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DentalPro   Outras Vidas

Afonso Pinhão Ferreira

“A arte é um exercício
de liberdade”

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Assim que chegámos à Ortopóvoa, situada na Póvoa de Varzim, o ortodontista Afonso


Pinhão Ferreira fez questão de nos guiar pelos meandros da sua clínica. Sabendo de
antemão que a entrevista iria focar a sua veia artística, quis mostrar-nos que a par
da vertente médico-dentária este espaço respira arte por todos os cantos. Nada foi
deixado ao acaso na sua construção e decoração. “Tal como a arte não é acaso: é, isso
sim, uma forma de linguagem técnica, o que obriga à aprendizagem e à prática, isto
é, dá trabalho”. E foi do seu trabalho revestido de hobby que nos falou, um trabalho
que se liga intimamente à sua profissão, um mister que executa com toda a alma e
coração.

DentalPro: Quando despertou para este lado porque eu já misturava as cores intuitivamen-
mais artístico? te. Aconselhou-me a ir para outra escola, mas
Afonso Pinhão Ferreira: Quando era miúdo di- não fui.
ziam que desenhava bem. Mas, olhando para
trás, acho que tive péssimos professores de DP: Decidiu aprender sozinho?
desenho e talvez tenha sido isso que me parou APF: As pessoas costumam dizer que sou au-
no tempo. Só depois de casado é que voltei a todidata, o que é verdade, mas sou um autodi-
dedicar-me ao desenho e à pintura. Tenho o data que sabe procurar o conhecimento sobre
privilégio – e reconheço que é um privilégio – a cultura da arte. Como eu e a minha mulher
de ser polivalente. sempre fomos apaixonados por arte, quando
juntávamos algum dinheiro comprávamos al-
DP: Começou a estudar desenho e pintura? gumas peças. [Lembro-me de ainda não ter
APF: Abriu um curso de pintura numa coope- sala de jantar e de ter comprado uma peça de
rativa artística que existe na Póvoa de Varzim, arte às prestações. Isto é engraçado relem-
A Filantrópica. As aulas eram noturnas e co- brar...] Temos hoje uma pequena coleção de
mecei a frequentá-las com o meu colega arte, mas para “montar” essa coleção foi pre-
Carlos Silva, também médico dentista. Na pri- ciso ler, estudar, conhecer o artista, ir às ex-
meira sessão, puseram-nos lá uma jarra para posições, ver os catálogos, comprar livros de
fazermos desenho à vista, para o professor arte, etc.. E ainda hoje é assim, vamos de fé-
ver a nossa capacidade e em que ponto está- rias para ver exposições. Foi esta assimilação
vamos. Quando o mestre viu o meu desenho cultural, oriunda do colecionismo, das visitas,
disse que tinha muita dificuldade em fazer o da leitura e dos vídeos, que me deu uma for-
que eu tinha feito. “Isto está um espetácu- mação abrangente. Atualmente, acho que já
lo! Em desenho não tenho nada para lhe ensi- posso dizer que sou um artista. Tenho um cur-
nar”, afirmou. Mas eu respondi que tinha ido rículo engraçado que, apesar de ser pequeni-
para aprender a pintar. E, na segunda aula, pe- no, não me envergonha. Também escrevo so-
diu-nos para fazer a mesma jarra numa hora, bre arte e apresento conferências sobre esta
em vez das duas estipuladas na aula anterior. temática. E só possuo essa formação porque
E depois em meia hora e em 15 minutos, de- procuro o conhecimento.
pois em sete minutos e meio, até chegar aos
15 segundos. Só na terceira aula comecei a DP: Sente-se especial ou é apenas um aluno
pintar. Uma pessoa posou para esse efeito muito aplicado?
e, no fim, o professor disse-me que também APF: As pessoas não são umas mais especiais
não tinha nada a aprender ali, nesse campo, do que outras. As pessoas distinguem-se pela

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atenção que dão aos seus talentos, aprofun-


dando o conhecimento nessas áreas. É assim
que surgem os génios, apesar de serem huma-
nos como nós. Tiveram foi a sorte de desco-
brir as suas apetências e trabalhar loucamente
nelas. Tal como na arte dentária, há uns que
se distinguem dos outros, porque aprofundam
conhecimentos, correm certos riscos e traba-
lham muito.

DP: Ainda bem que tocou na medicina dentá-


ria. Aplica a arte à sua profissão?
APF: A medicina dentária, em especial a orto-
dontia, é uma profissão muito artística, uma
vez que o desenvolvimento da estética está re-
lacionado com a arte. No cômputo geral, asso-
cia-se a arte à estética - apesar de não ser essa
a sua definição ou essência - e, nesse aspeto,
a dentária está intimamente ligada à arte. No
retrato e na estética facial, a ligação é então
quase plena. Mas é preciso não confundir os
conceitos de arte, pois, por exemplo, um in-
divíduo que faz um martelo também está a
construir qualquer coisa. E o que diferencia
uma obra de arte de um simples martelo? É o
artesão e o artista, tem a ver com a utilidade
e com a apreciação da obra. Quando uma peça
transmite a outros uma coisa além da coisida-
de que a define poderá ser uma obra de arte.
me leva a criar é a satisfação de acabar uma
DP: E porque faz arte? obra, mas dura pouco tempo... logo depois, já
APF: Para me libertar! Há um grande filóso- estou a pensar no que vou fazer a seguir (ri-
fo português, professor na Universidade de sos). Ao fim de semana sou capaz de pintar
Coimbra, o Delfim Santos, que escreveu o li- durante 16 horas. Como vê, a minha arte já
vro “O Exercício Experimental da Liberdade”, não é um hobby. É raríssima a semana em que
e o que ele quer transmitir é que a prática ar- não pinte, ou que não esculpe, ou que não de-
tística é um exercício de liberdade. Portanto, senhe, ou que não imagine. Estou inexoravel-
gosto da arte porque quando estou a criar sin- mente ligado à arte.
to-me no paraíso, completamente livre. Não
tenho receios nem medos, estou ali sozinho DP: Inspira-se em alguém quando pinta?
no meu mundo, em paz, a ensaiar, a experi- APF: As influências surgem-nos vindas de al-
mentar, a criar, estou a dar liberdade ao meu gum lado e num dado tempo. Se eu tivesse
ser. É um exercício experimental de liberdade. nascido em Roma, por exemplo, provavelmen-
Se soubessem disto, as pessoas eram mais ar- te as minhas influências seriam outras. O van-
tistas, procuravam mais a arte, e seriam mui- guardismo é das minhas primeiras influências,
to mais felizes. É uma recomendação que faço porque era o tema predominante nos livros a
a quem ler esta entrevista. Outra razão que que tinha mais acesso. Li esses livros todos,

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fui colhendo informações e técnicas de pintu- DP: Tem ideia do número de obras que já
ra… e tudo isso contribuiu para a minha for- criou?
mação nos primeiros tempos. Depois comecei APF: Cerca de 300. Mais ou menos 12 escultu-
a alargar os meus horizontes, pois, quando se ras, quase todas em bronze, e as restantes são
estuda a história e a evolução da arte, come- pinturas. A escultura surgiu muito mais tarde
ça-se a ver que há imensos campos para além na minha vida, só há cerca de seis anos.
do vanguardismo. Hoje tenho uma formação
muito mais abrangente, como é lógico. DP: E como surgiu?
APF: Tenho um grande amigo, um dos maiores
DP: Que tipo de pintor é? escultores em Portugal neste momento (José
APF: 90% das vezes faço retratos, mas tam- António Nobre), que tem tido um papel muito
bém pinto algumas paisagens. Porém, sou es- importante na minha vida. Um dia fiz-lhe um
sencialmente retratista. Adoro observar a ex- retrato a óleo e uns meses depois fez uma es-
pressão humana. Hoje temos a sorte de poder cultura minha, em barro. Ele disse: cada um
pintar através de uma fotografia, mas nem dá ao outro aquilo que sabe fazer. Quando me
sempre isso chega. Muitas vezes peço para as encontrei com ele, para poder executar uns
pessoas posarem para mim, para as poder re- acabamentos na escultura, aquela arte encan-
tratar em condições, em toda a sua essência. tou-me. Na altura, disse-lhe que talvez fosse

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capaz de fazer a cara de uma pessoa em bar- contemporânea, que pode ser visitado tanto
ro. E ele afirmou que tinha a certeza disso, pelos utentes da Ortopóvoa como pelos seus
dada a minha arte retratista. No Natal seguin- familiares ou por qualquer outro apreciador
te, ofereceu-me uma caixinha de ferramentas, de artes plásticas. A Póvoa de Varzim tem as-
com todos os utensílios para trabalhar o bar- sim mais um espaço dedicado a manifestações
ro. Foi a partir daí que comecei a dedicar-me à culturais e artísticas, onde se realizam expo-
escultura. sições periódicas de vários artistas. Portanto,
além de fazer arte, patrocino arte. Sou eu que
DP: A Ortopóvoa possui uma galeria de arte. invisto nos artistas, sem qualquer tipo de cus-
Qual é o papel deste espaço? tos para eles. Já tivemos 20 exposições de pin-
APF: Quando edificámos esta nova clíni- tura, escultura, desenho e colecionismo. A 20ª
ca, há cerca de seis anos, decidimos criar inaugurou em julho passado e englobou a pin-
um espaço para divulgação de obras de arte tura de Josep Ros, um surrealista/simbolista
espanhol. A terceira exposição
foi minha (risos). Chamava-se
60x70, porque todos os qua-
dros tinham essas medidas, e
incluiu cerca de 20 telas de re-
tratos de pessoas influentes.

DP: Que mensagem gostaria


de deixar aos nossos leitores?
APF: Ao longo desta conversa,
fui deixando algumas mensa-
gens, mas destaco duas. Em
primeiro lugar, e dando segui-
mento à resposta anterior, as
relações entre as coisas per-
mitem fazer grandes coisas.
Por exemplo, eu ligo a arte à
clínica em vários sentidos, no-
meadamente através do mar-
keting, das exposições, dos ca-
tálogos, da imprensa local... e
eu próprio usufruo dessa van-
tagem. A outra mensagem as-
senta na ideia de, para se ser
feliz, as pessoas têm que ter
objetivos conseguidos e, para
ter esses objetivos, têm que
ver aquilo em que são bons,
estudar e trabalhar nesse sen-
tido. Posso dar este conselho
porque me considero um ho-
mem feliz. E não há nada mais
importante na vida! <

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