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Lisboa, 3 de Maio de 2016

Doc. 43 – Teorias Económicas


no Século XVIII ou O Fisiocratismo

Trabalho apresentado na cadeira de História Moderna –


Economia e Sociedade, regida pela Prof. Doutora M. Leonor
García da Cruz

Realizado por:

Diogo Caeiro Jesus Nº 53154

Licenciatura de História – 2º Semestre, 2015/16


Se vi mais longe foi por estar de pé sobre ombros de gigantes
Adágio associado a Sir Isaac Newton (1643-1727)

Imagem: Mapa de Orleães e Burges, Civitates Orbis Terrarum (organizado por Georg
Braun, desenhado pelo flamengo Joris Hoefnagel)
Resumo: A presente investigação centra-se da análise dos dois textos que compõem o
documento 43 (Teorias Económicas no século XVIII) para estudar a escola fisiocrática.
Estudamos cinco dos principais princípios enunciados pelo seu mais reconhecido
representante, François Quesnay (1694-1774) e igualmente as observações críticas de A.
R. J. Turgot (1727-1781) às orientações dos fisiocratas expressas numa carta de 1766.
Para tal apresentaremos um quadro completo de todo o meio envolvente e atinente ao
século XVIII.

Palavras-chave: Fisiocratismo; Quesnay; Turgot; História Económica Moderna;


Ancien Régime

Abstract: We propose, on the current paper to study physiocracy and its key
representatives. For this matter we will work on two texts. On the one hand, an excerpt
of the main principles prescribed by François Quesnay (1694-1774) and on the other
hand the reviews by R. J. Turgot (1727-1781) on the rules followed by these physiocrats
presented on a letter of 1766. We will also produce a full picture of Europe in the
eighteenth century to help connect the ideology to the world in which it was born.

Keywords: Physiocracy; Quesnay; Turgot; Modern Economic History; Ancien Regime


ÍNDICE

Parte I: Introdução……………………………………………………………….2

Parte II: O Mundo Onde Nascem as Novas Ideias – A Europa dos séculos XVI a

XVIII………………………………………………………………………………...5

Capítulo I: O florescer do mercantilismo nos séculos XVI e XVII………..5

Capítulo II: As críticas ao mercantilismo………………………………….7

Capítulo III: A crítica fisiocrática ao mercantilismo………………………9

Capítulo IV: A galopante economia britânica……………………………..9

Capítulo V: A França rural e comercial no Oitocentos……………………11

Capítulo VI: História política e económico-financeira da França nos séculos


XVII e XVIII……………………………………………………………….13

Capítulo VII: Influência cultural e intelectual da França e o Iluminismo. O


racionalismo Setecentista e a ideia de ordem natural………………………17

Parte III: A Fisiocracia – Análise da Teoria e dos Documentos propostos………19

Capítulo I: As ideias fisiocráticas – O que é?..............................................19

Capítulo II: A base agrícola, as classes estéreis e o conceito de produto líquido


da terra…………………………………………………………………...…20

Capítulo III: Análise dos dois documentos – As Máximas Gerais de Quesnay e


a crítica epistolar de Turgot………………………………………………..23

a) Esbocetos biográficos de Quesnay e Turgot…………………...23

i. Vida e Obra de François Quesnay……………………..23

ii. Vida e Obra de Jacques Turgot………………………..25


b) Análise textual e enquadramento na teoria…………………...27

i. O fisiocratismo: os príncipios de Quesnay……………27

ii. Observações críticas de Turgot à orientação dos

fisiocratas…...................................................................29

Parte IV: Conclusão…………………………………………………………...…34

Parte V: Inventário Bibliográfico………………………………………………..38

Parte VI: Anexos…………………………………………………………………40

1
PARTE I

INTRODUÇÃO

O tema a que nos propomos a estudar implica a intersecção de diversos campos de


estudo. Pelo interesse que temos na economia, pensamento político e história, a temática
atinente aos pensadores fisiocratas do século XVIII afigurou-se apelativa. Por isso o
decidimos escolher de entre o rol de cerca de cinquenta temas propostos pela docente.

Berço de toda a economia política futura, hoje consolidada na ciência social a que
chamamos economia, será neste século e na França do Antigo Regime que se começará
a lançar as bases. As ideias, forma de observar os fenómenos e actividade económica, os
seus agentes e os métodos de investigação fazem desta escola de pensamento uma
precursora. Mais do que as regras ou teorias que preconizam é a sua visão que marca e
influenciará a posteridade. A pertinência no estudo dos fisiocratas franceses, que aqui
pretendemos apresentar através de duas fontes primárias, torna-se, a nosso ver, ainda
maior quando relacionada com a sociedade, mundo, sistema em que se inseriam estes
homens. Até que ponto as condições existentes geraram quem sobre elas pensou e que
impacto tiveram estes pensadores na resolução das conjunturas geradas pelas condições
existentes?

Inscrevendo-se este trabalho no âmbito da cadeira de História Moderna – Economia e


Sociedade nada melhor então que indagar e relacionar as estruturas sociais e
económicas, causas profundas e imediatas, materiais e ideológicas que o tema particular
aqui tratado agrega à sua volta. Não tentaremos, porém, oferecer uma análise muito
detalhada aos factores responsáveis pelas evoluções económicas em França e também
Inglaterra (prezada e amiúde apontada pela escola fisiocrata como exemplo a
considerar). Sem embargo também procuraremos não simplificar em demasia
distorcendo movimentos sempre bem mais complexos do que possam aparentar.

Em relação à historiografia existente ou disponível podemos afirmar que muito se


produziu. Seja sobre os pensadores fisiocratas, a França setecentista, a estruturas
políticas e problemas bélicos ou financeiras (é frequente estes dois ocorrerem
simultaneamente) que se vão deparando seja acerca dos alvores da Revolução Francesa

2
e causas que os variados autores vão escolhendo para explicar a ocorrência deste
fenómeno e os obriga a remontar ao mundo que a precedeu. Não só em monografias
históricas mas também em obras de economia, sociologia, política, história da filosofia
encontramos matéria e informação relevante e tocante ao nosso objecto de estudo.
Concretize-se, então, a bibliografia que generalizadamente nos acabamos de referir.
Relevámos a análise jurídica e institucional de Jacques Ellul, os estudos da França rural
tratados em artigos esparsos, com destaque para o trabalho de Marc Bloch, a pesquisa
da sociedade e economia francesa pré-industrial compilados por Fernand Braudel e
Ernest Labrousse. A comparação com a Inglaterra recorrerá a obras de História
Universal e História da Inglaterra (económica e histórico-política). A reflexão a fazer
sobre as ideias económicas e com especial destaque dos fisiocratas compreendidos no
período temporal em análise será suportada em obras de história do pensamento
económico e economia política de Henri Denis e a de Soares Martínez. Biografias sobre
as personagens de destaque (de Quesnay a Turgot) ou excertos de obras que abordam o
mundo e os cento e cinquenta anos que antecederam a Revolução Francesa farão
também parte do nosso suporte bibliográfico.

Os objectivos primários a que nos propomos são em primeiro lugar, conhecer e


investigar a escola de pensadores em epígrafe. Em segundo lugar, relacionar o meio, as
condições de diversas naturezas com o devir histórico. Mostrar o cosmos setecentista,
com epicentro na França, e assim, tentar, através da evidência, apontar onde se insere o
pensamento fisiocrático e que lugar teve (ou ainda hoje tem). Em terceiro lugar,
pretendemos explorar os textos que serviram de mote a esta investigação e apresentar
um trabalho interdisciplinar.

A sua estrutura reparte-se em seis grandes partes. O primeiro grupo, iniciado por esta
introdução, expõe os assuntos de que se falará e, através do silêncio, do que nos
absteremos. É igualmente composta por uma contextualização teórica, económica e
histórica da envolvência que remete para o tema central – a segunda parte. A evolução
do pensamento económico, as críticas ao mercantilismo e as novas ideias, as peugadas
seguidas e deixadas por estes homens. No terceiro grupo as vidas, obras e teorias dos
fisiocratas iniciam o capítulo. A análise textual aos documentos servirá de fio condutor
e ilustrará, como modelo, as conclusões dos mesmos. Para quem se dirige, que almeja,
de que prisma se coloca para analisar, que mensagem veicula, qual natureza dos textos
serão as principais questões. Numa conclusão trataremos do contexto específico e dos

3
tópicos ou ideias-chave que dominaram este trabalho. Por fim, num quinto e sexto
grupo, respectivamente, apresentaremos o inventário bibliográfico e os anexos
fundamentais, barras mestras de suporte ao nosso esforço.

Permitam-nos ainda, as seguintes nótulas. Primeiramente, achámos por bem


sistematizar numa tabela em anexo [ANEXO I] uma cronologia dos principais eventos
políticos para melhor acompanhar a nossa descrição. Em seguida, crentes que não se
deve apresentar uma “História às fatias”, procuraremos apresentar uma imagem da
França pincelando o seu passado e recorrendo em particular aos diferentes substratos
das gentes nesse mesmo reino socorrendo, auxiliarmente, às estatísticas possíveis (até
porque sem elas torna-se difícil elaborar uma História social e económica). Seguimos
também o seguinte princípio geral: onde escapava ao escopo desta investigação optamos
por, ao invés de omitir, sintetizar.

4
PARTE II

O MUNDO ONDE NASCEM AS NOVAS IDEIAS – A


EUROPA DOS SÉCULOS XVI A XVIII

CAPÍTULO I

O FLORESCER DO MERCANTILISMO NOS SÉCULOS XVI E


XVII

O Quinhentos e Seiscentos europeus são marcados por um paulatino movimento que


podemos inserir num quadro socioeconómico: o progresso de uma economia capitalista.

A movimentação iniciada pelas monarquias portuguesa e espanhola nos séculos XV e


XVI foi seguida por uma expansão marítima e comercial europeia. A luta por novos
mercados, produtos coloniais foi-se alastrando pelas diferentes nações. Nos finais do
século XVII (ainda durante a Guerra dos Oitenta Anos) a hegemonia da economia-
mundo holandesa, com sede em Amesterdão, foi-se impondo. Em resposta, houve
imediatamente a aplicação de modelos proteccionistas noutros países. Lembremos que,
durante este longo período, na Europa Ocidental o desenvolvimento comercial e
industrial de cada nação dependem directamente do Estado – é ele que protege a
indústria, assegura o tráfico; firma tratados comerciais e permite o acesso a mercados
privilegiados – dentro e fora da Europa. Por isso se assiste a encarniçadas lutas entre as
grandes potências.

Em Espanha as políticas estatais aproximam-se das praticadas na França (apelidadas


de colbertismo) e Inglaterra (relacionando-se nomeadamente com a criação e
manutenção de um importante poder sobre os mares). Porém devido à importância das

5
remessas auríferas e argentárias recebe o nome de bulionismo 1 . O seu alcance foi
limitado e os resultados inoperantes.

No caso francês, que se torna mais oportuno focar, como não havia acesso directo a
metais preciosos do Novo Mundo, os gauleses só os poderiam obter incrementando as
relações económicas que atraíssem os mesmos. Para esse efeito a Coroa vai procurar
desenvolver produtos de fácil exportação. Interessava sobretudo exportar bens que
concentrassem elevados valores (caros) mas de volume e peso relativamente reduzidos2.
Por isso se incentiva e se desenvolvem as indústrias de luxo (sedas, tapeçarias, loiças,
perfumes) subsidiados e até mesmo explorados directamente pelo poder político.

Vamos encontrar desde já esta orientação no duque de Sully3, huguenote e ministro de


Henrique IV que por exemplo, serviu de exemplo ao ministro de D. José I, Marquês de
Pombal; tal como em Richelieu e Mazarino, por todo o século XVII. Mas é o impulso
das indústrias com destaque para as mencionadas e de uma marinha mercante operadas
sob Colbert, ministro de Luís XIV, aliado aos ganhos militares e diplomáticos que
conduziram ao triunfo das políticas deste ministro. Assim se percebe a confusão entre
mercantilismo francês e colbertismo apesar de este se aplicar nesse reino avant la lettre,
como acabámos de expor. Esta componente industrial também foi parcialmente aplicada
em Espanha e na Inglaterra de Cromwell até porque algumas orientações mercantilistas
seguidas por estes três estados eram comummente motivadas pelas necessidades de
guerra.

As correntes mercantilistas deste tempo caracterizam-se sumariamente por três


características: o metalismo, o nacionalismo e o dirigismo.

Rapidamente as disputas e guerras comerciais levaram à sua condução por outros


meios. A indústria holandesa sofre (no seguimento da guerra dos Países Baixos contra a
Espanha já mencionada) com o fecho do porto de Antuérpia a estrangeiros em 1647. A
entrada de mercadorias francesas é onerada para protecção da neerlandesa, levando à
guerra em 1672. A ditadura de Cromwell vai preconizar uma politica anti-holandesa e
mercantilista processo político que inicia o seu ascendente sobre esta. Estes são apenas
exemplos ilustrativos do resultado das guerras comerciais.

1
Baseado no inglês bullion, isto é, a barra metálica.
2
Cf. MARTÍNEZ, Economia Política, pp. 168
3
É-lhe atribuída a citação «A lavoura e o pastoreio são os dois seios da França». Também durante a sua
vigência fundaram-se têxteis e alargou-se a rede de estradas; mandou conformemente abrir canais.

6
Nos prelúdios do século XVIII há um desenvolvimento de França e Inglaterra que
procuram e desenvolverem novas actividades financeiras e de especulação que mais
adiante nos debruçaremos. A ideia é clara – a necessidade de financiamento das
actividades além-mar e dos recorrentes envolvimentos nos conflitos armados que vão
brotando. A Inglaterra segue uma forte política proteccionista, fomentando as
manufacturas, analogamente ao modelo francês, apoiando-se no seu crescente império
colonial.

CAPÍTULO II

AS CRÍTICAS AO MERCANTILISMO

No século XVIII esta visão política será grandemente criticada por pensadores
económicos liberais. Impregnados de novas ideias, os homens cultos deste século
reconhecem que a ordem social não pode ser um estado meramente arbitrário, tem de
obedecer a regras que transcendem o capricho humano (não excluindo estes homens que
pudessem até ser imutáveis). A moeda é somente um instrumento de circulação e não o
único meio de acumulação da riqueza de uma nação. Aí se rejeitava o metalismo, uma
das colunas basilares do edifício mercantilista. Estas críticas embrionadas pela escola
fisiocrática serão aclamados por economistas do séc. XIX, como David Ricardo ou J.-B.
Say. Também o comércio externo só de si não seria garante da riqueza; nem se
poderiam manter saldos comerciais positivos perenemente até porque se todos
seguissem políticas proteccionistas isso implicaria a impossibilidade lógica de outros
manterem saldos negativos por longos períodos. Atente-se que estas críticas serão por
sua vez atacadas.

Podemos encontrar ideais precursoras ou já, directa ou indirectamente, contribuintes


para o contributo de um pensamento anti-mercantilista e liberalizante no virar do século
XVII. Algumas destas concepções estão contidas na obra de Pierre Le Pesant, senhor de
Boisguillebert, magistrado francês4. O crítico defende princípios que serão aproveitados

4
Lugar-tenente-geral do bailiado de Rouen, ganha notoriedade com a sua obra Memorial de França
(1707) que discute problemas e questões financeiras, a reforma de impostos que considerava injustos.
Esta obra é proibida por decisão do Conselho do Rei e o seu autor exila-se em Auvergne. Publica ainda

7
pelos fisiocratas, como iremos ver – a modificação da talha, suprimindo as isenções de
privilegiados; a defesa de um imposto sobre todos os bens, a supressão da sisa, imposto
indirecto sobre a venda dos vinhos e direitos aduaneiros (internos e externos). É o
desenvolvimento da procura de produtos agrícolas e não de produtos industriais que se
deve assegurar primacialmente. Os mercantilistas, por seu lado, pretendem o
desenvolvimento da exportação de produtos manufacturados como meio de fazer entrar
metal precioso enquanto se restringe fortemente a venda ao estrangeiro de géneros
alimentares, essenciais à vida5.

Em suma, na sua visão antitética ao pensamento mercantilista, a produção só atingiria


o seu máximo com a abolição dos entraves ao comércio e circulação permitindo o
equilíbrio natural de preços do mercado (assim) livre permitindo a cada produtor vender
normalmente e assim atingir o seu nível máximo. Abstemo-nos de dissertar sobre os
limites das ideias de Boisguillebert nomeadamente quando descura o papel dos
mercados externos na prosperidade europeia dos séculos XVI e XVII.

Outro homem que terá porventura contribuído para a escola fisiocrata terá sido Richard
Cantillion6. Escreve em francês a sua obra Essai sur le nature du commerce en général
(1775), publicada cerca de 50 anos depois de ter sido escrita. Aí, inspirado pelo
seiscentista William Petty que postulava que o valor das coisas vem da quantidade de
trabalho empregue na sua feitura, vai avaliar este valor pela quantidade de terra utilizada
(deriva portanto não só do trabalho mas também da terra).

Podíamos da mesma forma referir outros nomes de relevo porém correríamos o risco
de fugir ao escopo deste trabalho. Como se pode ver estas duas décadas foram de grande
permeabilidade das ideias destes senhores.

vários escritos acervados sob o título Testamento Político do Marechal de Vauban (1717). De relevo para
o nosso caso de estudo, como contribuição para o movimento fisiocrata, importa apontar, tanto pela
sua vertente contestatária à política fiscal como pela agenda económica destacar o seu Tratado dos
Cereais e Dissertação sobre a Natureza das Riquezas, do Dinheiro e dos Tributos. Cf. História do
Pensamento Económico, pp. 147
5
Ver DENIS, História do Pensamento Económico, pp 258 e seguintes
6
Richard Cantillion (1680?-1734) foi um pensador económico franco-irlandês. A sua opus magnum veio
a influenciar a economia política subsequente sendo considerado por alguns como fundador ideológico
dessa disciplina. Apesar de se saber pouco da sua vida, sabemos que foi um bem-sucedido comerciante
e banqueiro

8
CAPÍTULO III

A CRÍTICA FISIOCRÁTICA AO MERCANTILISMO

A recusa da doutrina mercantilista está nas consequências imediatas das primeiras


descobertas económicas destes economistas avant la léttre. Estes concentram-se
essencialmente nas questões agrícolas. No entanto, são imediatas as prescrições de
“máximas de governo económico” com alcance geral. São denunciadas, na esteira de
Boisguillebert e Cantillon, a política que abandona a agricultura para estimular a
indústria e comércio externo, levando ao afundar dos preços agrícolas (pela proibição da
livre circulação cerealífera) apontados como causa da miséria dos camponeses e
estagnação das suas produções. Melhor reino para assentar estas críticas que a França
seria difícil de encontrar se tivermos em conta a orientação económica e ideológica de
Richelieu ou Colbert. Com eles a manufactura para a exportação floresceu e a
agricultura permaneceu descurada. Os olhos fisiocratas voltavam-se para o sucesso da
revolução agrícola francesa e frequentes são as comparações ou evocações ao reino
anglo-saxão.

A ideia que então viciará todo o sistema concebido por Quesnay, de que a indústria e
comércio são actividades estéreis constitui o segundo grande ataque à doutrina dirigista
e metalista. A riqueza de uma nação não se regula pela massa de moeda mas fundeia-se
na terra.

CAPÍTULO IV

A GALOPANTE ECONOMIA BRITÂNICA

«Uma das maiores manifestações da expansão da economia do Reino Unido no


período moderno foi o crescimento sem precedentes da população»7. As origens deste
movimento são mais obscuras já que não existiam censos totais da população antes de
1801 e os existentes não registam esforços em adicionar idades, sendo por isso
7
Cf. DEANE, P; COLE, W. A., British economique growth. 1688-1959. Trends and Structure, pp 5.
Consulte-se para melhor visualização da evolução demográfica no espaço anglo-saxónico a tabela que
copiámos da página 6 do referido livro e em anexo [ANEXO II]

9
imprecisos. No entanto, a informação existente (registos paroquiais) é suficiente para
podermos estimar tendências e as controversas causas8. A tabela em anexo9, retirada do
do livro British economique growth 1688-1959: Trends and Structure mostra-nos que a
população anglo-saxónica evoluiu de 5.8 milhões para 9.1 milhões. Há uma estagnação
na primeira metade do século e depois explode. Este facto pode-se explicar pela queda
da mortalidade.

O comércio internacional cresce vertiginosamente. A Inglaterra acede aos mercados


ultramarinos para colocar produtos manufacturados e se abastecer de matérias-primas e
alimentos básicos, importantes para posterior industrialização. A composição dos
produtos transaccionados – se em 1699-1701 eram 2/3 lanifícios, no final do século
XVIII estes já só ocupam um terço das mesmas sendo os restantes produtos
manufacturados (além de linho, seda, metalúrgicos). A agro-pecuária, em apenas um
século (1700-1800) parece ter aumentado a sua produção em metade10. O modo de vida
inglês caracteriza-se pela vida agrária e pastoral. As casas de campo e não as
manufacturas eram o centro da vida11.

A Inglaterra assiste a uma segunda vaga de “tapadas” (depois da do século XVI).


Conhecidas no inglês por enclosures permitiam pastorear mais ovelhas e logo produzir
mais lã, por exemplo. Os grandes proprietários assenhoram-se dos terrenos incultos, os
open fields, parcelas confundidas cultivadas em comum pelos diversos proprietários. O
próprio Parlamento legisla, em 1730, no sentido de autorizar a privatização desses bens
comunais. O esfomeado mercado de Londres parece ter causado o declínio do tipo de
campos abertos. As terras livres dão, portanto, lugar a campos cercados. Acrescente-se
que a maioria dos melhoramentos eram feitos em terras fechadas.

8
Ver KABAKKUK, H. J., English population in the Eighteenth Century
9
Ver nota de rodapé nº 7
10
Idem, ibidem, pp 62. A estatística que aqui transcrevemos acerca da evolução do produto da
agricultura inglesa trata-se de uma previsão. Os dados completos sobre as explorações, pessoas
empregadas ou outros só se podem fazer fidedignamente a partir de meados do século XIX
11
«Como num filme em câmara lenta pode-se observar na vida agrícola de Inglaterra, a acção das forças
de mercado. As vantagens da divisão do trabalho e princípios de custos comparativos estavam escritos
em cada detalhe da paisagem. Se os campos eram abertos ou fechados dependia da geografia do
campo, na natureza do subsolo, tipo de cultura e distância dos centros de consumo. O sistema aberto
não era adequado para países montanhosos ou para a pastorícia». Cf. SMELLIE, K. B., Great Britain since
1688. A Modern History, pp 8-10

10
CAPÍTULO V

A FRANÇA RURAL E COMERCIAL NO OITOCENTOS

Podemos sintetizar a agricultura francesa num par de frases lapidares retiradas da


História das Instituições de J. Ellul: «constitui a força, a riqueza e ocupação principal
em França. Este regime agrário não se alterará significativamente no decurso dos
séculos XVII e XVIII12».

País de grandes capacidades económicas (entendendo que a riqueza no Antigo Regime


era directamente dependente da terra) com uma vasta área fértil, quase 20 milhões de
habitantes em 1700, era o reino mais populoso da Europa. No final do século atingiria
os 26 milhões enquanto a Inglaterra e País de Gales contariam entre 6 a 9 milhões e a
Espanha 7,5 milhões de habitantes (crescendo para 10,5 no final no achegar de 1800).
Atitudes conservadoras em relação à terra impediam a exploração eficaz e privavam os
proprietários de obter mais lucros ou mesmo pretender reinvesti-los. Não se investia no
melhor aproveitamento e assim a produtividade mantém-se baixa (apesar de se
verificarem aumentos de produção). O grande comércio incrementado na época de Luís
XVI é de origem colonial, animando os portos de Bordéus e Nantes.

A partir do século XVI retoma-se a lavoura dos campos. Apenas se descuram, no


século XVII as regiões limítrofes, perto de Borgonha, Lorena, explicando-se pelas
guerras que implicaram enormes devastações. Houve povoações que ficaram por muito
tempo abandonadas.

O cereal, termo extensível a todos os cereais panificáveis, domina a maior parte da


terra cultivada. Generalizadamente durante o século XVIII francês manifestam-se
progressos técnicos, um espírito de luta pelo individualismo agrário e um assalto às
práticas comunitárias. Este século marca o início da intervenção sistemática do Estado
francês na agricultura seja através de disposições legislativas seja pela ajuda técnica.
Indirectamente foi também resultado do desenvolvimento das vias de comunicação que
se vinham a ser desenvolvidas e permitiu uma aumento das trocas e maior
especialização regional. A revolução agrícola, de grandes transformações da técnica e

12
Cf. ELULL, J, Histoires des Instituitions, vol. 4, pp 119

11
exploração agrária difunde-se por toda a Europa apresentando laivos diferentes
consoante a nação. Na França houve um desaparecimento progressivo das obrigações
colectivas que existiam e o abandono lento do pousio pela cultura de forragens.

A posse agrária encontra-se distribuída, grosseiramente, da seguinte forma: mais de


metade da terra pertence à nobreza, uma grande parte também aos senhores da Igreja e
muito pouco, por sua vez ao clero sem direitos senhoriais. As classes possidentes detêm
a maioria do solo. As percentagens de propriedade burguesa e campesina são
aproximadamente iguais: 16,5% da superfície considerada por um lado e 17,44% por
outro. Porém, lembremos que a propriedade campesina está infinitamente mais
fragmentada e também desigualmente distribuída por uma ordem que constitui 90% da
população. Mais de um milhar de camponeses repartem-se por 8000 hectares e a
maioria, quanto muito, tem menos de 1 hectare. O restante proletariado rural está numa
situação miserável, tanto mais quanto experimenta um «prodigioso incremento
demográfico13». Um número importante de camponeses torna-se proprietário de facto
das suas courelas (450 000 no final do século XVIII) sendo outros rendeiros ou meeiros.
Há um aumento do número de arrendamento à burguesia, outros se empregam como
assalariados ou ainda na indústria rural. A burguesia passaria a deter um quinto das
terras. Quanto ao regime senhorial pouco se alterará. A exploração, territorialmente
muito segmentada, divide os domínios senhoriais em diversas métairies (pequenos
domínios rurais trabalhados amiúde em parceria) cuja exploração era feita em regime de
arrendamento. São feitas tentativas por parte dos grandes proprietários de assegurar
elevados rendimentos baseando os seus intentos em direitos caídos em desuso,
utilizando os resultados não numa óptica (quase) capitalista como ocorreu em Inglaterra,
na base da produção extensiva, mas em despesa.

Focamos agora a nossa atenção nas estruturas sociais. Regra geral, houve um
crescimento populacional e das cidades. A demografia é estacionária sob Luís XIV. A
partir de 1720 há um salto demográfico aumentando a população num quarto de século
de 30 a 40% 14 . A sociedade permanece fortemente hierarquizada enquadrada numa
teologia e ideário mental. Esta rigidez impede a mobilidade social espontânea e
contrasta com o caso inglês ou holandês. A nobreza tradicional e o alto clero conservam
muito mais largamente a sua condição de privilegiados que em Inglaterra. A servidão,

13
BLOCH, Marc, História Rural Francesa, pp 393 e seguintes
14
Idem, ibidem, pp 195

12
que tem contornos muito diferentes dos da Europa Central e de Leste, sente-se no
pagamento da dízima eclesiástica e dos direitos senhoriais por parte do campesinato
(referimo-nos tanto às contribuições em espécie ou como sob a forma de corveias).

A tendência na sociedade da segunda metade do século XVIII será para numerosas


reformas no sentido de uma monarquia liberal e sociedade liberalizante. A centralização
política e sistema social permitia, contudo, controlar e impedir as renovações
necessárias.

Em seguida, num exame à indústria do reino francês constatamos que o regime


artesanal é ainda dominante no século XVII, repartindo-se em pequenas oficinas. No
século seguinte há um aumento dos ofícios ilustrador da estagnação quase completa
dessa situação. As manufacturas e grande indústria florescem neste século sob a
influência real (com destaque para a de luxo). Nalguns sectores a dimensão dos
empreendimentos manufactureiros é significativa (300 a 400 trabalhadores para os
vidros e metalurgias).

Entre 1690 e 1715 há uma profunda decadência industrial. A revogação do édito de


Nantes (1685) colocando em xeque muitos burgueses huguenotes (que assim apartam de
França capitais, segredos de fabrico, direcção e organização de empresas). A isto se
acrescentam as guerras e aumento paulatino das regulamentações que constrangem o
progresso técnico. Não podemos falar da existência de um capitalismo industrial. A
indústria rural vai-se desenvolvendo e a produção industrial deixa-se dominar pelo
comércio externo15.

CAPÍTULO VI

HISTÓRIA POLÍTICA E ECONÓMICO-FINANCEIRA DA


FRANÇA DOS SÉCULOS XVII E XVIII

Politicamente a Coroa está no centro do sistema, é a única fonte da autoridade política.


O seu exercício é absolutista16. O monarca exerce esta autoridade directamente através

15
Idem, ibidem, pp. 122 e seguintes
16
O exercício do poder monárquico não era limitado por outros indivíduos, grupos ou instituições do
reino. Este facto não significa todavia que fosse um exercício despótico, existindo na concepção francesa

13
da sua corte, a curia regis, evoluindo para um sistema mais complexo e que permitia
escapar mais facilmente a um férreo controlo pessoal. Os trabalhos faziam-se através do
seu conselho. A sua autoridade judicial é delegada num conjunto de juizes numa
hierarquia de tribunais, os chamados tribunais soberanos, grandes instituições legais. O
Parlamento de Paris é um exemplo.

Que problemas havia, no reino de França, a resolver no século XVIII?

Já Luís XIV havia tomado algumas medidas de emergência. Lançam-se dois impostos,
a capitação de 1695 e a dízima de 1710 que tinham de ser pagos igualmente pelos
súbditos privilegiados e não privilegiados, evidência dos cofres exaustos que era
necessário rapidamente encher. No entanto, imposições temporárias para satisfazer
necessidades de guerra, na constante política externa expansionista deste rei, não
constituíam de maneira alguma solução permanente dos dilemas financeiros que o
governo francês vai passar a enfrentar cronicamente. É interessante verificar que a
necessidade levou à quebra desse princípio de imunidade da nobreza à tributação
directa. Motivado pelas vicissitudes da nova centúria, a nobreza podia estar liberta da
taille17 e imposto do sal mas passa a ser tributada directamente (apesar de em regime
muito desigual quando comparada com o Terceiro Estado).

Após a morte de Luís XIV (1715) e até o seu bisneto assumir a maioridade em 1723, o
governo esteve sob a tutela de Filipe, duque de Orleães. O regente tentou inverter a
situação financeira sendo atraído pelas ousadas ideias económicas de John Law18. O
escocês cria o Banque Générale, parcialmente com fundos estatais e emitindo notas
bancárias que se esperava que espalhassem pelo reino e animassem a actividade
económica. Liga-se ao grande empreendimento nacional, a companhia comercial que
em seguida funda, onde todos poderiam investir e recolher lucros oriundos de actividade
colonial. O projecto aparenta inspirar-se no bem sucedido exemplo do Banco de
Inglaterra (1694) cujo papel na obtenção de fundos de guerra para a aliança anti-
francesa durante a Guerra da Sucessão em Espanha foi fulcral. Porém o Banque de Law

a nítida distinção entre absolutismo e despotismo, isto é, a diferença das bases onde o rei baseava o seu
poder: o apoio e respeito das leis, costumes e de Deus.
17
Ou talha, imposto (directo) de derrama
18
John Law (1671-1729) – economista escocês escolhido pelo duque de Orleães para Controlador geral
das finanças de França. Nessa qualidade funda um banco privado em França contando ¾ desse valor em
notas governamentais, ou seja, fundando o primeiro banco central daquele reino. Foi responsável pela
bolha da Companhia do Mississipi e consequente caos financeiro.

14
vai falir em 1720. Caindo numa espiral especulativa, tal como a Mania das Tulipas
(Holanda, década de 1630) ou a coeva bolha da Companhia dos Mares do Sul inglesa19
(Inglaterra, 1720) acaba por destruir a confiança e culminar na bancarrota. Enquanto os
investidores ingleses podem pressionar e defender até determinada extensão os seus
investimentos através da Câmara dos Comuns, o sistema absolutista francês, bem menos
contrabalançado, deixou os investidores numa situação de plena desconfiança. Esta
situação revelar-se-á um grande entrave à criação, adesão e sucesso de futuros
empreendimentos financeiros que alavancassem a projecção comercial dessa potência.
No final da regência podemos observar, portanto, a manutenção de problemas
financeiros e fiscais.

Nas primeiras duas décadas da maioridade de Luís XVI o governo é colocado nas
mãos do seu antigo tutor, o cardeal Fleury, cuja tendência para a sua política externa foi
afastar a França de guerras dispendiosas e geradoras de dívidas avultadas. Pratica uma
política liberal face aos comerciantes e a presença francesa floresce nas Antilhas, Índias
e Luisiana. À data da morte do cardeal o reino vai-se ingerir na Guerra da Sucessão
Austríaca (1743-8). Para a financiar o Intendente geral das finanças Marchault
d´Arnouville introduz um imposto (em 1749), a vigésima20. Segue-se um conflito, com
o alto clero cioso dos seus direitos e mordomias. Aliás este tipo de reacções das elites
privilegiadas passará a ser uma constante nas múltiplas tentativas que se vão
empreendendo ao longo de todo este século para reformar e salvar um sistema que se
mostra cada vez mais anacrónico. A assembleia-geral do clero obtém a isenção da sua
ordem. A feroz oposição que germinou deve-se ao facto de este imposto ter sido criado
em tempo de paz e portanto difícil de suportar em precedentes de jurisprudência. De
novo se introduz uma segunda vigésima no início da Guerra dos Sete Anos (1756) e
terceira em 1760 mantendo-se a segunda permanente mas a última será levantada.

A falta de meios financeiros por parte do governo de “Sua Majestade Cristianíssima”


começa cada vez mais a evidenciar a necessidade de mudanças fundamentais na
estrutura social e económica do país. Importa referir que no final da Guerra dos Sete
Anos (1763) é aplicada uma experimentação sugerida pelos fisiocratas. Este grupo de

19
Criada em 1711 a Companhia dos Mares do Sul obtém cedo lucros enormes chegando a obter a
gestão da dívida pública. O valor das acções multiplica-se, lançam-se numa base especulativa noutros
negócios afundando-se depois do pico num estrondoso craque.
20
Este imposto incidia em 5% de todos os rendimentos sejam oriundos de propriedade, comércio, ou
outros e independentemente da ordem.

15
escritores economistas franceses, mote do presente trabalho, acreditavam ser a
agricultura a chave da riqueza das nações. Teremos hipótese de explorar as teorias por
eles preconizadas num capítulo adiante. No entanto, a prática não surtiu o que a teoria
prometia. Os preços dos cereais aumentaram quando os produtores de excedentes
procuraram limitar a oferta e vender ao maior preço. Seguiram-se surtos de
levantamentos públicos com acusações da incapacidade do rei de prover alimentação ao
povo. Foi posta fim à experiencia em 1770.

Não termina aqui a influência fisiocrática, já que nos inícios do reinado de Luís XVI,
em 1774-6, Turgot, simpatizante e amigo de vários fisiocratas foi nomeado e
empossado Intendente geral das Finanças. Volta a introduzir o comércio livre dos
cereais mas esta decisão vai coincidir com ma colheita e voltam a verificar-se graves
surtos de violência no centro e norte da França (Guerra da Farinha 21 ). Pretendia
igualmente instituir o imposto único sobre as terras, organizado por meio de
assembleias representativas de proprietários que substituiria todos os impostos
existentes. A oposição causada por estas propostas leva à sua demissão em 1776 sendo
substituído por Necker22.

A última grande tentativa para reformar o regime financeiro desactualizado que afligia
a França veio pela mão de Charles de Calonne (1783). O controlador geral das finanças
pretende introduzir um imposto pago em géneros para todos os proprietários de terras
independentemente da sua condição. Este substitui a vigésima combinado com a
redução de outros impostos directos. Ainda pretende desmantelar as barreiras
alfandegárias internas e uma vez mais introduzir o comércio livre de cereais. Encontra
dificuldades de cooperação e pretende reunir uma Assembleia (apenas) de Notáveis,
seculares e religiosos. Nesta década turbulenta reúne-se com os grupos privilegiados em
vez dos Estados Gerais (não convocados desde 1614). Tenta convencê-los, reintroduz a
proposta de Turgot de uma série de assembleias de proprietários (hierarquizando-se do

21
Refere-se à onda de tumultos populares que se levantaram de Abril a Maio de 1775 no Norte e Centro
de França. A causa mais iminente terá sido o aumento do preço dos cereais, com repercussão nos
preços do pão. Estes violentos conflitos manifestam a crise política e social que o regime ia sentindo.
Pode ter contribuído para o aumento dos preços o édito de Turgot (13 de Setembro de 1774) cuja
liberalização deste mercado levou a que produtores açambarcassem os produtos da lavoura fazendo
subir os preços.
22
Banqueiro suíço que procurará reformar e estender a fiscalidade francesa (agravando-se as finanças
através do apoio aos independentistas das colónias americanas na mão da Coroa britânica).

16
nível paroquial a provincial). Sem conseguir progressos acaba demitido pelo rei em
1787.

CAPÍTULO VII

INFLUÊNCIA CULTURAL E INTELECTUAL DA FRANÇA E O


ILUMINISMO. O RACIONALISMO SETECENTISTA E A IDEIA
DE ORDEM NATURAL

Durante o século XVIII a França foi o guia cultural da Europa. O francês era a língua
mais falada entre as elites cultas e era a língua internacional da diplomacia. Os czares da
Rússia, os reis da Prússia, Espanha e Portugal tal como numerosos príncipes germânicos
e italianos construíam cópias de Versalhes. Joalheiros franceses, escultores e pintores
eram importados ou modelo para copiar e base da fundação de academias (como em
Berlim ou Viena). Talvez o maior impacto sobre os espíritos europeus provenha dos
escritores do Iluminismo francês. Um grupo heterogéneo de filósofos que defendiam a
razão como o melhor guia do homem na organização social e política. Precedidos pelas
descobertas científicas do século anterior, sobre a natureza do homem, do universo e
cepticismo em relação aos dogmas da Igreja (e Estado) as suas ideias tiveram grande
difusão e importância neste papel cimeiro francês. Fazendo uso próprio da razão seria
possível descobrir as leis que governam o mundo. O homem deveria então concentrar-se
em melhorar o seu modo de vida.

Duas serão, a nosso ver, as principais causas do declínio do mercantilismo. Em


primeiro lugar, o falhanço económico, isto é, a sua impossibilidade prática de se impor
de forma pacífica, redundando no campo de batalha. Em segundo lugar, os frutos da
abstracção filosófica que reconhecendo leis naturais só podem rejeitar o dirigismo
estatal. Esta última concepção advém, em parte, das verdades claras e evidentes
propulsionadas pelo método cartesiano.

Apesar desta revolução do pensamento político e socioeconómico o pensamento


mercantilista prolongar-se-á até mesmo ao século das luzes seja em termos quase

17
anacrónicos ou mesmo híbridos. O Iluminismo, enquanto pensamento teórico,
pressionará este sistema. As exigências racionais da mente humana deveriam moldar as
sociedades e a vontade individual como fundamento da vida social. Combina-se o
racionalismo e o reconhecimento de uma ordem natural que se orientaria no sentido de
assegurar a felicidade dos homens. Esta, divina ou não, resultaria do complexo de leis
que constituiriam um código comum, superior às flutuações do tempo e às variações
geográficas, cujos preceitos se imporiam à razão humana. A razão seria o veículo dessa
ordem e portanto o meio de a cumprir.

Esta concepção embora não respeitante só ao domínio dos problemas económicos teve
aí a maior influência na respectiva revisão. Em termos intelectuais para que se
impusesse a ideia de que há mecanismos naturais que governam o conjunto da vida
económica seria mister romper com as concepções do mercantilismo que postula a
necessária e constante intervenção estatal para o enriquecimento da nação23. Portanto o
passo seguinte será a afirmação da liberdade das trocas como condição necessária e
suficiente da ordem económica, passo este que será pedra angular da escola fisiocrática
que emergirá no Setecentos. É, portanto, baseado neste esquema teórico que estes
homens assentaram as suas construções em torno dos fenómenos económicos.

23
Aqui evocamos a contribuição (paradigmática do pensamento que se vem desenvolvendo) para o
futuro pensamento da ciência económica, da pena de John Locke consubstanciado nas suas análises nas
Considerações sobre o Abaixamento do Juro e a Elevação do Valor da Moeda (1691) onde defende a
ideia de que existe uma taxa natural do juro do dinheiro, não sujeita directamente à acção de medidas
legislativas, mas de uma formação de preços no mercado em função da oferta e procura. A influência é
clara em Smith, Malthus, Ricardo para evocar os de maior nomeada. Aqui já existe o gérmen da ideia de
que existem leis naturais, à semelhança da física, que governam a esfera económica.

18
PARTE III

A FISIOCRACIA – ANÁLISE DA TEORIA E DOS


DOCUMENTOS PROPOSTOS

CAPÍTULO I

AS IDEIAS FISIOCRÁTICAS – O QUE É?

O termo que mais tarde designará os pensadores fisiocráticos provém das palavras
gregas “physio” e “kratia”, isto é, poder da natureza.

Os principais pensadores associados a este movimento, além de Quesnay, cabeça de


proa deste movimento, são Turgot, Dupont de Nemours 24 , Mercier de La Rivière 25 ,
Mirabeau26. As ideias encontram precursores no século anterior, como no Le Détail de
la France (1697) de Boisguillebert ou o projecto de imposto único do Marechal de
Vauban, como pudemos observar no capítulo anterior.

24
Colaborador de Turgot, deputado durante a Revolução, emigra para os Estados Unidos da América.
Produziu obras de valor de fisiocracia e a própria designação deste pensamento económico.
25
Magistrado, situa a Economia na dependência do Direito Natural
26
Marquês de Mirabeau, pai do tribuno revolucionário, pensador e escritor cujas obras foram
consideradas de nomeada

19
CAPÍTULO II

A BASE AGRÍCOLA, AS CLASSES ESTÉREIS E O CONCEITO DE


PRODUTO LÍQUIDO DA TERRA

Segundo François Quesnay, economicamente as sociedades compõem-se em três


classes: a classe produtiva, uma classe de proprietários e uma classe estéril. Produtiva
seria apenas a classe que cultiva a terra, produtora de toda a riqueza, cuja circulação
teria nas sociedades o mesmo que o sangue para os animais. A classe dos proprietários
seria constituída pelos donos das terras e de outros bens de produção27. A classe estéril
incluiria todos aqueles que se dedicam a outras actividades não agrícolas entenda-se
(comércio, indústria…). Porém, esta denominação pode ser capciosa. Não significa,
portanto, que os fisiocratas considerassem os comerciantes ou capitalistas inúteis ou
parasitas. O interesse social deste tipo de actividades não é desdito. A esterilidade
prende-se meramente no facto que reconheciam como lei: as actividades alheias à terra
eram não geradoras de riqueza nova porque só da agricultura resultaria um rendimento,
um produto (resultante do trabalho do cultivador mais a força da natureza). As outras
actividades seriam úteis mas aquilo que acrescentam ao valor dos bens seria absorvido
pelos gastos das transformações operadas. Só quando a natureza contribui para a
produção, o respectivo rendimento excede o valor do trabalho do homem. Esse
excedente da produção agrícola foi designado por estes homens de produto líquido (da
terra). Esta será uma ideia indispensável das construções fisiocráticas.

Os fisiocratas contribuíram praticamente para orientar a política (além do pensamento


nas elites governantes) francesa na direcção de um liberalismo comercial. Autores do
édito de 18 de Julho de 1764 que autorizava a exportação de cereais. Não coroada de
êxito conduziu ao aumento do preço do pão e consequente descontentamento e reversão
imediata desta medida (caindo Choiseul em 1770). A partir daqui a influência dos
fisiocratas vai declinando mas as ideias liberais permanecerão. Turgot, que nega

27
Cf. MARTINEZ, Economia Política, pp. 189: «Poderá estranhar-se que os proprietários não tenham sido
incluídos na classe estéril. Mas, para os fisiocratas, a classe dos proprietários é constituída por aqueles
que tornam possível a utilização da terra por parte dos agricultores. Os respectivos direitos, sobre a
terra e sobre parte dos rendimentos produzidos, foram sempre julgados pelos fisiocratas em perfeita
conformidade com a natureza das coisas e sociedades»

20
pertencer a esta corrente partilha ainda bastantes das suas ideias como teremos hipótese
de analisar. Por fim, outro fisiocrata, Bertin, seria ministro de Luís XVI.

As actividades económicas deviam-se desenvolver livremente. Qualquer


regulamentação humana seria sempre menos ajustada que a harmonia emanada pela
ordem natural. Esta é a ideia que será melhor explicitada no conceito de “mão invisível”
de Adam Smith 28 . É paradigmático o adágio atribuído ao fisiocrata V. de Gournay:
«Laissez faire, laissez passer, le monde va de soi-même» (deixa fazer, deixa passar, o
mundo vai por si mesmo). A regulamentação que pudesse afectar a agricultura como
acontecera através de políticas mercantilistas era altamente desencorajada por estes
pensadores. Lembremos que o mercantilismo aplicado em França teve uma faceta mais
manufactureira, suportada amiúde à custa da agricultura francesa cujo abandono e
marasmo conduziu a reacções como, por exemplo, a de Boisguillebert e in extremis, de
toda a escola fisiocrática. Não é por acaso; o meio social e físico foi o agitador dos
espíritos franceses.

A aversão ao pensamento que mais tarde se designaria por mercantilista29, 30 revê-se na


liberdade económica a condição essencial da prosperidade dos povos e na intervenção
estatal a causa do empobrecimento das nações. Esta conclusão, de ordem política, será a
mesma que partilharão os subsequentes economistas clássicos, como o considerado pai
da economia, Adam Smith. Estes serão os verdadeiros prossecutores de uma disciplina
que nasce na crítica e ganha a sua forma com os fisiocratas.

Segue-se naturalmente um rol de deliberações relativas ao sistema fiscal. Sendo a terra


a única criadora de nova riqueza, apenas sobre esta deveria incidir a tributação. Por isso
se compreende a ideia de imposto único sobre a terra defendida por Mirabeau. Poder-se-
à pensar que este regime de impostos iria afinal prejudicar aquilo que os fisiocratas mais
prezavam – a agricultura31. A ideia deste imposto único não era agravar a situação dos
agricultores. Teria em conta as repercussões dos impostos todavia, num regime de

28
A economia auto regula-se sendo desnecessário e até perniciosa a intervenção governamental na
economia. Este conceito, de maior relevância, vai marcar indelevelmente todo o pensamento
económico que se vai produzindo
29
O termo mercantilista foi cunhado por Adam Smith que designa precisamente as práticas políticas e
económicas aqui descritas e com auge nos séculos XVI e XVII europeus.
30
Ver o aprofundamento que demos na Parte I, Capítulos II e III
31
A título de curiosidade enuncie-se o conto de Voltaire “L´Homme aux Quarante Écus” onde a sátira a
este “exagero” conta a vida de um agricultor contribuinte miserável contraposto à prosperidade de um
comerciante especulador isento.

21
liberdade de fixação de preços, este mecanismo permitiria aos agricultores transferir o
peso do imposto para os restantes sectores. Esta distribuição do encargo seria ainda
mais igualitária – até porque todos consomem produtos agrícolas. Ademais, à luz desta
lógica, o imposto único sobre a agricultura ainda tinha a vantagem de simplificar a
tributação. O único entrave/advertência a este encargo ocorreria se em condições
adversas para a venda de produtos agrícolas os agricultores que pagam esse imposto
correrem o risco de suportar efectivamente maior tributação.

Por fim, a falta de elementos bastantes para a construção de um sistema económico os


fisiocratas foi suficiente para criar um clima de interesse pelas questões económicas.
Pela utilização, apesar de ainda rudimentar de uma nova metodologia de investigação,
surge um novo método, desde logo prosseguido. Em França estes homens e a aceitação
dos princípios gizados por Adam Smith estão na base da escola clássica francesa. A
noção de produto líquido é também aproveitada por toda a teoria económica
subsequente. Presente desde Karl Marx até aos dias de hoje, por exemplo, nos
problemas atinentes ao rendimento nacional (apesar de num sentido mais amplo). Numa
actividade onde o acréscimo de utilidades excede os custos existe, para os economistas
de hoje, um produto líquido (que vem precisamente da noção criada pela escola
fisiocrática). Quesnay, caudilho desta causa foi de extrema importância para a formação
de um estilo de pensamento enraizado no pensamento filosófico e científico setecentista.
Marx e Schumpeter 32 consideraram-no o fundador da economia moderna, Estes
contributos marcam-se primeiramente por considerar os fenómenos sociais como factos
sujeitos a leis naturais independentemente da vontade humana.

32
O primeiro na reelaboração/comparação do seu modelo com o Tableau Économique de Quesnay em
O Capital (1867) e o segundo na sua descrição em History of Economic Analysis (1954)

22
CAPÍTULO III

ANÁLISE DOS DOIS DOCUMENTOS – AS MÁXIMAS GERAIS DE


QUESNAY E A CRÍTICA EPÍSTOLAR DE TURGOT

a) Esbocetos biográficos de Quesnay e Turgot

i. Vida e Obra de François Quesnay

O economista francês, pai da escola fisiocrática, só se ocupará de questões económicas


numa fase avançada da sua vida. François Quesnay nasce no campo, em Méré (perto de
Versalhes), em 1694, numa família de agricultores, pequenos proprietários que podiam
ter uma vida que qualificaríamos como desafogada. Perde o pai aos oito anos de idade e
só se alfabetiza aos doze. Aos dezassete anos, em Paris, torna-se aprendiz de cirurgião e
depois mestre. Aos vinte e quatro anos estuda cirurgia, faz-se mestre nesta arte e instala-
se em Mantes para a exercer. Publica várias obras médicas sobre sangrias e febres. Daí
tem uma ascensão valorosa. Curioso é que apenas se vai diplomar médico aos 50 anos.
Parece ter sido um bom profissional, com clientela influente. Assim, entra em 1748 ao
serviço de Mme Pompadour, obtém o cargo de médico ordinário do rei em Versalhes.
Enobrecido em 1752 e enriquecido por Luís XV compra anos depois propriedades em
Nivernais, onde supostamente se inspirará para a sua obra económica 33 . Enquanto
cortesão pôde atrair alguns notáveis para a sua causa económica. Aí conhece diversos
pensadores e literatos entre os quais cite-se Didetot e D´Alembert (chegando a publicar
na Enciclopédia alguns artigos referentes a economia). Devota-se a estudos económicos
não se imiscuindo no entanto nas intrigas de corte. É um homem embebido das crenças,
críticas e ideias dos Iluministas34. Morrerá em 1774 em Versalhes

A obra económica do médico inicia-se em 1756, quando produz o seu primeiro estudo
económico, o artigo «rendeiros» na Enciclopédia. Denota uma vontade de basear a sua
opinião em números, debruçando-se sobre os problemas da exploração da França rural

33
Ver DENIS, História do Pensamento Económico, pp. 161-2
34
Cf. KUNTZ, Quesnay, pp.125: Extrato das economias reais do Sr. De Sully: «Num governo onde todas
as ordens de cidadãos têm luzes bastantes para conhecer evidentemente e para demonstrar com
segurança a ordem legítima mais vantajosa ao príncipe e à nação, encontraríamos um déspota que
empreendesse, com apoio das forças militares do Estado, fazer manifestamente o mal pelo mal?»

23
(opina que deverão as terras ser trabalhadas por um rendeiro ao invés do sistema
comum, a meias e utilizar o cavalo ao invés do boi na lavra). Dois anos depois publica o
seu famigerado Quadro Económico35, tornando-se de facto chefe reconhecido de fila
dos filósofos economistas ou fisiocratas. Para a História ficou também reputado como
expoente da corrente fisiocrata e pela sua associação a este trabalho de grande
importância.

O Quadro Económico36 publicado pela imprensa do rei é uma folha com um conjunto
de linhas ziguezagueantes e acompanhado por sumários esclarecimentos. A análise da
vida económica tem um carácter claramente mecânico e matemático. As despesas
alimentam a produção e esta colmata as despesas. Neste fluxo e refluxo Quesnay e
depois mais tarde com a colaboração de Mirabeau (no livro conjunto Filosofia Rural ou
Economia Geral e Política da Agricultura de 1763) explana o resultado benquisto pela
ordem natural e anatematiza qualquer intervenção estranha a esta harmonia, num
esquema que representa uma anatomização da vida económica. Este gráfico
acompanhado de algumas anotações avivou diversas reacções. Assim se comprova nas
duas cartas que escreve ao mesmo Mirabeau, seu correligionário, a explicitar e
responder a algumas questões37.

Embora se enfatize o lado liberal do pensamento fisiocrático, o papel do Estado não é


completamente negligenciável. A Coroa deve promover o progresso através, por
exemplo, do investimento em vias de transporte ou na instrução dos cidadãos, num
ideário plenamente revelador do zeitgeist da elite francesa.

A sua estreia na literatura económica na década de 50 é altamente crítica da tradição


colbertista. O proteccionismo, dificultando a comercialização externa de alimentos
deveria manter baixos os preços e facilitar a industrialização do país. Assim se
conseguiu por determinado período mas arruinando a agricultura e plantado a economia
em frágeis bases. É neste contexto que ele e os fisiocratas se insurgem.

Não só na França irá Quesnay e depois os seus seguidores basear a sua análise mas
irão estabelecer um quadro comparativo. Utilizam por diversas vezes o caso inglês,
35
No original Tableau Économique. Publicado em 1758 será reeditado e traduzido múltiplas vezes. É um
escrito breve, onde se representam quadros numéricos, a distribuição da riqueza numa sociedade e se
materializa a essência do pensamento fisiocrata. Ver KUNTZ, Quesnay, pp. 187-191
36
Para melhor visualização consulte-se a ilustração em anexo [ANEXO III]
37
Quesnay, F., Carta a Mirabeau sobre o Quadro Económico; Segunda Carta a Mirabeau sobre o Quadro
Económico in KUNTZ, R., François Quesnay: Economia, pp. 112-117

24
onde a liberdade de comércio cerealífero e agropecuária prosperavam e o fervilhar de
ideias era constante. «Na Inglaterra a condição do arrendatário é de muita riqueza e de
muita consideração, uma situação singularmente protegida pelo governo. Lá, o
cultivador valoriza abertamente suas riquezas, sem temer que seu ganho atraia a ruína
por imposições arbitrárias e indeterminadas38».

Há lugar para especular até que ponto a sua formação e vida como médico inferiu na
sua idealização do corpo e funcionamento da economia como um organismo vivo.

Nos seus restantes trabalhos que tivemos hipótese de ler39, não só se limita a descrever
o funcionamento da economia e condições de equilíbrio mas interessa-se na descoberta
das causas da prosperidade das nações seguindo uma longa tradição que continuará. Tal
como será para Adam Smith, a economia política deve ser prezada pelas suas
consequências na orientação da vida social. Entre 1756-8 trata em alguns ensaios
escritos de questões atinentes estritamente à agricultura, impostos e demografia.
Posteriormente passa à generalização ordenando as suas ideias num retrato total da
economia. De 1758-66 concebe mais cinco versões do seu Quadro Económico e vê as
suas ideias ganharem adesão com diversos discípulos a prosseguirem e divulgarem o
seu trabalho. Um dos intervenientes na carta em análise na segunda parte do documento
43, em estudo, Dupont de Nemours, foi dos seus apologistas mais importantes. A partir
de 1766 com o sistema teórico já bem consolidado apenas se farão alguns acrescentos
políticos na sua aplicação. No fim da sua vida ainda se dedica a estudos matemáticos
mas sem implicações relevantes.

ii) Vida e Obra de Jacques Turgot

Anne Robert Jacques Turgot, barão de l´Aulne, nasce em 1727 em Paris. Filho do
prévôt dos mercadores de Paris (cargo administrativo que hoje equivaleríamos a
Presidente de Câmara) e pertencente a uma antiga família normanda faz estudos para a
vida eclesiástica (que não seguirá) e pela Sorbonne. Magistrado com fama de
integridade, terá sido vítima de numerosas intrigas, imbuído no espírito do Iluminismo e
38
Cf. idem, ibidem, pp. 85 e seg.
39
Nomeadamente Evidência, “Arrendatários” (ensaio da Enciclopédia, 1756), Homens, Tableau
Économique, Extrato das economias do Sr. De Sully, O Direito Natural, Resposta à memória do Sr. H.
sobre as vantagens da indústria e do comércio sobre a fecundidade da pretensa classe estéril, etc.,
Máximas gerais do governo económico de um reino agrícola in idem, ibidem, pp. 42-188

25
fisiocracia. Nos salões que frequenta na capital depara-se com as novas ideias da escola
fisiocrata amigando alguns dos seus mais ilustres representantes. Conhece Voltaire
numa viagem que faz ao leste do reino e à Suíça que será dos seus principais defensores.

Na década de 50 estuda diversas línguas e ciências, traduz um livro do inglês, publica


escritos a favor da tolerância religiosa e ainda escreve para a Enciclopédia. A obra
realizada como intendente de Limoges (colector de impostos desta comarca) chamou-o
a responsabilidades de governo, tendo passado pelos departamentos da marinha e
finanças, durante o reinado de Luís XVI. Redige inúmeros pequenos trabalhos sobre a
actividade económica, política fiscal e críticas ao sistema económico francês. A sua
preocupação de encetar reformas profundas e rápidas, aliada a alguma ingenuidade,
afasta-o da Corte. É apontado como revolucionário pelos tradicionalistas. As suas obras
de imbuídas do fisiocratismo são numerosas mas dispersas. Foi ele que extinguiu as
corporações profissionais (1776), restabelecidas pelo seu sucessor.

Da sua obra económica damos relevo às suas Reflexões sobre a Formação e a


Distribuição das Riquezas (1776) e a um projecto de artigo chamado «Valor e Moedas»
(1769). Superintendente das finanças de 1774-6, depois da sua saída medidas que tentou
implementar serão revogadas e só a partir da Revolução de 1789 triunfará a politica
liberal em matéria económica.

Embora geralmente considerado um fisiocrata as suas ideias e prática associam-se


mais a um liberalismo económico. Quesnay e os seus discípulos não verão na França a
implantação de uma política que siga os preceitos por eles defendidos. Turgot que não
pode ser considerado um fisiocrata puro apesar de partilhar muitas ideias dos anteriores
toma medidas enquanto controlador geral das finanças em favor da livre circulação de
produtos agrícolas e contra os privilégios antigos das corporações. Não sobreviverá
politicamente.

Foi considerado o último dos reformadores que tentou alterar o rumo em que a França
inevitavelmente se encaminhava40.

40
A generalidade das obras que consultamos e páginas de sítios da internet parecem unânimes em
associar aos esforços reformistas de Turgot o último período de tentativas sérias de salvar o status quo.
Podemos citar, a título de exemplo, a opinião conforme in GRIMBERG, História Universal. O espírito das
luzes. As lutas europeias, vol. 14, pp. 55-56

26
b) Análise textual e enquadramento na teoria

i) O fisiocratismo: os princípios de Quesnay

Na primeira parte do documento que pretendemos comentar encontra-se um conjunto


de máximas que poderemos nomear o mesmo que o título em epígrafe. Foram retiradas
dos Textes e Documents d´Histoire Moderne de M. Devéze e R. Marx, Paris, 1967,
páginas 303 e 304 [ANEXO IV]. Os enunciados saíram em 1758 e denominava-se
Máximas gerais do governo económico de um reino agrícola. É constituído
originalmente por trinta preceitos, de Quesnay, cujo médico autor explana simplesmente
os princípios do fisiocratismo. Analisaremos, portanto, em maior detalhe, os seis itens
enunciados na primeira parte do documento 43.

O artigo III enuncia «que o soberano e a nação jamais percam de vista que a terra é a
única fonte de riquezas e que a agricultura é que as multiplica». Ora aqui está a ideia
central de todo o pensamento. Como apresentamos no subcapítulo teórico supra, a terra
é a única produtora de riqueza. Daí se assegura a segurança material da população mas
também só daqui se pode ampliar o comércio, animar a indústria. Toda a prosperidade
da economia (e portanto do reino) emana e depende da agricultura.

No ponto seguinte (IV) defende o médico que a propriedade dos bens territoriais e
riquezas mobiliárias devem ser asseguradas aos seus legítimos donos porque só assim se
fundamenta a ordem económica da sociedade. Além de afirmar o princípio da
propriedade privada é defendido também que este deve ser exercido e respeitado para o
bem e saúde da economia. É este o fundamento deste “direito natural” tal como o
defendeu Locke e defende Hume. A não garantia deste direito impediria que quem
acumulasse riqueza fundiária e a tornasse produtiva logo a abandonasse sem ter
qualquer incentivo para investir ou até mesmo produzir. Será portanto a segurança a
assegurar o bem-estar do rendimento de uma nação desde o campo à cidade. A
desigualdade era condição para a riqueza colectiva de uma nação. Ora, por outro lado,
sem essa certeza da propriedade, reinaria o inculto dos campos. A propriedade emana
pois da valorização do trabalho, determinante para legitimar a posse de propriedade
privada. Frisamos que se não, nem proprietários nem arrendatários teriam incentivo a
investir, valorizar e cultivar a área agrícola, ausente este direito. Caberia então ao poder

27
soberano e só a ele assegurar essa posse mas também de essa propriedade de ter direito
sobre a partilha dos seus frutos.

Na oitava máxima (VIII) postula «que o governo económico apenas se ocupe em


favorecer as despesas produtivas e o comércio dos géneros da agricultura, deixando ir
por si mesmas as despesas estéreis». Na óptica fisiocrática os trabalhos artesanais e
industriais (sendo estéreis todas as actividades não agrícolas) são apenas um objecto de
despesa e não fonte de rendimento. Servem para fazer circular e alimentar a riqueza
proveniente da natureza. Aqui claramente observamos um princípio anti-mercantilista,
especialmente anti-colbertista visto que este preconizava a defesa e fomento
manufactureiro em detrimento do desenvolvimento agrícola. Também no seu Quadro
Económico, que tivemos hipótese de aludir, pode Quesnay ilustrar graficamente como a
agricultura, única produtora de nova riqueza, alimenta os restantes sectores da economia
e como os outros nada produzem embora façam parte de toda a engrenagem.

No princípio IX há um reforço da ideia anterior. Uma nação com um vasto território


agrícola e facilidade de exercer o comércio de géneros agrícolas (como era a França)
não deve investir a maioria ou mesmo grande parte dos seus recursos e homens nas
manufacturas já que necessariamente se descuraria a agricultura. Mais uma vez a
história recente está bastante presente na mentalidade do escritor. O contraste com o
bem-sucedido caso inglês é aludido para contrapor à agricultura gaulesa de pouca
produtividade. Se adicionarmos o facto de os fisiocratas preconizarem a agricultura
como fonte da riqueza e a indústria como mero tributário melhor se entenderá este
ponto.

A proposta de impor o livre comércio de produtos agrícolas ao exterior é reafirmada no


princípio XVI já que «tal é a venda, tal é a reprodução». Limitar este comércio é limitar
a agricultura à população nacional. A sua venda ao exterior permite aumentar o
rendimento. Este atrairá homens ao reino, este levará ao fomento do seu consumo. De
uma parte e de outra se estimula o progresso agrícola/rendimentos. Os preços flutuaram
muito menos que numa economia fechada (ora superproduções fazem baixar os preços e
subproduções levam à carestia e revoltas). As nações necessitadas em maus anos podem
assim abastecer-se noutras que possuam excedentes. Assim se reafirma no princípio
XXV: «que se mantenha a inteira liberdade do comércio, pois a política de comércio
exterior mais segura, mais exacta e mais vantajosa à nação e ao Estado consiste na plena

28
liberdade da concorrência». O levantamento de entraves internos também está incluído
nesta política de inteira liberdade da circulação de bens. Seria o mais rendoso à nação e
Estado liberalizar, assim beneficiar o sector agro-pecuário e assim fortalecer toda a
robustez económica do reino. Este ideal de liberalização económica será um dos
baluartes da escola clássica e reutilizado em teorias económicas desde a Inglaterra
vitoriana aos dias de hoje.

ii) Observações críticas de Turgot à orientação dos fisiocratas

Na segunda parte do documento central e mote deste trabalho, o documento 43,


encontra-se uma das diversas cartas 41 que o então Intendente geral das Finanças

41
O excerto da carta em anexo encontra-se no original francês. Não encontrámos uma versão
portuguesa. Pela sua extensão e para permitir o entendimento ao leitor que não domine a
língua francesa passamos a transcrever uma tradução livre nossa: “Por vezes acho que vós não
destes a importância suficiente aos vossos princípios, que, sempre guiados pela acção seguida
pelo nosso doutor, sempre apoiados na análise profunda que ele fez da formação, circulação e
reprodução do rendimento, não vos servistes bastante do principio menos abstracto, mas
talvez mais luminoso, mais fecundo ou pelo menos mais acutilante pela sua simplicidade e pela
sua abrangência sem excepção: o princípio da concorrência e liberdade das trocas comerciais,
consequência imediata do direito de propriedade e da faculdade exclusiva que cada indivíduo
tem de conhecer os seus interesses melhor do que os outros. Este único princípio havia
conduzido M. de Gournay, a partir do seu contador aos mesmos resultados práticos aos quais
chegou o nosso doutor, ao falar do arado. Sentir-me-ia honrado para toda a vida de ter sido o
discípulo de um e do outro… Eu vejo-vos, por falta de desenvolvimento do conjunto das
consequências destes dois princípios e de os ter posto em marcha, andar, como se costuma
dizer, em torno das questões. Vós hesitastes, no artigo do preço do pão, propusestes uma
reforma das tarifas e não fostes à raiz, ao abuso de existirem corporações de padeiros,
estatutos, de taxar os géneros alimentares em todas as cidades do reino. Vós estais tão
ocupado na vossa animosidade contra a indústria, divertis-vos tanto a provar-lhe que ela é
estéril (questão que resulta de um mal-entendido, dado que foi apresentada com vista a picar a
vaidade dos grandes industriais, enquanto, bem entendido, ela não lhe apresenta senão
vantagens) que vos esqueceis de atacar todos os miseráveis entraves de toda a espécie que
estão presos a esta indústria em todos os ramos: monopólios das corporações, aprendizagens,
ofícios [compagnonnages], estatutos, regulamentos manufactureiros, casas alfandegárias,
inspectores; todas estas iníquas e risíveis instituições, sobre as quais M. de Gournay tinha
criticado sem rodeios, aparecem impunemente em todas as vossas gazetas, onde imbecis
inspectores imputam a queda do comércio à inobservância dos regulamentos. Vós sois os
protectores da indústria e do comércio e tendes falta de habilidade em exibir os seus inimigos.
Esta pobre classe remunerada, à qual vos agradou dar o nome de estéril, porque não produz
nenhum rendimento e porque os valores que ela produz, estando dependentes por inteiro da
reentrada de rendimentos e da subsistência dos seus agentes, não são transmissíveis, nem
disponíveis – esta classe e as honestas gentes que a compõem, crendo que lhes disputam a
honra de ser cidadãos úteis, indignam-se desta humilhação injuriosa e esforçar-se-ão por
29
escreveu ao seu amigo e fisiocrata Dupont de Nemours. A carta data de 1766, sendo
Turgot ainda Intendente de Limoges. A epístola foi-nos apresentada no original francês
retirada de Dupont de Nemours et l´école physiocratique, de G. Shelle, Paris, 1888, pp.
74-75 ; citado dos Textes et Documents d´Histoire Moderne, de M. Devèze e R. Marx,
Paris, 1967, pp. 304-305 [ANEXO V].

Antes de mais permitimo-nos a escrever uma nota prévia. Em Paris Turgot frequenta
diversos salões, destacando-se o de Mme. de Graffigny. É neste contexto que conhece os
líderes da escola fisiocrática, dos quais importa referir Quesnay, Vincent de Gournay e
de Nemours. Em 1743 e 1756 acompanha o intendente do comércio, V. de Gounay
durante as suas inspecções pelas províncias, estreitando relações com o segundo. O
intendente de Gournay, referido na carta, foi um discípulo do fisiocratismo de Quesnay,
radical defensor do “lassez faire, laissez passez” (expressão que lhe é atribuída)
extensível a toda a actividade económica e política fiscal. Não deixou muitos escritos
mas a sua influência sobre os pensadores políticos desta altura foi importante sendo
responsável pela divulgação dos trabalhos de Richard Cantillion. O principal contributo
que deixará ao seu amigo Turgot será a sua animosidade contra as regulamentações
governamentais do comércio que culpa de o embaraçar severamente.

Ao longo da carta é referido de forma sólita «estimado doutor». O autor refere-se à


“cabeça de cartaz” desta fila de pensadores, François Quesnay, que falecerá em 1774 e
representa a figura tutelar das ideias destes homens.

Reconhecendo-se discípulo tanto de Quesnay como de de Gournay vai-se distanciar da


ortodoxia fisiocrática. Aprova os métodos de investigação e algumas linhas de
pensamento mas rejeita o alcance da teoria (para o autor é limitada) e a acção dos seus
representantes seja nos debates em cafés e salões seja nas publicações periódicas. Aqui
a verrina cairá sobre o seu amigo de Nemours, mas este último é simbólico do
entendimento e críticas que fará recair sobre a fisiocracia.

Escreve o futuro Intendente geral das Finanças de Luís XVI: «Vós, fisiocratas não
destes a importância suficiente aos vossos princípios, que, guiados pela acção seguida
pelo nosso doutor (…) não vos servistes bastante do princípio menos abstracto, talvez

provar que são muito produtivas e, por consequência, há motivos de lhes impor a capitação, o
cadastro completo e o vigésimo da indústria…”

30
mais luminoso (…) e pela sua abrangência sem excepção: o princípio de concorrência e
liberdade de trocas comerciais». A mais importante contribuição do fisiocratismo parece
ter passado para o segundo plano para os mesmos fisiocratas. Turgot pensa no princípio
da livre concorrência como portador de duas vantagens. A obediência a leis inerentes à
natureza regularia os mercados, arranjando as quantidades e preços óptimos a ser
transaccionados. A produção aumentaria estimulada por um mercado livre e produtores
desamarrados de grilhões governamentais que só constrangem a ordem natural. Preza o
contributo desta escola de pensamento, pela «análise profunda que ele [Quesnay] fez da
formação, circulação e reprodução do rendimento» – teorização inovadora indispensável
à construção de todo o edifício do pensamento económico.

As “luzes” que também alcançam este homem levam-no a suportar as suas conclusões
com o recurso à razão: a capacidade individual e o respeito dos “direitos naturais”
(especialmente à propriedade) são a condição sine qua non do sucesso das suas teorias
económicas.

A liberalização como orientação ideológica recebeu-a de de Gournay, opositor claro às


restrições estatais. Reconhece então que herdou o raciocínio e entendimento da
actividade económica através de Quesnay e o plano de combater os problemas e fazer
florescer a economia de de Gournay.

O remetente acusa Dupont de Nemours de se ficar pelo fisiocratismo, na pior acepção


dessa palavra. Num artigo que o último terá escrito, Turgot acusa-o de se ficar então
pela rama. Segue o raciocínio mas falha nas soluções apresentadas. Falhou na segunda
parte – abolir as instituições que prejudicassem a liberdade de circulação dos meios de
produção – pessoas e bens. Pelas suas palavras, abolir a antiga instituição das
corporações, estatutos e a taxação de bens agrícolas transaccionados. A taxação
excessiva ou mesmo de todo representava um travão indesejado. Convém estabelecer a
liberdade do comércio dos cereais a fim de que estes possam ser exportados nos anos de
abundância e vendidos a bom preço. Este assegurará uma cifra elevada de negócio ao
rendeiro que assim poderá pagar uma renda elevada ao proprietário, realizando ambos
lucros elevados. Estes por sua vez permitem aumentar o capital investido na agricultura
e consumo, o que se vai espelhar na prosperidade geral.

A segunda acusação nasce da crítica ao desprezo daquilo que hoje chamamos sector
secundário: «vós estais tão ocupado na vossa animosidade contra a indústria, diverti-vos

31
tanto a provar-lhe que ela é estéril (…) que vos esqueceis de atacar todos os miseráveis
entraves de toda a espécie». Turgot é, na verdade um defensor da classe estéril.
Ultrapassa a visão estritamente fisiocrática de que o único produtor de rendimento é a
agricultura e todos os outros ramos da economia apenas a servem ou se servem dela. Vê
na indústria um meio de assegurar o desenvolvimento, prover os mercados, enriquecer o
Estado e fomentar o comércio como apoio à economia e à projecção internacional do
reino. Vê nas críticas fisiocráticas a simples cegueira e animosidade contra os grandes
industriais. A indústria deve ser valorizada como geradora de uma mais-valia e por isso
ser taxada. Opõe-se ainda ao princípio fiscal enunciado por Quesnay (do imposto único
sobre a terra). Pelo menos apresenta-se longe da visão ortodoxa. Duas eram as
principais contingências do futuro ministro a esta política fiscal: por um lado, num
contexto económico, a impossibilidade de realizar poupanças nas despesas do Estado
que por si só seriam possíveis e por outro lado, num contexto institucional a grande
resistência de discutir nas assembleias propostas que pouco interesse ou possibilidade
tinham de passar. Também lembremos que este tipo de reformas estruturais precisam de
tempo a surtir efeito numa conjuntura que exigia uma inversão rápida da situação. A
impaciência da opinião pública e do rei urgia portanto outro tipo de soluções que
fossem quase milagrosas ditando o seu fim.

O autor enumera ainda uma série de entraves que batalhará aquando ministro do rei na
segunda metade da década de 70. Em primeiro lugar, o «monopólio das corporações,
aprendizagens/ofícios [compagnonnages]». Este tipo de instituições laborais que se
generaliza a partir de 1719 designa a agremiação de indivíduos em situação profissional
para protecção dos seus membros e actividade. Com raízes na Idade Média, evoca um
grupo mais ou menos fechado e anti-concorrência que recorrendo à protecção mútua,
educação e transmissão de conhecimentos entre os seus membros poderia representar
uma força de paralisação. No Oitocentos tornam-se fortes na mobilização e organização
dos trabalhadores, chegando a controlar a contratação de uma cidade onde estabelece
“interdições aos negócios” (interdictions de boutiques) a mestres recalcitrantes. Por
vezes vai colocar cidades inteiras sob a privação de contratar, ameaçando-a assim de
falência generalizada. Ao mesmo tempo a sua divisão e rivalidade é enorme levando a
rixas entre os membros de diferentes instituições mutualistas. Apenas após a Revolução
Francesa, em 1791, se inicia o verdadeiro caminho para a desagregação destes
organismos pelo decreto d´Allarde. Por outro lado, Turgot vai-se insurgir contra os

32
regulamentos manufactureiros, a acção das casas alfandegárias e dos inspectores.
Considera-os parte de uma política iníqua, obsoleta e que apenas coagula o sangue da
economia francesa. Estes inspectores são ainda defendidos no artido de de Nemours e
acusação as dificuldades industriais da inobservância dos regulamentos ao invés de se
aperceberem de que eles serão relevantes responsáveis.

Renega a ideia de esterilidade do sector secundário defendida pelos fisiocratas, na


esteira de de Gournay, considerando-as efectivamente produtivas e que acrescentam
valor e por isso podem e devem ser taxadas.

Em 1775, ano da coroação de Luís XVI, de Nemours escreverá a Turgot uma obra
sobre as suas Memórias (sobre as municipalidades a estabelecer em França). Em Abril-
Maio o insucesso da liberalização do mercado cerealífero origina uma escassez e
carestia conduzindo à chamada guerra da Farinha. Em Janeiro-Fevereiro de 1776 Turgot
abole as corporações e substitui a corveia por um imposto in natura. A 12 de Maio
chega por fim a desgraça do então Intendente geral das Finanças. É demitido42.

Esta carta remetida por Turgot é clara evidência de que não faz parte da escola, embora
lhe esteja próximo; tanto pessoal como ideologicamente.

42
Ver FURET, F, La Revolution. De Turgot à Jules Ferry (1770-1880), pp. 21-55

33
PARTE IV

CONCLUSÃO

O mundo de Oitocentos ainda era dominado pela vida rural. O comércio e


expansionismo europeu deu novo vigor às cidades e sua burguesia tal como alimentou
um conjunto de disputas e lutas pela hegemonia aquém e além-mar. O mercantilismo,
defesa que surge num universo de conflito vai erodindo ao clamor das luzes do novo
século. As ideias racionalistas e Iluministas, espalhadas num reino como o francês onde
circulavam a maioria das obras literárias ou cuja língua era mister nas relações
internacionais, nascerão também aí. A sociedade e tradição, alvo de críticas e tentativas
de reforma dão lugar a um novo pensamento económico. Apesar de vigorar apenas
durante pouco mais de uma década entre o final dos anos 50 e início dos 70 o seu valor
mede-se por ter lançado toda uma nova disciplina e método.

Num século de constante mutação social, deslocação de centros de poder, desafios


financeiros podemos apresentar algumas causas profundas e causas imediatas mais
evidentes da derrocada do Ancien Regime: a incompletude do quadro estatal 43
apresentava diversas facetas: das divisões territoriais sobrepostas que não coincidiam
aos domínios administrativos, judicial, fiscal e religioso. Antigas províncias eram agora
reduzidas à esfera de governos militares cujos intendentes operavam fora da sua área: a
discrepância mantinha-se entre os bailiados da França do Norte e as senescálias do
Sul44. O fraco e incoerente sistema fiscal que variava consoante a ordem (privilegiado
ou não), lugares e regiões, cidade ou campo. Esta falta de uniformização, coerência e
resistências sociais acabará por, no final dos anos 70 estrangular a vontade reformista da
monarquia. A crise social é uma contestação fundamental da ordem estabelecida e do
declínio absoluto ou relativo da aristocracia nobiliárquica.

43
Apontado pelos contemporâneos da revolução de 1789 e pela historiografia clássica moderna como
um dos mais evidentes indícios do desajuste da organização burocrática francesa num mundo de novas
exigências.
44
Intendentes com características institucionais e funções administrativas, judiciais equivalentes aos
sheriffs ingleses.

34
A nova ciência económica, sob as ideias dos filósofos economistas, afirma-se
evidentemente contra a política preconizada pelos mercantilistas e contra a sua
afirmação do papel essencial desempenhado pelo comércio externo como meio de atrair
o ouro e a prata. Uma autêntica escola difundirá as ideias concebidas pelo seu mestre,
François Quesnay, por intermédio de uma série de publicações periódicas.

Porém, à data da revolução a fisiocracia já não se encontra tão em voga. Após a morte
de Quesnay no mesmo ano em que Turgot chega ao posto de Intendente geral das
Finanças, em 1774, o marquês de Mirabeau assume a figura central desta escola mas
pouco impacto terá e pouco se falará deles. Exceptue-se, claro a análise de Adam Smith
no seu livro Inquérito sobre a Riqueza das Nações. Apenas com os estudos do processo
de reprodução marxista se volta a desenterrar as ideias destes pensadores. A burguesia
industrial e mercantil, neste século XVIII e seguinte, fortalecida passará a concordar
com a agenda liberal fisiocrática, crendo-se entravada pela intervenção do Estado e
pelas inúmeras regulamentações económicas e sociais do Antigo Regime45.

O que se seguiu ao cocuruto do fisiocratismo? Depois de Quesnay, excluindo o


heterodoxo Turgot, vai-se desenvolver uma concepção de uma ordem social natural
rígida. Uma nova visão sintética da fisiocracia terá como porta-estandartes Le Mercier
de La Rivière e Dupont de Nemours. A liberalização económica dá lugar a uma
evaporação de todas as reservas concernentes aos benefícios da liberdade. Estende-se
esta primeira liberdade à de cultivo: para obter o máximo produto líquido deve-se então
suprimir todas as servidões senhoriais e estatais que constranjam o camponês. O mesmo
se aplica à manufactura permitindo embaratecer os produtos comprados por este. O
corolário do direito de propriedade passa a assumir o carácter de um dogma.
Rapidamente o “deixai fazer, deixei passar” se torna um princípio a tudo extensível (na
esfera económica) e em nada discutível. Este sistema fisiocrático fundamenta-se, por
fim, numa concepção da ordem natural da sociedade. Os homens teriam um fim
marcado pela sua natureza e os meios para o concretizaram não poderiam nunca advir
da arbitrariedade. Esta ordem encerraria as leis fundamentais de todas as sociedades,
sociedade natural, anterior às convenções entre os homens e que satisfaria as suas
necessidades e interesses comuns. A ciência económica, como ciência total permite

45
Cf. VOVELLE, A revolução francesa 1789-1799, pp. 15-24

35
alcançar a melhor constituição política 46 . As finanças devem ser extremamente
simplificadas, a defesa nacional assegurada por voluntários pagos e não por um sistema
de milícias e recrutamento atentatórios da liberdade; a perseguição da religião e
costumes deve ser minimizada, a justiça só deve intervir quando solicitada por um
particular. Neste sistema onde o governo nada deve fazer, o sistema político a vigorar
acabava por ser indiferente desde que respeitasse esta premissa.

A título de curiosidade o fisiocratismo também teve presença em Portugal. Nas


Memórias Económicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa, em cinco volumes
(1789-1816), podemos observar a projecção desta escola francesa. Numa altura em que
as ideias de Adam Smith claramente superavam a circulação da escola fisiocrata e
apesar dos laços mais estreitos que Portugal tinha com Inglaterra política e
economicamente podemos observar que os intelectuais portugueses se achavam mais
familiarizados com o pensamento francês. Nestas Memórias, apesar de ainda
permanecer o ideário mercantilista nalguns trabalhos que preconizam a necessidade de
evitar que o numerário saia do reino (cujos títulos são ilustrativos, Álvares da Silva, As
verdadeiras causas por que o luxo tem sido nocivo aos portugueses, Sousa Coutinho, A
verdadeira influência das minas dos metais preciosos na indústria das nações que os
possuem e especialmente da portuguesa). Porém noutro trabalho Alvares da Silva já
fala de uma livre circulação dos produtos (A agricultura portuguesa) ou a influência em
Domingos Vandelli (A preferencia que em Portugal se deve dar à agricultura sobre as
fábricas). Pretendemos referir apenas alguns nomes sendo que a lista ainda é extensiva.

Quanto às críticas que poderemos apontar às teses fisiocráticas, uma advém da


negação da história. Homens do seu tempo (aliás, como nós) partem de um optimismo
de que se podem encontrar leis análogas às da física que governassem as actividades
económicas, lavrando inclusive caminho para se fazerem descobertas nesse sentido e
que serão depois desenvolvidas. Mas desta extrapolação e da de que as leis são
universais, no tempo e espaço, visto que se fundam nas necessidades físicas do homem,
anteriores às convenções sociais (como apontou Dupont de Nemours), então todas as

46
Conta-se a história de que um dia o delfim de França numa queixa ao médico do rei de que seria difícil
desempenhar o encargo real, Quesnay respondeu-lhe que não achava. Perplexo o jovem herdeiro
perguntou: «Que faríeis então, se fosseis rei?». «Senhor», responde Quesnay, «não faria nada». Cf.
DENIS, História do Pensamento Económico, pp. 180.

36
relações económicas são mecânicas e a história um mero conjunto de histórias47. Outra
conclusão perigosa será, crendo que as leis económicas são universalmente válidas, se
deverá obedecer e respeitar aos efeitos que estas produzem por mais aberrantes que
sejam.

47
Dois argumentos que podemos apontar para suportar este nosso ponto, podem ser os dois trabalhos
de Quesnay: Análise do Governo dos Incas do Peru (1767) e Despotismo da China (s.d.). Aqui, entre duas
sociedades organizadas em culturas milenaristas pode-se ilustrar quanto, para a ciência económica, é
independente da história.

37
PARTE V

INVENTÁRIO BIBLIOGRÁFICO

 BLOCH, Marc
“La Historia Rural Francesa: caracteres originales”, Barcelona, Crítica,
1978

 BRAUDEL, Fernand, LABROUSSE, Ernest


“Histoire Économique et Sociale de la France. Des derniers temps de l´âge
seigneurial aux préludes de l´âge industriel (1660-1789)”, Volume II, Presses
Universitaires de France, 1980

 DEANE, P; COLE, W.A.


“British economique growth 1688-1959. Trends and Structure”, 2ª ed.,
University Press Cambridge, 1969

 DENIS, H
“História do Pensamento Económico”, Livros Horizonte, 1990

 ELLUL, Jacques
“Histoire des Instituitions. XVIe-XVIIIe siècle”, Volume 4, 8ª ed., Paris,
Presses Universitaires de France, 1984

 FURET, François
“La Révolution. De Turgot à Jules Ferry (1770-1880)”, [s.n], 1990

 HABAKKUK, H.J
“English population in the Eighteenth Century”, Economic History Review,
Dezembro 1953

38
 KUNTZ, Rolf,
“François Quesnay. Economia”, São Paulo, Ática, 1984

 MARTÍNEZ, Soares
“Economia Política”, Capítulo IV – A Evolução do Pensamento e dos
Factos Económicos, Almedina, 11ª ed., Coimbra, 2012

 SHENNAN, J. H.
“A França antes da revolução”, Lisboa, Gradiva, 1989

 SMELLIE, K. B.
Great Britain since 1688. A Modern History, University of Michigan
Press, Abril 2012

 VOVELLE, Michel
“A revolução francesa. 1789-1799”, Edições 70, Junho de 2007

39
PARTE VI

ANEXOS

ANEXO I – Cronologia seleccionada da França do séc. XVIII

Ano Efeméride
1694 Nasce François Quesnay perto de
Versalhes, a 4 de Junho.
1700 Maior país europeu, possui cerca de 20
milhões de habitantes.
1702-13 Guerra da Sucessão de Espanha. Luís
XIV satisfaz a ambição de colocar o
seu neto no trono espanhol (Filipe V).
1709 Inverno severo em França, com fomes
1715-23 Morte de Luís XIV e regência de
Filipe, duque de Orleães.
1717 Início das operações de John Law com
a aquisição da Companhia do
Mississipi.
1718-20 Guerra da Quádrupla Aliança.
1720 Bancarrota em França. Peste em
Toulon e Marselha.
1726-43 O cardeal Fleury, antigo tutor de Luís
XV torna-se a eminência parda deste
rei até à data da sua morte.
1727 Nasce a 10 de Maio Jacques Turgot,
em Paris.
1731 Vaga de enclosures em Inglaterra.
1740 Guerra da Sucessão na Áustria.

40
1749 Criação do imposto da vintena em
França.
1751 Publicação do primeiro volume da
Enciclopédia.
1756 Eclosão da Guerra dos Sete Anos.
1758 Quadro Económico de François
Quesnay.
1761 Encerramento dos colégios jesuítas em
França. Novo Pacto Família para
aplacar o crescente poderio marítimo
inglês.
1768 Cultura da batata em França.
1774 Morte de F. Quesnay. Luís XVI é rei
de França.
1774-76 Turgot enquanto Intendente-Geral das
Finanças defende uma agenda próxima
dos fisiocratas
1788 Luís XVI convoca os Estados Gerais
para o ano seguinte
1789 O Terceiro Estado proclama a
“Assembleia Nacional” e em Julho a
Bastilha é tomada – início da
Revolução Francesa

41
ANEXO II – Evolução demográfica na Inglaterra (Reino Unido) ao longo do
século XVIII. Quadro retirado de

42
ANEXO III – Ilustração da Tabela Económica original, publicada por Quesnay
em 1759

43
ANEXO IV – Primeira parte do documento 43 Teorias Económicas do séc.
XVIII: O Fisiocratismo: os príncipios de Quesnay

44
ANEXO V – Segunda parte do documento 43 Teorias Económicas do séc. XVIII:
Observações críticas de Turgot à orientação dos fisiocratas

45

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