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A REPRESENTAÇÃO FEMININA NAS PERSONAGENS DO ROMANCE VOLTAR

A PALERMO

Taciana Ferreira Soares*

Orientadora: Amara Cristina B. S. Botelho

1. Resumo

O presente artigo objetiva o estudo da representação da figura feminina no


romance “Voltar a Palermo”, da autora pernambucana Luzilá Gonçalves Ferreira.
Trata-se de uma investigação que revela a representação da personagem feminina
no texto de ficção, analisando a obra sob o ponto de vista dos elementos técnicos e
estruturadores da narrativa, debruçando-se sobre a construção da personagem.
Além disso, os resultados deverão trazer subsídios para o entendimento do
imaginário feminino brasileiro na literatura, já que notavelmente a representação
feminina é pouco estudada dentro dos romances nacionais, dificilmente tendo papéis
principais ou representativo-diferenciais nas tramas de maior destaque, sendo esses
destinados geralmente aos personagens masculinos.
Palavras-Chave:

Luzilá Gonçalves Ferreira; Literatura; Gênero; Teoria literária; Personagem

2. Abstract

This article aims to study the representation of the female figure in the novel
"Voltar a Palermo", from the brazilian author Luzilá Gonçalves Ferreira.
This is an investigation that reveals the representation of the female character in the
text of fiction, analyzing the work from the point of view of the technical and
structuring elements of the narrative, regarding the building of the character.
Moreover, the results should provide subsidies for the understanding of the female
imagery within the Brazilian literature, as notably the female representation is few
studied within the national novels, hardly taking main or representative-differential
roles in the most prominent frames, as these ones are usually intended to male
characters.
Keywords:

*Graduada em letras pela Universidade de Pernambuco/UPE


Luzilá Gonçalves Ferreira, Literature, Gender Literary Theory, Character

3. Introdução

Voltar a Palermo é um romance histórico1, com foco em histórias de personagens


femininas, trazendo como personagem principal também uma mulher, diferente da
maior parte dos romances nacionais. Ela não ocupa um papel secundário como
Marcela (mesmo que este ainda influencie no curso da história), em memórias
póstumas de Brás cubas, e nem é a mulher romântica que se redime como as
personagens de José de Alencar. A trama toda gira em torno de Maria, das suas
transformações mentais e de sentimento, e das relações que ela cria buscando o
objetivo principal: encontrar o argentino Nino.
Mesmo sendo de igual importância na tríade dos elementos centrais que
compõem a narrativa romanesca – enredo, personagem e idéia (valores e
significados mencionados na narrativa)2 – não raro caímos no equívoco de pensar a
personagem como a parte mais importante na sua formação.
Ao contrário do referido pensamento, a personagem tem igual peso, sendo apenas o
elemento mais atuante e comunicativo no desenrolar do texto, dialogando com o
leitor a partir do momento em que ele aceita seus caracteres como verdade.
Quando pensamos no enredo, pensamos simultaneamente nas personagens;
quando pensamos nestas, pensamos simultaneamente na vida que vivem,
nos problemas que se enredam, na linha do seu destino – traçada conforme
uma certa duração temporal, referida a determinadas condições de ambiente.
O enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo.
(CÂNDIDO, 2011, p. 10)

1
Uma das características fundamentais para a existência dos romances históricos é a utilização de
dados verídicos para a constituição ambiente. Segundo Lucáks(visto em WEINHARDT, 1994): “O
romance histórico não é um gênero ou subgênero,funcionalmente distinto do romance. Sua
especificidade, que é a de figurar a grandeza humana na história passada, deve resolver-se nas
características gerais da forma romanesca, o que inclui também a possibilidade de apresentar as
figuras históricas em momentos historicamente decisivos. A arte do romancista consiste em colocá-
las na intriga de modo que essa situação decorra da lógica interna das ações.
2
Teoria vista em CÂNDIDO, 2011. Vemos uma teoria semelhante formulada por FORSTER,
publicada em 1921, lida em BRAIT, 2010, onde os três elementos essenciais estruturadores do
romance são: Intriga, história e personagem. Para ambos, notamos que o romance é um sistema,
onde os elementos não se sobrepõem, mas se inter-relacionam.
Seguindo-se na técnica de estruturação do romance, a necessidade da
verossimilhança3 – a criação do sentimento de verdade – a partir do ficcional para
causar impressões no leitor real, além das questões teóricas de composição das
personagens (femininas) em Voltar a Palermo, analisaremos no presente artigo as
questões de gênero trazidas no romance, criando relações de verdade entre as
mulheres ficcionais e possíveis representações femininas reais, ajudando a
estabelecer a identificação leitor-romance, e como é feita a composição/formação da
personagem literária caracterizada no universo feminino.

4. Enredo

Dividida em duas partes, a narrativa em primeira pessoa trata da história de


Maria, professora universitária carioca, recentemente viúva, aos 30 anos. O luto
move-a a aceitar um contrato de dois anos numa universidade em Buenos Aires por
volta da década de 1970, e conhece Nino, um motorista de táxi e tocador de
bandoneón, por quem se apaixona e mantém um relacionamento durante a estada
no país.
Nino tinha um casamento problemático com a mulher, Mercedes, que teve seu
estado mental afetado, revelando um quadro de loucura, após a morte do primeiro
filho.
Apesar do romance, Maria, assustada com a violência da ditadura argentina, retorna
para o Brasil ao final do contrato. O amor é interrompido.
Nino decide reaproximar-se da esposa e eles têm um filho, Pablo, que recupera
parte da sanidade de Mercedes. Nino protesta contra a ditadura e é capturado pelo
governo. Seu desaparecimento recupera totalmente Mercedes, que começa uma
incessante busca por ele, acompanhada de Morales, pai de Nino.

3
Conceito formulado por Aristóteles, na Poética, verossimilhança é a qualidade que faz a arte, no
caso, literária, parecer verdadeira, apesar de todas as coisas impossíveis que ela possa dizer. A arte
não é verdadeira, não é verídica, ela é verossímil, é semelhante à verdade. A arte desperta a ilusão -
tem como referencial a impressão da verdade. Mesmo com todas as improbabilidades no mundo
físico, uma obra deve respeitar sua verossimilhança interna, o sentimento de verdade causado a
partir da lógica interna da narrativa. “Com efeito, não diferem o historiador e o poeta, por escreverem
em verso ou prosa (...) – diferem sim em que um diz as coisas que sucederam, e o outro as coisas
que poderiam suceder.” (ARISTÓTELES, apud, BRAIT, 2006, p. 30)
Maria, ao retornar, continuou sua vida, sem saber o que acontecera a Nino. Quase
vinte anos depois de ter deixado a Argentina, encontra um bilhete de Nino dentro de
um livro, que a inspira a procurá-lo.
Voltando a Argentina, não sem dificuldades, descobre o que acontecera com
Nino e sua família nesses vinte anos e conhece Mercedes e Pablo. Os três se
tornam amigos e juntos, continuam a busca. Morales já havia morrido.
Passado algum tempo, Nino reaparece, encontrado em um cativeiro, desmemoriado
e com problemas psicológicos. Sessões de terapia recuperam sua memória e eles
vivem momentos felizes.
Ao ver aquela família feliz e completa Maria decide então voltar ao Brasil,
prometendo um dia retornar à Palermo, bairro onde se situava o apartamento onde
viveu com Nino, e que passou a viver com Mercedes enquanto buscavam-no.

5. Definições

Antes de tudo, devemos lembrar que a personagem é um ser ficcional, lingüístico


(já que não existe fora das palavras) e com uma maneira própria de existir. Sua
construção é regida pelas leis particulares de cada texto.
Veremos, então, a seguir as definições para personagem segundo alguns
teóricos:
 “Entendamos, inicialmente, o que vem a ser personagens de romance: são
“pessoas” que vivem dramas e situações dentro da narrativa à imagem e
semelhança do ser humano, “representações”, “ilusões”, “sugestões”, “ficções”,
“máscaras”, de onde “personagens” (derivado da forma latina persona (m),
máscara).” (MOISÉS, 1982, p. 138)

 “A personagem, ou O personagem é um ser fictício que é responsável pelo


desempenho do enredo; em outras palavras, é quem faz a ação. Por mais real que
pareça, o personagem é sempre invenção, mesmo quando se constata que
determinados personagens são baseados em pessoas reais. (GANCHO, 1993, p.
16)

 “Personagem é o ser que desempenha as funções ativas na narrativa de ficção. São


os atores. A personagem não é o primeiro, nem o mais importante elemento da
estrutura da obra literária. É um dos elementos dessa estrutura. [...] A personagem,
portanto, é um suporte para a comunicação da experiência do artista e um dado
essencial para a completação de sua mundividência. A personagem é capaz de
provocar o enredo, como pode ser provocada por este. A personagem vive na obra a
partir do comportamento que o artista lhe atribui. Este comportamento, na verdade, é
uma série de atributos verbais que procuram dar a ilusão de realidade vivida.
(ATAÍDE, 1941, p. 38)

Em suma, personagens são os seres inventados, em regra, humanos ou com


traços de humanidade, que figuram na narrativa e que só tem vida dentro dela.
Dentre as visões apresentadas acima, assumiremos no artigo a última citada, de
Vicente de Ataíde.

6. O gênero na escrita e a construção das personagens

Apesar do objeto estudado no presente artigo ser a personagem, devido a


proposta da análise de gênero proposta, precisamos citar rapidamente a questão do
autor e da representação: “A personagem feminina, construída e produzida no
registro do masculino, não coincide com a mulher. Não é sua réplica fiel [...]. É antes
de tudo um sonho alheio [...].” (BRANCO & BRANDÃO, 2004, p.11)
Devido o fato de Voltar a Palermo ter sido escrito por uma mulher, a expressão das
personagens femininas nesse discurso de memórias chega mais próximo do real,
nos seus sentimentos, questionamentos e ações.
Feita essa ressalva, definamos, inicialmente, o que vem a ser gênero:
Gênero não é apenas o sinônimo de sexo, masculino ou feminino. Gênero
também é o conjunto de expressões daquilo que se pensa sobre o masculino
e o feminino. Ou seja, a sociedade constrói longamente, durante os séculos
de sua história, significados, símbolos e características para interpretar cada
um dos sexos. (AUAD, 2003, p. 57)
A teoria literária dispõe de pouca crítica reservada à escrituração feminina e
sua representação. Estes trabalhos no geral estão fundados em antigos
preconceitos de gênero, sectarizando os temas, dando quase sempre uma
impressão de romanceamento (mas um romance visto de forma rasa, depreciativa)
onde quer que o feminino habite.
Essa rotulação termina por afastar a atuação feminina do território da seriedade,
reservando às mulheres, na maior parte das vezes, papéis de personagem
destinatário (personagem beneficiário da ação, que detém o objeto desejado e que
não é necessariamente o condutor da ação); Adjuvante; Objeto desejado (elemento
da narrativa que representa o objetivo a ser atingido); e ainda, o papel de
Antagonista, visto que a imagem da mulher desde a antiguidade é associada ao
pecado e a luxúria.
Sobre a temática amorosa e a escrita e representação femininas na literatura:
“É possível que as mulheres, em sua sombria história literária, tenham
escolhido, privilegiado e até esvaziado o tema do amor. Acredito mesmo que
a trajetória existencial da maior parte das mulheres tenha se desenvolvido em
torno da retroalimentação desse sentimento. Afinal, foram alguns séculos de
lenta e árdua aprendizagem desse suave fardo romântico.” (BRANCO &
BRANDÃO, 2004, p. 105)
Naturalmente, diante do papel de gênero4 feminino alimentado pelas sociedades,
associando sempre a figura da mulher à fragilidade, sentimentalismo, intuição, a
“poética feminina parece sempre girar em torno do eixo amoroso, nas suas diversas
manifestações: o erotismo, a religião (ou espiritualismo), os sentimentos de
maternidade e fraternidade, a criação poética (entendida como paixão)” (IDEM, p.
106), o que de forma alguma, dá as narrativas femininas um conteúdo rasteiro.

7. Maria

Protagonista da narrativa, ao relatar sua história, suas emoções, desloca a obra


para o foco narrativo feminino, distinguindo a obra do modelo monológico,
construído historicamente por personagens masculinas.
É a memória de um tempo vivido que a incita a retornar à capital portenha em
busca de si mesma. Nutrindo-se dessas memórias, busca compreender o que
passou e reconstituir sua vida.
Segundo as teorias de E. Souriau e W. Propp, fugindo à tradição, podemos
classificá-la enquanto condutora da ação – personagem que dá o primeiro impulso
à ação; é o que representa a força temática; pode nascer de um desejo, de uma
necessidade ou de uma carência (BRAIT, 2010, p. 50). Maria move-se por tempo e

4
Determinadas funções, ações, atitudes, que são reservada para mulheres e outras para os homens.
Ver o capítulo 7 do livro de Daniela Auad.
espaço no enredo do romance a partir do desejo do reencontro com Nino, amante
com quem se relacionou durante os dois anos da sua estadia na Argentina, e
deixou-o para voltar ao Brasil enquanto o país sofria com a ditadura, depois de
passados 20 anos. Ainda segundo os estudos dos autores referidos anteriormente,
Nino ocupa a classificação de Objeto desejado – força de atração; fim visado;
objeto de carência; elemento que representa o valor a ser atingido (IDEM, 2010).
A busca por Nino contribui não somente para o deslocamento geográfico de
Maria no enredo, mas também para que a protagonista passe a fazer auto-reflexões
e tenha mudanças internas, até mesmo de caráter. As memórias de uma vida
anterior incitam a volta para Buenos Aires e o reencontro de si mesma.
Apesar de ser o desejo do reencontro com Nino o desencadeador de toda a
situação, ele resiste na trama quase toda apenas como um fantasma, uma
lembrança, não sendo ele próprio o responsável por quase nenhum dos
acontecimentos internos na protagonista, mas sim os caminhos que Maria percorre
pra chegar até ele. Nós praticamente só o conhecemos a partir da visão de passado
da protagonista.
A partir da teoria de classificação das personagens de Forster, temos Maria
como personagem redonda, evoluindo de comportamento durante a obra.
“Personagens classificadas como redondas, por sua vez, são aquelas definidas por
sua complexidade, apresentando várias qualidades ou tendências, surpreendendo
convincentemente o leitor” (BRAIT, 2010, p.41)
As mudanças em Maria começam a ocorrer com sua nova chegada à
Argentina. Ela passa a se auto-perceber e afirmar, fazendo uma retrospectiva
interior de todos os acontecimentos da vida, e analisando-os sob uma perspectiva
agora mais madura. “O vento da realidade nunca havia de fato soprado sobre
mim?”(VP, p.146)
Na busca pelo objeto desejado, ela se depara com acontecimentos a alguns
conhecidos na resistência à ditadura, trazendo-a a consciência de quem fora, e
sentindo-se culpada:
E me senti culpada, não sabia exatamente de quê, e que deveria ser porque
fora poupada, e o fora porque nunca tivera coragem de viver até o fim minhas
opções como fizera Maurício, e não apostara a vida toda numa idéia. E
Maurício ferido e sangrento e agonizante crescia inda mais aos meus olhos.
(VP, p.76)
A protagonista termina por perceber e reconhecer a condição de comodidade
do passado, onde poderia a qualquer momento retornar ao país de origem, como
terminou por fazer, ao sentir medo do desenrolar violento da ditadura na Argentina,
mesmo com a existência de Nino, e do romance entre eles:

E, de súbito, e só então após tantas semanas, compreendi a extensão do


desastre que causara a minha volta ao Brasil, vinte anos antes. Fora leviana,
e a que ponto, insensata e insensível como uma adolescente mimada, que
não ignora que é querida, cortejada, e que só escuta as vozes mais
superficiais do coração ou aquelas que melhor lhe convêm. (VP. p. 104)

O próprio sentimento e reconhecimento de covardia, assim como o impulso


da retomada pela busca de Nino, e esse amor fraternal agora nutrido por Mercedes
e pela família, a desfazem covarde, transformando-a, preenchendo uma vida que
antes julgava vazia. “A vida de Nino continuara, a narração do filho o provava,
enquanto que a minha, ah, a minha vida não fora mais que a repetição conhecida do
que vivera antes, de o encontrar.” (VP. p. 121). Com a viagem, ela descobre e
reconhece as multifaces de várias mulheres que coabitam nela: “e eu me sentira de
súbito uma mulher possessiva, ciumenta, uma das tantas que me habitavam.” (VP.
p. 94)
O ápice dessa transformação e ressignificação pessoal de Maria surge nas
últimas linhas do livro, quando ao perceber a reestruturação da família, com a volta
de Nino, bem como a recuperação de sua lucidez, e a reconciliação entre Mercedes
e Pablo, decide voltar ao Brasil:
Eu voltava sozinha. Mas voltava mais rica, a alma e o coração carregados de
imagens fortes, de lembranças, de experiências inesquecíveis. Trazia nos
braços um amor que resgatara e que cultivaria a partir de então, como se
cultiva uma flor delicada a merecer cuidados pelo resto da vida. (VP. p. 215)

A protagonista mergulha em uma viagem interior, construída a partir de


fragmentos de histórias, reflexões e autocríticas, por onde ela move-se em direção à
sua identidade pessoal, não encontrada e não-consciente até então, buscando
recostituir os vestígios do “eu”.
8. Mercedes
Mercedes, esposa de Nino, mesmo sendo secundária na trama, também
apresenta mudanças comportamentais e sentimentais no seu desenrolar. As
mudanças nela também foram desencadeadas pela morte prematura do primeiro,
onde desencadeia o processo de loucura, a recuperação parcial com o nascimento
de Pablo, e o desaparecimento de Nino, ainda mais que o reencontro, que termina
por recuperar totalmente sua lucidez.
Assim como para Maria, Nino também é o objeto de desejo dessa
personagem adjuvante, que ajuda ou impulsiona uma das outras forças (BRAIT,
2010, p. 50).
A revolução inesperada de sua conduta encontra-se em, depois de
estabelecida a amizade entre as duas – Maria e Mercedes – gerada pelo mesmo
objetivo – o encontro do amado em comum – o oferecimento do apartamento de
Palermo à Maria, para que lá se instalasse. Apartamento esse onde haviam morado
Maria e Nino vinte anos antes:
Mercedes compreendera, muito antes de mim, que Palermo podia ser o elo a
atar duas pontas de uma vida que eu não sabia essencializar. [...] Mercedes
havia entendido que era preciso que eu vivesse Palermo até a última gota,
que eu esgotasse Palermo em mim, e a ausência contida nele. (VP. p. 172 e
173)
Mercedes também traz a representação da mãe, e do poder desse sentimento
materno. É perda de um filho onde se inicia o desvario, e no nascimento de outro,
Pablo, o começo da reconquista da lucidez.
Ainda sobre maternidade e tradições familiares e de gênero, é citada por
Mercedes uma herança da mãe:
Nunca fazia um bolo que não sujasse tudo, espalhasse tudo. Mas aquilo fazia
parte de um ritual, uma cozinha com esse tipo de desordem é uma cozinha
que funciona, falou sorrindo. Falou-me então que aquela era uma herança
materna certamente, sempre recordava a mãe com uma cozinha às voltas,
eternamente desordenada, os panos de prato se arrastando sobre a mesa, ao
lado do fogo, e ela risonha, avermelhada, sempre enxugando as mãos no
avental que inexplicavelmente conservava sempre limpíssimo.” (VP. p. 163)

9. Amparo Soler e as relações de gênero

Apesar de não ter direta influência nos acontecimentos do enredo, a história


contada à protagonista Maria por Morales, o pai de Nino, sobre a irmã da sua mãe,
Amparo Soler se mostra interessante para análise neste artigo. Um pouco menos
minuciosa, visto que não interfere diretamente nas personagens principais do
enredo, mas é de interessante notoriedade no estudo do papel de gênero das
personagens proposto também aqui.
A figura de Amparo demonstra claramente as relações de gênero5 da mulher
dentro da sociedade patriarcal6, machista e conservadora onde se encontrava
inserida. Ela tem as características de boa mãe e boa mulher perante o que é
esperado pelo social. Ela é a mulher que guarda luto e espera pelos homens da
casa, aqui sendo os filhos, já que era viúva.
Muitos pretendentes haviam tentado fazer com que dirigisse para eles seus
olhos de ébano, mas no interior do mundo masculino Amparo só conseguia
divisar os dois filhos, Juan Pedro e Juan José, que se chamava o marido que
se fora. (FERREIRA, 2002, p. 46)

Depois da trágica morte dos filhos na guerra, sentimos Amparo como uma
mulher forte, mas que novamente sufocada pelos costumes, e pela ausência de
seus dos soles, se anula até o fim da vida:
Amparo Soler fora buscar os dois corpos, transportara-os um sobre o outro,
na charrete onde colocavam os tonéis de óleo de oliva para ir vender no
povoado. [...] Depois se cobrira de preto e pelo resto da vida fora uma mulher
silenciosa, o rosto semicoberto por um véu, um indefectível rosário nas mãos.
(IDEM, p. 50)

Apesar da restrita influência nas sociedades, principalmente fora do seio do


lar, onde detinham algum controle, mesmo que mínimo, já que tomavam conta dos
afazeres domésticos e crianças, não podemos tomar submissão como ausência de
ação, visto que essas mulheres, mesmo caladas, questionavam (e questionam
algumas, que vivem na situação relatada ainda nos dias de hoje) essa falta de
notoriedade:
[...] e a mãe teria gostado de poder fazer ouvir sua voz de mulher em meio à
sabedoria deles. Sabedoria falsa, posto que edificada sobre a areia e sobre o
sangue, sabedoria que lutava contra o saber dela, da mãe, que se alimentava

5
Construção social do conjunto de expressões daquilo que se pensa sobre o masculino e o feminino.
Modo como as pessoas percebem o gênero.
6
Estrutura Patriarcal: conjunto de relações hierárquicas entre homens e homens, mulheres e
mulheres, homens e mulheres, caracterizadas pela opressão das mulheres
de experiência e resignação mas que, ao longo dos anos, dos séculos,
soubera formar aquelas gerações de homens secos como troncos de árvores,
de mulheres ativas, trabalhadeiras e que davam à luz em silêncio, orgulhosas
do seu sofrimento calado, de sua capacidade de levar adiante a vida, tal qual
o haviam feito suas antepassadas. (IDEM, p.45)

Desde o início dos primeiros agrupamentos humanos, as mulheres foram


curandeiras e parteiras, detendo conhecimento sobre o corpo humano, que
transferiam geração após geração. Elas reuniam- se em grupos, onde debatiam e os
trocavam. Ao longo dos séculos, esses grupos foram sendo reprimidos, levando
várias mulheres à fogueira na idade média, por exemplo. As mulheres continuaram
detendo conhecimento, mas sua voz foi silenciada.

10. Mães, netas e avós

Além das personagens femininas de maior importância na trama – Maria e Mercedes


– e de Amparo Soler, que tem sua história citada no capítulo X, como exposto
anteriormente, outros seres, também femininos em sua maioria, (visto que o gênero
também é objeto de estudo neste artigo) povoam o percurso da narrativa, como
exemplificam os trechos abaixo:

“As avós e os netos compartilhando com pais e filhos a fruição da vida, o


queimar-se a vida como se queima uma vela pelas duas extremidades. (...)
Transnoche dises costumava dormir, às dez, às onze horas, transnoche
diziam, e os niños e as abuelitas firmes, despertos como se nunca fossem
chamados a se acostar, eternos semideuses para os quais só importava o
assado, tudo o mais secundário, desimportante.” (FERREIRA, 2002, p.20)

Também em:

“A pracinha se conservara, com crianças brincando na areia e as mães as


vigiando, nervosas, impacientes. Algumas aproveitavam do brinquedo dos
filhos para ler um livro, folhear uma revista.
Uma senhora idosa veio se sentar ao meu lado e fechou os olhos ao
sol, [...]. Quando escurecesse, eles voltariam aos lares e as mães
preparariam o jantar, e as crianças preparariam os deveres escolares, e
olhariam a televisão juntos, e os dias seguintes não difeririam muito daquele
[...].” (FERREIRA, 2002, p.88)

Sobre esses seres que não influem diretamente no decorrer da narrativa,


GANCHO afirma o seguinte:
“Personagem é um ser que pertence à história e que, portanto, só
existe como tal se participa efetivamente do enredo, isto é, se age ou
fala. Se um determinado ser é mencionado na história por outros
personagens, mas nada faz direta ou indiretamente, ou não interfere de
modo algum no enredo, pode-se não o considerar personagem.”
(GANCHO, 1993, p.14)

Discordando desse ponto de vista, vemos em BRAIT a teoria de BORNEUF e


OUELLETT que esses seres, apesar de não possuírem influência direta no
desenrolar do enredo, podem ser considerados personagens, já que tem na
narrativa a função de compor o espaço romanesco. Entre as quatro funções
possíveis descritas na teoria de BORNEUF e OUELLETT, os seres seriam
personagens com função decorativa:

“Personagem com função decorativa, mas nem por isso dispensável,


seria aquela considerada inútil à ação, aquela que não tem nenhuma
significação particular, a que inexiste do ponto de vista psicológico. [...]
Como elemento decorativo a personagem, se está no romance,
desempenha uma função. Ela pode constituir um traço de cor local, ou
um número indispensável à apresentação de uma cena em grupo.”
(BRAIT, 2010, p.48)

As personagens situam-se através da rede de relações que contribuem para a


sua existência, no caso do trecho citado, a composição do espaço. Se as
personagens de um romance agem e revelam-se umas sobre as outras,
comprovamos acima então, que apesar de não ter contribuição psicológica no
desenrolar do enredo, as personagens citadas são importantes para
caracterização do espaço, causando impressões na protagonista, mesmo sem
tocar no seu íntimo ou terem participação nos conflitos apresentados. Revelam-
se como personagens através da outra, a principal.

11. Conclusão

Os acontecimentos nos haviam separado, minha indecisão vencera o amor. (VP p.


214)
Sob o pano de fundo de uma história onde o tema central é novamente o
amor, Luzilá Gonçalves Ferreira traz nas suas personagens desde o inicio da
narrativa, a colocação das relações femininas e familiares, a problematização das
tradições de gênero, numa crítica, numa denúncia à consciência histórica da
condição feminina.
Diferente da tradição literária, a personagem feminina (protagonista) em
Voltar a Palermo foge ao padrão do silenciamento do seu desejo e da sua voz,
perseguindo um objeto de desejo, não sendo ela o objeto dessa vez, apesar das
dificuldades impostas pelo gênero diante do social.
Além disso, como é tendência da literatura moderna, a personagem faz como que
um monólogo interior, ao relatar suas experiências e sensações mais íntimas.
Maria aflora como sujeito e utiliza livremente seu direito de falar, refletir, criticar,
sentir e recriar a realidade, recriando também um novo “eu”.

Referências

FERREIRA, Luzilá Gonçalves. Voltar a Palermo. Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 2002
ATAÍDE, Vicente de Paula. A Narrativa de Ficção, São Paulo, McGraw-Hill do Brasil,
1974

GANCHO, Cândida Vilares. Como Analisar Narrativas. Ed. Ática, São Paulo, 1993,

(MOISÉS, Massaud. A Criação Literária (Prosa), Cultrix, São Paulo, 1982

CANDIDO, Antônio. A Personagem de Ficção. Perspectiva, São Paulo, 2011

AUAD, Daniela. Feminismo: que história é essa? Rio de Janeiro, DP&A, 2033

BRANCO, Lucia Castello & BRANDÃO, Ruth Silviano. A Mulher Escrita. Rio de
Janeiro, Lamparina, 2004

BRAIT, Beth. A Personagem. São Paulo, Ática, 2006

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