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Barbara Goulart
Caxambú, 2016
Resumo: O paper analisa o processo social, político e moral de construção das
memórias coletivas sobre a ditadura militar no Brasil. Primeiro eu discuto o conceito de
justiça de transição e como ele foi aplicado no caso brasileiro. Depois eu mostro a
importância da memória no processo de redemocratização, pois permite a erupção de
traumatismos e estimula uma reconciliação da sociedade com o seu passado, ao mesmo
tempo em que reafirma o modelo democrático vigente. Depois discuto a “guerra da
memória” no Brasil, onde há uma disputa entre as memórias dos militares e dos
militantes de esquerda. Afirmo que a esquerda venceu essa guerra, mas que existe um
falso consenso, pois a versão da esquerda que venceu foi uma muito específica, onde há
um mito de resistência contra a ditadura. No final, foco nas memórias coletivas sobre
João Goulart, pois elas explicitam a pluralidade de perspectivas sobre o regime militar.
Palavras-chave: Memória Coletiva; Ditadura Militar; Guerra da Memória; João
Goulart.
Introdução
2
regime militar. Contudo, muito ainda pode ser feito. Como bem disse Elisa Reis (1998),
a sociologia política é capaz de analisar o passado como resultado de uma série de
processos sociais, reunindo teias de determinações e escolhas. É capaz então de
promover um diálogo entre os parâmetros estruturais e as escolhas individuais que
explicam o passado (REIS, 1998, pg. 8).
(...) ao lado de uma história escrita, há uma história viva que se perpetua ou se
renova através do tempo e onde é possível encontrar um grande número dessas
correntes antigas que haviam desaparecido somente na aparência. (...) A
lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de
dados emprestados do presente, e, além disso, preparada por outras
reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora
manifestou-se já bem alterada (HALBWACHS, 1990, p. 67 e p. 71).
1
Em outro texto, o termo “blanket amnesty” é traduzido em português como “anistia protetiva” ou
“anistia obstinada” (PAYNE et. al, 2013). A primeira tradução ilumina o aspecto de proteção da anistia,
que protege os responsáveis pelos crimes da ditadura, e a segunda tradução ilumina o aspecto de
persistência desse tipo de acordo, que não é capaz de superar o modelo de anistia proposto pelos militares
e onde a impunidade permanece.
5
A incapacidade legal de processar militares e policiais, fez com que o Estado
brasileiro concentrasse os seus esforços nas outras duas dimensões da justiça de
transição. Assim, no Brasil a questão da verdade e da reparação aparece de maneira
muito mais evidente do que o aspecto punitivo da justiça. Até hoje ninguém foi
efetivamente punido pelas vias legais por crimes cometidos pela ditadura militar,
entretanto, muitos passos foram dados para trazer à luz os crimes cometidos pelos
militares e pela polícia, por meio de relatos públicos – onde aqueles que sofreram esses
crimes podem contar a sua história –, e para reparar as vítimas, por meio de
indenizações pagas pelo Estado. É por isso que argumento que a dimensão da memória
é fundamental no processo brasileiro de justiça de transição. A possibilidade de relatar
publicamente o que sofreram serve de amparo para as vítimas brasileiras, que não
podem ver seus algozes condenados.
2
Vale a pena mencionar que quando falamos em memórias sobre a ditadura, infelizmente estamos nos
referindo a um setor muito pequeno da sociedade, com escolaridade e renda considerável, que conhece os
eventos políticos que ocorreram no pais entre 1964 e 1985. Estudo recente mostra que grande parte da
população brasileira não tem conhecimento do que ocorreu no país nessa época e não tem memórias sobre
a ditadura (CERQUEIRA e MOTTA, 2015).
6
passa a ter valor não apenas para a própria vítima em questão, mas se torna parte de toda
a memória coletiva do país sobre aquele período. Os sobreviventes tornam-se portadores
da memória dos crimes da ditadura, ou “arquivistas da tragédia3” (CANDAU, 2005, pg.
61). Assim, eles são representantes do que foi vivido não apenas por eles, mas pelo
próprio Brasil, por isso suas memórias passam a ser de interesse nacional.
A análise pode ser aplicada à ditadura militar brasileira – assim como de outros
países latino-americanos – já que muitas vítimas nunca foram encontradas e foi
necessário criar documentos e relatos escritos para comprovar e lembrar o ocorrido,
3
Expressão cunhada pelo antropólogo Joel Candau (2005) para comentar sobre as vítimas do nazismo
que publicaram suas memórias do período.
4
Apesar de o livro tratar sobre os testemunhos das vítimas da ditadura, nesse caso Sarlo (2007) está
falando sobre os testemunhos dos sobreviventes do Holocausto. Entretanto, acredito que seu argumento
possa ser aplicado para o caso das ditaduras militares.
5
“The missing gravestone syndrome” no original, expressão utilizada para falar sobre o Holocausto.
7
porque não havia provas físicas das mortes. O trabalho da Comissão Nacional da
Verdade é um exemplo disso. Outro exemplo é a prática recorrente em diversos países
latino-americanos de se dizer os nomes dos mortos, seguido da palavra “Presente!”, pois
explicita a necessidade de manter vivos na memória os abusos sofridos por aqueles que
não puderam relatar o sofrido. Assim, apesar de fisicamente ausentes – muitas vezes até
mesmo seus corpos nunca foram encontrados – eles estão vivos na memória dos
sobreviventes.
8
audiências públicas com os relatos das vítimas, e chamadas para iniciativas da
sociedade civil, incluindo pesquisas, exposições, peças de teatro, etc.
Menciono também o livro 68: A geração que queria mudar o mundo, também
realizado pela Comissão da Anistia, e organizado por Eliete Ferrer, do qual participaram
100 autores em 170 relatos. No prefácio escrito pela equipe da Comissão de Anistia, os
autores enfatizam que no Brasil, anistia significa memória. E essas memórias servem
como fundamentos da reparação às violações, mas também como uma reflexão
necessária sobre a importância da não repetição dos atos arbitrários cometidos pela
ditadura. Enfatizam também que essa reparação é coletiva, pois como dizem os
próprios, “esquecer a barbárie equivaleria a nos desumanizar” 6. Corrobora assim meu
argumento anterior, de que o testemunho das vítimas se torna parte das memórias
coletivas do país sobre a ditadura, pois é moralmente necessário que todos se lembrem
do ocorrido.
6
A frase está na página 9 do livro, no texto escrito pela Comissão de Anistia, mas sem especificar o nome
dos autores.
7
http://memorialanistia.org.br
9
da Justiça para aqueles que desejam requerer sua anistia política8, e o projeto Memórias
Reveladas 9 do Arquivo Nacional e institucionalizado pela Casa Civil da Presidência,
que coloca à disposição do público os arquivos da ditadura que faziam parte da Agência
Brasileira de Inteligência (ABIN). Há também o portal de internet Memórias da
Ditadura 10 , realizado pelo Instituto Vladimir Herzog e apoiado pela Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República, que tem o objetivo de divulgar a
História do Brasil no período de 1964 a 1985. Sinalizo assim para a vastidão dos
projetos de memória sobre a ditadura.
8
http://justica.gov.br/seus-direitos/anistia
9
http://www.memoriasreveladas.gov.br
10
http://memoriasdaditadura.org.br/
11
O que não significa que a questão está solucionada, pois muitos ainda lutam a favor do encarceramento,
como ocorreu em outros países da América Latina.
10
certezas absolutas. A rememoração se torna então um instrumento de assimilação, que
comemora uma memória tranquilizadora de êxito adquirido após o sofrimento e vontade
(VINYES, 2015, pg. 227). Por isso, defendo que ainda é necessário investigar mais a
fundo as memórias sobre a ditadura, revelando seus aspectos conflitivos e antagônicos,
em vez de sublinhar apenas a chamada “boa memória” da reconciliação.
Argumento que por meio de uma análise crítica das narrativas sobre a ditadura –
estudada a partir das construções simbólicas que ela representa –, é possível entender
melhor o próprio período em questão. Como disse Paul Veyne (1968), “a História é
quer uma série de acontecimentos, quer a narração desta série de acontecimentos”
(VEYNE, 1968, p. 423). E ao mesmo tempo, essas narrativas não são incidentais, elas
são baseadas em crenças prévias dos narradores sobre os eventos em questão. Pretendo
analisar quais crenças são essas e como elas foram construídas.
A Guerra da Memória
11
públicas. Assim, haveria um grupo dominante e um grupo reprimido que disputariam a
memória desse mesmo evento.
O quadro interpretativo proposto por Pollak (1989) pode ser apropriado para a
análise do caso brasileiro, onde Martins Filho (2003) argumenta que há uma chamada
“guerra da memória” da ditadura, em que os diversos atores políticos do período
questionam a veracidade dos fatos apresentados pelos outros personagens. Assim,
múltiplas memórias são construídas a partir de um mesmo fato, evento ou pessoa. Em
sua análise, Martins Filho (2003) separa dois grupos principais que batalham pela
memória da ditadura militar. Os primeiros seriam os militares que fizeram parte da
ditadura, e os segundos seriam os ex-militantes de esquerda, principais vítimas da
repressão política e especialmente da tortura. Nesse contexto, no caso da memória dos
militares que apoiaram a ditadura, o que parece ser o objetivo deles é o próprio
esquecimento do período em questão. Enquanto isso, os militantes sobreviventes da
repressão, lutam para que a memória dos anos 1960 e 1970 se mantenha viva no Brasil
(MARTINS FILHO, 2003).
Assim, o que está em questão não são apenas duas memórias divergentes do que
de fato aconteceu durante a ditadura, mas um conflito em si próprio entre Memória e
Esquecimento. Enquanto os militantes querem lembrar, os militares querem esquecer-se
do ocorrido. São compreensões diferentes do que foi a Lei da Anistia de 1979. Para os
militares, a anistia comprova que é necessário esquecer, principalmente para evitar o
revanchismo. Segundo eles, os militantes de esquerda também cometeram “crimes” e
era necessário esquecer os “crimes” cometidos por ambos os lados para o país poder
seguir adiante. Mais uma vez segundo eles, a divulgação constante do que ocorreu
durante a ditadura comprovaria que a anistia geral e irrestrita só estaria sendo aplicada
para os militantes e não para os militares em questão12 (MARTINS FILHO, 2003, pg.
2).
12
Vale a pena pontuar que os militares parecem se esquecer que os militantes de esquerda já foram
“punidos” pelos “crimes” que cometeram – foram presos, torturados, mortos ou exilados –, enquanto
militares e policiais que cometeram crimes de violação dos direitos humanos saíram ilesos da ditadura
militar.
12
memória militar que devem ser mencionadas. Entre as principais obras está Visões do
Golpe: A memória militar de 1964 (1994), livro organizado por Maria Celina D’Araújo,
Gláucio Ary Dillon Soares e Celso Castro. O livro analisa as memórias dos militares
sobre o golpe de 1964. Nessa mesma linha de estudo está o livro Os Anos de Chumbo:
A memória militar sobre a repressão (1994), organizado pelos mesmos autores. Depois
foram publicadas também as memórias de Ernesto Geisel, por meio de depoimentos
cedidos a Fundação Getúlio Vargas e organizados também por D’Araújo e Castro
(1997).
As pesquisas sobre essa temática têm como ponto em comum uma explícita
tentativa por parte dos militares de utilizar seus relatos pessoais como forma de
combater o discurso dominante atual sobre a ditadura. Assim, os militares utilizam a
oportunidade de contar sua história como forma de questionar a validade do discurso
dos militantes de esquerda. Para isso, os entrevistados delineiam o regime sob uma
perspectiva mais positiva, buscando justificar a implementação da ditadura.
É válido mencionar também que o silêncio dos militares contribui para a falta de
informação disponível sobre os bastidores do golpe e do próprio regime. Por se tratarem
de trabalhos estritamente na área de memória e História Oral, essas obras relatam
apenas aquilo que os próprios militares escolheram relatar. A dificuldade de acesso aos
documentos da ditadura impediu análises mais profundas sobre a extensão da atuação
militar e sobre as suas práticas de repressão e principalmente de vigilância, que
permanecem obscuras até hoje. O que se sabe sobre o assunto se limita ao arrazoado de
elementos que são de conhecimento das vítimas que sobreviveram à repressão. Dados
trocados apenas entre os militares são ainda desconhecidos e informações que
comprovem as perseguições políticas são muito difíceis de encontrar, pois são assuntos
que – por razões óbvias – não são discutidos abertamente por eles.
13
sobretudo os políticos civis – venais.” A doutrina tinha um viés saneador, buscando
extirpar as figuras de esquerda do cenário político brasileiro, justificando, portanto, o
golpe (FICO, 2004, pg. 39). A análise de Luis Felipe Miguel (2002) também reafirma a
presença de um discurso de superioridade moral e técnica entre os mesmos. Salienta
também os aspectos contraditórios da doutrina, que se posicionava contra o Estado
liberal-democrático – considerado incapaz de garantir a segurança nacional – embora
seja esse o Estado que encarne o ideal ocidental defendido pelos militares e combatido
pelo comunismo (MIGUEL, 2002, pg. 44).
Vale a pena também citar aqui as memórias sobre o general Castello Branco.
Livros como os de Luís Viana Filho (1975), chefe da Casa Civil durante seu governo, e
Daniel Krieger (1976), líder do governo, ajudaram a cimentar uma memória do general
como alguém “moderado” e até mesmo “legalista”. Entretanto, esse ponto de vista foi
contestado nas obras de Jayme Portella de Mello (1979) e Hugo Abreu (1979), que
questionaram a unanimidade dessa opinião. A disputa de memória também aparece na
biografia do general, escrita por Lira Neto (2004).
14
Cito também a polêmica em torno da memória do “golpe dentro do golpe”.
Nessa linha de pensamento, o período posterior ao AI-5 é visto de maneira totalmente
separada e diferente do período de 1964 até 1968. Entretanto, livros que publicaram as
memórias dos militares, como o de D’Araújo, Castro e Soares (1994), se posicionam
contra esse ponto de vista, pois através das entrevistas argumentam que já havia a
chamada “utopia autoritária” muito antes de 1968, em que se acreditava que primeiro
era necessário eliminar as ditas “subversões”, para que o país pudesse voltar à
democracia (D’ARAÚJO et. al., 1994, pg. 9).
A questão das memórias militares sobre repressão e tortura também precisa ser
levantada. É comum nessas memórias o argumento de que os excessos de violência
seriam da responsabilidade de subalternos, que teriam desvirtuado o regime e atuado
sem a aprovação dos oficiais e generais. Entretanto, Fico (2001) argumenta que essa
tese não se sustenta, principalmente para o período posterior ao AI-2, após a
implantação do DOI-CODI em 1969, pois o sistema mesclava policiais civis, policiais
militares e militares das três forças. Assim, não era possível que eles não soubessem o
que estava ocorrendo. Até mesmo no livro de Elio Gaspari (2003), mais simpatizante
em relação aos militares do período da abertura, aparece a seguinte frase, dita pelo
General Geisel, que ganhou reputação de moderado13: “esse negócio de matar é uma
barbaridade, mas eu acho que tem que ser” (GASPARI, 2003, pg. 324).
Pelo o que foi escrito até aqui, é possível perceber que os relatos não se tratam
de narrativas neutras sobre o passado, mas são histórias a partir de um ponto de vista
pessoal. Como disse Fentress e Wickham:
13
A reputação de moderado do general Geisel pode ser comprovada no próprio livro de Gaspari (2003),
onde ele diz: “Quando [Geisel] assumiu havia uma ditadura sem ditador. No fim de seu governo, havia
um ditador sem ditadura” (GASPARI, 2003, p. 35). Entretanto, essa reputação é questionável quando
olhamos para a história, pois dois assassinatos políticos de grande repercussão ocorreram durante seu
governo, o do operário Manuel Fiel Filho e do jornalista Vladimir Herzog.
15
Assim, argumento que as lembranças dos militares servem não apenas para recontar o
passado, mas para justificá-lo no presente.
É visível que o campo da memória social tem uma conotação política explícita.
A memória aparece como mecanismo de luta política, mostrando a tentativa por parte
dos militantes de mudar sua posição política no presente. O processo de democratização
do país foi um momento de clivagem política, onde a retórica sobre o passado pode ser
usada para legitimar a força desses grupos no presente democrático. Pollak (1989)
escreveu14:
Acredito que o argumento possa ser aplicado à memória das esquerdas no Brasil.
As narrativas que antes eram subterrâneas e proibidas pelo regime militar – que também
objetivava uma dominação hegemônica –, foram desenterradas e trazidas à tona com o
processo democrático. Assim, essa mudança política foi um “sopro de liberdade de
críticas, que despertou traumatismos profundos” (POLLAK, 1989, pg. 5). Não é preciso
ser um ávido estudioso da ditadura militar brasileira para saber que nesse caso, a
memória dos ex-militantes acabou se tornando hegemônica após a transição
14
Nesse caso, Pollak (1989) estava escrevendo sobre a divulgação dos crimes do stalinismo, mas acredito
que sua argumentação pode ser aplicada para a análise do processo de democratização do Brasil.
16
democrática, se intensificando ao longo dos anos. Enquanto isso, a memória dos
militares foi cada vez mais rejeitada e vista como resquícios de golpismo na sociedade
brasileira15.
O Falso Consenso
15
Entretanto, a análise de Faria Pereira (2015) sugere que o discurso revisionista, que relativiza os crimes
da ditadura, é mais forte e amplo do que se pensava. Frases de exaltação do regime militar proferidas por
políticos como Jair Bolsonaro, que tem um eleitorado considerável, parecem sinalizar o mesmo.
16
O livro de Gabeira foca principalmente no sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil,
Charles Burke Elbrick, ação armada da qual ele participou, mas com um papel pequeno. O sequestro
ocorreu em setembro de 1969 e foi realizado por integrantes dos grupos guerrilheiros de esquerda MR-
8 e Ação Libertadora Nacional, que conseguiram trocar o embaixador por companheiros presos.
17
Os três patetas aos quais Aguiar (2001) se refere são os três ministros militares que comandaram o país
após o afastamento de Costa e Silva em setembro de 1969, por motivos de saúde, e até a posse de
Garrastazu Médici, em novembro do mesmo ano. A Junta era composta por Aurélio de Lira Tavares
(Exército), Augusto Rademaker Grunewald (Marinha) e Márcio de Souza Melo (Aeronáutica).
17
esquerda armada proposta por Gabeira (FICO, 2004, pg. 32). O próprio Sirkis admite
que no Brasil a reputação dos ex-guerrilheiros é muito melhor do que em países como a
Argentina. Entretanto, ele não atribui isso a influência de sua biografia ou a de Gabeira,
mas argumenta que a guerrilha argentina causou muito mais mortes e dificultou o
processo de democratização do país (SIRKIS, 1998, pg. 25). Apesar de ser possível
discutir os motivos históricos para essa reputação mais positiva dos brasileiros –
discussão que vai além do escopo da presente pesquisa –, mesmo que as biografias de
Gabeira e Sirkis não sejam responsáveis pela criação dessa reputação, é inegável que
elas pelo menos ajudaram a difundi-la. Em outro momento do livro, Sirkis também
afirma que saiu da escola com “ânsia de ser herói” (SIRKIS, 1998, pg. 132), o que se
tornou então uma profecia auto-realizada.
18
Edson Luís de Lima Souto morreu em 28 de março de 1968, durante um protesto contra o aumento do
preço da comida no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro. Ele foi assassinado por policiais militares e
sua morte se tornou um símbolo da luta contra a ditadura, marcando também o início das manifestações
populares contra o regime, que foram proibidas com a decretação do AI-5 no final do mesmo ano.
18
“ele poderia ser nosso filho”, e não por causa de um claro conflito ideológico contra o
regime autoritário de direita. Nesse caso, é provocada então uma pessoalização da luta
contra o regime, onde as propostas políticas do movimento de esquerda, do qual ele
participava, ficam em segundo plano. Ao longo do livro, Gabeira sinaliza que as
manifestações populares diminuíram progressivamente, passando de “Passeata dos cem
mil” para “Passeata dos 25 mil” – títulos de dois capítulos do livro. Entretanto, isso
parece se dar muito mais pelo aumento da repressão, causando medo entre a população,
do que por uma genuína falta de interesse de diversos setores em lutar contra o regime.
19
A versão original do livro foi publicada em 1977, mas rapidamente foi censurada e saiu de circulação.
Só voltou novamente às prateleiras em 1979, logo antes da aprovação da Lei da Anistia.
19
que segundo o autor estava crescendo, podendo resultar de fato em uma possível
revolução de esquerda. Por isso o caráter preventivo do golpe.
20
simplificação da história, onde é construída uma narrativa maniqueísta, dos bons contra
os maus.
20
Claire Moon (2006) analisa o processo de reconciliação política da África do Sul após o fim do
Apartheid.
21
questões sociais presentes no Brasil de hoje, como o conflito entre democracia e
autoritarismo, por exemplo.
É importante dizer que as análises que serão aqui mencionadas não se tratam de
trabalhos sobre memória, mas sim sobre história. O motivo óbvio para isso é que não
existem pesquisas que analisem especificamente as memórias coletivas sobre Jango.
Elas são todas análises históricas que discutem os eventos políticos e a atuação do ex-
presidente no período em questão. As memórias são mencionadas como fonte de
História Oral, contribuindo para a análise do historiador, e não como objeto em si
próprio de pesquisa sociológica sobre construções de memórias coletivas. Entretanto,
22
argumento que essas análises históricas também podem ser apropriadas para se falar
sobre memória.
23
primeira tentativa de estudar o governo Jango em sua especificidade. Moniz Bandeira
buscou estudar o governo Jango mais a fundo, para além do golpe militar que viria a
seguir. Nela, o autor relata o período em que ele esteve na presidência até o momento do
golpe.
21
Para clarificar, cito aqui a entrevista do general Muricy para o CPDOC. Ele diz sobre Goulart: “Ele era
um homem culturalmente despreparado, apenas um bom fazendeiro, um bom criador de bezerro.”. E em
outro momento ele fala sobre a “estratégia de comunização” de Goulart e sobre a “ascensão de Jango
junto às forças de esquerda”. MURICY, Antônio Carlos da Silva. Antônio Carlos Murici I (depoimento,
1981). Rio de Janeiro, CPDOC, 1993. Villa repete argumento similares, dizendo que quando nos
aproximamos historicamente de Goulart, a imagem de “destemido é substituída pelo fraco”, “o político
hábil aparece como inconsequente”, que teria chegado a presidência como “fruto da fortuna e não da
virtude”. Ao mesmo tempo fala da “guinada à esquerda” do presidente e que em diversos momento de sua
trajetória na presidência, “ele ameaçou com a possibilidade de dar um golpe de Estado” (VILLA, 2004,
pg. 7-9). Os dois colocam Goulart como fraco e golpista. Assim, apesar da discussão sobre a verdade
histórica desse argumento estar além do escopo do presente trabalho, é inegável que os argumentos de
Muricy, militar e um dos articuladores do golpe de 1964, e de Villa, historiador, são bastante semelhantes.
22
Cito Muricy mais uma vez: “A Revolução de 64 era contra a transformação do Brasil, contra o caminho
do Brasil para a anarquia”. E Villa: “O golpe de estado acabou ocorrendo, só que contra ele [Jango]”
(VILLA, 2004, pg. 9). Assim, apesar das nomenclaturas diferentes, os dois concordam que o movimento
de 1º de abril de 1964 ocorreu graças a inabilidade e tendências golpistas de Jango.
23
http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u46767.shtml
24
Entretanto, a maioria dos historiadores nessa nova leva de pesquisas analisou o
ex-presidente de forma mais positiva, buscando trazer novas perspectivas sobre a figura
de Jango. Muitos também criticaram a análise teleológica de seu governo, evitando
colocar sua derrubada como desfecho inevitável do contexto político do período. Nessa
linha de estudos está o livro de Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira, intitulado
Jango: as múltiplas faces (2007), onde são expostas as memórias de diversos
personagens daquele período. Como foi mencionado anteriormente, os próprios autores
afirmam que Jango é um presidente esquecido ou lembrado em “chave muito
crítica/negativa”. Assim, é necessário estudar mais a fundo as memórias sobre ele,
enfatizando principalmente a pluralidade de perspectivas nos relatos sobre o ex-
presidente. Entretanto, por se tratar de um trabalho de historiadores, as memórias são
mostradas apenas como fontes orais para se analisar o governo Jango. Ainda
permanecem em aberto os motivos sociais e políticos pelos quais essas memórias foram
construídas.
Na mesma linha está a coletânea organizada por Marieta Moraes Ferreira, João
Goulart: entre a memória e a história (2006). Nessa obra, diversos historiadores e
cientistas sociais buscam analisar de forma mais detida vários aspectos do governo
Jango. O livro inclui capítulos sobre o trabalhismo, a questão agrária, o golpe,
anticomunismo, etc., incorporando então as temáticas principais do período político.
Menciono também a obra de Munteal, Ventapane e Freixo, O Brasil de João Goulart:
um projeto de nação (2006). Apesar de o livro ser constituído por artigos já publicado
sobre o tema, a introdução dos autores e o posfácio de César Benjamin sinalizam a
necessidade de olhar para Jango sob um novo olhar, estudando as especificidades de seu
governo e indo além de uma análise exclusiva sobre os eventos que resultaram no golpe
militar.
Conclusões
Entretanto, é necessário também pensar nos efeitos em longo prazo desse tipo de
argumentação. A presença de espaços de não-resistência nas memórias subterrâneas
sobre o período militar serve como argumento para a teoria de Aarão Reis (2000), de
que na verdade a ditadura foi muito mais um resultado da colaboração entre civis e
24
A partir das descomemorações dos 50 anos do golpe, foi possível perceber uma variedade maior de
relatos sobre a ditadura. Fico (2004) argumenta: “A explicação certamente fundamenta-se no fato de que
velhos mitos e estereótipos estão sendo superados, graças tanto à pesquisa histórica factual de perfil
profissional quanto ao que poderíamos caracterizar como um "desprendimento político" que o
distanciamento histórico possibilita: tabus e ícones da esquerda vão sendo contestados sem que tais
críticas possam ser classificadas de "reacionárias". Processa-se uma mudança geracional, sendo cada
vez mais frequente que pesquisadores do tema não tenham parti pris” (FICO, 2004, pg. 30). Não sou tão
otimista quanto Fico, pois a variedade de perspectivas nas análises sobre o passado não significa
necessariamente que essas pesquisas todas sejam de qualidade. Mesmo assim, sinalizam para uma maior
multiplicidade de memórias sobre a ditadura.
26
militares25, do que um regime exclusivamente imposto de cima para baixo, fato que a
memória dominante estaria escondendo. Porém, é necessário apontar até que ponto o
argumento da existência de uma ditadura civil-militar é válido, já que como apontou
Renato Lemos (2012), o apoio civil ao golpe e à ditadura é uma informação muitas
vezes utilizada por segmentos militares para legitimar o golpe e a própria ditadura.
Assim, como resolver esse impasse? Até que ponto explicitar o apoio civil a ditadura
sem legitimá-la perante a sociedade?
Talvez a melhor solução seja esta proposta por Carlos Fico, de que o golpe de
1964 foi civil-militar, mas que a ditadura foi estritamente militar (FICO, 2004, pg. 52).
Assim, é possível explicitar o apoio de uma considerável parte da população ao regime
em seus momentos iniciais 26 , mas também sublinhar que à medida que a ditadura
avançava e endurecia, o apoio popular foi diminuindo cada vez mais, eventualmente
resultando no processo das “Diretas Já”. Enfatizo que dizer que houve apoio civil, não
significa dizer que o que ocorreu não foi um golpe e que o regime implantado não foi
uma ditadura, como argumentam alguns militares que defendem a ideia de “revolução”
(D’ARAÚJO et. al., 1994). Pelo contrário, justamente pelo caráter autoritário, violento e
ilegal do ocorrido, todos querem se eximir da responsabilidade. Assim, a história oficial
obscurece não apenas o apoio ao golpe, mas também os momentos de não-resistência,
onde não havia apoio explícito, mas também não havia um posicionamento claro contra
o regime.
25
Dreiffuss também argumenta que a ditadura foi civil-militar, pois cargos importantes no governo
Castello Branco foram dados a "homens-chave dos grandes empreendimentos industriais e financeiros e
de interesses multinacionais" (DREIFFUS, 1981, pg. 455). Entretanto, esses homens vinham muito mais
das elites brasileiras que formavam as organizações civis IPES e IBAD, que apoiaram o golpe, do que de
setores mais amplos da sociedade. Enquanto isso, Aarão Reis enfatiza o caráter amplo desse apoio,
incluindo banqueiros, empresários, industriais, latifundiários, comerciantes, políticos, magistrados e
principalmente a classe média (AARÃO REIS, 1999, pg. 57).
26
Apesar do apoio civil ao golpe, é necessário enfatizar que isso não significa que esses civis
organizaram o golpe. Como disse Soares, o golpe foi uma “conspiração dos militares com apoio dos
grupos econômicos brasileiros” (SOARES,1994, pg.34-5), e não uma conspiração de civis com o apoio
dos militares.
27
um futuro de maior radicalização política. Ademais, com o impeachment de Dilma
Rousseff, não sabemos qual será o futuro da Comissão de Anistia.
Afirmo que não é por acaso que discussões sobre “a guerra da memória” da
ditadura permanecem obscuras, pois o apontamento de suas complexidades leva a
discussões polêmicas sobre o que de fato ocorreu em 1964 e quais fatores levaram a um
dos períodos mais obscuros da história do país, nos levando a pensar também sobre o
que foi acobertado e “esquecido” desse processo e o porquê disso. Pensamos também na
atuação dos atores políticos presentes naqueles eventos, como por exemplo, João
Goulart.
Vale a pena também citar aqui o trabalho de Maria Paula Araújo (2012), que a
partir dos depoimentos dados para o projeto Marcas da Memória: História Oral da
Anistia no Brasil mostra que os entrevistados da ala mais antiga do sindicalismo,
aqueles mais idosos, que foram cassados, presos ou exilados em 1964, tem uma
memória extremamente positiva do governo João Goulart, visto como momento de
glória e período áureo da democracia brasileira. Entretanto, entre outros entrevistados,
sobretudo os militantes mais jovens da esquerda armada, esse período não é valorizado
da mesma forma. Ele é identificado como populista ou reformista, e teria desvirtuado e
enfraquecido o movimento popular que o sustentava (ARAÚJO, 2012, pg. 18-19).
Entretanto, essas questões não são aprofundadas pelos trabalhos expostos acima,
pois o foco de análise não é João Goulart e nem o seu governo. Assim, a partir da
presente pesquisa, será possível expandir essas hipóteses e analisar os elementos
contraditórios entre os diversos discursos sobre o ex-presidente, mostrando assim a
maleabilidade e parcialidade das memórias coletivas construídas pela sociedade
brasileira, sendo continuamente capazes de transformar o passado a partir das questões
do presente. Logo, os aspectos mutáveis e cambiantes das memórias coletivas serão
enfatizados, usando as imagens de Goulart como exemplos históricos desse processo
social. Minha hipótese é que essas memórias servem para responder questões presentes
em diferentes grupos sociais, que reconstruíram o passado de formas distintas. Como
argumentou Andreas Huyssen (2005), as lembranças e os esquecimentos mudam de
acordo com a conjuntura e com as possibilidades e necessidades políticas de cada época.
Quero descobrir então quais foram essas mudanças e por que elas ocorreram.
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