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Entrevista com Věra Chytilová1

por Michel Delahaye e Jacques Rivette

Jacques Rivette: Infelizmente, nóó s sóó cónhecemós um dós seus curtas-metragens:


ó sketch Pequenas pérolas, mas nem Teto (Stróp, 1961) nem Saco de pulgas (Pytel
blech, 1962) nem A rua Verde.

Věra Chytilová: Eu realmente naã ó sei pór que querem exibir A rua Verde aqui, póis
fiz esse filme ainda na eó póca da Escóla de Cinema, antes mesmó de Teto.

Rivette: Quer dizer entaã ó que Teto naã ó eó ó seu primeiró filme?

Chytilová: Ele eó , nó sentidó de que fói ó meu filme de graduaçaã ó. Mas antes, eu jaó
tinha feitó, cómó tódó mundó na Escóla, uns dez filmes de exercíóció. A rua Verde eó
um desses filmes. Mas naã ó eó bóm.

Michel Delahaye: Esses filmes saã ó exibidós para ó puó blicó na Tchecóslóvaó quia?

Chytilová: Naã ó, nunca. E ós uó nicós curtas-metragens que eu góstaria que fóssem


vistós saã ó Teto, Saco de pulgas e Pequenas pérolas.

Delahaye: As pequenas margaridas (Sedmikrásky, 1966) estreóu na


Tchecóslóvaó quia?

Chytilová: Sim, haó póucó tempó. Parece que estaó indó bem. Mas ainda naã ó sei se
ele vai fazer sucessó óu naã ó. Sóó sei que as pessóas que ó viram ateó agóra estaã ó
muitó intrigadas e muitó divididas. Elas ficam, aó mesmó tempó, muitó atraíódas
peló filme e meió embaraçadas.

Rivette: Issó póde criar um clima muitó animadó em tórnó dó filme...

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Publicado originalmente em Cahiers du Cinéma 198, fevereiro de 1968. Tradução de Pedro Henrique
Andrade.

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Chytilová: Sim, mas eó precisó levar em cónta ó fató de que ó filme ainda naã ó fói
vistó peló grande puó blicó, sómente pór um puó blicó limitadó de apaixónadós
interessadós. EÉ um póucó ó equivalente dós seus cineclubes e que nóó s chamamós
em nóssa terra de “Cinemas para espectadóres exigentes”.

Delahaye: Desde entaã ó, vóceê chegóu a trabalhar em óutró prójetó?

Chytilová: Sim, e cóm a mesma cólabóradóra, Marta Krumbachóva. Mas ó filme


permaneceu um prójetó. Era uma cópróduçaã ó canadense. Mas cómó ó pródutór
queria intervir nó róteiró, eu rómpi ó cóntrató. Eu tinha pedidó nó iníóció que
preservassem tóda a minha liberdade. Aceitaram me dar issó, mas, póucó a póucó,
quiseram me impór certas cóisas. Quais cóisas exatamente? Olha, eu dificilmente
cónseguiria dizer, póis ó próó prió pródutór naã ó sabia exatamente ó que ele queria
me impór, mas sempre acóntecia de ele naã ó querer que as cóisas fóssem cómó eu
tinha planejadó. Em póucas palavras, naã ó me impunham nada, mas me diziam: naã ó
queró issó óu naã ó queró aquiló, ó que, a rigór, dava na mesma.

Acreditó, pura e simplesmente, que ó pródutór naã ó tinha entendidó nada. Tudó ó
que se queria era óbter um “filme de arte”, mas tambeó m, eó claró, um “filme
cómercial”. Tudó issó eó muitó bónitó, sóó que acóntece que ningueó m sabia ó que era
um “filme de arte” e muitó menós um “filme cómercial”. Em tódó ó casó, eu naã ó
cónheçó ningueó m que póssa me dar uma definiçaã ó dessas cóisas, estabelecer as
suas regras e ter, de antemaã ó, a certeza de que ó filme que ele faz seraó issó óu
aquiló. Mas muitas pessóas agem cómó se sóubessem dissó.

Quantó a mim, eu sempre pensó nissó aqui: que ó róteiró em si naã ó eó de utilidade
alguma se naã ó sóubermós leê -ló, istó eó , se naã ó sóubermós que ele representa nada
mais que ele mesmó. Póis ele naã ó representa ó filme e naã ó se póde ver um filme sóó
peló róteiró. Um filme eó sempre algó diferente.

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Rivette: Parece que, na esteira dó grande sucessó dó cinema tchecó nó estrangeiró,
hóuve muitas tentativas de cópróduçaã ó. Mas tenhó a impressaã ó de que, nó casó dó
cinema tchecó, essas cópróduçóã es se móstram particularmente difíóceis.

Chytilová: Se naã ó hóuver um acórdó tótal sóbre tódós ós póntós, a tentativa de


cópróduçaã ó seraó uma ilusaã ó. EÉ claró que eu acreditó ser póssíóvel, se quisermós,
chegar a um acórdó. Primeiró, entre dóis sistemas ecónóê micós. Depóis, sóbre ós
óutrós próblemas que aparecem. Mas aíó eó precisó realmente querer esse acórdó e a
primeira cónsequeê ncia dessa póstura tem que ser ó respeitó absólutó pelas
pessóas, ó respeitó absólutó peló que elas querem fazer e dizer. Na falta dissó, e se
exigimós óu cónsentimós ó menór cómprómissó, nada póde funciónar. Mas ós
cópródutóres saã ó, em sua maiória, pessóas que naã ó estaã ó nada dispóstas a dar tóda
a liberdade a ningueó m.

De tódó módó, cóm óu sem cópróduçaã ó, eu nunca cónsegui entender cómó se póde
querer mudar um filme. Pór que mudar as cóisas assim? Naã ó se póde deixaó -las se
tórnarem ó que elas devem se tórnar? E se algueó m póde julgar que elas devem
seguir um caminhó diferente dó previstó, naã ó seria esse algueó m ó autór e apenas
ele? Nunca vóu admitir que algueó m decida nó meu lugar.

Delahaye: Aó ver As pequenas margaridas, muitas pessóas ficaram impressiónadas


cóm ó módó cómó vóceê parece rómper cóm Algo diferente (O neě cěem jineó m, 1963).
Cómó vóceê veê esse filme hóje?

Chytilová: Naã ó góstó de rever esse filme. Póis agóra ficó pensandó que tudó que se
encóntra ditó nele, e que eu realmente queria dizer, póderia ter sidó ditó de
maneira mais viva, mais sucinta e mais estrita. Achó que fui pesada demais. Mas
sempre tenhó a sensaçaã ó, quandó revejó meus filmes, de ter me expressadó de um
módó demasiadamente pesadó. EÉ pór issó que tenhó hórrór em reveê -lós. Ainda que
eu seja, aà s vezes, óbrigada a fazer issó... E para mim, issó eó uma experieê ncia ainda
mais penósa pór causa da impressaã ó que eu jaó tenhó, pór cónta próó pria, quandó
faló, de estar atólada em dificuldades.

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O que eu queró dizer, pura e simplesmente, eó que sempre me sintó presa a certós
haó bitós e cónvençóã es, cóm ós quais eu góstaria de rómper, mas me parece que eu
cóntinuó demasiadamente prisióneira deles. Sempre acreditamós que vamós
cónseguir escapar deles, mas naã ó cónseguimós tótalmente, naã ó eó ?

Parece que eu sempre tenhó que recómeçar tudó, póis nunca chegó a me desfazer
daquiló que me puxa para traó s óu para baixó: ó passadó, suas marcas... tudó que
ficóu, tudó que eu arrastó cómigó. EÉ dissó que a gente deveria póder se livrar.
Deveríóamós póder sair dessa terra ónde afundamós. Deveríóamós póder recómeçar
de uma terra mais pura.

Eu sei, eó claró, que tódas as cóisas estaã ó ligadas, que naã ó se póde se cindir delas,
que naã ó se póde se abstrair dós seus víónculós. E sei dissó cómó nunca, agóra que
essa viagem aà França me cindiu dó meu meió de órigem. E eó exatamente aíó que estaó
ó meu drama: eu descóbri que aguentó muitó mal ser cindida dissó e que sintó falta
dissó – da minha cidade, meus amigós, minha famíólia... tódós ós víónculós que pude
criar. Mas apesar dissó e ateó mesmó pór causa dissó, ó meu maiór desejó, a cóisa
cóm a qual eu sónhó, eó póder realmente me expressar a partir de algó tótalmente
nóvó... EÉ pór issó que ó que eu menós cónsigó entender eó cómó pódem existir
pessóas que tenham vóntade de manter, nó seu próó ximó filme, a fórma óu ó
espíóritó dó seu filme anteriór. EÉ uma cóisa que me deixa besta. A gente deveria
sempre tentar se cóntradizer.

O que eu sei eó que sempre tentarei, de tódas as maneiras, me afastar dó que veió
antes, inverteê -ló, cóntradizeê -ló, e usarei tudó ó que sóu e tudó ó que eu puder para
alcançar issó, tantó abórdandó assuntós diferentes, cómó empregandó meiós taã ó
diferentes quantó póssíóvel. EÉ issó que tentei fazer em As pequenas margaridas, mas,
mesmó nesse casó, apesar de ter achadó que encóntrei um nóvó tema, que eu
tentei abórdar cóm meiós nóvós, parece que naã ó saió dó lugar, da mesma terra que
eu jaó trilhei.

Rivette: EÉ um casó muitó cómum. Quase tódós ós diretóres tentam fazer cada um
dós seus filmes cómó se fósse ó primeiró. Lógó depóis, percebem que, sem duó vida,

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naã ó fizeram exatamente a mesma cóisa de antes, póis realmente tentaram fazer ó
cóntraó rió. Mas acabaram fazendó a sequeê ncia...

Chytilová: EÉ pór essa razaã ó que naã ó supórtó rever Algo diferente, póis eu me revejó
nele, pessóalmente. E quandó digó “pessóalmente”, eu naã ó queró dizer nada nó
sentidó “autóbiógraó ficó” da cóisa, cómó sugerem ós que suspeitam de mim, ós que
suspeitam que eu tenha me “cólócadó dentró dó meu filme”, cómó se diz pór aíó. EÉ
simples, eu encóntró nesse filme ó meu percursó, a minha linha, exatamente aquiló
cóntra ó que eu queró lutar. EÉ pór issó que tenhó medó de reencóntrar esse filme.

Delahaye: Mas Jean Renóir, pór exempló, diz que, nó fundó, sóó temós em nóssa
vida uma uó nica ideia e que passamós ó tempó encóntrandó fórmas mais óu menós
diferentes dessa mesma ideia.

Chytilová: Mas a minha ideia principal eó justamente a de que ó hómem póde


superar a si mesmó. EÉ a ideia que eu achó que estaó nós meus dóis filmes, mas queró
que essa ideia seja vaó lida tambeó m para ó próó prió cinema.

Rivette: Vóceê góstaria, em resumó, que a ideia da transfórmaçaã ó, da metamórfóse,


que eó a ideia central dó filme, tambeó m fósse verdadeira para a realidade dó filme.

Chytilová: Eu queró, aó mesmó tempó, reivindicar essa póssibilidade e dar aà s


pessóas a próva dessa póssibilidade, cónvenceê -las dissó. EÉ pór issó que naã ó póssó
cóncórdar cóm a síóntese de Renóir, ainda que ela córrespónda a algó que
encóntramós na natureza, póis pódemós ver issó cómó uma enganaçaã ó, uma
falcatrua da natureza...

Rivette: Nóó s estamós diante de uma cóntradiçaã ó, mas eó sempre pela cóntradiçaã ó
que se faz alguma cóisa. Se naã ó hóuvesse cóntradiçaã ó, naã ó se faria nada.

Chytilová: Em resumó, vóceê quer dizer que estóu fadada a perder, que nunca
cónseguirei atingir ó meu óbjetivó...

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Rivette: Naã ó, peló cóntraó rió! EÉ a cóntradiçaã ó que te leva a agir, a ir, pórtantó, numa
certa direçaã ó... que talvez seja exatamente a direçaã ó dó óbjetivó.

Chytilová: Eu sei que ó que vóceê diz eó verdade, mais issó naã ó póde nem me
cónsólar nem me tranquilizar.

Rivette: Mas nó dia em que se estiver de acórdó cónsigó mesmó, nó dia em que ó
próblema tiver sidó resólvidó, a gente para e naã ó faz mais nada. Vóceê naã ó acha que
eó issó que eó inquietante?

Chytilová: Se eu naã ó queró mórrer, precisó cóntinuar. Precisó ir ateó ó óbjetivó.


Bem, vóceê me disse que, se eu resólver ós próblemas e atingir ó óbjetivó, vóu
mórrer. EÉ um paradóxó, issó intróduz um nonsense na vida. Estamós num cíórculó
fechadó.

Rivette: Eu naã ó acreditó que seja um nonsense nem um cíórculó fechadó. EÉ , aó


cóntraó rió, uma espiral e ela se desdóbra subindó... eó issó que permite subir nela...
cómó numa escada.

Chytilová: E ó que tem nó altó – óu embaixó – da escada? EÉ a mórte.

Delahaye: Vóltemós a falar de Algo diferente, ónde vemós a cóntradiçaã ó de que


estamós falandó em funciónamentó. Afinal, ó filme eó exatamente uma órganizaçaã ó
abstrata de cóisas muitó cóncretas e remete a uma ideia da vida, da sua evóluçaã ó e,
precisamente, das suas cóntradiçóã es. Bem, esse filme, feitó de equilíóbriós
cóntraó riós (entre as duas vidas que ele móstra e dentró de cada uma delas), faz a
gente ver em açaã ó essa cóntradiçaã ó que vóceê sente, mas ela aparece fórmatada e
resólvida (próvisóriamente) peló próó prió filme, que eó pródutó dela.

Chytilová: Mas achó que eu póderia e deveria ter faladó de uma fórma mais pura e
mais direta. Pórque ó cinema eó issó que diz para gente alguma cóisa e eó tambeó m,
em si mesmó, a próó pria cóisa que eó precisó dizer. Eu realmente naã ó acreditó que
superei essa cóntradiçaã ó.

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Se ó hómem eó um hómem, entaã ó ele sóó póde trabalhar fundandó-se sóbre uma
realidade humana. Issó quer dizer que, nó final, a abstraçaã ó tem que ter, cómó base,
meiós cóncretós. Precisamós sempre partir das cóisas que estaã ó aíó. A abstraçaã ó naã ó
eó nada mais dó que a generalizaçaã ó, pór assim dizer, dós meiós da realidade
cóncreta. Lógó, a abstraçaã ó vem da órganizaçaã ó da realidade cóncreta. Tóda
questaã ó tórna-se, entaã ó, “cómó órganizar?”. Issó aíó eó óutró próblema, póis órganizar
essa realidade nó cinema exige tempó. E raramente dispómós de tódó ó tempó que
seria necessaó rió. Eu, em tódó casó, sintó que naã ó tenhó tempó e achó que eó uma
pena. Mas lógó, lógó, eu acabó indó fazer óutra cóisa. Pór issó, eó precisó se
expressar de fórma muitó lenta e pesada. Mas aíó, aó mesmó tempó, eu percebó que
issó eó impóssíóvel, afinal eu naã ó tenhó esse direitó. Eu naã ó me vejó nó direitó de
cónsumir assim ó tempó dó espectadór para lhe dizer taã ó póucas cóisas. Se eu exijó
que ele me deê duas hóras dó seu tempó, entaã ó eó precisó que esse tempó seja
preenchidó ateó ó limite cóm ó que eu tenhó para lhe dar. Desse póntó de vista, achó
que, em Algo diferente (em que eu naã ó recusó, pór princíópió, ós meiós e ó material
que usei), eu utilizei esses materiais de maneira desajeitada, sem imaginaçaã ó e de
fórma estuó pida.

Eu sempre defendó essa cóncepçaã ó, mas, a partir da mesma cóncepçaã ó, e tendó pór
óbjetivó criar ó mesmó sentidó, eu achó que póderia ter feitó muitó mais, dadó
muitó mais e muitó melhór para ó espectadór. A questaã ó, pórtantó, eó : cóm um meió
muitó cóncretó, dizer cóisas muitó gerais, muitó abstratas, e dizeê -las cóm ós
prócedimentós adequadós, istó eó , puramente cinematógraó ficós. Que fique claró que
eu chamó puramente cinematógraó ficó ó que póde ser eventualmente uma mistura
de prócedimentós variadós, literaó riós, teatrais, picturais, etc. O essencial, para mim,
eó que ó que eó ditó pór meió desse prócedimentó naã ó póssa, em hipóó tese alguma,
ser ditó pór nenhum dós diferentes meiós (literaó riós, etc.) que ó cónstituem.

Mas esse módó de próceder te leva a óutró perigó. Quandó se quer falar demais em
póucó tempó, quandó se quer juntar entre si ós prócedimentós, ós meiós e ós
sentidós, vóceê se cóndena a sófrer. Póis seraó necessaó rió se empenhar, sempre mais
cedó, na busca pór uma fala cada vez mais estrita e rigórósa, e vóceê vai se tórturar

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aó mesmó tempó em que vai tórturar ó filme, para reduzi-ló aà sua expressaã ó mais
simples e mais justa. O resultadó eó que, ainda que as cóisas cóntinuem claras para
vóceê (pórque vóceê cónhece muitó bem ó róteiró), vóceê córre ó riscó de desembócar
em alguma cóisa que, para ó espectadór, seraó , pura e simplesmente, invisíóvel... Vai
ser óutra maneira de fazer ó espectadór perder esse tempó que vóceê pede.

Naã ó estóu dizendó aqui que esse eó ó casó de Algo diferente, mas tenhó a impressaã ó
de que fói um póucó ó que acónteceu em algumas cenas de As pequenas
margaridas. Pórque aíó, cómó a questaã ó era repetir variaçóã es sóbre um uó nicó e
mesmó tema, que tinha um sentidó facilmente cómpreensíóvel, eu me julguei
autórizada a ir bem lónge na cóndensaçaã ó. Lónge demais talvez, pórque, a julgar
pór certas discussóã es que ócórreram apóó s ó filme, parece mesmó que algumas
cóisas estaã ó invisíóveis óu saã ó incómpreensíóveis e que issó se vólta cóntra ó filme. Jaó
óutras cenas, peló cóntraó rió, parecem se explicar para ó espectadór.

Mas de tódó módó, achó que eó um direitó dó espectadór agir cómó manda ó seu
julgamentó. E se alguma cóisa naã ó daó certó, a culpa eó minha. Estóu cónvencida de
que, mesmó que me deixem livre para fazer ó meu filme cómó queró, eu tenhó, da
minha parte, que deixar ó espectadór cómpletamente livre. Ficó entusiasmada
quandó percebó que ó espectadór se sente livre diante dó meu filme. Issó vai aó
encóntró da ideia que eu façó dó espectadór ideal: eu póssó trabalhar a partir dele
e em funçaã ó dele, ele eó um cólabóradór dó filme, póis ó filme termina cóm ele e
nele. Mesmó que eu tenha feitó ó filme para mim e tambeó m porque fiz ó filme para
mim. Póis eu tambeó m sóu a primeira espectadóra dós meus filmes. Uma
espectadóra excepciónal, eó claró, pórque nunca sei de antemaã ó ó que ó filme vai se
tórnar e sóu sempre a primeira a ser surpreendida.

Rivette Achó que as As pequenas margaridas eó um filme muitó estimulante para ó


espíóritó dó espectadór. Primeiró, pór causa dessa rapidez e dessa cóncentraçaã ó que
vóceê menciónava. Póis ó filme exige dó espectadór uma atençaã ó cónstante, ele tem
que estar cónstantemente alerta a tudó que acóntece. O que acóntece a cada
segundó póde dar um sentidó cómpletamente diferente a tudó que acónteceu ateó
entaã ó. E eó assim ateó ó final. A gente sai dó filme e cóntinua a refletir sóbre ele e fica

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esperandó reveê -ló pórque, mesmó apóó s ter vistó tudó, naã ó pódemós dizer cóm
certeza: ó filme quer dizer issó óu quer dizer aquiló. Ateó ó final dó filme e depóis,
tudó eó uma questaã ó perpeó tua para ó espectadór.

Chytilová: Eu fiz ó filme tambeó m pór essa aventura que vóceê estaó cómentandó e
achei que ó espectadór góstaria de viver essa aventura – esse espectadór livre e
ideal de quem eu falava. EÉ que, para mim, um filme eó uma experieê ncia, mas precisó
da satisfaçaã ó de saber que vóu partilhar essa experieê ncia cóm ó espectadór.

Aó mesmó tempó, queró detalhar que esse filme eó a próva, pór um ladó, de que eu
tinha a sensaçaã ó de dizer póucas cóisas, mas sób uma fórma cóndensada, e pór
óutró, de que eu sempre tive a sensaçaã ó de naã ó influenciar ó espectadór.

Issó pórque eu pensó que naã ó tenhó ó direitó de influenciaó -ló. E ó simples fató de
que eu me faça essa pergunta jaó próva que eu córró ó riscó de fazer issó. Ou de
fórçar óu viólar a cónscieê ncia de algueó m. Issó eó uma cóisa que eu me próíóbó de
fazer. Tenhó muitó medó. Mas seraó que eu póssó mesmó evitar issó? Póis, aó fazer
um filme, mesmó que a minha cónvicçaã ó fundamental seja a liberdade, eu sintó que
vióló a mim mesma e que vióló, dessa fórma, tudó que estaó aà minha vólta.

Rivette: Talvez seja pórque vóceê tem a sensaçaã ó de imóbilizar alguma cóisa que
deveria permanecer em móvimentó, de imóbilizar alguma cóisa que nunca deveria
ser fixa. Mas ó que haó de apaixónante, de fató, nós seus dóis filmes eó que naã ó
pódemós nunca ceder aó que eó a grande tentaçaã ó de tódó espectadór: a vóntade
que ele tem sempre de dizer “Aíó estaó , eu entendi! O filme quer dizer issó e aquiló”.
Pórque nós seus filmes, vemós cónstantemente acóntecer alguma cóisa que lhe
óbriga a dizer naã ó que ó que vóceê viu lógó antes eó falsó, mas que issó era apenas
uma parte da verdade, que deve ser retificada óu cóntradita, em tódó casó,
cómpletada.

Chytilová: Eu sempre dóu prióridade para ó pensamentó dó espectadór, para que


ele tenha a póssibilidade de escólher. O essencial eó que se descubra, a cada vez, que
ó que acabóu de ser ditó óu vistó eó sómente uma parte da verdade.

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Rivette: Em suma, ó espectadór aprende que a verdade que lhe fói móstrada naã ó eó
verdadeira.

Chytilová: Sim, mas ó essencial eó que ó espectadór naã ó aprenda issó de mim
pórque eu naã ó tenhó essa óutra verdade para lhe dar de bandeja. Ele tem que
chegar laó da maneira que eu mesma cheguei.

Rivette: Exatamente. Nem ó espectadór nem ó diretór nem ningueó m póde afirmar:
aqui estaó ó sentidó definitivo das cóisas. O que tórna ós seus filmes taã ó
apaixónantes eó que eles saã ó feitós dessa fórma. Quandó vi pela primeira vez Algo
diferente, tive muitó medó durante tódó ó filme, póis eu naã ó pódia deixar de dizer a
mim mesmó: ó princíópió dó filme eó taã ó matemaó ticó, taã ó rigórósó que, depóis de um
tempó, vai dar um certó cansaçó e tudó vai cair numa cóisa mecaê nica. Eu entaã ó
fiquei cóm muitó medó de ver esse mómentó chegar, quandó ó filme se tórnaria
mecaê nicó. O que me surpreendeu e maravilhóu mais fói cónstatar que naã ó apenas ó
filme naã ó se tórnava mecaê nicó, mas, peló cóntraó rió, quantó mais ele avançava, mais
vivó ele se tórnava, naã ó mais taã ó explicativó, mas sim, mais misteriósó e
interrógativó.

Chytilová: Na verdade, para mim, ó filme se tórnava, dia apóó s dia, cada vez menós
claró e, pórtantó, cada vez mais inquietante e apavórante. E ó que me apavóra hóje
eó que se póde descóbrir tódós ós meus próblemas nesse filme e mesmó aquele que
eu naã ó pensava, nó iníóció, ser póssíóvel ver óu adivinhar.

EÉ que ó primeiró prójetó dó filme era muitó claró para mim. Mas assim que percebi
que as cóisas, na realidade, naã ó eram taã ó claras assim e que, pórtantó, ó filme ia ser
falsó, eu me recusei a cóntinuar nó caminhó que tinha traçadó.

Rivette: EÉ precisamente aíó que estaó ó móvimentó próó prió dó filme e aquiló que
cónstitui a sua beleza. Sente-se que, cónfórme vóceê avança, vóceê recusa ó ladó
esquemaó ticó e teóó ricó que ó filme póderia ter. Aleó m dissó, tem tambeó m alguma

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cóisa, uma espeó cie de lei da vida, que se impóã e a vóceê e que lhe obriga a recusar
issó.

Chytilová: Teria me irritadó fazer um filme em que eu jaó saberia tudó de antemaã ó.
E eó justamente pór issó que ó filme me irrita hóje: quandó eu ó vejó, tenhó a
impressaã ó de que jaó se sabe tudó dó filme antecipadamente. E me perguntó se ó
espectadór tambeó m naã ó tem essa mesma impressaã ó.

Rivette: De jeitó nenhum, póis esse filme é uma interrógaçaã ó. Uma interrógaçaã ó
sóbre ó que eó móstradó (as duas mulheres) e uma interrógaçaã ó tambeó m sóbre ó
próó prió filme e sóbre vóceê mesma nó ató de fazer ó filme. E eó aíó que ó espectadór
participa realmente dó filme, póis, quandó ó vemós, nóó s meió que estamós na
situaçaã ó em que vóceê estava aó fazer ó filme.

Nó cinema, vemós cóm demasiada frequeê ncia, infelizmente, ó móvimentó inversó.


Parte-se de alguma cóisa viva, natural, espóntaê nea, mas mesmó quandó issó
permanece vivó durante a filmagem (nó próó prió trabalhó de róteiró, direçaã ó e
móntagem), chega-se nó final a alguma cóisa tótalmente mecaê nica. Em Algo
diferente e As pequenas margaridas, peló cóntraó rió, temós nó cómeçó um princíópió
que póderia se tórnar uma pura engrenagem de relójóaria, mas que, nó final,
encarnóu-se literalmente, tórnóu-se algó órgaê nicó, vivó, cóm esse ladó espóntaê neó
e misteriósó, que tudó aquiló que eó vivó póssui. E ó surpreendente eó que
encóntramós esse mesmó móvimentó nós seus dois filmes.

Chytilová: Póssó dizer que eu efetivamente percebó, nó mómentó em que dirijó ó


filme, que as cóisas saã ó aleatóó rias. E que me empenhó em nunca evitar a fórma que
elas vaã ó tómar. Quandó eu tómó cónscieê ncia de que tem alguma cóisa arriscada óu
perigósa aíó (óu quandó algueó m me faz tómar cónscieê ncia dissó me dizendó “naã ó,
vóceê naã ó deveria fazer issó, haó riscós demais, danóu-se”), essa cóisa passa a me
interessar ainda mais, póis eu pensó que a verdade naã ó póde estar nesse tipó de
prudeê ncia. Acreditó que naã ó devemós evitar ós riscós. Acreditó que pódemós
tentar de tudó e usar de tudó. Acreditó que naã ó haó nada, em hipóó tese alguma, que
seja próibidó aó hómem. Pódemós fazer de tudó.

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Rivette: Revendó óutra nóite As pequenas margaridas, eu realmente tive a
sensaçaã ó, durante tódó ó filme, de ver algueó m que caminha num fió esticadó sóbre
as cataratas dó Niaó gara e eu tive aquele tipó de medó que se póde ter diante de um
espetaó culó cómó esse. EÉ pórque, a cada passó, a cada planó, vóceê córre ó riscó de
cair. Eu diria que eó um milagre vóceê cónseguir sair daíó.

Chytilová: Olha, teve uma pessóa que, durante tóda a filmagem, me submeteu a um
verdadeiró martíórió. Fói ó meu maridó, que naã ó parava de dizer: “Atençaã ó! Vóceê vai
cair!”. Mas pór óutró ladó, issó me encórajóu a perseverar. Pórque, ainda que eu naã ó
cónheça as cóisas e naã ó saiba dizeê -las, eu acreditó nó esfórçó interiór dó hómem
que vai aó encóntró delas. Acreditó que alguma cóisa jaó se expressa nesse filme a
partir da minha atividade, a partir dó meu esfórçó para apróximar as cóisas. EÉ
assim que cónsigó dizeê -las, mesmó sem saber fazer issó.

Pórque eu acreditó tambeó m em óutra cóisa: nóó s naã ó sómós feitós unicamente de
cóisas raciónais, que pódem ser enumeradas e medidas. Para usar um exempló um
póucó superficial, mas reveladór: se privamós um hómem da sua vóz, dublandó-ó
pór óutró num filme, destruíómós esse hómem, póis tiramós dele algó que lhe eó
próó prió, naã ó apenas algó exteriór, mas alguma cóisa prófunda, insubstituíóvel, uó nica,
a sua alma, de certa fórma.

Delahaye: Tudó se passa cómó se vóceê trabalhasse cóm muita certeza e, aó mesmó
tempó, na mais cómpleta duó vida.

Chytilová: Tudó eó uma questaã ó de cónfiança. Desse póntó de vista, eu naã ó duvidó,
póis tenhó uma certa crença em mim mesma. Eu vóu ateó ós limites de quem sóu e
dó que póssó fazer. Se eu duvidasse, naã ó póderia fazer nada. De tódó módó, quer
duvidemós óu naã ó, nóó s sófremós nós dóis casós. Mas, nó final das cóntas, a gente
aguenta ó trancó.

Aó mesmó tempó, e precisamente pórque eu vóu sem duvidar ateó ós limites de


mim mesma, eu cheguei aà cónclusaã ó de que naã ó póssó mais cóntinuar, de que naã ó

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aguentarei fazer cinema pór muitó mais tempó, de que acabarei naã ó fazendó mais
nada a naã ó ser chórar. A minha atual estada na França eó , desse póntó de vista, um
mómentó críóticó. Eu precisó decidir nesse mómentó se façó óu naã ó alguma cóisa. E
eó um períóódó ainda mais dólórósó para mim pórque, atualmente, estóu sempre
indó de um ladó para ó óutró apresentandó ó meu filme e tenhó hórrór em rever
meus filmes, a tal póntó que acabó ódiandó ós meus filmes e ódiandó a mim
mesma.

Se eu tenhó algó a dizer para ó puó blicó, sóó póde ser atraveó s dós meus filmes, naã ó
falandó cóm ó puó blicó – ateó pórque eu naã ó faló franceê s muitó bem.

Delahaye: As pequenas margaridas faz uma pergunta. Mas, aó mesmó tempó, tem
uma frase nó final dó filme que parece trazer uma respósta. A questaã ó, pórtantó, eó :
ela eó uma respósta? Ou uma falsa respósta? Ou uma óutra fórma de pergunta?

Chytilová: Póderíóamós quase dizer que eó ós treê s aó mesmó tempó. Mas vóu tentar
lhe respónder de duas maneiras. Primeiró, eu certamente quis falar, de uma
maneira muitó idióta, ó que tódó mundó jaó teria encóntradó nó filme. Nesse
sentidó, talvez eu tenha ditó aíó uma cóisa inuó til. A menós que supónhamós que
ningueó m pudesse encóntrar issó pór cónta próó pria. Nesse casó, eu teria ditó
alguma cóisa muitó inteligente e uó til. Segundó, eu cheguei de fató a um paradóxó
cóm essa frase. Póis criei uma cónfusaã ó sóbre ó sentidó dó filme e,
cónscientemente, levei ó espectadór rumó a essa cónfusaã ó. Sem duó vida, ó
espectadór sabe óu deveria saber jaó haó algum tempó que ó filme naã ó fala de saladas
pisóteadas, mas de óutra cóisa. EÉ que, a partir dó mómentó em que fica claró que ó
filme fala de óutra cóisa, aíó a gente póde se perguntar se, nó fundó, ele naã ó fala pura
e simplesmente de uma históó ria envólvendó saladas.

Entaã ó, eó sim óu naã ó?... Essa duó vida que eu levantó significa questiónar ó filme.

Rivette: Em suma, estaó claró que ó seu filme naã ó eó muitó claró.

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Chytilová: Sim, ele naã ó póde ser claró. Aó mesmó tempó, eó claró que ele eó mais
cómplexó dó que a pergunta: saladas óu naã ó. Ele vai para óutró lugar.

Delahaye: Em que mómentó vóceê pensóu em cólócar a frase final? Antes da


filmagem óu depóis?

Chytilová: Nó final de tudó, na eó póca em que eu resólvia a questaã ó da móntagem e


da muó sica. Eu pensei, apóó s algumas entrevistas cóm instituiçóã es que trabalham
cóm cinema, que era necessaó rió cólócar essa frase. Mas aíó eles naã ó ficaram muitó
cóntentes e me disseram que essa frase era cómpletamente supeó rflua, ó que
terminóu me cónvencendó de que eu deveria manteê -la.

Delahaye: Vóceê tinha um róteiró precisó para As pequenas margaridas óu vóceê


partiu de linhas gerais que vóceê fói módificandó?

Chytilová: Nó cómeçó, escrevi cóm Pavel Juracek um primeiró róteiró que era
muitó realista. Depóis, encóntrei Krumbachóva e vi que era póssíóvel fazer alguma
cóisa um póucó diferente. Quandó ela leu ó primeiró róteiró, achóu que ele parecia
um rómance de Brómfield. Eu aíó retrabalhei tudó cóm ela. Em seguida, cóm ó meu
maridó, nóó s decidimós naã ó nós deixar limitar pór nada. Nadinha. Nóó s íóamós nós
livrar de tódas as implicaçóã es da históó ria para manter sómente ós diaó lógós, muitó
precisós e muitó fórtes, que naã ó seriam mexidós em nada. Esses diaó lógós nós
asseguravam, assim, uma base, eles garantiam que nóó s naã ó abandónaríóamós ó
sentidó dó filme, eles eram de alguma fórma ós guardióã es desse sentidó.

A partir daíó, nóó s nós sentimós livres para fazer de tudó cóm as imagens, incluindó
nós afastar meió que cómpletamente dó tema. Mas a cónstruçaã ó permanecia fixa.
Pór exempló, nóó s sabíóamós que íóamós filmar a cena em que as garótas cómeçam a
cómer de um jeitó lóucó na casa delas. Mas de que jeitó exatamente? Issó, nóó s naã ó
sabíóamós. Sóó sabíóamós que elas diriam um diaó lógó. O sentidó dó diaó lógó era que
elas duvidavam delas mesmas.

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Mas eu ainda naã ó tinha nenhuma ideia de cómó as cóisas iam acóntecer entre elas
e a cómida. Eu e Krumbachóva tíónhamós escritó que elas ficariam de cóstas uma
para óutra. Mas eu achei que naã ó era uma ideia muitó fórte e aíó decidi que a
discussaã ó delas seria acómpanhada de uma açaã ó que iria cóntradizer a próó pria
discussaã ó. Depóis decidi que essa açaã ó seria baseada na destruiçaã ó.

Na verdade, óriginalmente, nem era para ser um filme que falava sóbre a
destruiçaã ó óu sóbre a vóntade de destruir. O filme falava sóbre cómó ó hómem
finge viver a partir de falsós valóres e certós pretextós, que pódem macaquear ós
valóres verdadeirós, tantó pósitivós quantó negativós. A partir daíó, ó assuntó dó
filme viróu cómó nóó s perdemós ó nóssó próó prió interiór, a nóssa persónalidade, a
nóssa alma, mas eu naã ó tinha que descrever ó prócessó da perda pórque eu partia
de persónagens que, na verdade, naã ó tinham existeê ncia. Fói assim que ó filme se
tórnóu um filme naã ó tantó sóbre a perda, mas sóbre a ausência dós valóres, lógó,
sóbre a inexistência da interióridade e, pórtantó, sóbre a superficialidade.

Mas na medida em que fui buscandó essa reflexaã ó pór meió das açóã es destruidóras
que eu ia imaginandó, ele se tórnóu, póucó a póucó, um filme sóbre a destruiçaã ó óu
cóntra a destruiçaã ó – mas, de tódó módó, um filme em que a destruiçaã ó dava
unidade aó cónjuntó.

Delahaye: Talvez tambeó m seja um filme em que a destruiçaã ó eó ó meió de existir.


Mas qualquer que seja ó aê nguló sób ó qual se veê ó filme, cónstatamós que, se
partirmós de fató da inexisteê ncia das duas garótas, elas, nó final das cóntas,
existem muitó bem, óbrigadó. Elas realmente teê m um jeitó extraórdinaó rió de
existir.

Chytilová: Nó final, cónstatamós que esse próblema era um dós próblemas


fundamentais que se cólócavam para ós óutrós e para nóó s mesmós. Um próblema
muitó cóncretó, e eu fiquei muitó surpresa em descóbrir que ele pódia ser vistó em
muitós filmes: cómó viver atraveó s da recusa óu da impóssibilidade de existir, da
vóntade de rejeitar óu destruir tudó.

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Eu vi em Bergamó um filme ingleê s 2 em que um cara tinha vóntade de se suicidar,
mas ele cómeçava a negóciar cóm antecedeê ncia ó seu suicíódió, ele ó vendia para
fazer dinheiró. Antes, um cónjuntó de cenas móstrava a sua pósiçaã ó de recusa –
nada mais existia para ele – e muitas dessas cenas eram sóbre a destruiçaã ó. Existe
um víónculó entre as diferentes fórmas de repróvaçaã ó óu de resisteê ncia, de recusa e
de destruiçaã ó das cóisas. E cómó acóntece muitas vezes de as cóisas em questaã ó
serem falsas, issó póde induzir aó erró, póis a destruiçaã ó póde, dessa fórma, ter a
apareê ncia de uma açaã ó puramente pósitiva. Na verdade, talvez sempre haja um
aspectó pósitivó pórque a destruiçaã ó póde ser cómpreendida aà s vezes cómó uma
determinada expressaã ó da liberdade.

Mas ó que eó impórtante eó ó póntó de vista dó espectadór. EÉ em relaçaã ó aó


espectadór que se situa tudó que eu acabó de dizer. Pór exempló, eu digó que achó
que nada eó próibidó para mim. Mas aó mesmó tempó, sei bem que tenhó ós meus
limites interióres – ainda que eu naã ó saiba exatamente quais saã ó eles, dó mesmó
módó que naã ó póssó saber sempre, exatamente, qual ó alcance dessa óu daquela
cóisa que façó. Mas ó espectadór póde muitó bem ter a explicaçaã ó que me falta,
cóm a cóndiçaã ó de que ele saiba sair dó que eu façó e saiba tambeó m sair dele
mesmó. Dó mesmó módó, uma frase cómó a que eu disse póderia se prestar a
interpretaçóã es abusivas, póis, cónsiderada nela mesma, naã ó se póde saber se ela
vem de algueó m tólerante óu intólerante. Tambeó m aíó, cabe aó espectadór saber ó
que ele tem diante dele.

Delahaye: Vendó ó seu filme, a gente se pergunta qual fói a participaçaã ó das suas
duas atrizes, ó que elas puderam cóntribuir cóm ó filme, ainda que naã ó se saiba
exatamente ónde estaó a cóntribuiçaã ó delas. Qual fói a impórtaê ncia delas na
realizaçaã ó dó filme? E primeiró: elas saã ó atrizes? Cómó vóceê as escólheu? Peló seu
aspectó fíósicó óu, em vez dissó, pela sua fórma de ver a vida?

Chytilová: Elas naã ó saã ó atrizes. Uma era vendedóra, a óutra era estudante na
escóla de ecónómia. Sóbre a escólha, a dificuldade era que nóó s naã ó sabíóamós
2
Herostratus (Don Levy, 1967).

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exatamente em funçaã ó dó que nóó s íóamós escólheê -las, pórque naã ó sabíóamós antes ó
que elas deviam ser exatamente. Sabíóamós apenas que, quandó as víóssemós, nóó s as
recónheceríóamós. Entaã ó, nóó s prócuramós e vimós, em tódós ós lugares, ó maiór
nuó meró póssíóvel de garótas interessantes, sem saber como e por que elas nós
interessavam, mas esperandó ó mómentó em que nóó s póderíóamós dizer, na frente
de uma delas, que ela córrespóndia aà ideia que nóó s fazíóamós dó filme.

Depóis de algum tempó, nóó s encóntramós a lóira. Parecia que jaó tíónhamós ólhadó
quase tódó mundó e que naã ó havia mais a menór esperança de encóntrar algueó m. E
essa garóta era taã ó extraórdinaó ria que parecia ainda que nunca cónseguiríóamós
encóntrar algueó m que pudesse fazer par cóm ela. Aíó eu me resignei a prócurar
entre as atrizes. Naã ó deu resultadó. Pór sórte, nóó s nós lembramós de algumas
garótas que tíónhamós encóntradó numa manifestaçaã ó espórtiva, a Spartakia, e que
vinham mais óu menós de tódas as regióã es dó paíós. Nóó s as recusamós justamente
pórque naã ó eram de Praga. Cómó nóó s tíónhamós guardadó ós seus endereçós,
demós uma andada pór aquelas bandas e fói assim que encóntramós a mórena: ela
era uma das treê s uó ltimas que examinamós.

Mas nem tudó estava resólvidó, póis ela tinha muitó medó de fazer cinema. Tódó
mundó tinha precavidó cóntra ós cineastas. Disseram que se ela andasse cóm
pessóas desse tipó, iam estupraó -la. Entaã ó, eu tive uma ideia. Disse que ó melhór
jeitó de se safar dissó era sacaneandó ó assistente-cameraman. Aíó ela ó chamóu e,
em seguida, enfióu ó dedó nó nariz. O rapaz, que, apesar de tudó, sabia cómó se dar
bem cóm as meninas, ficóu cómpletamente descóncertadó, cómeçóu a ficar
vermelhó de vergónha e fói embóra. A garóta, depóis dissó, ficóu bastante aà
vóntade.

Rivette: Nó filme, haó planós bem lóngós em que as duas garótas teê m que fazer
muitas cóisas. Elas, sem duó vida, tinham que inventar. Em que medida elas
cóntribuíóram cóm alguma cóisa?

Chytilová: Eu tenhó que dizer, de cara, que achó que nenhuma atriz jaó teve que
viver algó taã ó penósó e fazer um trabalhó taã ó ingrató quantó ó que elas fizeram
cómigó. Nó final dó segundó dia, elas jaó tinham cómpreendidó que ó tipó de cinema

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que elas iam fazer naã ó tinha absólutamente nada de engraçadó e ó seu desejó de se
tórnar atrizes se esvaiu na mesma hóra.

Mas era apenas ó cómeçó pórque, na sequeê ncia, elas tiveram naã ó sóó que cumprir as
suas óbrigaçóã es prófissiónais, cómó tódas as trizes, mas tambeó m aguentar
cóndiçóã es muitó penósas, que naã ó se encóntram tódós ós dias. Elas tinham naã ó sóó
que interpretar cónstantemente as idiótas, ó que naã ó era faó cil, mas tambeó m fazer
issó em cóndiçóã es fíósicas muitó duras e, muitas vezes, cómó se estivessem numa
próvaçaã ó. AÀ s vezes, ateó elas tinham medó e fói necessaó ria muita córagem. Nó final,
teve a cena em que ó lustre cai. Na primeira vez, ele realmente se sóltóu.

Rivette: Elas se machucaram?

Chytilová: Naã ó pórque era eu que estava em cima dó lustre. Eu queria próvar que
elas naã ó córriam nenhum riscó. Eu tinha insistidó tantó para que ó lustre fósse
firmemente amarradó que, certamente, nenhum imprevistó pódia acóntecer. Para
defender ó meu argumentó, eu subi em cima dó lustre. Ele se desprendeu na hóra.
Felizmente, ele naã ó se sóltóu cómpletamente. Ele desceu e balançóu, mas eu
cónsegui me segurar. EÉ claró que lamentei imensamente que esse incidente
divertidó naã ó acónteceu durante as tómadas.

Mas ó mais duró fói a sequeê ncia da grande refeiçaã ó final, que levóu uma semana
para filmar. A cómida, que mal era aceitaó vel desde ó cómeçó, ficóu bem piór jaó nó
final dó primeiró dia. Eu deixó vóceê s imaginarem nó que ela se transfórmóu depóis
de uma semana! E sób ó calór dós refletóres!... Nó entantó, era realmente
necessaó rió que elas cómessem. Entaã ó, de tempós em tempós, para evitar próvaçóã es
demais para elas, nóó s juntaó vamós algumas cóisinhas quase cómestíóveis cóm a
pórçaã ó de sóbras que se acumulavam na mesa.

Elas ainda precisavam ficar ó dia tódó na cómpanhia dessa pódridaã ó e dó cheiró
que vinha daíó. Elas naã ó eram as uó nicas, eó claró, que aguentavam issó. Nó final, a
equipe dós assistentes se recusóu firmemente a entrar nó set. Era hórríóvel demais,
eles naã ó aguentavam mais. Nóó s cóntinuamós mesmó assim. Precisaó vamós
cóntinuar.

Lógó depóis, chegóu ó mómentó em que elas precisavam se bómbardear cóm essas
cóisas hórríóveis. Jógaó -las na cara uma da óutra. Nó cómeçó, elas se recusaram,

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depóis... Felizmente, eu tinha tómadó ó cuidadó de cólócar tódas essas cenas nó
final da filmagem, avaliandó que, depóis dissó, naã ó seria póssíóvel fazeê -las fazer
mais nada.

Rivette: Haó tambeó m uma cóisa que impressióna nó filme, uma cóisa óó bvia que eó a
impórtaê ncia extrema dada, desde ó cómeçó, aà cómida. Tudó eó feitó em cima dissó.
Bem, haó uma cóisa que se espera – em tódó casó, que alguns, cómó nóó s, esperam –
que eó ó aparecimentó de óutró elementó, que eó a sexualidade. Mas sómós sempre
levadós de vólta aà cómida, cómó se ela fósse a uó nica realidade pór meió da qual
fósse póssíóvel móstrar a destruiçaã ó.

Chytilová: O filme eó intenciónalmente feitó a partir de cóisas elementares. Mas


esses elementós primórdiais tambeó m teê m pór funçaã ó representar tódas as óutras
cóisas póssíóveis. Lógicamente, se eu representó, cómó eu fiz, dóis seres idiótas, que
naã ó pensam, que naã ó existem, eu tenhó que cercaó -lós da realidade que lhes
cónveó m, que córrespónde aó seu estadó de espíóritó. A cómida eó a realidade mais
aprópriada aó que elas saã ó e aó que eu queria fazer.

Rivette: Mas a sexualidade (que, mesmó assim, estaó nó seu filme, ainda que de
maneira muitó subterraê nea e muitó alusiva) tambeó m se manifesta
significativamente nó níóvel animal, da mesma fórma que a cómida.

Chytilová: Existe precisamente uma certa gradaçaã ó que, dentró da cómida, nós faz
passar dissó para óutra cóisa, a sexualidade, mesmó que ela permaneça em
segundó planó. A cena da refeiçaã ó, pór exempló, parece falar também de óutra
cóisa.

Delahaye: Sim, mas mesmó que se admita issó, a questaã ó permanece: pór que
partir desse mótivó (aqui, ó alimentar) em vez de óutró (a sexualidade)?

Chytilová: Cómó cómecei cóm esse elementó, a cómida, quis cóntinuar cóm ele,
para aprófundaó -ló, variaó -ló, de módó a tirar dele tudó que ele pódia dar. Eu sei que
eó realmente perigósó se ater sempre aó mesmó mótivó, mas tambeó m sei que, aó
fazer issó, pódemós nós permitir muitó mais cóisas, póis temós uma base bem
determinada. Dentró dela, pódemós tentar de tudó. Eu tambeó m queria óbrigar ó
espectador a passar pór dentró de um elementó para chegar a óutrós elementós.

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Delahaye: A questaã ó ainda permanece: pór que partir justamente desse elementó?
Mas talvez póssamós respónder que, se vóceê tivesse cómeçadó pela sexualidade,
em vez da cómida, ós espectadóres ficariam ainda mais fechadós nesse mótivó, na
medida em que ele eó mais fascinante, mais invasivó – e talvez esteja aíó ó seu perigó.
Os espectadóres naã ó teriam vistó nada mais que um filme sobre a sexualidade, em
vez de enxergar nele um meió para falar sóbre issó e sóbre óutras cóisas aó mesmó
tempó, pór exempló, sóbre a destruiçaã ó.

Chytilová: Nesse sentidó, eó verdade que, nó meu filme, a cómida eó uma


intermediaó ria e que talvez eu naã ó tivesse cónseguidó acómódaó -la nesse papel de
intermediaó ria se eu cómeçasse pela sexualidade. Mas aó mesmó tempó, eu tenhó
que recónhecer que seria póssíóvel fazer issó sim. Sóó que ó filme seria
cómpletamente diferente. Nó iníóció, apenas intui ó víónculó que existe entre uma
fórma de incónscieê ncia animal e uma espeó cie de assómbraçaã ó da cómida. Partindó
daíó, e cóm a vóntade de explórar tódas as dimensóã es desse mótivó, as cóisas se
desdóbraram cómó eu cóntei.

Rivette: Lógó, nó filme, a cómida é a cómida, mas é também, aó mesmó tempó,


tódó ó restó. Nesse sentidó, as duas óu treê s cenas de refeiçóã es cóm ós hómens saã ó
realmente refeiçóã es, mas tambeó m saã ó verdadeiras surubas.

Chytilová: Esse filme eó a cónsumaçaã ó brutal de tudó e, nó final, de si mesmó. E issó


se expressa cóm base na cómida, mas vale para tódas as óutras cónsumaçóã es.
Partindó daíó, eu queria, primeiró, móstrar a destruiçaã ó cóncreta de um óbjetó
cóncretó – ó próó prió fató de cómer eó tambeó m uma destruiçaã ó da cómida. Segundó,
queria saber se essa destruiçaã ó causa um sentimentó pósitivó óu negativó – ela lhe
faz bem óu lhe faz mal? Mas nó casó das duas garótas, acóntece tambeó m que,
terceiró, tudó que elas fazem, atraveó s dó tesaã ó que elas sentem em destruir, eó feitó
de tal módó que se vólta cóntra elas. Póis elas sempre acrescentam aó ató de
destruiçaã ó nórmal alguma cóisa que, nórmalmente, elas nunca fariam. O desejó
prófundó delas eó fazer alguma cóisa próibida – aquiló que naã ó se faz, aquiló que
naã ó se deve fazer –, ó frutó próibidó. E pór aíó, elas destróem móralmente a elas
mesmas.

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E mais, elas naã ó fariam ó que fazem se naã ó estivessem cónscientes dó ólhar dó
óutró. EÉ um elementó fundamental: sem essa cónscieê ncia da presença dó óutró,
naã ó haveria nenhum interesse em fazer ó que elas fazem.

Delahaye: Em suma, se as regras dó bóm cómpórtamentó cólócaram limites aà


destruiçaã ó (alimentar óu naã ó), ó jógó delas seraó rómper ós limites impóstós a essa
destruiçaã ó para fazer, de uma fórma mais franca e perigósa, ó que ós óutrós fazem
dentró dós limites. O seu prazer desembóca talvez na sua próó pria destruiçaã ó, mas,
aó mesmó tempó, elas teê m a satisfaçaã ó de cólócar em jógó a vida em sóciedade e,
cóm issó, cólócar em jógó a próó pria existeê ncia delas.

Chytilová: Sim, elas criam, cóm tódas as peças, um drama e um jógó aó mesmó
tempó. Issó córrespónde a uma expressaã ó muitó córrente que temós em tchecó e
que eó cómó um desafió sóbre as relaçóã es entre as pessóas que sabem e naã ó sabem
viver em sóciedade: “issó póde te incómódar óu issó naã ó te incómóda!”. Tudó se
tórna um jógó prestigiósó, póis, se tivermós córagem, teremós que levantar sempre
antes dó desafió e, em uó ltima instaê ncia, ateó a mórte.

EÉ um póucó nesse sentidó que elas sentem a necessidade de fazer algó que as
destrua móralmente, mas que, aó mesmó tempó, faça mal aó óutró. E dentró desse
princíópió, as cóisas se desdóbram em dóis mómentós: primeiró, a sua açaã ó cómum
eó dirigida cóntra ó exteriór; depóis e aós póucós, a sua fórça de destruiçaã ó vai ópór
uma cóntra a óutra e elas vaã ó se destruir entre si – óu se autódestruir, ó que, nó
casó delas, daó quase na mesma. Aíó tambeó m eu vóltó aó que disse agóra haó póucó:
nóó s temós variaçóã es sempre sóbre ó mesmó tema.

Rivette: As duas garótas representam realmente duas garótas óu naã ó eó a mesma


garóta em duas pessóas?

Chytilová: Veja bem, cada um póde ver a cóisa tóda cómó quiser. Mas nóó s falamós
agóra haó póucó da necessidade de ter uma testemunha. EÉ essa a substaê ncia dó
tema e naã ó se póde nunca esquecer dela quandó falamós sóbre ó tema.

Rivette: Eu perguntei issó pórque naã ó achó que vi uma ópósiçaã ó entre elas. Na
verdade, elas saã ó exatamente iguais.

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Chytilová: Sim, eó póssíóvel cónceber que eó uma uó nica pessóa, que sente a
necessidade de ter um espelhó para se assegurar da próó pria existeê ncia, para ter
uma próva da próó pria existeê ncia. E a destruiçaã ó, precisamente, cómó tíónhamós
previstó na órigem dó filme (havia sómente algumas cenas dessas), estava laó cómó
um dós meiós que elas usavam para cónfirmar a si mesmas em sua existeê ncia.
Acóntece que essas cenas demónstraram a necessidade prófunda dó princíópió que,
póucó a póucó, se estendeu para tódó ó filme.

Tudó issó faz algum sentidó pórque existe a póssibilidade de explicar a destruiçaã ó
cómó uma atividade criadóra. Mesmó que ó prócessó seja puramente negativó, ele
trai, de certa maneira, uma necessidade pósitiva, a necessidade muitó nórmal de
marcar a sua passagem, de deixar traçós da sua existeê ncia. Mas eó óó bvió que eó
infinitamente mais faó cil satisfazer essa necessidade pór meió de uma criaçaã ó
negativa dó que pór uma criaçaã ó pósitiva. EÉ tambeó m mais raó pidó e, aà s vezes, mais
atraente.

Rivette: Mas fói própósitalmente que vóceê cólócóu essas duas garótas exatamente
nó mesmó planó? Eu partó dó fató de que muitós cineastas teriam, sem duó vida,
pensadó ó seguinte: cómó eu tenhó essas duas garótas, vóu me empenhar em
diferenciaó -las. Uma teraó issó, a óutra teraó aquiló, uma seraó assim e a óutra seraó
cómpletamente ó cóntraó rió, etc. Bem, me parece que vóceê ignóróu tótalmente issó
e ateó recusóu issó, que vóceê quis que nada pudesse verdadeiramente separaó -las –
cóm a exceçaã ó de aspectós elementares que fazem cóm que vóceê tenha uma
mórena e uma lóira...

Chytilová: Issó vem, pura e simplesmente, dó fató de que elas naã ó saã ó muitó
marcadas psicólógicamente, elas naã ó teê m caracteríósticas individuais fórtes. Elas sóó
teê m diferenças secundaó rias, cómó a cór dós cabelós e cóisas dó tipó. Quandó elas
agem, sempre tem uma, necessariamente, que faz uma cóisa que a óutra naã ó faz,
mas a óutra eó igualmente capaz de fazer issó, e a próva dissó eó que ela vai laó e faz.
Assim, uma hóra eó uma que lidera, nóutra hóra eó a óutra. De qualquer fórma,
acreditó que quem se deixa levar eó taã ó culpadó quantó quem leva a fazer.

Rivette: Em resumó, as suas duas garótas saã ó intercambiaó veis. Mas nesse casó, pór
que duas garótas?

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Chytilová: Pórque as cóisas andam sempre de duas em duas.

Delahaye: Tambeó m seria póssíóvel dizer que elas andam de treê s em treê s. E muitas
pessóas se sentem mais tócadas peló treê s dó que peló dóis.

Chytilová: Póis bem, digamós que eu me sinta mais tócada peló fató de que as
cóisas andam de duas em duas: tem ó pretó e ó brancó, ó hómem e a mulher, etc., a
nóçaã ó de casal eó muitó reveladóra e, talvez, a substaê ncia de tódas as cóisas seja
dual.

Delahaye: Entaã ó, estaó aíó ó seu módó de transcriçaã ó, ó seu “cóó digó”, que tambeó m era
ó cóó digó de Algo diferente. Vóceê parecia muitó atraíóda pela ideia dó dupló, dó
espelhó...

Rivette: E tambeó m pela ideia dó sóó sia. O sóó sia eó e naã ó eó , aó mesmó tempó, ó
indivíóduó de quem ele eó ó sóó sia. Ou, para fazer uma óutra cómparaçaã ó, eó a ideia dó
geê meó, que eó igual e diferente.

Chytilová: Sim e, se vóceê me diz issó, eó justamente pórque ó nuó meró dóis, que eó a
menór quantidade, eó ó que permite dizer mais cóisas. Bem, se eu quiser
generalizar, póssó muitó bem fazer issó. E precisó fazer issó a partir dós meiós
mais elementares. EÉ a partir das pequenas cóisas que pódemós falar das maióres.
Nunca vamós cónseguir entender ós maióres próblemas se naã ó cómeçarmós pelós
mais simples. Lógó, cómeçar pela menór quantidade póssíóvel vai perfeitamente aó
encóntró dó que queró fazer.

Rivette: Mas aó mesmó tempó, aó meu ver, essa eó sóó uma interpretaçaã ó ente óutras
póssíóveis. Se, nós seus dóis filmes, aparecem ós temas dó casal (e eu façó essa
apróximaçaã ó pórque, apesar de tudó, naã ó daó para fazer óutra cóisa, a naã ó ser
apróximar ós diferentes filmes de uma mesma pessóa), naã ó eó para levar as pessóas,
se elas pensaram nó iníóció que as duas mulheres eram diferentes, a descóbrir que
elas saã ó, na verdade, muitó próó ximas uma da óutra? E se as pessóas pensaram nó
iníóció que as mulheres eram parecidas, a ideia naã ó era fazer as pessóas
descóbrirem que elas saã ó diferentes? Em resumó, cóm a sua maneira de móstrar as
cóisas, sómós sempre óbrigadós, em tódós ós casós, a acabar pensandó ó cóntraó rió
dó que pensaó vamós inicialmente.

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Chytilová: Em Algo Diferente, fói meió que issó ó que eu quis fazer. Tódó ó filme era
sóbre ó tema: parecidas óu naã ó parecidas? Iguais óu diferentes? E a cada vez,
descóbríóamós que elas eram algó diferente dó que pensaó vamós nó iníóció.

Rivette: Mas esse tambeó m eó ó princíópió de As pequenas margaridas (embóra de


maneira menós óó bvia pórque, nó cómeçó, as ópósiçóã es entre elas naã ó estaã ó
demarcadas). O que queró dizer eó que devemós pensar, em determinadó mómentó,
que as duas garótas saã ó exatamente iguais e perceber num óutró mómentó certas
diferenças, póis cada uma delas acaba adquirindó, nó final, uma certa existeê ncia
individual.

Chytilová: Sim, e ó prócessó póde pender tambeó m para ó óutró ladó. Nó cómeçó,
pódemós pensar que eó a mórena que tem ó papel de guia óu de líóder e que ela vai
manter esse papel, mas nó final, percebemós que ela naã ó eó ó uó nicó diabó que
cónduz a valsa: a lóira (que tem, nó cómeçó, uma córóa, signó da inóceê ncia dós
anjós óu das virgens) acaba tómandó a iniciativa tambeó m.

Delahaye: Um dós resultadós curiósós dó seu paraleló entre as duas mulheres de


Algo diferente eó que a óusadia dó filme faz cóm que ele seja recusadó cóm
frequeê ncia peló puó blicó. As pessóas se recusam a aceitar ateó ó que jaó estaó dadó e,
ainda mais, a reviravólta dissó. Desde ó cómeçó, ós espectadóres naã ó cónseguem
evitar ver a atleta cómó uma mulher superiór e a mulher casada cómó uma
persónagem sem sal, peló simples fató de que, para eles, a vida puó blica e ó prestíógió
da atleta veê m necessariamente acómpanhadós dó sucessó e da felicidade, enquantó
que a mulher casada, despróvida desse prestíógió exteriór, sóó póde representar ó
fracassó e ó teó dió. Ela tambeó m representa para eles a eterna cóndiçaã ó da mulher
escrava dó lar, em ópósiçaã ó aà atleta, uma mulher móderna e independente. Uma
vez que se admite essa hierarquia (quer apróvem óu naã ó, tódós eles estabelecem
essa hierarquia), eles naã ó saem dela e naã ó cónseguem nem perceber tudó que vóceê
móstra sóbre a sólidaã ó, a tristeza, ó cansaçó e ó desencantamentó da atleta, assim
cómó ó que vóceê móstra sóbre as alegrias que a mulher casada póde encóntrar,
enfim, ó que vóceê móstra sóbre ó módó cómó tódas as duas mulheres encóntram,
bem óu mal, um certó equilíóbrió entre a luta e a resignaçaã ó. Nesse sentidó, ó seu
filme eó um verdadeiró teste sóbre as diferentes maneiras de reagir das pessóas.

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Chytilová: Sim, eu tambeó m óbservei issó. As pessóas se recusam cómpletamente a
cómparar essas duas mulheres, póis seria necessaó rió, nó iníóció, cólócaó -las em peó de
igualdade, ó que elas se recusam a fazer. Queremós demais cómparar ós dóis
sentidos dó filme, mas, de jeitó nenhum, as duas vidas... O que eó curiósó eó a fórma
cómó as cóisas se passaram cóm a primeira mulher, a atleta. Ela era uma
verdadeira ginasta e uma campeaã , tantó que ela acabóu ganhandó uma cómpetiçaã ó
(ela fazia parte da equipe naciónal nó Campeónató Mundial) durante a realizaçaã ó
dó filme. Eu naã ó pódia prever issó. Aliaó s, as cóisas teriam sidó muitó mais faó ceis
para mim se ela tivesse perdidó. Eu teria, de cara, ó sentidó dó meu episóó dió,
baseadó nó fracassó e nó fim.

Aó mesmó tempó, naã ó fiquei insatisfeita cóm ó que acónteceu pórque eu jaó tinha,
de tódó módó, ó meu final, e esse final ganhava ainda mais fórça quantó mais eu
deixava a minha persónagem viver, cóm as suas fórças e fraquezas, suas sórtes e
maó s sórtes, cóm a sua próó pria batalha que ela póderia perder óu ganhar.

Mesmó cóm a sua vitóó ria, ó sentidó dó filme permanecia (apóó s um desvió que sóó
ajudaria a refórçaó -ló). Fracassó óu sucessó, a questaã ó cóntinuava sendó: ó que viraó
depóis? Pór qual resultadó fóram empreendidós tantós esfórçós e sacrifíóciós? Póis
a gente naã ó póde nunca ganhar ó tempó tódó e quandó a gente para de ganhar... eó ó
fim. Eu vi, pórtantó, aó lóngó dó meu filme, as duas vidas criarem ó seu
cóntrapóntó e vi nó final que, quaisquer que fóssem ós acóntecimentós que
marcavam essas vidas, ó resultadó era anaó lógó.

Mas ó espectadór naã ó cónsegue imaginar que a vida puó blica da atleta terminóu,
que até isso tem um fim e que, depóis, fica-se sem nada. E nenhum espectadór
sequer percebeu que ele naã ó póderia supórtar, 24 hóras, tudó ó que a minha
campeaã tinha que supórtar, antes, durante e depóis dó seu sucessó. Mas seraó que eu
pódia e devia intervir nó filme para deixar essa visaã ó das cóisas mais evidente? E
seraó que issó mudaria realmente alguma cóisa nó filme e nas reaçóã es das pessóas?
Eu tinha que deixar essas duas mulheres serem elas mesmas.

A mulher casada tambeó m eó ela mesma, cóm a sua incapacidade de realmente se


encóntrar. E ela vive algó que eó taã ó insupórtaó vel quantó encóntrar alguma cóisa
(cómó a atleta) que vai, necessaó ria e rapidamente, acabar, alguma cóisa que, aleó m

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dissó, nóó s questiónamós cónstantemente se córrespónde mesmó aó que pódíóamós
óu queríóamós encóntrar, se naã ó eó alguma cóisa que nós limita, se ela vale mesmó
tudó que tivemós de aguentar e tódas as privaçóã es pór que tivemós que passar.
Todas as duas saã ó elas mesmas na fórma de abórdar esse próblema: ó que e
cómó escólher?

Delahaye: Vóceê vai muitó aó cinema? Vóceê póde menciónar alguns filmes de que
vóceê gósta?

Chytilová: Olha, eó cada vez mais raró ver filmes que me agradam tótalmente. Eu vi
recentemente, em Nóva Yórk, alguns filmes dó “Undergróund” e teve um de que
góstei muitó, um filme de Ed Emshwiller, Relativity (1966), que eó , para mim, a
próva de que se póde realmente falar de fórma livre e direta.

Eu tambeó m acabei de ver, pela segunda vez, ó filme magníóficó que eó Persona, de
Bergman. Eu sóu muitó sensíóvel aà fórça de Bergman e tudó que ele faz me tóca
bastante. EÉ para mim algueó m de uma qualidade absóluta e, naã ó impórtam ós meiós
que ele utiliza, suas criaçóã es saã ó sempre das mais extraórdinaó rias.

(Entrevista feita cóm magnetófóne pór Michel Delahaye e Jacques Rivette.)

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