senti que ele se assemelharia muito àquela aula antiespetacular. Aula,
sim, ou palestra ou conferência, porque, um detalhe importante, quase todas as pessoas
que eu li para a criação desse texto foram professores. Deleuze, por exemplo, era um óti-
mo professor, dava aulas em Paris na Universidade de Vinccenes, que ficou muito famosa
pelo importante papel que teve na rebelião estudantil de maio de 1968. Alguns anos mais
tarde, essa famosa universidade mudou-se para um bairro operário, na periferia de Paris
e ali, num galpão pré-fabricado, com piso de terra batida e sem calefação, dezenas, cen-
tenas de estudantes de todos os cantos do mundo amontoavam-se para ouvi-lo, porque há
uma verdadeira diferença entre a palavra viva, que se desdobra aqui e agora, com vocês
à minha frente, e a nossa palavra diante do computador ou do caderno. Posso ter afetos
extremamente fortes diante da folha de papel ou da tela, mas há algo a mais na palavra
viva e na presença física, essa filosofia viva que pulsa, que vibra.
E Deleuze era parecido com Sócrates. Ele sabia que cada um tem de aprender por
si mesmo e que, assim, ensinar não é comunicar nem informar, mas discorrer, deixar o
discurso fluir diante dos ouvintes para que o próprio ouvinte decida em que momento en-
trar no fluxo do pensamento, que momento o seu pensamento começa a pensar. E é esse
aqui o meu desejo, que em algum momento dessa noite, durante a minha fala, vocês, que
chegaram virgens, vazios, nus, que nada sabem sobre o que trataria aqui, cheguem a al-
guma coisa na discussão, despertem no momento exato, e o momento exato é o momento
que lhes convier.
Suas aulas eram muito ensaiadas, como um ator para conseguir enfiar na cabeça o
que tem de dizer, de modo que, quando desenrola diante do público, apaixona-se pelo que
diz. Somente assim é possível a inspiração, esses 10 minutos de inspiração, no máximo,
que justificam todo um trabalho anterior de ensaio. Quando comecei a ensaiar esse texto,
eu sabia o que eu queria dizer, porque eu me recusava a aceitar que estamos retrocedendo.
Ainda me recuso, é claro. Recuso a pensar que estamos voltando à Idade Média, a achar
que os conservadores são em maior número do que aqueles que lutam pela liberdade. Eu
me recuso, é claro. Nós somos o país da festa, do carnaval, do samba, do axé, da catarse
do futebol, o país de Zumbi dos Palmares, de Tiradentes, Caetano, Gil, Chico, Antônio
Conselheiro, Antônio Brasileiro e Vinicius, Drummond, Bandeira, Hilda, Elza Soares,
Mário Lago, Alcione e Beth Carvalho, Ivete, Anitta e Pablo Vittar. Somos Zé Celso, An-
tunes, Aderbal, Fernandona e Fernandinha, Rogéria, Portinari, Lygia Clark, Niemeyer,
Aleijadinho, Mestre Vitalino. Somos tantos bons e belos, somos aqueles que amam e
distribuem amor, que amor é para gastar, não se economiza amor...

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Acontece que uma minoria triste ocupou o Planalto Central e fez dali seu templo
de inquisição. Como tem mídia espontânea, suas fogueiras da moral e bons costumes são
vistas de longe. Alguns incautos vão atrás do fogo, sem saber que podem se queimar. Se
um deputado, senador ou presidente pode falar de ódio, eles se sentem legitimados para
repetir o mesmo discurso fascista. Precisam urgentemente se sentir parte de algum grupo,
solitários e perdidos que são. E fazem barulho. Só isso. São poucos, são infinitamente em
menor número que nós, mas como não sabem cantar, nem dançar, fazem só barulho (bate
panelas). Eles odeiam tudo aquilo que não conseguem entender. E logicamente, tudo aqui-
lo que não têm. Se não têm amor, é o seu oposto ou seu inverso que vem à tona. O ódio é
tão somente a falta de um amor que nunca tiveram. Nós precisamos trazê-los para a luz.
Não a luz de uma fogueira inquisidora, mas a luz solar. Aquela que dá a vida. Precisamos
fazê-los dançar, cantar, beber, sonhar. Ter alguém para dividir o prazer de querer bem.
Levá-los a uma roda de samba, um bloco de carnaval, uma peça de teatro, um baile funk,
descer até o chão, rebolar e finalmente gozar, trocar fluidos, sujeirinhas, suores, tremores
e coração aos pulos. Aquilo que faz nos sentir vivos. Quem sabe suados, rindo, gozados,
eles compreendam enfim que deus não proíbe nada; que deus é tudo aquilo que ri, que
chora, que vibra, que dança, que pulsa. E que, plenos, não precisam vigiar a vida de nin-
guém. Eu me recuso a desistir desses moços, pobres moços.
[Citação da música “Esses moços”, de Lupicínio Rodrigues].
Essas indagações me levaram à afirmação de que precisamos nos aproximar da
Filosofia como nos aproximamos da Arte. Vejam bem, a ideia de que a filosofia é para
os entendidos em filosofia é a mesma coisa que entender que pintores pintam apenas
para serem admirados por pintores ou que músicos só compõem para serem ouvidos por
outros músicos. O que vocês procuram, esperam quando vão a uma exposição ou a um
concerto? Uma peça de teatro? Esperamos que aconteça um encontro, que o que estamos
vendo ou ouvindo revele-nos um mundo que desejamos capturar ou nos apropriar, porque
a arte cria novas relações com o mundo. Vocês nunca se depararam ao ler um livro, ou
ouvir uma música, ver uma peça com uma sensação de que aquilo parecia nosso, que a
gente poderia ter escrito? [Pergunta para a plateia]. Eu teria inúmeros exemplos a contar,
eu poderia passar a noite inteira contando, essa peça poderia ser reduzida a isso, mas es-
colhi um, de quando eu trabalhava em escolas de samba no Rio de Janeiro [falar da Elza
e do conceito de saudade. Canta “Pedaço de mim”, de Chico Buarque.] E assim, depois
disso, eu passei a tomar muito cuidado com a palavra saudade. A Filosofia é um pouco
como a música, cria novas relações com o mundo e cuida de expressá-las, sem tédio ou
banalidade. E como a música, também é preciso procurar por aquela Filosofia que parece
mais com a gente, que estabelece um encontro positivo com nossas forças vitais, uma
filosofia pop, como diria o Deleuze.
[Projeção / Filosofia Vitalista]

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Essa é a chave para entender a filosofia do Deleuze. Mas não é suficiente pensar
que um vitalista seja simplesmente alguém que ama a vida; isso é vago demais, além de
banal e medíocre. Por isso vou pegar emprestada a ideia do Nietzsche para dizer que vi-
talistas amam a vida não porque estão habituados a viver, mas porque estão habituados a
amar. Roberto Freire também anunciou isso, quando afirmou que é o amor, e não a vida,
o contrário da morte.
A vida vivida parece um roteiro já conhecido, seus aspectos, seus gestos, seus
desdobramentos se repetem e já não nos surpreendem mais, parafraseei agora aquele fa-
moso poema da Marina Colasanti, lembram? Amar a vida aqui é amar diferente, o fluxo,
o perpétuo movimento, uma corrente, um vento. A vida assim vivida é uma vida gozosa,
uma vida que se move por desejos e por alegria. A vida-vento é uma imagem que Deleuze
gostava, mas não era aquele vento forte, ressentido que causa morte e destruição. A vi-
da-vento que nasce do seu próprio movimento, um vento contente, um vento regozijante,
parece aquela música dos anos 1980, quando uma banca de rock pedia para que o vento, a
ventania, os deixasse cavalgar nos seus desatinos, nas revoadas, nos redemoinhos... Ven-
to, ventania me leve sem destino...
Mas quantos de nós podemos ser esse vento regozijante? A impressão que dá é
que não estamos à altura de viver essa grande vida, esse grande movimento, esse vento
que nos arrasta, porque o tempo todo a gente introduz obstáculos, barreiras e nossas vi-
das acabam ficando, assim, apequenadas, medíocres, vulgares. Mas não é livre arbítrio,
ninguém escolhe ser medíocre, a gente é resultado, fruto de uma cultura que nos habituou
a isso. Nós fomos acostumados a manter a vida aprisionada.
O seu amor [Gilberto Gil]

O seu amor /Ame-o e deixe-o livre para amar

Livre para amar / Livre para amar

O seu amor / Ame-o e deixe-o ir aonde quiser

Ir aonde quiser / Ir aonde quiser

O seu amor / Ame-o e deixe-o brincar

Ame-o e deixe-o correr / Ame-o e deixe-o cansar

Ame-o e deixe-o dormir em paz

O seu amor / Ame-o e deixe-o ser o que ele é

Ser o que ele é

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

O que impede que a vida da gente tenha curso e desenvolvimento mais livres são
a linguagem e o julgamento moral. Vou começar pela primeira, a linguagem. A lógica
com que utilizamos para o nosso raciocínio está baseada na dicotomia sujeito e predicado.
A linguagem da nossa cultura divide o mundo entre sujeitos e predicados, os primeiros
existem como apoio aos segundos. Gramaticalmente, consideramos que os predicados
sucedem aos sujeitos, o que acontece porque existem os sujeitos dos quais se predica.
Tomemos como exemplo um silogismo da lógica tal como foi criada por Aristóteles, um
silogismo famoso e simples, que expressa uma ideia do nosso senso comum: “Todos os
homens são mortais. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal”
Já conheciam, não é? Silogismo que se apoia na existência de sujeitos para poder
ser enunciado. Requer um sujeito universal, aqui [aponta na tela]: Todos os homens, e um
sujeito particular, componente do universal: [aponta na tela]: Sócrates. Como consequ-
ência, o que se afirmava de todos os homens – ser mortal – também pode ser afirmado
a Sócrates. Em resposta a esse famoso silogismo aristotélico, Deleuze vai pensar numa
lógica diferente e vai batizar de silogismo da relva, que apode ser formulado da seguinte
forma: “A relva é mortal. Os homens são mortais. Logo, os homens são relva”.
É claro que eu estou falando de metáforas, é porque acho que a vida se expressa
melhor através das metáforas do que por silogismos aristotélicos. Eu sei que não é fácil,
afinal nossa linguagem é a linguagem do ser, dos sujeitos que estão acima da ação, do
predicado, da relação; a linguagem da identidade, dos contornos definidos, que permite
saber se alguém é homem, branco ou ocidental. Menos mal que existe a arte, vai dizer
Deleuze, Arte para dizer que a vida é um predicado, uma relação, que não é algo que está
nos sujeitos, nem cá nem lá, mas alguma coisa que passa pelos, que atravessa os sujeitos.
A vida é o que está de permeio, entre, é aí que se encontra o importante, porque o impor-
tante é o que passa, trespassa, muda, caso contrário estaríamos condenados à banalidade
do senso comum. Quando digo que “uma criança se tornou adulto”, quero dizer que uma
criança devém adulto e entendo esse movimento dentro da lógica do ser e, nesse sentido,
os dois extremos passam a ser importantes nessa frase – criança e adulto –, enquanto
o que acontece no meio, no intervalo entre eles fica nebuloso, ou seja, sabemos o que é
uma criança e um adulto, mas pouco ou nada sabemos a respeito do movimento envolvi-
do nessa transformação. Estimulados por essa lógica, desejamos que as transformações
sejam rápidas, porque o fundamental para a nossa sociedade não está no meio, mas nos
pontos de partida e de chegada [escreve ou projeta algumas palavras, como arvoreçam,
adultizem, mulherizem...].
Para expressar a vida, para não a aprisionar, seria necessário pensar, alterando a
frase “a criança torna-se adulto” para “o tornar-se adulto de uma criança”, em que faze-
mos de um predicado um sujeito ou inventamos um verbo que possa explorar essa rela-
ção, como o verbo adultizar. O importante não é se se é criança ou adulto, mas como me
adultizo, por onde transito, porque o que transita é vida, porque o movimento de adultizar
é um dos movimentos mais vitais que pode, através de mim, avançar.

93
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Agora vou falar sobre outro fator que impede que a vida da gente tenha curso e
desenvolvimento, o julgamento moral. Deleuze, muitas vezes repete uma frase de Anto-
nin Artaud, “É necessário acabar de vez com o julgamento de Deus”. O julgamento de
Deus é o juízo transcendente, aquele que, por força de outra vida mais perfeita, julga esta
nossa vida terrena. Em 2011, eu já pensava sobre isso e publiquei um texto que se chamava
Um pau duro não acredita em Deus! e gostaria de retomá-lo para animar nossa conversa.
Quando disse que “um pau duro não acredita em Deus”, eu quis fazer coro com Artaud,
mas também com o Deus está morto, do Nietzsche. E assim como o filósofo alemão, afir-
mar que a influência da religião e de todos os dispositivos de controle, em nossas vidas,
é cada vez menor. A igreja, os mitos, as ideias, os ritos, a moral, tudo isso está enfraque-
cendo e desaparecendo. Se o amor é líquido, a moral também o é. Não só a religião, mas
também a crença em seus valores metafísicos, a crença em verdades últimas, a crença no
Bem, Belo e Verdadeiro. O que é verdade? O que é correto? E bom, no mundo contem-
porâneo? Não temos mais medo de Deus, ele é fraco, ele é a criação, a invenção de um
povo impotente, sofredor, buscando refúgio. Deus está morto como uma verdade eterna,
como um ser que controla e conduz o mundo, como um pai bondoso que justifica os acon-
tecimentos, como sentido último da existência Deus está morto como um grande ditador
divino que exige obediência de seus servos. Ele já não é uma questão importante para
se tratar, ele já não é uma pergunta para a qual procuramos respostas. Um pau duro não
acredita em Deus provocava uma rasura nesse movimento cultural ocidental, machista,
sexista, cristão e homofóbico que durante séculos mapeou nossos corpos e decretou par-
tes que poderiam ou deveriam ser reconhecidas como espaços legitimados de prazer. Não
à toa, como diria a Beatriz Preciado, a heterossexualidade viu seu cu ser banido, castrado
como espaço de prazer, reduzido apenas a um órgão excretor. Mas não sem antes deixar
sobre si – ou dentro de si – um grande mistério, um véu de curiosidade, ambíguo e fas-
cinante. O cu já mereceu muitas louvações poéticas, haja vista o poeta Rimbaud, aquele
da música do Renato Russo, que revelava Mônica como uma sujeita superior porque “Ela
gostava do Bandeira e do Bauhaus Van Gogh e dos Mutantes, de Caetano e de Rimbaud”.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Dizia o jovem poeta francês:


Obscuro e franzido como um cravo roxo,

Humilde ele respira escondido na espuma,

Úmido ainda do amor que pelas curvas suaves

Dos glúteos brancos desce à orla de sua auréola.

Uns filamentos, como lágrimas de leite,

Choraram, ao vento inclemente que os expulsa,

Passando por calhaus de uma argila vermelha,

Para escorrer, por fim, ao longo das encostas.

Muita vez minha boca uniu-se a essa ventosa;

Sem poder ter o coito material, minha alma

Fez dele um lacrimário, um ninho de soluços.

Ele é a tonta azeitona, a flauta carinhosa,

Tudo por onde desce a divina pralina,

Canaã feminino que eclode na umidade.

Na minha peça O diário de Genet, de 2013, também visitei esse tema e me per-
guntava: Por que o sexo anal é visto com tanto desprezo? Tanto medo, tanto desejo e tanto
ódio? Tão fascinante e tão hipócrita? Sim, porque Genet revela que a vigilância das nossas
bundas não é uniforme: depende se é preta ou branca, se é uma mulher ou um homem ou
uma trans; se esse ato é ativo ou passivo; se é um cu penetrado por um vibrador, uma gar-
rafa ou um punho, se o sujeito penetrado sente orgulho ou vergonha, se penetrou com um
preservativo ou não, se é um cu rico ou cu pobre; se é um cu católico ou muçulmano... São
nessas variáveis que
​​ percebemos uma certa política do cu e como essa política se articula
e o poder é exercido, além de onde são construídos o ódio, o sexismo, a homofobia e o
racismo. Eu poderia citar Gregório de Matos, Hilda Hilst, Zé Celso Martinez Corrêa para
falar do quanto o cu foi empoderado pela Literatura e pela Arte, que sempre foi espaço da
resistência, da transgressão e do confronto, mas o cu também é infame, não à toa um dos
palavrões mais ofensivos da língua portuguesa, afinal quando mandamos alguém tomar
no cu não estamos desejando exatamente o bem para aquela pessoa. O cu, aí, se revela
como o espaço da abjeção, do desprazer, do rebaixamento, da desmoralização, uma zona
invisível, inabitável.

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

E, aqui, volto ao tema desse encontro, porque Deleuze propõe uma discussão que
nos permite pensar a sociedade como um constructo atravessado por dois planos políticos
distintos: o macropolítico molar e o micropolítico molecular; a ordem molar correspon-
de às estratificações que delimitam objetos, sujeitos, representações e seus sistemas de
referência. A ordem molecular, ao contrário, é a dos fluxos, dos devires, das transições
de fases, das intensidades. São dois sistemas de referência que estão em razão inversa:
enquanto um escapa, o outro detém; enquanto um deserta, o outro impede a continuidade
da fuga.
Daí vem a provocação do nosso título, o que nos leva ao conceito de “homossexu-
alidade molecular” de Deleuze, um conceito raramente analisado, mas muito instigante.
Deleuze e Guattari se afirmaram, durante os anos 1970, como “homossexuais molecula-
res”, diziam: “Somos heterossexuais estatisticamente ou moralmente, mas homossexuais
molecularmente.”
Qual teria sido o objetivo da cuidadosa distinção de Deleuze entre dois tipos de
homossexualidades: uma molecular e outra global? Quais são as condições do discurso
público do intelectual francês, que, depois de 1968, tornaram possível a ele e a Guattari se
proclamarem “homossexuais moleculares”, enquanto Foucault, gay e frequentador assí-
duo dos backrooms sadomasoquistas de São Francisco, omitisse qualquer enunciação em
primeira pessoa sobre a homossexualidade? Qual é a “molecularidade” que Foucault não
compartilha com Deleuze e Guattari?
Na Universidade de Vincennes, hoje Paris VIII, nos anos 1970, sem ser homosse-
xual global, Deleuze acompanhou e sustentou a luta e se transformou no mentor filosófico
das bichas, inclusive, da Frente Homossexual de Ação Revolucionária (FHAR). Não se
usava ainda o conceito de “lugar de fala”, mas uma bicha inimiga de Deleuze teria en-
frentado ele, duvidando mesmo da verdade, filosófica e política, de um discurso sobre a
homossexualidade que não conhecesse a fecalidade. A bicha se chamava Cressole e dizia
que essa ideia de “homossexualidade molecular” de Deleuze era “puro teatro, simulacro
calculado”. Resta saber, no entanto, por que Deleuze, um “senhor correto e simpático”,
teria tido a necessidade de se identificar como homossexual e de se separar de tal identi-
ficação mediante o adjetivo molecular.
Ao se definir como “homossexual molecular”, Deleuze acionaria o conceito de
transversalidade, que permitiria que se pense ou escreva sobre determinados fenômenos
sem tê-los vivido, tratando-se de possibilidades de experiência de devir. Segundo Deleu-
ze, é possível pensar ou escrever transversalmente sobre certos fenômenos sem passar
pela experiência real, do mesmo modo que é possível viajar sem sair do lugar, um pen-
samento que postula que qualquer efeito de um processo sempre pode ser produzido por
outros meios. Um exemplo citado com frequência por Deleuze seria o chamado “porre de
Henry Miller”, um experimento que consiste em chegar à embriaguez bebendo água. Em
Deleuze, a transversalidade adquire nova força, convertendo-se em condição de possibi-
lidade de certas experiências de “devir”.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Na resposta de Deleuze a Cressole, ele disse:

Mana, menas, a alusão à transversalidade é clara: minha relação com as bi-


chas, o que isso tem a ver com os assuntos, se obtenho em mim efeitos análo-
gos aos deles por outros meios? (…) Eu não devo nada a vocês, nem vocês a
mim. Não há nenhuma razão para que eu frequente seus guetos, já que tenho
os meus. O problema nunca consistiu na natureza deste ou daquele grupo ex-
clusivo, mas nas relações transversais em que os efeitos produzidos por tal ou
qual coisa sempre podem ser produzidos por outros meios.

O interessante desse argumento é que, assim, se despistando dos guetos, Deleuze,


ao menos de forma retórica, provoca uma cisão das linhas duras da política de identidade.
Aparentemente, ele não está interessado nos discursos que são produzidos em torno da
identidade. Segundo ele, “o argumento da experiência reservada é um mau argumento
reacionário” que peca por “raso realismo”. O ideal, pensava Deleuze, é drogar-se com um
copo d’água, que se possa passar por tudo sem que nessa empreitada entreguemos a alma,
que se aumentem nossas possibilidades de ação, de trabalho, de criar mundo; romper com
a lógica do ser e passar a lógica rizomática da conjunção. Não procurar quem somos, mas
aquilo que podemos somar graças ao “e”, substituir o movimento vertical do “é” pelo
movimento horizontal do “e”, “e”, “e”, “e”.
O problema da filosofia, dirá Deleuze, não é tanto determinar quem pode pensar
ou falar sobre o que (olha aí a celeuma sobre o “lugar de fala” mais uma vez”), e sim como
criar um conjunto de condições que permitiriam a todos e a cada um a experiência do
outro, especialmente o outro defenestrado dos espaços de poder e com quem temos, de
verdade, uma dívida histórica, mas, também, metafísica, e eu explico melhor e mais uma
vez vou recorrer ao Aristóteles. Aristóteles dizia que a “política é arte que nos faz huma-
nos” e, ao nos tornar humanos, separa-nos dos outros animais, de acordo com sua lógica
de gênero próximo, diferença específica.
Explico: Aristóteles tinha uma fórmula para poder dar uma definição que era “gê-
nero próximo, mas diferença específica”. Essa fórmula o ajudava a dar definições no
campo da linguagem.
Gênero próximo: humano;

diferença específica: racional.

Gênero próximo: humano;

diferença específica entre os humanos: político.

O contrário disso é o idiota – que, portanto, é menos humano.

97
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Ou seja, o que nos torna mais humanos é justamente a capacidade do exercício da


política como convivência e como conexão de uma vida. Aquele que não convive, que
não se espanta com a arte do encontro, que não se permite à epifania da diversidade, aque-
le que está fechado em seu muro, esse é o verdadeiro idiota, a expressão idiótes, em grego,
significa aquele que só vive a vida privada, que recusa a política, que diz não à política; e
a política, em grego, é exatamente aquele que participa, que se interessa pela vida pública,
o que se abre para o conjunto: o idiota, então, é aquele que não participa da política.
Nesse sentido, o idiota é primo-irmão do burro, que é aquele incapaz de dialogar;
o burro é incapaz de colocar-se no lugar do outro. Mas eu preciso investir um pouquinho
mais de tempo para vocês entenderem que não é uma ofensa ou um xingamento, ao con-
trário, o que eu pratico aqui é pensar um pouquinho sobre a linguagem e como a lingua-
gem nos ajuda a entender nosso papel político, qual seja, o de reconhecer o impacto e a
potência de se olhar pra fora, ao redor.
Kant, considerado o principal filósofo da era moderna, escreveu em seu Ensaio
sobre as Doenças Mentais que a burrice é uma doença, e é importante dizer que Kant
não fala nada contra as doenças mentais; ao contrário, elas podem ser muito ricas, mui-
to frutíferas. Um bom exemplo foi o trabalho e o legado da psiquiatra alagoana Nise da
Silveira, morta em 1999. Ela enxergou a imensa capacidade, a extrema riqueza de seres
humanos que estavam “no meio do caminho” entre a loucura e a exclusão total, entre o
aceitável e o abominável. Não é dessa debilidade, dessa doença que Kant fala quando fala
do burro. Um burro é diferente, a ele falta entendimento, aquela capacidade de pensamen-
to que nos permite conversar com os outros, entender o que dizem e até mesmo o que não
lhes dizemos. A burrice, como a idiotice, implica uma falta de abertura para o outro, uma
permeabilidade, o burro diz: “nada me penetra, nada me inunda ou me transborda nada
me move ou me afeta”.
O burro tenta, se esforça, mas não consegue entender o ponto de vista das outras
pessoas, a gente sofre, porque a burrice “não faz sofrer o burro, mas faz sofrer o outro”. O
burro não consegue entender, porque ele não pode, ele é incapaz de entender, ele se esfor-
ça, tenta, lima, sua, como um parnasiano diante da folha em branco, tenta, tenta, mas não
consegue. Vocês são capazes de compreender a impotência de uma pessoa que não pode
entender a outra, uma outra opinião? O burro é tão infeliz, mas tão infeliz, porque ele não
tem sequer a esperança em entender o que o outro está falando?
Essa impotência, essa incapacidade de se colocar no lugar do outro, isso é burrice.
E o burro não pergunta, não é curioso, não sai às ruas, porque, vizinho do idiota, está
fechado em si, opaco, sem brilho. E para contrapor essa opacidade, a burrice se torna pre-
potente, claro, uma estratégia de sobrevivência; como ele não consegue entender o outro,
a visão do outro nunca é válida, é sempre menor, inferior, desprezível, abjeta, assim como
a sua identidade alternativa, a sua diferença religiosa, a sua cor, a pessoa com quem você
escolheu fazer sexo essa noite, tudo isso é abjeto aos olhos do burro, tudo menor, tudo um
lixo. Por isso o burro foge dos debates, cultua a ignorância e não se encaixa num mundo
tão plural como o nosso, que nos desafia o tempo todo.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Porque que eu quero encerrar com esse print, esse depoimento de um jovem trans?
É que não podemos pensar em uma sociedade justa sem reconhecer que algumas pessoas,
algumas identidades, foram defenestradas de um processo histórico de direitos. E que
num mundo tão plural como o nosso, tão diverso, tão preto, tão feminino, tão veado, tão
sapatão, tão pobre, analfabeto, gordo, não podemos mais nos permitir a ficar numa ilha,
isolados, burros e idiotizados.
Precisamos nos intoxicar; para utilizar uma expressão do Miguel, eu também pre-
ciso ser aquele que não me constitui e, por isso, retirei há tempos a palavra tolerância
do meu vocabulário, ela significa muito pouco para quem pensa de maneira molecular e
transversal como Deleuze me ensinou. Intolerância sempre me pareceu um pouco prepo-
tente, uma certa permissão, autorização de alguém superior, em permitir, em tolerar algo,
alguém, alguma situação. Tolerar é um engano.
Eu proponho a intoxicação, quero me intoxicar cada vez mais, porque a toxina é
um devir revolucionário. Os tóxicos são belezas inférteis, impossíveis e passionais. A re-
volução somos nós, rotina dilatada, cotidiano corajoso; rascunho de História que, passado
a limpo, a contrapelo, é vida. E como diria um famoso idiota, dessa vez do Dostoievski,
só a beleza salvará o mundo.

REFERÊNCIAS

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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

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_______________. Dramaturgias monstruosas – peças para a construção de subpolí-
ticas culturais. Projeto Universal CNPQ. Salvador, 2018.

100
AUSTERIDADE E POLÍTICAS SOCIAIS NO
GOVERNO TEMER: UM PANORAMA SOBRE AS
POLÍTICAS DE SAÚDE E EDUCAÇÃO
Michelle Fernandez
Andressa Pellanda

São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, trabalho, a moradia,


o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à materni-
dade e à infância, assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
(CF, art. 6º)

A desigualdade, nas suas mais diferentes formas, é uma característica intrínseca


à sociedade brasileira. Ela possui diferentes facetas: desigualdade de renda, de gênero e
raça, de acesso a bens e serviços; desigualdade econômica; desigualdade de condições de
trabalho e, ainda, desigualdades regionais. A Constituição de 1988, chamada de Consti-
tuição Cidadã, prevê diversos mecanismos que teriam a capacidade de atenuar as desi-
gualdades no Brasil. Na carta constitucional marcada pelo garantismo, os direitos sociais
aparecem atrelados à condição de cidadão. As políticas públicas caracterizam-se como
ferramenta para a efetivação desses direitos e, consequentemente, para diminuição das
desigualdades sociais brasileiras.
Enfrentar as questões que aprofundam as desigualdades no Brasil deveria ser
agenda prioritária da classe política. Entre essas questões, os temas vinculados à saúde e
à educação devem, obrigatoriamente, ser colocados no centro da discussão por conforma-
rem o que poderíamos chamar de núcleo duro dos direitos sociais. Porém, há cerca de 3
anos, os indicadores sociais do Brasil estão apresentando significativas pioras. O discurso
da austeridade econômica pregado pelo Governo Temer como forma de seguir rumo a um
novo projeto de desenvolvimento tem afetado significativamente as políticas públicas de
saúde e educação e, consequentemente, impactado diretamente na qualidade de vida dos
cidadãos. As práticas políticas em nome dessa ideia passaram a nortear o setor público a
partir de 2016 de forma estruturada com a aprovação da Emenda Constitucional 95, que
impõe uma redução da presença e congela os investimentos do Estado pelos próximos
vinte anos. Essas políticas já mostraram ser seletivas e excludentes, incidindo diretamente
nos ganhos sociais adquiridos pela base da pirâmide social brasileira nas últimas décadas
em termos de direitos sociais.
É inegável a existência de efeitos negativos da política de austeridade fiscal sobre
as políticas públicas de saúde. Temos, por um lado, uma diminuição real dos gastos pú-
blicos federais em saúde como consequência do teto orçamentário e, por outro lado, um
desinvestimento deliberado em determinados programas que até então eram conduzidos
como prioritários pelo governo federal.

101
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Os avanços produzidos pelo SUS em quase três décadas são inquestionáveis. A


ampliação de cobertura da atenção básica para mais de 73% da população; os cuidados
com a saúde bucal; o programa de vacinas e medicamentos; o Serviço de Atendimento
Móvel de Urgência (Samu), o surgimento das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs)
são alguns exemplos do alcance e avanço das políticas pública no Brasil. Porém, atual-
mente, muitos programas, que sustentam o Sistema Único de Saúde (SUS), estão sendo
encolhidos ou extintos por falta de recurso público.
Paralelo a isso, o desemprego acelerado dos últimos três anos aumentou a deman-
da pelo SUS, em razão do empobrecimento dos brasileiros e da consequente diminuição
do número de usuários de planos de saúde. Ao mesmo tempo, os cortes no orçamento da
saúde deixaram o sistema único mais limitado para atender sua antiga demanda. Estamos,
assim, diante de um aumento de demanda com diminuição de investimento público. O
SUS sobrevive com gastos anuais de pouco mais de 1 mil reais por habitante, enquanto
outros países com sistemas universais de saúde como Canadá, França, Reino Unido e Su-
íça, investem 6 a 8 vezes mais do que o Brasil. Estamos, portanto, diante de uma situação
de enfraquecimento da saúde pública brasileira.
Enquanto isso, as políticas de educação no Brasil vinham apresentando diversos
avanços significativos, desde 1988, quando o direito à educação é listado como o primeiro
dos direitos sociais previstos no artigo 5° da Constituição Federal. Considerando os últi-
mos 20 anos, do ponto de vista da qualificação legislativa, aprovamos, entre outras, Lei
de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/1996), o Piso Nacional do Magistério (Lei
11.738/2008), a educação obrigatória dos 4 aos 17 anos (EC 59/2009), a Lei de Cotas (Lei
12.711/2012), a destinação de 75% dos Royalties do Petróleo e de 50% do Fundo Social
do Pré-sal para a educação (Lei 12.858/2013), culminando com a aprovação do Plano Na-
cional de Educação (PNE) 2014-2024 (Lei 13.005/2014). O PNE não só costurou as prer-
rogativas do arcabouço legal anterior, como também representou um profundo avanço do
ponto de vista dos compromissos legais firmados para a educação pública brasileira, da
creche ao ensino superior, passando pela educação inclusiva, indígena, quilombola, pela
infraestrutura das escolas e pelas condições de trabalho, formação e valorização dos pro-
fissionais da educação. Da perspectiva das políticas públicas colocadas em marcha pelo
poder executivo, é possível também considerar avanços significativos, especialmente na
concepção, apesar de que ainda tropeçávamos um tanto no que tange à implementação
plena do arcabouço legal vigente, especialmente no que diz respeito a políticas intersetoriais.
A partir de 2014 e com aprofundamento desde 2015, contudo, os avanços que esta-
vam por ser comemorados e as políticas aprimoradas passaram a sofrer golpes sucessivos.
O primeiro deles vem com os cortes para a educação aprovados sob a gestão de Joaquim
Levy à frente do Ministério da Fazenda, que afetaram os primeiros anos de cumprimento
do PNE. Denunciados os cortes para os organismos internacionais, o Comitê sobre os Di-
reitos da Criança da ONU se pronunciou recomendando destinar investimentos adequa-
dos para o cumprimento do Plano, mesmo em períodos de crise econômica. As estratégias
do PNE com prazos até 2018 são estruturantes para o cumprimento de todas as metas
previstas até 2024 – e foram as que primeiro sofreram perdas.

102
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Contrariando recomendações de especialistas e da sociedade civil nacionais e in-


ternacionais, de relatorias especiais da ONU, dos comissionados da Comissão Intera-
mericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA) e sem reconhecer a quase nula aprovação
da sociedade, foi sancionada, em dezembro de 2016, por Michel Temer e pós-golpe de-
mocrático que destituiu a Ex-presidenta Dilma Rousseff, a EC 95, que impõe um teto de
gastos às áreas sociais e vem inviabilizando o cumprimento do PNE. Além de caminhar
na contramão da previsão de recursos prevista pelo PNE, que deveria ser crescente até
2024, e não bruscamente decrescente, o Plano vem sendo escanteado também por falta de
priorização política. Boa parte das políticas que vinham sendo aplicadas foram suspensas
e, no lugar, foram desenvolvidos novos programas, muitos dos quais com concepções
pedagógicas, de formato e formulação contrárias à previsão da Lei 13.005/2014 do PNE.
Portanto, no presente artigo, desenharemos o panorama das políticas públicas de
saúde e educação durante o Governo Temer. Analisaremos estas políticas vinculando-as
às políticas de austeridade implementadas por esse governo. Além disso, apresentaremos
as consequências sociais do enfraquecimento das políticas de saúde e educação para os
cidadãos brasileiros.

AUSTERIDADE E POLÍTICAS DE SAÚDE

O artigo 6º da Constituição Federal de 1988 prevê o direito à saúde como um dos


direitos sociais garantidos constitucionalmente aos cidadãos brasileiros. O processo que
culminou na saúde como garantia legal prevista na Constituição teve início na crise do
modelo de assistência médica previdenciária ainda durante o período da ditadura militar.
Como consequência da referida crise, ganhou força o movimento da Reforma Sanitária,
que produziu uma mobilização nacional que influenciaria na inclusão do direito à saúde
como direito universal garantido na carta constitucional.
Dessa forma, a Constituição de 1988 e as Leis federais nº 8.080/90, que dispõe
sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, e a organização e o
funcionamento dos serviços correspondentes, nº 8.142/90, que dispõe sobre a participação
da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências in-
tergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde, e nº 9.656/98, que dispõe so-
bre os planos e seguros privados de assistência à saúde, dão sustentação legal ao sistema
de saúde – público e privado – no Brasil. Outras leis complementares e atos normativos
do Ministério da Saúde e agências reguladoras complementam o arcabouço jurídico que
embasou a implementação do SUS.

103
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Como sistema público de saúde universal, integral e equânime, o SUS funciona


há três décadas e produziu avanços inquestionáveis (PAIM, 2013). De um panorama mar-
cado pela desassistência ao cidadão e desigualdade inter-regionais, até finais da década
de 1980, o SUS avançou mediante uma série de programas de atenção à população. São
exemplos desse avanço a ampliação de cobertura da atenção básica para mais de 73%
da população, por meio da Estratégia Saúde da Família, reforçada pelo Programa Mais
Médicos; os cuidados com a saúde bucal por meio do Brasil Sorridente; do programa de
vacinas, com uma das maiores coberturas vacinais do mundo; do programa de medica-
mentos; do Samu, das UPAs e leitos de unidade de terapia intensiva (UTI), entre outros
(CHIORO et al, 2016).
Portanto, entre Sarney e Dilma, encontramos avanços relacionados ao direito à
saúde e ao SUS em todos os governos brasileiros. Sarney implantou o SUDS; Collor
sancionou as Leis Orgânicas da Saúde; Itamar criou o Programa Saúde da Família (PSF),
extinguiu o INAMPS e avançou a descentralização das políticas públicas de saúde; FHC
ampliou o PSF, implantou a política dos medicamentos genéricos e operacionalizou a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Agência Nacional de Saúde Su-
plementar (ANS); Lula montou o Samu e colocou em prática as políticas de saúde mental
e bucal; Dilma regulamentou a Lei 8.080/90 e aprovou a LC 141, que dispõe sobre os
valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e
Municípios em ações e serviços públicos de saúde (PAIM, 2013).
Com a aprovação, em 2016, da EC nº 95, que regula o novo regime fiscal brasileiro
e limita o teto dos gastos públicos, o panorama das políticas públicas de saúde passa a
tomar novo rumo no Brasil. Com a limitação, e consequente retração, dos investimentos
em saúde, políticas e programas públicos se veem afetados negativamente pelas políticas
de austeridade implementadas por Temer. Assim, a redução do investimento em saúde
implica redução do acesso a bens e serviços de saúde pela parcela da população mais
empobrecida. Devemos considerar também a potencial redução da qualidade dos serviços
públicos de saúde sob essas circunstâncias (SCHRAMM, 2018).
A partir da implementação do novo regime fiscal, o orçamento do MS, por duas
décadas, será reajustado apenas pela apuração da inflação. Isso implica um processo que
desconsidera as necessidades de saúde da população, o impacto do crescimento popu-
lacional, da transição demográfica e do envelhecimento populacional – em 2030, mais
de 30% da população terá́ mais do que 65 anos. Além disso, fica de fora do cálculo do
orçamento destinado à saúde a necessária expansão da rede pública para cobrir vazios
assistenciais, o impacto da incorporação tecnológica que acontece de forma crescente
nos temas de saúde e os temas relacionados aos custos associados à mudança do perfil
assistencial determinado pela prevalência das doenças não transmissíveis e das causas
externas (CHIORO et al, 2016).

104
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Além disso, a EC 95 desvincula os gastos sociais de qualquer possível crescimento


de receitas nos próximos 20 anos. Ainda que haja qualquer aumento na arrecadação fe-
deral, não haverá repasse para os investimentos nas áreas sociais. Assim, princípio básico
dessa reforma é evitar que ganhos reais gerados por possível situação de crescimento
econômico sejam automaticamente transferidos aos gastos com políticas sociais. Portan-
to, com essa medida, o governo Temer utilizou-se da crise econômica para justificar a
debilitação do Estado social reduzindo direitos e garantias constitucionais.
A desvinculação constitucional das receitas da União destinadas à saúde também
gera um agravamento das desigualdades regionais em um país com o arranjo federal e
descentralizado, como é o caso do Brasil. Na prática, o aprofundamento da redução da
parcela federal aplicada em saúde impõe um encargo aos estados e municípios, que já se
encontram em situação fiscal delicada e vêm ampliando seu percentual de participação
no total da despesa de saúde desde os anos 2000. De acordo com projeções, as despesas
da União com saúde cairiam de 43 para 30% do total entre 2015 e 2022. Estados e muni-
cípios, que, em 2015, representaram 57% das despesas de saúde, passariam a ser respon-
sáveis por 70% dos gastos. Como os outros entes federativos – estados e municípios – não
terão capacidade de financiar mais de 70% dos recursos do SUS, é provável o estabeleci-
mento de um cenário delicado para a implementação destas políticas nos próximos anos,
o que aponta o risco de redução da oferta de serviços, o deterioramento da qualidade dos
serviços ofertados e o encolhimento ou inviabilização do Sistema Único de Saúde (CHIO-
RO et al., 2016).

Gráfico 1 – Simulação* para o piso para a saúde, considerando a nova regra da EC 95

Fonte: Rossi e Dweck (2016).


* A simulação parte da hipótese de que o PIB cresce 2,5% ao ano no período e que a receita líquida
acompanha o crescimento do PIB.

105
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

Em 2017, segundo dados do Ministério da Saúde, as despesas do governo com saú-


de e educação caíram 3,1% em relação a 2016, se descontada a inflação. Em termos nomi-
nais, o gasto total nas duas áreas ficou congelado, saindo de R$ 191,2 para 191,3 bilhões,
segundo dados do Tesouro Nacional. Em médio prazo, a redução do orçamento destinado
à saúde pelo governo federal tornará difícil a execução de programas importantes para ga-
rantir o direto de acesso a serviços de saúde como o Mais Médicos, UPA, Samu, Farmácia
Popular, Estratégia Saúde da Família, Programa Nacional de Imunização, entre outros.
É fato que os problemas do SUS não surgiram no governo Temer. Discussões so-
bre o subfinanciamento do sistema de saúde brasileiro, a má gestão dos recursos e a qua-
lidade insatisfatória dos serviços ofertados sempre aparecem quando o tema é políticas
públicas de saúde. Somado a isso, estão os desafios inerentes à produção de um sistema
universal em um país com mais de 200 milhões de habitantes e dimensões continentais,
grandes diferenças regionais, estrutura econômico-social heterogênea e que passa por
transformações no padrão de saúde, determinadas por mudanças demográficas, epide-
miológicas e nutricionais (CHIORO et al, 2016). Porém, apesar das restrições orçamen-
tárias e dos demais problemas identificados, o SUS continua cuidando da maioria dos
brasileiros (MASSUDA et al, 2018). Se o corte orçamentário diminuir os programas de
saúde que sustentam o SUS através de um subfinanciamento extremo, esta maioria de
cidadãos atendidos pelo SUS ficará desassistida.

AUSTERIDADE E POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO

A Constituição Federal de 1988 determina, em seu artigo 6º, os direitos sociais.


O primeiro a ser listado é o direito à educação, e essa determinação não foi realizada ao
acaso. O direito à educação é considerado um direito basilar, janela para a garantia dos
demais direitos sociais. Nos 30 anos que se sucederam após a promulgação da Carta Mag-
na, muito foi desenvolvido, apesar dos passos lentos, em termos legais e na elaboração e
implementação de políticas públicas, para que pudéssemos avançar conceitualmente e na
garantia do direito à educação para todos os residentes em território brasileiro.
Em 1996, foi aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sob a
Lei 9.394/1996 (BRASIL, 1996a), disciplinando a educação escolar, determinando seus
princípios e fins, regulando o direito à educação e o dever de ensinar, assim como a or-
ganização escolar em etapas e modalidades, entre outras questões estruturais para a área.
No mesmo ano, foi criada a Lei 9.424/1996 (BRASIL, 1996b), que dispunha Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério
(Fundef), depois substituída pela EC 53/2006 (BRASIL, 2006) e pela sua legislação re-
gulamentadora, a Lei 11.494/2007 (BRASIL, 2007), que regula o Fundo de Manutenção
e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação
(Fundeb), que é a única das principais diretrizes educacionais previstas em lei do país que
vem sendo cumprida integralmente (CARA; PELLANDA, 2017a).

106
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

Em seguida, foram aprovadas a Lei 11.738/2008, do Piso Nacional do Magistério


(BRASIL, 2008); a determinação constitucional (EC 59/2009) pela obrigatoriedade da
educação dos 4 aos 17 anos (BRASIL, 2009); a Lei 12.711/2012, que cria política de cotas
nas universidades públicas (BRASIL, 2012); a comumente chamada Lei dos Royalties
(Lei 12.858/2013), que destina 75% dos Royalties do Petróleo e de 50% do Fundo Social
do Pré-sal para a educação (BRASIL, 2013); e, finalmente, foi aprovada a Lei 13.005/2014,
do PNE 2014-2024 (BRASIL, 2014).
O PNE não só costurou o que já estava previsto nas legislações anteriores, como
também avançou em diversas questões, trazendo diretrizes para a formulação de políticas
públicas que pudessem cumprir com a legislação vigente e atingir metas e estratégias para
alcançarmos a garantia da educação pública de qualidade para todos, em um período de
dez anos, conforme preconiza a Constituição Federal. Do ponto de vista das políticas pú-
blicas colocadas em marcha pelo poder Executivo, é possível também considerar avanços
significativos, especialmente na melhoria de suas concepções, apesar dos seguidos trope-
ços no que tange à implementação plena do arcabouço legal vigente (CARA; PELLAN-
DA, 2017a), especialmente no que diz respeito a políticas intersetoriais.
O então recém-aprovado PNE – considerado um pacto social significativo após
quatro anos de intensos debates e tramitação no Congresso Nacional (GOMES; BRITTO,
2015, p. 13) – viu, desde seu primeiro ano de vigência, cortes significativos para a área.
Em 2014, com a pasta da Fazenda sob Joaquim Levy, o Ministério da Educação esteve
entre os que sofreram maiores cortes, tendo perdido R$ 9,4 bilhões na Lei Orçamentária
de 2015 (BRASIL, 2015). Denunciados pela sociedade civil, os cortes para os organismos
internacionais (CAMPANHA, 2015), o Comitê sobre os Direitos da Criança da ONU se
pronunciou, demonstrando preocupações com as reduções orçamentárias no setor educa-
cional e seus efeitos negativos na implementação do PNE, recomendando ao Brasil:

Aumentar os fundos para o setor de educação, a fim de fortalecer a educação


pública e priorizar a implementação do Plano Nacional de Educação, e, ao
fazê-lo, assegurar que, em casos de escassez de recursos, as alocações às ins-
tituições de ensino público sejam priorizadas (CRC, 2014, p. 18).

A meta 20 do PNE prevê, através do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi) e do


Custo Aluno-Qualidade (CAQ), mecanismos que aliam qualidade, financiamento e coo-
peração federativa para a educação básica, ao contrário do que vinha sendo desenhado.
Era necessário o aumento de recursos para a área dos então 6% do PIB para 7% no quinto
ano de vigência da lei, ou seja, em 2019, até atingir o patamar de 10% do PIB até o final
do decênio, ou seja, em 2024. Essa estratégia, entre outras com prazos intermediários (até
2019), são estruturantes para o cumprimento de todas as demais metas e estratégias, já
que o Plano foi concebido em uma sustentação progressiva de cumprimento (GOMES,
2018). O CAQi deveria ter sido implementado desde 2016 e até hoje essa estratégia do
Plano (20.6) não foi cumprida.

107
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

No campo institucional, enquanto o país vivia uma acirrada disputa eleitoral


e, logo em seguida, um período de instabilidade política que culminou com
a mudança na Presidência da República, o Ministério da Educação enfrentou
quatro trocas de comando (GOMES, 2018, p. 12).

Tal cenário, que já não era dos melhores para a educação, entra em exponencial
derrocada a partir, primeiramente do processo de impeachment de Dilma Rousseff e de
sua substituição por Michel Temer – que passou a suspender inúmeros decretos, portarias
e programas da área, os substituindo por políticas que vão na contramão das diretrizes
do Plano Nacional de Educação (CARA; PELLANDA, 2017b) – e da aprovação, no final
de 2016, da Emenda Constitucional 95, que impõe um teto de gastos às áreas sociais até
2036.
Contrariando recomendações de especialistas e da sociedade civil nacionais
(FINEDUCA; CAMPANHA, 2016; CONGEMAS; CONASEMS; UNDIME, 2016) e in-
ternacionais, como as relatorias especiais da ONU (OHCHR, 2016) e os comissionados
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH, 2016), e sem reconhecer a
insignificante aprovação da sociedade (DATAFOLHA, 2016), foi aprovada, em dezembro
de 2016, a Emenda Constitucional 95.
Com a sanção da EC 95/2016, o gasto mínimo com educação para o ano de 2017
foi mantido igual a 18% da Receita Líquida de Impostos (RLI) – conforme a previsão da
Constituição Federal. A partir de então, o valor será somente reajustado pela inflação.
Com isso, o valor mínimo destinado à educação cairá em proporção das receitas, do PIB
e em termos per capita, conforme indica a simulação no Gráfico 2, a seguir.

Gráfico 2 – Simulação* para o piso para a educação, considerando a nova regra da EC 95.

Fonte: Rossi e Dweck (2016).


* A simulação parte da hipótese de que o PIB cresce 2,5% ao ano no período e que a receita líquida
acompanha o crescimento do PIB.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

A exceção à limitação de gastos pela EC 95/2016 está na complementação da


União ao Fundeb (Artigo 1º § 6º). Contudo, tais políticas econômicas geram pressão po-
lítica para o avanço das políticas sociais em detrimento das limitações orçamentárias e o
Fundeb é um dos casos. A previsão de complemento de R$ 1,5 bilhão ao Fundo aprovada
pelo Congresso Nacional para a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2018 foi a única ve-
tada por Michel Temer, sob a alegação de que poderia comprometer as contas públicas
(BRASIL, 2018).

CONCLUSÃO

Um grupo de especialistas em direitos humanos das Nações Unidas solicitou, em


agosto de 2018, que o Brasil reconsidere seu programa de austeridade fiscal e coloque os
direitos humanos de sua população, que está sofrendo duras consequências, no centro de
suas políticas econômicas. A EC 95, conhecida como PEC do teto, que limita os gastos
públicos por 20 anos, não deixa esperança de melhoria para a cidadania brasileira no fu-
turo próximo. Esse fato torna ainda mais necessário rever as políticas econômicas sob o
prisma dos direitos humanos (OHCHR, 2018).
As políticas sociais implementadas pelo Governo Temer estão marcadas, princi-
palmente, pelo encolhimento orçamentário característicos das políticas de austeridade. O
impacto do encolhimento do investimento do Estado nas políticas de saúde e educação
somado ao aumento das taxas de desemprego e consequente empobrecimento da popu-
lação fará com que constatemos o aprofundamento da vulnerabilidade social no Brasil.
Passaremos, em poucos anos, por um processo de empioramento dos indicadores sociais
que levamos algumas décadas para alcançar.
Em 2019, veremos um novo governante e um novo Congresso Nacional ocupando
duas das instituições democráticas que podem reverter, sob um processo de revogação
dessa EC, o quadro de abismo em relação não só às políticas de saúde e educacionais,
como também a todas as áreas sociais (FES, 2018). O STF, órgão máximo do Poder Judi-
ciário, também tem a questão sob análise na forma de diversas Ações Diretas de Incons-
titucionalidade (ADIns), que questionam a EC 95 (STF, 2017). Cenas para os próximos
capítulos da nossa história política.

109
Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil • Volume II

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partir do exercício de 2009, o percentual da Desvinculação das Receitas da União inci-
dente sobre os recursos destinados à manutenção e desenvolvimento do ensino de que
trata o art. 212 da Constituição Federal, dá nova redação aos incisos I e VII do art. 208,
de forma a prever a obrigatoriedade do ensino de quatro a dezessete anos e ampliar a
abrangência dos programas suplementares para todas as etapas da educação básica, e dá
nova redação ao § 4º do art. 211 e ao § 3º do art. 212 e ao caput do art. 214, com a inser-
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Lorena Madruga Monteiro • Luciana Santana • Organizadoras

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113
SOBRE OS AUTORES
AUGUSTO JUNIOR CLEMENTE – Doutor em Ciência Política pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Ciência Política pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Sociologia Política pela mesma universida-
de e bacharel em Ciência Política pela Faculdade Internacional de Curitiba (Facinter).
Atualmente, é Professor Adjunto do Bacharelado em Administração Pública da UFPR
e Professor Permanente do Mestrado Profissional em Políticas Públicas da Universidade
Federal do Pampa (Unipampa).

ANDRES DEL RIO – Doutor em Ciência Política (IESP-UERJ). Pesquisador e Profes-


sor Adjunto de Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (IEAR-UFF). Vice-
-Chefe do Departamento de Geografia e Políticas Públicas DGP-IEAR-UFF. Pesquisador
do Instituto de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento
(INCT-PPED) Coordenador do Núcleo de Estudos sobre Estado, Instituições e Políticas
Públicas (NEEIPP-UFF). Pesquisador do ICT-PPED.

ANDRESSA PELLANDA – Coordenadora de políticas educacionais da Campanha Na-


cional pelo Direito à Educação. Pós-graduada em Ciência Política (FESP/SP). Bacharel
em Comunicação Social, com Habilitação em Jornalismo (ECA/USP). Especialista em
Negociação Diplomática pela Fundação Diplo (Suíça).

BENEDITO TADEU CÉSAR – Cientista político. Professor da Universidade Federal do


Rio Grande do Sul (UFRGS) (aposentado). Integrante das coordenações do Comitê em
Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito, do Comitê Gaúcho do Proje-
to Brasil-Nação e do M3D - Movimento Democracia, Diálogo e Diversidade. Graduado
em Ciências Sociais pela UNESP. Mestre em Antropologia Social e Doutor em Ciências
Sociais com ênfase em Estrutura Social Brasileira pela Unicamp. Foi professor da Univer-
sidade Federal do Espírito Santo (UFES), e da UFRGS.

DÉBORA CRISTINA DA SILVA ALVES – Mestranda pelo Programa de Pós-Gra-


duação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) na linha de pesquisa
Processos Psicossociais. Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário Tiradentes
(UNIT/AL). Tem como foco de atuação teórico-prático o campo da Psicologia Social,
Educação e das Relações Étnico-raciais. Integrante do Grupo de Trabalho de Relações
Étnico-Raciais da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia
de Alagoas (CRP/15). Integrante do Grupo de Estudos em Diversidades e Política (EDIS).

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DIEGO FREITAS RODRIGUES – Doutor em Ciência Política pela Universidade Fe-
deral de São Carlos com período sandwich no Centro de Estudios Demográficos, Urba-
nos y Ambientales do Colégio de México. Líder do grupo de pesquisa Observatório de
Impactos Ambientais e de Saúde no CNPq. Professor do Programa de Pós-Graduação em
Sociedade, Tecnologias e Políticas Públicas do Centro Universitário Tiradentes, Maceió,
Alagoas.

DJALMA THÜRLER – Diretor artístico e dramaturgo da ATeliê voadOR Companhia


de Teatro (http://www.atelievoadorteatro.com.br/). Possui estágio de Pós-Doutoramento
em Literatura e Crítica Literária pela PUC São Paulo. É Professor permanente do Progra-
ma Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade e Professor Associado do
Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC) da Universidade Federal da Bahia. É
Doutor em Letras com estudos nas áreas de Literatura Brasileira e Teatro (UFF), Mestre
em Ciência da Arte (UFF) e Bacharel em Artes Cênicas e em Pedagogia, pela Universi-
dade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-RIO). 

IVAN JAIRO JUNCKES – Docente do Curso de Administração Pública e do Programa


de Pós-graduação em Desenvolvimento Territorial Sustentável (PPGDTS), ambos na Uni-
versidade Federal do Paraná (UFPR), Setor Litoral. Desenvolve pesquisas sobre financia-
mento político e aplicações da análise de redes sociais (ARS) no Laboratório de Análise
de Redes Sociais.

MARO LARA MARTINS – Graduado em História pela Universidade Federal de Viço-


sa (UFV). Mestre em Sociologia pelo Iuperj. Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estu-
dos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj). Professor
Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo
(Ufes) e coordenador do Núcleo de Teoria Social e Interpretação do Brasil (Netsib) da Ufes.
Membro da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) da Associação Nacional de História
(Anpuh) e da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH).

MICHELLE FERNANDEZ – Doutora em Ciência Política pela Universidade de Sala-


manca e trabalha no campo das políticas públicas sociais. Pesquisadora da Fundação de
Amparo a Ciência do Estado de Pernambuco (FACEPE). Professora do Mestrado Profis-
sional em Políticas Públicas da UFPE.

RODRIGO ROSSI HOROCHOVSKI – Professor de Administração Pública na Univer-


sidade Federal do Paraná (UFPR), Setor Litoral. Atua nos Programas de Pós-Graduação
em Ciência Política (PPGCP) e Desenvolvimento Territorial Sustentável (PPGDTS) da
UFPR. Desenvolve pesquisas sobre Financiamento Político e Bibliometria em Ciência
Política, com emprego da metodologia de Análise de Redes Sociais. Coordena o Labora-
tório de Análise do Campo Científico (LACC/UFPR/CNPq). Membro do Laboratório de
Análise de Redes (LAR/UFPR/CNPq).
THALITA CARLA DE LIMA MELO – Professora Adjunto 1 do Centro Universi-
tário Tiradentes-UNIT/ Maceió. Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de
Alagoas. Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Sergipe. Doutorado,
em andamento, no programa Dinâmica do Espaço Habitado, pela Universidade Federal
de Alagoas. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Social,
atuando principalmente nos seguintes temas: cidades, comunidades, políticas públicas,
direitos humanos, instituições. Coordenadora da Comissão de Direitos Humanos do Con-
selho Regional de Psicologia de Alagoas (CRP-15).

WAGNER LEITE DE SOUZA – Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Psi-


cologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) na linha de pesquisa Processos Psi-
cossociais. Graduado em Psicologia pelo Centro Universitário Tiradentes. Membro do
Grupo de Trabalho Diversidade Sexual e de Gênero da Comissão de Direitos Humanos do
Conselho Regional de Psicologia de Alagoas – CRP/15. É integrante do Grupo de Estudos
em Diversidades e Política (EDIS).
ORGANIZADORAS
LORENA MADRUGA MONTEIRO – Mestre e Doutora em Ciência Política pela Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora PPG III do Programa de
Pós-Graduação em Sociedade, Tecnologias e Políticas Públicas do Centro Universitário
Tiradentes (UNIT/AL). Pesquisadora do Instituto de Tecnologia e Pesquisa (ITP/SE). Lí-
der do grupo de pesquisa do diretório de grupos do CNPq Observatório de Democracia e
Interdisciplinariedade (ODIN).
 
LUCIANA SANTANA – Professora Adjunta de Ciência política no Instituto de Ciências
Sociais da Universidade Federal de Alagoas. Graduada em História, Mestre e Doutora em
Ciência Política pelo DCP/UFMG, com instância sanduíche na Universidade de Salaman-
ca. Coordenadora do curso de Ciências Sociais na modalidade a distância e do Comitê de
Ética e Pesquisa, ambos na UFAL. Líder do grupo de pesquisa “Instituições, comporta-
mento político e democracia”.
O segundo volume da coletânea Temerosas Transações: Ensaios sobre o golpe recente no
Brasil, organizada por Lorena Madruga Monteiro e Luciana Santana, tem como objetivo,
por um lado, apresentar temáticas que não foram analisadas no primeiro volume e, por
outro, destacar os efeitos mais significativos da ruptura institucional instaurada no Brasil
após o impeachment de Dilma Rousseff. Enquanto o primeiro volume teve como preocu-
pação didática destrinchar analiticamente o golpe à democracia brasileira realizado em
2016, este volume dedica-se a expor o aprofundamento das desigualdades no governo
de Michel Temer. Com tal intuito, os ensaios reunidos neste volume refletem o aprofun-
damento das desigualdades sociais e as alternativas de desenvolvimento econômico no
Brasil, os riscos da emergência da “demofobia” após o golpe de 2016, o reflexo do impea-
chment na avaliação da democracia brasileira no cenário internacional, o aprofundamento
das desigualdades de gênero, os retrocessos ambientais durante o governo Temer, o papel
do judiciário e os privilégios dos Magistrados e a criminalização da cultura engendrada
por setores conservadores da sociedade brasileira.

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